A quantidade de investigações antitruste das big techs reflete a deficiência do controle de estruturas para a economia digital

Elvino de Carvalho Mendonça

Na semana passada as big techs Apple e Google voltaram a cena nos EUA e na França.

O Departamento de Justiça dos EUA (USDOJ) condenou a gigante Apple por prática de monopolização no mercado de smartphones[1] e a Autoridade Francesa da Concorrência (Autorité de la Concurrence) impôs uma multa de 250 milhões de Euros ao Google em razão do descumprimento de compromissos previstos na decisão 22-D-13, de 21 junho 2022[2].

O combate das principais jurisdições concorrenciais contra condutas anticompetitivas de empresas com as características das conhecidas big techs é algo corriqueiro no mundo da defesa da concorrência.

Por que isso acontece?

Em primeiro lugar, deve-se pontuar que as empresas mencionadas e as demais big techs são detentoras de elevadas participações de mercado nos mercados onde atuam, condição necessária para que o poder se transforme em abuso.

Em segundo lugar, o crescimento destas empresas não se deu somente pela aquisição de empresas concorrentes, mas também pelo crescimento orgânico advindo da natureza dos negócios em que atuam[3].

O crescimento por meio de fusões e aquisições é controlado por grande parte das autoridades de defesa da concorrência no mundo via controle de estruturas. Neste caso, o controle do poder de mercado se dá pela imposição de filtros para a submissão obrigatória de operações às autoridades de defesa da concorrência.

Entretanto, quando o crescimento do market share é obtido de forma orgânica[4] não há nada que as autoridades de defesa da concorrência possam fazer em sede de estrutura e toda a intervenção em que podem atuar se dá no âmbito de investigação de condutas anticompetitivas.

No entanto, ainda que as principais autoridades de defesa da concorrência atuassem para identificar o nexo de causalidade entre a operação e o abuso de poder de mercado, a natureza de preço zero presente nos produtos das big techs tornaram ineficazes os métodos para identificação das fusões e aquisições sobre os preços e sobre o bem-estar do consumidor.

Associado a dificuldade de medir os efeitos da operação está o crescimento orgânico das big techs, cujo acompanhamento, conforme já afirmado, foge ao controle das autoridades de defesa da concorrência. Neste caso, todos os esforços de controle de estruturas neste mercado complexo não foram suficientes para evitar que estas empresas detivessem poderes de mercado próximos do monopólio.

Notícias de imposição de sanções a empresas com características das big techs por parte das autoridades de defesa da concorrência do mundo é e continuará a ser um expediente comum por um bom tempo, pois, muito embora a teoria antitruste já tenha evoluído bastante em matéria de análise de fusões e aquisições na economia digital[5] e possa evitar acréscimos de participação de mercado e exclusão de startups do mercado: (i) as operações de fusão e aquisição que deram origem a posição dominante das big techs já ocorreram; e (ii) a natureza do mercado digital gera por si só crescimento orgânico.


[1] Office of Public Affairs | Justice Department Sues Apple for Monopolizing Smartphone Markets | United States Department of Justice

[2] A decisão 22-D-13, de 21 junho 2022 trata de direitos conexos existentes entre o Google e os Google e os editores ou agências de notícias.

[3] É importante ressaltar que estas empresas, ao captarem volumes gigantescos de dados, são capazes de predizer os comportamentos de seus clientes e de determinar o seu consumo, o que tem uma relação direta com a conquista de participação de mercado.

[4] No Brasil, por exemplo, a legislação exige notificação obrigatória para operações em que pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 750 milhões e pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 75 milhões.

[5] Federal Trade Commission Withdraws Vertical Merger Guidelines and Commentary | Federal Trade Commission (ftc.gov)

Big Government vs. Big Business – o déjà vue no caso DoJ vs. Apple

Lucia Helena Salgado

O DoJ (Departamento de Justiça norte-americano) anunciou no final de março de 2024 ter dado entrada em ação contra a Apple por práticas que têm conduzido à monopolização e à manutenção do monopólio.

A acusação básica é a monopolização do mercado de smartphones, com práticas que retêm os consumidores, – impedem a compatibilização com produtos, acessórios e aplicativos produzidos em outros sistemas operacionais e deterioram a comunicação e interoperabilidade com smartphones de outros fabricantes. Essas práticas tornam elevado o custo de troca por parte dos consumidores do iphone da Apple por outras marcas de smartphone.

Recentemente (2023), o DoJ entrou em outra disputa judicial, dessa feita com a Google, também pela monopolização e manutenção de monopólio do mercado de propaganda digital, enquanto o FTC (Federal Trade Commission), desde o início da administração Biden em 2021, vem questionando judicialmente aquisições tanto da Meta (dona do Facebook, Instagram e Whatsapp) quanto da Microsoft.

Essa mudança de rota radical na condução da política antitruste nos Estados Unidos, de décadas de “bigness is beautiful” para um retorno às origens do “bigness is awful” tem sofrido derrotas no Judiciário e pode vir a ser abandonada no caso do retorno de Donald Trump à Casa Branca.

Contudo, o atual caso DOJ vs. Apple guarda particularidades que vale a pena detalhar. A primeira, mais simples e circunstancialmente importante, é que a investigação sobre as práticas adotadas pela Apple para manter inexpugnável sua posição de mercado (mais de 60% do mercado norte-americano de smartfones), teve ainda em 2019, no curso da administração Trump. O fato serve como indicador da possibilidade da continuidade desse caso, mesmo com mudança do comando do governo federal, da administração democrata para a republicana.

O segundo ponto a salientar é a coincidência de temas do caso Apple com outros leading cases que marcaram a história do antitruste, a começar pelo caso Xerox passando por Kodak, Nespresso na França e Apple (na Europa e agora nos EUA)[1]. Em todos os casos, estamos falando de um modelo de negócios alicerçado sobre a fidelização dos consumidores, processo iniciado com uma inovação (de produto ou serviço) que conquista a adesão e confiança de número expressivo de consumidores, tornando o empreendimento viável no novo front de mercado. Tal adesão baseia-se na conveniência, qualidade e disponibilidade do novo bem/serviço e é reforçada pela propaganda que acentua a diferenciação daquele produto – sempre associado a uma marca – com relação a qualquer candidato a substituto.

A partir dessa base, que em organização industrial conhecemos por “a vantagem do pioneiro”, o ofertante constrói barreiras que lhe permitem cobrar preços elevados e mantê-los em patamar elevado sem preocupação de que poderia perder seu público (e com ele seu faturamento), mantendo-se protegido da concorrência pela falta de disposição de seus clientes de se aventurarem a experimentar produtos/serviços de outros ofertantes, em função das inconveniências associadas ao custo de troca.

Até aí, estamos diante de uma estratégia bem-sucedida de criação de mercado por inovação e construção (real e/ou imaginária) de diferenciação, que atende tanto aos anseios de lucratividade como aos desejos dos consumidores.

Saliente-se que novos mercados foram criados pelas inovações: máquinas reprográficas da Xerox substituíram carbonos e mimeógrafos; rolos de filmes e kits de revelação disponíveis no comercio varejista popularizaram a fotografia, antes restrita a estúdios profissionais; a máquina de café Nespresso trouxe para dentro dos lares e escritórios europeus (principalmente franceses) o requinte do café expresso italiano; por fim chegamos ao iphone, cuja inovação consistiu em reunir em um único dispositivo inovações fundamentais desenvolvidas por anos de pesquisa e desenvolvimento com financiamento público (no âmbito de universidades e do complexo industrial de defesa norte-americano): a internet, o gps, a tela de cristal líquido, dentre outras.

Todos esses produtos e serviços inovadores, ultrapassados os dois estágios iniciais já descritos, consolidaram-se adotando um modelo de negócios que vincula a oferta principal à oferta de produtos e serviços adjacentes, de extrema utilidade – muitas vezes, cruciais para a própria utilidade do produto principal. No caso Xerox, era (sobretudo, mas não somente) o toner; no caso Kodak, eram os insumos de revelação; no caso Nespresso, as cápsulas de café, e agora no caso Apple, os carregadores, fones, relógios inteligentes e aplicativos que, ou não são acessíveis a usuários em outros aparelhos (como a carteira eletrônica), ou não permitem uma conectividade de qualidade (como o aplicativo de mensagens de texto, que funciona mal com smartphones que não o iphone).

Está aí o ponto central da questão antitruste associada a esse modelo de negócios: uma vez estabelecida a dominância, com a captura e retenção de parcela expressiva do mercado – senão a totalidade dele – o impulso inovativo inicial arrefece, porque qualquer inovação com potencial disruptivo porá em risco a dominância conquistada. A empresa dominante passa a inviabilizar o surgimento de alternativas, seja impedindo a interoperabilidade, seja adquirindo rivais potenciais, eliminando seu potencial criativo.

No presente caso, é estatisticamente insignificante o número de usuários nos Estados Unidos dispostos a trocar de smartphone – e por conseguinte, de sistema operacional, de acesso a facilidades exclusivas como a Apple Wallet e de compatibilidade com smartwatches e outros acessórios – do iphone para um mais barato, pela perda de conveniência e os custos com a necessidade de aquisição de outros acessórios, o que caracteriza um quadro de clientela locked in.

A defesa já trazida à luz pela Apple é ingênua senão anacrônica: que ela não seria dominante – muito menos monopolista – pois o DoJ estaria equivocadamente considerando o mercado relevante geográfico como sendo os Estados Unidos, quando sua participação global é em torno de 20%. É nos Estados Unidos, mercado onde o Iphone foi originalmente introduzido, que o poder de mercado da Apple é exercido, e justamente as barreiras estratégicas criadas pela empresa são os elementos que inviabilizam o estabelecimento sustentável de concorrentes.

 Contudo, o caso para o DoJ é para lá de complicado: levantar evidências de que o modelo de negócios da Apple além de prejudicar a curto prazo os consumidores, extraindo renda de monopólio, prejudica a dinâmica da economia norte-americana, ao arrefecer o desenvolvimento e introdução de inovações, o mecanismo que mantém a liderança tecnológica daquela economia, é tarefa para lá de desafiadora.

Por outro lado, espera-se que a Apple vá defender ao limite seu modelo de negócios, como tem feito na Europa, ao contestar na Corte Europeia decisão da Comissão que recentemente a multou em bilhões de euros pela não adoção da padronização universal de conectores em seus smartphones.

Se a “dependência de trajetória” se manifestar também neste caso, veremos uma longa batalha sem vencedores e derrotados: em algum momento um acordo será fechado, a empresa fará algumas concessões, o governo valorizará o resultado obtido e no curso da disputa, distraída pelo processo da preocupação em combater a concorrência potencial, a Apple acabará por se defrontar com rivais que encontrarão espaço para apresentar novas alternativas, novos encantos para os consumidores norte-americanos. Cenário promissor, em que se mantém vivo o impulso da inovação tecnológica.


[1] A lista complete de casos similares incluiria IBM e Microsoft, porém ambos carregam diferenciais sendo em um caso que o mercado de computadores dominado por IBM foi desconstruído pelo surgimento de tecnologia disruptiva, e no outro que a inovação representada pelo navegador de internet não ter sido introduzida pela Microsoft e sim pela rival vítima de práticas exclusionárias, a Netscape.

Banco Central do Brasil no G20 e o reconhecimento internacional por sua atuação

Leandro Oliveira Leite

O Banco Central do Brasil (BCB) foi recentemente premiado com o título de “Autoridade Monetária do Ano” pelo Central Banking Awards 2024, uma honra concedida pelo renomado site Central Banking. Esse reconhecimento destaca as notáveis conquistas e contribuições do BCB para o cenário financeiro nacional e internacional, destacando sua liderança em várias áreas-chave.

Segundo o Central Banking, o BCB foi agraciado com este prêmio devido à sua melhoria na transparência e comunicação, bem como suas reformas nas intervenções cambiais e apoio à estabilidade financeira. O Banco Central brasileiro também foi elogiado por sua transformação digital interna e por seus esforços na inclusão ambiental e financeira. Além disso, foi ressaltado o trabalho do BCB na atualização do ecossistema de pagamentos instantâneos, incluindo iniciativas para incorporar um ‘real digital’ em sua estrutura, mostrando um compromisso com a modernização do sistema financeiro.

A avaliação internacional destaca que o BCB mantém um sistema financeiro sólido, eficiente e competitivo, promovendo a estabilidade econômica e financeira do Brasil. O prêmio também reconhece o importante papel desempenhado pelo Banco Central na sociedade brasileira, especialmente desde a aprovação de sua autonomia em 2021.

Com a autonomia técnica e operacional garantida pela Lei Complementar 179/2021, o BCB possui a proteção legal necessária para garantir a estabilidade do poder de compra da moeda, promovendo um sistema financeiro sólido e competitivo, e promovendo o bem-estar econômico da sociedade.

Durante a pandemia de COVID-19, o BCB desempenhou um papel crucial na mitigação dos impactos econômicos, conduzindo operações nos mercados de títulos públicos e de ativos privados para mitigar os danos causados pela crise. Além disso, o banco central implementou importantes ações para mitigar os efeitos das mudanças climáticas no sistema financeiro, destacando-se como líder na promoção da sustentabilidade.

A comunicação do BCB também evoluiu, com abordagens simplificadas sobre temas como política monetária, pagamentos instantâneos, educação financeira e CBDC (‘drex’ é o real brasileiro em formato digital). Isso fortaleceu a credibilidade do banco central e aumentou a confiança dos brasileiros no sistema financeiro e na instituição. O BCB também ampliou seu alcance nas redes sociais, mantendo contato direto com os cidadãos por meio de sete redes sociais e criando um canal direto com o público por meio de transmissões ao vivo.

Embora algumas críticas locais tenham sido levantadas sobre a taxa de juros e a velocidade na redução da Selic, o reconhecimento internacional do BCB é inegável. O Banco Central brasileiro já recebeu diversos prêmios internacionais, incluindo o Beacon of Innovation Award[1] em outubro de 2023, em reconhecimento ao lançamento bem-sucedido do Pix. Além disso, o BCB foi homenageado como o melhor gestor de reservas em março de 2023, pelo Central Banking Awards 2023, devido à sua gestão exemplar de mais de US$ 300 bilhões em reservas durante a pandemia. Em 2022, o presidente do BCB foi reconhecido como o melhor do ano de bancos centrais pelo LatinFinance Banks of the Year Awards.

O Papel do Banco Central do Brasil na Presidência do G20

Recentemente, o Banco Central do Brasil (BCB) teve a privilégio de sediar a reunião de ministros de finanças e presidentes de bancos centrais do G20 em São Paulo, sob a presidência do Brasil. Nesse importante encontro, foram discutidos temas cruciais para a economia global, incluindo inclusão financeira, governança global, combate à inflação, estabilidade financeira e renegociação de dívidas.

Para Paulo Picchetti, diretor de Assuntos Internacionais e de Gestão de Riscos Corporativos do BCB, a pandemia da COVID-19 trouxe à tona a necessidade urgente de promover um crescimento econômico mais inclusivo. Durante uma coletiva de imprensa realizada no âmbito do G20, em São Paulo, Picchetti destacou o consenso entre os países membros do G20 sobre a importância de garantir melhores condições de igualdade no processo de recuperação econômica pós-pandemia.

Uma das contribuições fundamentais dos bancos centrais para a redução das desigualdades é a promoção da inclusão financeira. Ressalta-se que o Brasil tem sido um exemplo nesse sentido, sendo estudado por países avançados. Ele citou o sucesso do Pix, sistema de pagamentos instantâneos do Brasil, como um caso exemplar que não só facilita transações financeiras, mas também amplia o acesso ao mercado financeiro e às condições de crédito, possibilitando negócios que anteriormente não eram viáveis. O diretor enfatizou que dar às pessoas acesso ao crédito é um passo crucial para melhorar suas condições de vida de maneira sustentável, impulsionando-as em direção a uma trajetória de crescimento econômico. Ele destacou que a inclusão financeira não deve se limitar apenas à quantidade, mas também à qualidade dos serviços financeiros oferecidos.

Assumir a presidência do G20 é uma oportunidade única para o Brasil colocar em pauta questões prioritárias para a economia global. Desde 1º de dezembro, o Brasil tem liderado esse fórum de cooperação econômica internacional, que reúne dezenove das principais economias do mundo, além da União Europeia, da União Africana e países convidados pelo membro que ocupa a presidência a cada ano.

Durante o mandato brasileiro, o BCB desempenhará um papel de liderança na condução dos trabalhos da Trilha de Finanças do G20, buscando promover a estabilidade monetária como um meio eficaz de combater a desigualdade e impulsionar o crescimento econômico sustentável em todo o mundo.

Em suma, o reconhecimento internacional do Banco Central do Brasil é um testemunho de sua liderança, inovação e compromisso com a estabilidade econômica e financeira. Durante a condução dos trabalhos da Trilha de Finanças do G20, busca-se promover a estabilidade monetária como um meio eficaz de combater a desigualdade e impulsionar o crescimento econômico sustentável e social, consolidando sua posição como um dos principais bancos centrais do mundo.


[1] É prêmio dado pelo Council of the Americas (COA), uma organização internacional que representa uma série de segmentos, como bancos e finanças, serviços de consultoria, consumo de produtos, minas e energia, setor manufatureiro, mídia, tecnologia e transporte.


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


Gestão de Valor em Saúde: Um Paradigma Orientado por Desfechos

Andrey Vilas Boas de Freitas

Em um mundo cada vez mais focado na qualidade e eficiência dos serviços de saúde, a gestão de valor surge como um conceito fundamental para garantir que os pacientes recebam o melhor cuidado possível. Central para esse paradigma está a compreensão do conceito de desfecho – os resultados tangíveis e intangíveis que os pacientes experimentam ao usar produtos ou serviços de saúde.

Os desfechos são os verdadeiros direcionadores de escolhas para os consumidores de serviços de saúde. Eles representam a medida definitiva da qualidade e eficácia do cuidado prestado, influenciando diretamente a satisfação do paciente e sua decisão de continuar utilizando os serviços oferecidos.

Designers, arquitetos e engenheiros têm uma compreensão intrínseca dos desfechos em seus respectivos campos. Seu trabalho é projetar e criar produtos e ambientes que entreguem desfechos que os clientes valorizam, ao mesmo tempo em que são acessíveis e economicamente viáveis. Da mesma forma, os serviços de saúde devem ser projetados e prestados com o objetivo claro de atingir certos desfechos para os pacientes.

A gestão de valor em saúde representa uma mudança de paradigma crucial nesse sentido. Em vez de se concentrar apenas nos processos e custos associados ao fornecimento de serviços de saúde, a gestão de valor coloca os desfechos do paciente no centro de todas as decisões e estratégias.

No entanto, diferentemente de outros setores, os serviços de saúde não são tradicionalmente projetados com base naquilo que realmente importa para os pacientes. Em vez disso, os sistemas de saúde usualmente estão mais preocupados com a eficiência operacional ou com a conformidade regulatória.

Na maioria dos sistemas de saúde ao redor do mundo, a regulação e o financiamento estão historicamente centrados na quantidade de serviços prestados, em vez de nos resultados alcançados pelos pacientes. Esse modelo de remuneração, baseado em fee-for-service, ou seja, no pagamento por procedimento realizado, muitas vezes cria incentivos perversos que priorizam a quantidade sobre a qualidade e eficácia dos cuidados de saúde.

Essa abordagem quantitativa tem levado a uma ênfase excessiva em procedimentos médicos e intervenções, em detrimento de estratégias de prevenção, promoção da saúde e gestão de doenças crônicas. Além disso, incentiva a fragmentação do cuidado, pois os prestadores de serviços de saúde são pagos por cada serviço prestado, resultando em falta de coordenação entre diferentes profissionais e instituições de saúde.

Por outro lado, a falta de incentivos financeiros para a melhoria dos desfechos do paciente pode levar à estagnação na qualidade do cuidado. Os prestadores de serviços de saúde podem não ter incentivos para investir em programas de melhoria da qualidade ou adotar práticas baseadas em evidências, se essas iniciativas não estiverem diretamente ligadas ao aumento da remuneração pelos serviços prestados.

Essa desconexão entre pagamento e resultados também pode levar a um desperdício significativo de recursos. Os pacientes podem receber cuidados excessivos ou desnecessários, simplesmente porque os prestadores de serviços são recompensados por cada intervenção realizada, independentemente de sua eficácia ou valor para o paciente.

Para superar esses desafios, é fundamental uma mudança na forma pela qual os serviços de saúde são regulados e financiados. Em vez de se concentrar exclusivamente na quantidade de serviços prestados, os sistemas de saúde devem adotar abordagens de pagamento baseadas em valor, que recompensam os prestadores de serviços pelo alcance de desfechos específicos e pela entrega de cuidados de alta qualidade e eficácia.

Essa mudança para um modelo de pagamento baseado em valor exige a implementação de estruturas de incentivo que recompensem os prestadores de serviços por resultados mensuráveis, como a melhoria da saúde do paciente, a redução de readmissões hospitalares e a prevenção de complicações relacionadas ao tratamento.

Além disso, é necessário um maior investimento em sistemas de informação e tecnologia que possam monitorar e avaliar continuamente os desfechos do paciente e o desempenho dos prestadores de serviços de saúde. Isso permitirá uma avaliação mais precisa do valor entregue pelos diferentes intervenientes no sistema de saúde e uma tomada de decisão mais informada sobre a alocação de recursos.

A mudança de um modelo de pagamento baseado em quantidade para um modelo baseado em valor é essencial para promover uma prestação de cuidados de saúde mais eficaz, eficiente e centrada no paciente. Ao alinhar os incentivos financeiros com os desfechos do paciente, os sistemas de saúde podem melhorar significativamente a qualidade e a equidade do cuidado, ao mesmo tempo em que garantem a sustentabilidade financeira a longo prazo.

Para efetivamente implementar uma abordagem de gestão de valor em saúde, é essencial que os prestadores de serviços de saúde identifiquem e priorizem os desfechos que são mais significativos para os pacientes. Isso requer uma compreensão profunda das necessidades, preferências e valores dos usuários finais.

Uma vez identificados, os desfechos devem orientar todas as etapas do processo de prestação de cuidados de saúde, desde o design de intervenções clínicas até a alocação de recursos e a medição do desempenho. Os sistemas de saúde devem ser estruturados de forma a maximizar a entrega dos desfechos desejados, garantindo ao mesmo tempo uma utilização eficiente dos recursos disponíveis.

Além disso, a gestão de valor em saúde exige uma mudança cultural e organizacional significativa dentro das instituições de saúde. Isso inclui o desenvolvimento de uma cultura de transparência, prestação de contas e melhoria contínua, na qual os desfechos do paciente são constantemente monitorados e utilizados para informar a tomada de decisões em todos os níveis da organização.

A gestão de valor em saúde representa uma abordagem inovadora e orientada para o paciente, que coloca os desfechos do paciente no centro de todas as atividades e decisões relacionadas à prestação de cuidados de saúde. Ao adotar esse paradigma, os sistemas de saúde podem avançar na construção de um modelo que ofereça realmente resultados que atendam às necessidades e expectativas dos pacientes.

A Independência Relativa de Instâncias

Possibilidade de condenação pelo CADE, ainda que haja absolvição pelas esferas civil e penal

Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

O princípio da relativa independência de instâncias determina que as esferas civil, penal e administrativa são independentes, isto é, uma decisão proferida em uma dessas instâncias não tem caráter vinculante, podendo, desta forma, existir a absolvição em uma delas e a condenação na outra. Diz-se relativa independência, pois toda regra comporta exceção, sendo elas o caráter vinculante (i) da absolvição penal, que nega a existência do fato ou autoria; (ii) da condenação de agente público na esfera penal, e (iii) da absolvição penal por ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito[1].

Neste contexto, no julgamento do REsp 2.081.262-RS (2022/0252631-6)[2], realizado em novembro de 2023, os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entenderam pela possibilidade de condenação, pela prática da conduta de cartel, no âmbito do Processo Administrativo que tramita perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, ainda que tenha ocorrido a absolvição dos acusados nas esferas penal e civil.

Foram analisados e julgados, pelos Ministros, os recursos interpostos pelo CADE e pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, em face de acórdão proferido, por unanimidade, pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (4ª T – TRF4), no julgamento de apelações e reexame necessário[3], que decidiu pela anulação de decisão proferida pelo CADE. Referida decisão, proferida pela autarquia, condenou, nos autos do processo administrativo n° 08012.010215/2007-96, diversos postos de gasolina e pessoas físicas a eles relacionadas, por formação de cartel[4], sob o fundamento de que os fatos objeto do referido processo administrativo foram analisados tanto no âmbito penal, quanto no civil, em ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), sendo tais fatos e o conjunto probatório que os fundamentou, considerados insuficientes para a condenação dos acusados pela prática de cartel na revenda de combustíveis no Município de Caxias do Sul/RS, nas duas esferas.

No voto proferido pela Ministra Relatora Regina Helena Costa[5], ela esclarece que “[À] à vista do princípio da relativa independência entre as instâncias de responsabilização consagrado nos arts. 66 do Código de Processo Penal, 935 do Código Civil de 2002 e 125 da Lei n. 8.112/1990, ressalvada a prevalência da jurisdição criminal quanto à afirmação categórica acerca da inocorrência da conduta, ou, ainda, quando peremptoriamente afastada a contribuição do agente para sua prática, as conclusões levadas a efeito em âmbito criminal não reverberam sobre as atribuições da autarquia antitruste, viabilizando-se, por isso, a submissão de idêntico acervo probatório ao crivo do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para exame dos pressupostos indispensáveis à apuração de condutas anticoncorrenciais”.

Adiciona que o artigo 16[6], da Lei nº 7.347/1995, excepciona[7] parcialmente o regramento “pro et contra” disposto no artigo 502[8], do Código de Processo Civil, instituindo o regime jurídico da “res judicata secundum eventum probationis”, que delibera acerca da “ausência de formação de coisa julgada quando, não obstante apreciado o mérito da ação civil pública, a sentença de improcedência é fundada em insuficiência probatória, hipótese na qual exigida apresentação de prova nova tão somente como requisito de ulterior demanda coletiva aviada por outros legitimados, regra não extensível à análise do mesmo contexto fático pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica[9].

Neste sentido, ainda de acordo com o voto da Ministra, a independência relativa das sanções administrativas baseadas na legislação de defesa da concorrência e as “demais órbitas de responsabilidade” autorizam que o mesmo conjunto probatório, tido por insuficiente para condenação em outras esferas, seja reputado apto a fundamentar a aplicação das penalidades decorrentes da prática de condutas anticoncorrenciais, ressalvada a hipótese prevista no artigo 66, do Código de Processo Penal[10]. Tal entendimento decorre, segundo a julgadora, dos objetivos de cada plano de proteção à concorrência – a Lei Antitruste visa coibir condutas anticompetitivas e punir, por meio de sanções, os responsáveis; o âmbito civil tem como escopo a reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas e fixação de ordens com intuito de conformar a atuação dos agentes econômicos à legislação, sem prejuízo do acionamento da jurisdição penal com relação às pessoas físicas – dentro de um sistema próprio composto por três esferas independentes entre si.

Neste contexto, o voto da Ministra Relatora, que foi acompanhado à unanimidade pelos demais julgadores, deu parcial provimento ao recurso interposto pelo CADE, para afastar a nulidade da decisão proferida nos autos do processo administrativo n° 08012.010215/2007-96, como reconhecida pelas instâncias inferiores.

É importante destacar que, conforme ressaltado pela Ministra, no âmbito do processo administrativo, embora tenha sido utilizado o mesmo conjunto probatório, considerado insuficiente pelas esferas civil e penal anteriormente, outras provas foram produzidas, tais como oitiva de testemunhas e a coleta de informações junto à agência reguladora do setor petrolífero, sobre os preços de combustíveis no mercado local, o que afastaria eventual entendimento de que a decisão proferida pelo CADE foi baseada apenas em provas emprestadas.

Neste ponto, e apenas para provocar uma reflexão sobre o tema, entende-se que a questão posta, quanto à esfera cível, faz todo sentido, diante das características dos direitos tutelados. No entanto, no âmbito penal, esfera legitimada e detentora da expertise necessária para a apuração do crime de cartel, a análise de provas e a conclusão pela sua insuficiência, quanto à prática de cartel, não podem ser desconsideradas pelo CADE, ainda que as esferas sejam independentes entre si, sob pena de grave insegurança jurídica, pois, repise-se, tanto a esfera penal quanto a administrativa possuem a expertise para analisar a configuração ou não desta prática ilícita e (e não ‘ou’) concorrencial. Por essa razão, imprescindível que o conjunto probatório emprestado da esfera penal, diante da conclusão, nesta esfera, no que concerne à existência da prática da conduta de cartel, seja subsidiado com novas provas, de modo a complementar e tornar suficiente o que antes não era.

Não pode o CADE ignorar a decisão penal, pelo menos para sopesar com as demais provas que porventura possa invocar, sob pena de termos decisões conflitantes na avaliação dos mesmos elementos probatórios.


[1] Inteligência dos artigos:

Código de Processo Penal, Art. 66.  Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

Código Civil, Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Lei 8.112/1990, Art. 125.  As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.

Lei 12.529/2011, Art. 35.  A repressão das infrações da ordem econômica não exclui a punição de outros ilícitos previstos em lei (correspondente à Lei 8884/94, artigo 19). 

Lei 12.529/2011, Art. 47.  Os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação (correspondente à Lei 8884/94, artigo 29). 

Lei 13.869/2019, Art. 8º. Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

[2] Acórdão disponível no link: Julgamento Eletrônico (stj.jus.br).

[3] Ação anulatória de decisão proferida pelo CADE, movida por Paulo Ricardo Tonolli e Auto Posto Tonolli Ltda, tendo em vista a condenação de ambos pela prática de cartel, no âmbito do CADE, bem como da correlata penalidade de revogação da autorização para exercer atividade de posto de combustíveis, aplicada pela ANP. Em primeira instância, os pedidos foram julgados procedentes, tendo sido reconhecida a inviabilidade de o CADE reconhecer a existência de cartel, quando os mesmos fatos estavam acobertados pelo manto da coisa julgada decorrente da Ação Civil Pública 010.1.07.001043-59 e da Ação Penal 010.207.000.52097, momento em que fora afastada a existência de conduta ilícita. A decisão de 1º grau foi mantida pelo TRF4.

[4] Processo administrativo nº 08012.010215/2007-96, que teve por objeto apurar a existência coordenação de mercado ajustada entre revendedores de combustíveis líquidos (gasolina álcool e diesel) com atuação no Município de Caxias do Sul – RS —nos anos 2004, 2005 e 2006.

[5] A decisão da Ministra Relatora foi acompanhada pela unanimidade dos demais Ministros presentes na sessão de julgamento.

[6] Lei 7.347/1995, Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

[7] A exceção parcial à regra ocorre no âmbito das ações coletivas, conforme artigo 18 da Lei 4.717/1965 e artigo 16 da Lei 7.347/1985, tendo em vista a preocupação legislativa com os interesses difusos e coletivos tutelados nas demandas desta natureza, que exige robusta e exauriente produção de provas.

[8] CPC, Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.

[9] A coisa julgada pro et contra, forma-se independentemente do resultado do processo, do teor da decisão judicial proferida. Não é relevante se o resultado é de procedência ou de improcedência do pedido, se houve ou não o esgotamento de provas, a decisão definitiva sempre será apta a produzir a coisa julgada. Essa é a regra geral do nosso Código de Processo Civil.

A coisa julgada secundum eventum probationis, forma-se no caso de esgotamento das provas. No caso de os pedidos formulados na demanda serem julgados procedentes (com esgotamento de provas), ou improcedentes (com provas suficientes), a decisão judicial só produzirá a coisa julgada se forem exauridos todos os meios de prova. Se a decisão proferida no processo julgar os pedidos improcedentes por insuficiência de provas, não haverá a coisa julgada.

[10] Vide nota de rodapé 1.

A posição dominante da UBER é o “fio solto” na engrenagem no projeto de remuneração dos motoristas de aplicativo

Elvino de Carvalho Mendonça

O PLP 12/2024[1] é uma tentativa do Governo Federal de garantir que os motoristas de aplicativos percebam uma remuneração mínima e que contribuam com o Regime Geral de Previdência Social. Nada mais em linha com um governo que tem o discurso voltado para as questões sociais!!

No entanto, não basta ter “boa vontade”, é preciso lembrar que as relações econômicas não são feitas de benevolência, mas de incentivos corretos e em razão disso, trazemos destaques importantes para a redação do Projeto de Lei Complementar (PLP 12/2024), referente a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas, como passaremos a tratar.

A remuneração a ser paga pela empresa de aplicativo ao motorista está prevista no art. 9º do PLP 12/2024. O valor da remuneração é de R$ 32,0 por hora e está dividida em duas remunerações: remuneração pelo serviço prestado (R$ 8,03) e remuneração pelos custos incorridos na prestação do serviço[2] (R$ 24,07).

A inserção do motorista de aplicativo no Regimes Geral de Previdência Social (RGPS) está disposta no art. 10 que, em apertada síntese, dispõe que o motorista recolherá 7,5% do valor da remuneração horária e a empresa de aplicativo recolherá 20% do valor total da remuneração horária (art. 11, III[3] e Art. 26-A[4]).

O PLP 12/2024 também assegura a inexistência de qualquer relação de exclusividade entre o trabalhador e a empresa operadora de aplicativo, assegurado o direito de prestar serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de mais de uma empresa operadora de aplicativo no mesmo período (art. 3º, I) e a inexistência de quaisquer exigências relativas a tempo mínimo à disposição e de habitualidade na prestação do serviço (art. 3º, II).

Como forma de eliminar a hipossuficiência dos motoristas de aplicativo o art 3º, § 3º impõe que este serão representados por sindicato com as seguintes atribuições:  I – negociação coletiva; II – celebração de acordo ou convenção coletiva; e III – representação coletiva dos trabalhadores ou das empresas nas demandas judiciais e extrajudiciais de interesse da categoria.

Por fim, para evitar qualquer tipo de discriminação, o projeto de lei complementar assegura, no art. 6º, que o motorista de aplicativo não poderá ser excluído de forma unilateral pela empresa de aplicativos, a menos que estejam presentes as hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma[5].

Como se pode ver, dos quatro dispositivos citados no parágrafo anterior, dois alteram diretamente a estrutura de custos das empresas de intermediação (remuneração e recolhimento ao RGPS) e dois tratam das condições oferta dos motoristas de aplicativos (exclusividade e discriminação).

Não há mistério!! A elevação dos custos com remuneração e RGPS trará um choque de oferta no mercado de prestação de serviços de intermediação e isso terá consequências sobre tanto sobre o consumidor final quanto sobre o motorista de aplicativo, pois não se pode olvidar que o mercado de prestação de serviços de intermediação é extremamente concentrado no Brasil tanto no mercado a montante quanto no mercado a jusante.

No mercado a montante, não é difícil perceber que os motoristas de aplicativos são hipossuficientes e, como tal, pouco ou nada conseguem fazer de forma individual. As empresas de intermediação possuem poder de oligopsônio sobre os motoristas e, portanto, têm o poder para extrair ao máximo o excedente destes trabalhadores.

Não por outro motivo o PLP cria a figura da entidade sindical[6] a fim de fazer frente ao poder de mercado das empresas de intermediação. Nesse ponto, a teoria econômica também é clara: a presença de sindicatos amplia a rigidez salarial e a consequência é a inserção de uma quantidade menor de motoristas de aplicativo que se teria na ausência do sindicato[7].

No mercado a jusante, o efeito do poder de mercado das empresas de aplicativo sobre o passageiro não é diferente. A ausência de concorrência existente neste mercado associada com o conjunto informações pessoais que as empresas detêm a respeito dos passageiros, permite que elas extraiam o excedente do consumidor de uma forma muito eficiente em prejuízo, inevitavelmente, dos consumidores e dos motoristas de aplicativos.

A iniciativa de remunerar os motoristas por aplicativo e de os inserir no RGPS é uma preocupação mundial. O PLP 12/2024 tem mérito e está em consonância com as melhores práticas internacionais de respeito a dignidade do trabalhador, pois rodos os trabalhadores devem ter condições de trabalho digno[8], remuneração compatível e proteção previdenciária.

Apesar da boa vontade que o PLP incarna, há um fio solto nessa engrenagem e ele se chama poder excessivo de mercado da empresa de intermediação entre motoristas e passageiros chamada Uber.

O que fazer?

Esperar a benevolência de uma empresa monopolista é desafiar a teoria econômica. Fazer regulação de tarifas ou coisa que o valha é desafiar a teoria da regulação econômica, pois, afinal, em que lugar estão as falhas de mercado para serem tratadas?

O fio está solto e há risco de curto!!!


[1] prop_mostrarintegra (camara.leg.br)

[2] Art. 9º, §3º, in verbis:

 § 3º O valor da remuneração a que se refere o § 2º é composto de R$ 8,03 (oito reais e três centavos), a título de retribuição pelos serviços prestados, e de R$ 24,07 (vinte e quatro reais e sete centavos), a título de ressarcimento dos custos incorridos pelo trabalhador na prestação do serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros.

[3] III – 7,5% (sete inteiros e cinco décimos por cento), no caso de trabalhador que preste serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de empresa operadora de aplicativo ou outra plataforma de comunicação em rede.

[4] Art. 26-A. Constitui receita da Seguridade Social a contribuição da empresa que opere aplicativo ou outra plataforma de comunicação em rede para oferecer serviços de intermediação a trabalhadores que prestem o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros e a usuários previamente cadastrados, incidente, à alíquota de 20%.

[5] Art. 6º A exclusão do trabalhador do aplicativo de transporte remunerado privado individual de passageiros somente poderá ocorrer de forma unilateral pela empresa operadora de aplicativo nas hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma, garantido o direito de defesa, conforme regras estabelecidas nos termos de uso e nos contratos de adesão à plataforma.

[6] A sindicalização do motorista por aplicativo está descrita no caput do art. 4º, in verbis:

Art. 4º Sem prejuízo do disposto no art. 3º, outros direitos não previstos nesta Lei Complementar serão objeto de negociação coletiva entre o sindicato da categoria profissional que representa os trabalhadores que prestam o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e as empresas operadoras de aplicativo, observados os limites estabelecidos na Constituição.

[7] Os modelos de Labor Union demonstram que a presença de sindicatos conduz a solução do emprego para o second best.

[8] O Organização Internacional do Trabalho – OIT entende que [o] conceito de trabalho digno resume as aspirações de homens e mulheres no domínio profissional e abrange vários elementos: oportunidades para realizar um trabalho produtivo com uma remuneração justa; segurança no local de trabalho e proteção social para as famílias; melhores perspetivas de desenvolvimento pessoal e integração social; liberdade para expressar as suas preocupações; organização e participação nas decisões que afetam as suas vidas; e igualdade de oportunidades e de tratamento. [Trabalho Digno (ilo.org)]


Elvino de Carvalho Mendonça. Editor-Chefe da WebAdvocacy. Doutor em economia pela UNB e Ex-conselheiro do CADE.

O lado positivo do Poder Judiciário

Augusta Sampaio Ferraz

Tema recorrente na mídia ou em grupos jurídicos, as críticas aos Tribunais Superiores, em especial ao Supremo Tribunal Federal, são sempre muitas, e na maioria das vezes, carregadas de sentimentalismo. Escrevo o presente artigo para tentar mostrar que existe o lado bom do judiciário, inclusive na Suprema Corte e no Superior Tribunal de Justiça.

Comecemos com os números, primeiramente para mostrar o volume processual que ambas as Cortes recebem e julgam. No ano de 2023, o Superior Tribunal de Justiça recebeu 458 mil processos (quase meio milhão) e julgou 426 mil[1]. Já o Supremo Tribunal Federal recebeu 78.242 e proferiu 101.970 decisões, havendo, no final do ano de 2023, 24.071 processos em tramitação[2]. Não há dúvidas que os números são assustadores, levando em consideração que há, no STF, 11 ministros, e no STJ, 33.

Se detalharmos ainda mais os números acima e fizermos uma média, temos que, cada ministro do STF recebeu 7.113 processos no ano, ou 592 por mês. Já no STJ, cada ministro recebeu 13.787 processos no ano, ou 1.156 por mês.

O que podemos concluir, dessa forma, é que as portas da justiça brasileira são abertas para todos, da primeira à última instância. Temos, assim, o primeiro ponto positivo (pelo menos em certo sentido), na medida em que o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal é plenamente cumprido (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito).

De outro lado, podemos dizer que a principal instituição que liga o que acontece no judiciário à população não jurídica é a mídia, que desenvolve um papel crucial ao comunicar as informações sobre os Tribunais. É papel da mídia promover a compreensão pública sobre o funcionamento e a importância das instituições judiciárias.

Ao destacar casos exemplares de eficiência e justiça, a mídia pode inspirar confiança na população. Por outro lado, ao investigar e relatar casos de corrupção, morosidade processual ou outras deficiências, ela pode desempenhar um papel de colocar a população contra as instituições.

Não estamos dizendo aqui que não cabe à mídia criticar ou deixar de expor casos em que haja indício de ilegalidade ou imoralidade. Contudo, é fundamental que a cobertura midiática seja equilibrada, evitando sensacionalismo e promovendo uma compreensão mais completa do desempenho do judiciário, de modo que os veículos de comunicação de massa podem contribuir para a construção de uma sociedade informada e participativa, fomentando o debate e consequentemente o fortalecimento da democracia, ponto que tratarei a seguir.

A relação entre democracia, decisões judiciais (em especial as do STF) e a mídia é complexa e multifacetada. Em uma democracia, as decisões judiciais, em especial as proferidas pelos Tribunais superiores, têm repercussão significativa na concretização do direito e na sua aplicação, que trará impactos para toda população. A transparência e a compreensão pública do que acontece dentro desses Tribunais são fundamentais para a saúde do sistema democrático.

As Cortes Superiores, como o STF e o STJ, desempenham um papel crucial na concretização e uniformização do direito no Brasil. O primeiro, enquanto guardião da Constituição e o segundo, enquanto corte uniformizadora de toda legislação federal.

Como dito no início do presente artigo, o número de decisões proferidas nesses Tribunais é assustador. Não há, no mundo, judiciário que produza tanto quanto o brasileiro. E o que ouvimos de grande parte da população são somente críticas que vão desde a morosidade processual até o valor do salário de um magistrado.

Destaco aqui alguns casos relevantes julgados no STF e no STJ que trouxeram impactos positivos para parcela da população:

  • Constitucionalidade da previsão de medidas atípicas para assegurar o cumprimento de ordens judiciais: o STF decidiu que são constitucionais — desde que respeitados os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os valores especificados no próprio ordenamento processual, em especial os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade — as medidas atípicas previstas no CPC/2015 destinadas a assegurar a efetivação dos julgados (Informativo 1082). A duração razoável do processo, que decorre da inafastabilidade da jurisdição, deve incluir a atividade satisfativa (CF/1988, art. 5º, LXXVIII; e CPC/2015, art. 4º). Assim, é inviável a pretensão abstrata de retirar determinadas medidas do leque de ferramentas disponíveis ao magistrado para fazer valer o provimento jurisdicional, sob pena de inviabilizar a efetividade do próprio processo, notadamente quando inexistir uma ampliação excessiva da discricionariedade judicial.
  • Prisão especial aos portadores de diploma de curso superior: o STF entendeu que é incompatível com a Constituição Federal de 1988 — por ofensa ao princípio da isonomia (CF/1988, arts. 3º, IV; e 5º, “caput”) — a previsão contida no inciso VII do art. 295 do Código de Processo Penal (CPP) que concede o direito a prisão especial, até decisão penal definitiva, a pessoas com diploma de ensino superior.
  • Lei Maria da Penha: obrigatoriedade de designação da audiência de retratação e do comparecimento da vítima: o STF entendeu que a interpretação no sentido da obrigatoriedade da audiência prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), sem que haja pedido de sua realização pela ofendida, viola o texto constitucional e as disposições internacionais que o Brasil se obrigou a cumprir, na medida em que discrimina injustamente a própria vítima de violência.
  • Seguradora deverá pagar indenização a segurado que não tinha diagnóstico médico confirmado: fundamentado na Súmula 609, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça deliberou que uma seguradora não pode se recusar a efetuar o pagamento da indenização do seguro de vida quando não exigiu a realização de exames médicos e perícias prévias à contratação e tampouco comprovou má-fé por parte do segurado.
  • Tratamento para síndrome de Down e lesão cerebral deve ser coberto de maneira ampla por plano de saúde: a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a operadora de plano de saúde tem a obrigação de cobrir as sessões de equoterapia, tanto para beneficiários com síndrome de Down quanto para beneficiários com paralisia cerebral. Entendimento semelhante já havia sido adotado pela Terceira Turma em relação ao tratamento de autismo.
  • Alteração de regime de bens do casamento com efeito retroativo (ex tunc): a 4ª Turma do STJ entendeu pela possibilidade da alteração do regime de bens com efeitos retroativos. O relator, Ministro Raul Araújo, entendeu que, como as partes adotaram voluntariamente o regime da separação total de bens e que a alteração para comunhão universal dificilmente acarretaria prejuízos a terceiros, é possível que alteração do regime de bens produza efeitos retroativos (ex tunc).

Trouxemos aqui apenas alguns dos milhares de casos significativos julgados por esses dois Tribunais. Com isso, procuramos demonstrar que, apesar de a esmagadora maioria das notícias veiculadas na mídia sobre a justiça brasileira não ser positiva, cabe a nós, operadores do direito, construir uma melhor imagem do judiciário, promovendo uma maior participação da sociedade e consequentemente a efetivação da democracia.

Por fim, deixamos claro que o judiciário, em especial as Cortes Superiores, são passíveis e devem receber críticas. Assim, devemos estar sempre atentos para possíveis excessos. Contudo, na construção de um judiciário inclusivo e democrático, enxergar o lado bom também é necessário.


[1] STJ apresenta números de 2023 no fim do ano judiciário

[2] Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br)


Augusta Sampaio Ferraz. Advogada especialista em processo civil e em processos nas Cortes Superiores. Mestranda em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atua há 15 anos perante as Cortes Superiores (STF e STJ), com larga experiência e expertise na área.