Artigos de opinião

Inteligência Regulatória: Adaptação, Evolução e Eficiência na Regulação

Andrey Vilas Boas de Freitas

Em um mundo dinâmico e complexo, a regulação eficaz não pode mais se basear apenas em estruturas estáticas. A evolução constante da sociedade, das tecnologias e das relações econômicas exige uma abordagem mais flexível e adaptativa. Surge, então, o conceito de Inteligência Regulatória, que representa a capacidade dos órgãos reguladores de se transformar e evoluir, utilizando informações diversas para se ajustar às necessidades emergentes da realidade.

A base desse conceito está na compreensão de que os sistemas regulatórios não devem tentar impor um modelo pré-concebido à realidade, mas sim se adaptar e responder às demandas e mudanças observadas. Isso significa uma mudança de paradigma: em vez de moldar a realidade a formatos regulatórios fixos, a inteligência regulatória busca entender e se integrar à realidade em constante mutação.

Um dos pilares da inteligência regulatória é a coleta e processamento contínuo de informações provenientes de diversas fontes. Os órgãos reguladores, ao terem acesso a uma ampla gama de dados – desde indicadores econômicos e sociais até avanços tecnológicos e descobertas científicas -, podem adquirir uma visão abrangente e precisa do panorama em constante mudança no ambiente regulado. Essa inteligência é essencial para a tomada de decisões informadas e eficazes.

Os dados econômicos oferecem uma visão detalhada das dinâmicas do mercado, permitindo aos reguladores entenderem melhor os fluxos financeiros, as tendências de investimento e as pressões econômicas que impactam os diferentes setores. Com essas informações, é possível antecipar possíveis impactos de políticas regulatórias e ajustar estratégias para promover um ambiente econômico mais estável e competitivo.

Da mesma forma, dados sociais fornecem insights vitais sobre as necessidades e demandas da sociedade. Compreender questões demográficas, padrões de consumo, desigualdades e preocupações públicas é essencial para a construção de políticas regulatórias mais alinhadas com os interesses e bem-estar dos cidadãos.

Já os dados tecnológicos permitem acompanhar o ritmo acelerado das inovações. Ao estarem cientes das novas tecnologias emergentes e das mudanças nos modelos de negócios, os reguladores podem adaptar suas diretrizes para estimular a inovação responsável e garantir a segurança e eficácia dessas novas tecnologias.

Por fim, os dados científicos representam um pilar crucial para a tomada de decisões informadas. Informações provenientes de estudos e pesquisas científicas ajudam a avaliar riscos, identificar melhores práticas, compreender os impactos ambientais e de saúde, bem como a promover regulamentações baseadas em evidências.

Essa abordagem baseada em dados permite que os órgãos reguladores avaliem mais precisamente as tendências e os desafios emergentes, antecipem possíveis impactos das políticas regulatórias e, assim, tomem decisões mais informadas e eficazes. A inteligência regulatória, sustentada por análises precisas e atualizadas, não apenas promove a eficiência, mas também reforça a confiança dos cidadãos e dos agentes econômicos no sistema regulatório. É um passo crucial em direção a um ambiente regulatório mais responsivo, inovador e orientado para o bem comum.

Outro aspecto fundamental é a flexibilidade e adaptabilidade das políticas e normas regulatórias. Reconhecer que as condições e as necessidades do ambiente regulado estão em constante evolução é o cerne dessa abordagem. A inteligência regulatória compreende que políticas estáticas podem se tornar rapidamente obsoletas diante de mudanças repentinas e, portanto, defende uma abordagem dinâmica e receptiva.

A capacidade de ajustar e revisar as políticas conforme novas informações surgem é um dos pontos fundamentais. Isso implica não apenas receber dados, mas também utilizá-los de forma ágil na revisão das normas, permitindo que sejam atualizadas de acordo com as necessidades emergentes. Seja diante de avanços tecnológicos, mudanças de comportamento do mercado, descobertas científicas ou eventos inesperados, a agilidade na resposta regulatória é essencial.

Essa flexibilidade não significa apenas adaptar-se às mudanças, mas também antecipar-se a elas. Ao prever possíveis cenários futuros e analisar tendências emergentes, os órgãos reguladores podem tomar medidas proativas. Isso não apenas previne a desatualização das políticas regulatórias, mas também possibilita a criação de um ambiente mais propício à inovação e ao desenvolvimento.

Ao invés de sufocar a inovação, essa abordagem dinâmica e adaptativa promove um ambiente regulatório que estimula o surgimento de novas ideias e soluções. Ao fornecer um arcabouço normativo mais flexível e responsivo, a inteligência regulatória permite que as empresas e indivíduos experimentem e implementem novas abordagens de forma segura, criando um ciclo virtuoso de desenvolvimento e avanço.

Uma ferramenta importante nessa abordagem mais flexível é o sandbox regulatório: um ambiente controlado e seguro no qual empresas, startups, e até mesmo indivíduos, podem testar e implementar novas ideias, produtos e serviços inovadores, sem o ônus das restrições regulatórias convencionais. A principal vantagem do sandbox é a flexibilidade oferecida dentro de um ambiente regulamentado: em vez de impor regras rígidas e estáticas desde o início, o sandbox permite uma abordagem mais interativa e colaborativa. Ele possibilita que os reguladores e as entidades reguladas trabalhem juntos na criação de regras adaptadas às especificidades do projeto inovador em questão.

Dentro desse ambiente controlado, as empresas e empreendedores podem testar suas soluções em um ambiente real, mas delimitado, com uma supervisão regulatória que busca entender os riscos envolvidos e oferecer orientação conforme o processo avança. Isso permite que os participantes experimentem e implementem novas abordagens com mais segurança, minimizando possíveis impactos negativos para o mercado ou para os consumidores.

Ao facilitar essa experimentação controlada, o sandbox promove um ciclo virtuoso de desenvolvimento. As empresas podem testar e ajustar suas inovações de forma mais ágil, respondendo rapidamente às necessidades do mercado. Isso não apenas acelera o processo de inovação, mas também permite que novas ideias sejam refinadas e aprimoradas antes de serem lançadas em escala comercial.

Além disso, o sandbox pode gerar benefícios mais amplos, uma vez que os insights obtidos durante esses testes podem ser compartilhados com os reguladores para aprimorar a compreensão das necessidades do mercado e dos desafios regulatórios.

Por fim, a transparência e o diálogo são peças-chave na construção da inteligência regulatória. A participação ativa dos diversos atores envolvidos no processo regulatório – da sociedade civil ao setor privado e acadêmico – enriquece o processo decisório, fornecendo uma variedade de perspectivas e conhecimentos. Uma colaboração frutífera começa com o estabelecimento de canais abertos e transparentes de comunicação entre os órgãos reguladores, empresas do setor privado e instituições acadêmicas. O diálogo constante permite a troca de conhecimentos, experiências e informações cruciais para o desenvolvimento de políticas regulatórias mais eficazes.

O ambiente concorrencial deve ser um tema transversal nessa estratégia colaborativa. O objetivo é promover uma concorrência justa que estimule a inovação, melhore a qualidade dos produtos e serviços oferecidos e beneficie os consumidores. A busca por políticas regulatórias equilibradas e flexíveis é essencial para criar um ambiente que impulsione a competição saudável.

A aplicação bem-sucedida da inteligência regulatória não é apenas uma questão de eficiência; é uma questão de garantir um ambiente regulatório que responda adequadamente aos desafios e necessidades contemporâneos. Essa abordagem adaptativa é fundamental para promover a inovação, proteger os interesses públicos e, ao mesmo tempo, fomentar o desenvolvimento econômico e social.

Em um mundo em constante transformação, a inteligência regulatória se torna uma ferramenta vital para a construção de um ambiente regulatório mais dinâmico, responsivo e capaz de promover um desenvolvimento sustentável e inclusivo. É a capacidade de evoluir e se adaptar que define a eficácia da regulação nos tempos modernos.

Qualidade Regulatória e Crescimento – Os Riscos das Emendas sobre Prorrogação de Subsídios no PL das Eólicas Offshores

Katia Rocha 

Estamos observando, já faz algum tempo, diversas iniciativas na contramão de uma agenda positiva que deveria estimular segurança no atendimento à demanda, modicidade tarifária, competição e governança no setor elétrico.

Recentemente, o tema sobre prorrogação de subsídios para fontes incentivadas “ressuscitou” através de Emendas propostas pela Câmara de Deputados no PL das Eólicas Offshores. A questão trata do fim dos descontos na tarifa de uso para essas fontes, além de outras pautas. As emendas desconfiguram o projeto de iniciativa do Senado e incluem os já usuais “jabutis” que em nada dialogam com a “agenda verde” perseguida pelo Estado.

Segundo a ferramenta Subsidiômetro disponível na Aneel, apenas em 2023, os subsídios para fontes incentivadas corresponderam a R$ 9 Bilhões na conta do consumidor, praticamente um terço da Conta de Desenvolvimento Energético – CDE. Esse montante equivale a mais que o dobro do subsídio direcionado à tarifa social de energia elétrica (R$ 4 Bilhões). 

A nova estimativa – caso o PL seja aprovado com essas emendas no Senado – eleva as tarifas de energia elétrica em R$ 39 bilhões por ano. Um valor expressivo sobre a já elevada tarifa de energia elétrica dos consumidores residenciais no Brasil, superior, inclusive, à média mundial. Uma contradição em vista da competitividade de nossa matriz elétrica renovável a baixo custo.

Oportuno lembrar que a Lei 14.120 / 2021 já havia disposto, faz dois anos, sobre o fim desses mesmos subsídios às fontes incentivadas. A iniciativa foi precedida de inúmeros debates que reuniram uma gama representativa de agentes – formulador de políticas públicas, entes privados, academia e sociedade como preconiza as melhores práticas institucionais. Cabe relembrar que a racionalização dos encargos e subsídios, e a avaliação criteriosa das políticas de subsídios, observando suas necessidades e por tempo determinado (Acordão TCU 2877/2019), faz parte da agenda de modernização do setor elétrico, objeto de amplo debate desde 2017, cujo objetivo consiste no fornecimento de energia ao menor custo, considerando a abertura de mercado (PL 414 / 2021), sustentabilidade da expansão e eficiência na alocação de custos e riscos.

Observamos, portanto, seis anos de esforços que compreendem consultas públicas, análises de impacto, debates envolvendo academia, em vão, uma vez que se modificam políticas setoriais, recentemente aprovadas, sem razoável coerência ou embasamento técnico. No sentido amplo de formulação de política pública, que vai além do regulador, o fato evidencia a baixa governança institucional e qualidade regulatória do país.

A Economia, no entanto, não perdoa e a Figura 1 ilustra bem esse ponto. Os dados corroboram a relação positiva entre qualidade regulatória[1] e a respectiva renda per capta para um conjunto de 160 países de baixa, média e alta renda em 2022.

Figura 1. Desenvolvimento Econômico e Social x Qualidade Regulatória

Fonte: WDI – Banco Mundial (2022)

Essa dinâmica não é nova. Diversos estudos[2], há tempos, demonstram a relação positiva entre características institucionais dos países e seu nível de crescimento e renda. Melhores níveis de governança (qualidade regulatória, aparato legal, efetividade do governo, controle de corrupção, entre outros) está associada a maior desenvolvimento econômico e social.

Em seu relatório Economic Surveys: Brazil 2020, a OCDE estima (via modelos de crescimento de longo prazo) que um choque positivo que aproxime os indicadores institucionais do Brasil à média dos países membros, teria potencial de aumentar em 5,9% seu PIB per capta. Juntamente com outras medidas, seria possível elevar a taxa de crescimento potencial em 0,9% ao ano em termos reais. Um aumento considerável.

Observando a evolução dos indicadores de qualidade regulatória da Figura 2, percebe-se que a posição atual do Brasil é baixa, inclusive na comparação com os pares latinos (Colômbia, México, Peru e Uruguai), se descolando destes a partir de 2012.

Figura 2. Evolução da Qualidade Regulatória: Brasil x LAC x OCDE

Fonte: WDI – Banco Mundial (2022)

Importante destacar que a estabilidade e consistência da qualidade regulatória em direção a um melhor arcabouço institucional é um forte condicionante para atração do capital privado para investimentos, especialmente no setor de infraestrutura, com benefícios que envolvem desenvolvimento, produtividade, acesso à saúde e educação, criação de empregos e redução da pobreza e desigualdade.

Estimativas apontam que uma melhora no ranking de qualidade regulatória para o mesmo nível ocupado pelos pares emergentes latinos (posição 60) teria potencial de aumentar o fluxo de investimento privado em 0,8% do PIB ao ano[3].

Não à toa, na perspectiva da OCDE, a qualidade regulatória, no sentido amplo, é um pilar complementar às política macroeconômica e fiscal, para realização de objetivos institucionais, relacionados às boas práticas, e ao desenvolvimento econômico e social. Depreende-se que tão importante quanto o cumprimento da regra fiscal ou aprovação da reforma tributária, estão a estabilidade, consistência e memória regulatória em direção a um melhor arcabouço institucional. Ter claro essa relação é de fundamental importância para o formulador de políticas públicas.


[1] Utilizou-se, no exemplo, o indicador de qualidade regulatória do WGI – Banco Mundial como proxy das características institucionais.

[2]Ver Acemoglu et al. (2004), Acemoglu et al. (2010).

[3] Ver Rocha (2020), Rocha (2021)


Katia Rocha. Pesquisadora do Ipea. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto institucional do Ipea.


Katia Rocha é Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 1997.

Doutora em Engenharia Industrial/Finanças, Mestre e Graduada em Engenharia Industrial e Elétrica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora no Departamento de Engenharia Industrial (2002-2013).

Autora e revisora em diversos periódicos acadêmicos – Energy Policy, Journal of Fixed Income, Emerging Markets Review, Forest Policy and Economics, Pesquisa e Planejamento Econômico, Revista Brasileira de Finanças, Revista Brasileira de Economia, Economia Aplicada e Estudos Econômicos.

Atua no Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação de Políticas públicas nas áreas de Investimentos em Infraestrutura , Economia da Regulação, Financiamento da Infraestrutura (Investidores Institucionais e Mercado de Capitais), Finanças Internacionais, Determinantes de Risco Soberano, IED e Fluxos de Capital para Economias Emergentes.


Sorria você está sendo regulado!

“Reacts” ao Seminário, à Regulação e à Concorrência

Maxwell de Alencar Meneses

Em meados de novembro, realizou-se o Seminário Internacional de Regulação e Concorrência com o propósito de discutir o modelo vigente no Brasil. Há que se louvar a iniciativa, visto o fato da autoavaliação realizada tratar-se de algo necessário à manutenção das ações nesse sentido dentro de um contexto crítico, não acomodado ao fazer por costume, sem a compreensão dos motivos e o teste da atual necessidade, como ilustrado no artigo anterior com a história “A burocracia/3”.

Assim, a partir das manifestações de palestrantes consideradas mais relevantes para o contexto deste artigo, pretende-se tecer reações decorrentes. Ressalta-se que essas informações podem conter imprecisões e alguma falta de contexto, não representando a opinião de nenhuma instituição em particular, tampouco a do autor. Este realiza aqui um exercício de hipóteses, limitado e com determinado viés.

De início, o Presidente do Cade, Alexandre Cordeiro, abrilhantou a abertura do evento com declarações precisas, fruto do seu conhecimento e sabedoria. Ele é um excelente exemplo da sabedoria definida no artigo sobre o conhecimento do Cade. Afinal, antes de tornar-se chefe da autoridade antitruste brasileira, Cordeiro não foi apenas um acadêmico teórico e autor de um artigo, mas ex-conselheiro e ex-superintende-geral da autarquia por dois mandatos. Dessa fala, destaca-se aqui o termo ‘eleição’, no sentido de que determinados setores foram escolhidos no Brasil para serem regulados, algumas vezes por questões políticas.

Na sequência, o procurador-geral do Ministério Público de Contas da Paraíba e também cientista de dados, Bradson Camelo, aborda a “arte da regulação” como sendo um trabalho comparável ao artístico, que busca encontrar o ponto ótimo da regulação. Ele lembra das falhas de governo como motivo para não regular tudo. Abstrai-se da fala do procurador a necessidade de regular o regulador. Utilizando de histórias para compor seu raciocínio, como o Mito de Gyges para ilustrar a importância da transparência e a história de Ulisses e as sereias para falar da contenção do regulador.

Bruno Drago, Presidente do Ibrac, equipara a concorrência a um tipo de regulação, que seria ex post, ao contrário da ex ante setorial. Ele menciona o manual de boas práticas regulatórias da AGU, que indica que o excesso de regras e a falta de atualização produzem um ambiente deletério em vários aspectos, ou seja, um “custo Brasil”. Drago apresenta dados do relatório Doing Business do Banco Mundial, que coloca o Brasil na 124ª posição entre 190 países no ranking de facilidade para fazer negócios. Além disso, segundo o Relatório de Competitividade Global de 2017-18, o Brasil é um dos piores países do mundo com relação a carga regulatória, ocupando a 137ª posição.

Kaliane de Lira, procuradora federal com atuação na ANTT, define regulação em poucas palavras como a intervenção do Estado na sociedade. Explica que a mudança do Estado empreendedor para um Estado regulador, nos anos 90, se deu pela crise econômica instalada e recomenda artigo disponibilizado aqui na WebAdvocacy, ‘25 anos de regulação no Brasil’, da Professora e colunista Amanda Flávio de Oliveira. Pontua a respeito da necessidade de um Estado forte, não no sentido da imposição do comando e controle, mas forte para criação de um ambiente saudável. Celebra a lei de liberdade econômica, ponderando que ela diz o óbvio, mas que o óbvio muitas vezes precisa ser dito.

Na discussão a partir da perspectiva Law and Economics, destacam-se alguns trechos de falas curtas capazes de delinear bem o cenário atual. O subprocurador-geral do Trabalho, Manoel Jorge e Silva Neto, lembra que dominar é um atavismo humano. André Bueno da Silveira, procurador da república, fala a respeito de adaptações do direito concorrencial para inserir labor antitruste e green antitruste, discutindo a tolerância quanto a acordos entre empresas para custear questões ambientais e a possibilidade de atritos com Justiça do Trabalho em casos antitrustes. Márcio de Oliveira Junior, ex-conselheiro do Cade, considera que, no Brasil, a área de defesa da concorrência é uma das poucas em que o Estado brasileiro pune com eficiência, ao fazê-lo por meio de evidências empíricas. Nesse sentido, apresenta o caso Innova Videolar e aduz a respeito de erros e acertos.

Oksandro Osdival Gonçalves, advogado e professor da PUC-PR, assevera que o poder regulador, de modo geral, não leva em conta a concorrência. A perspectiva da análise econômica do direto é o realismo. Um livro, jurídico apenas, aborda situações desconectadas da realidade. A utilidade, a felicidade, a eficiência são outros aspectos observados. Regras claras fazem você feliz, mas no direito tributário é impossível ser feliz. O palestrante menciona os custos de transação, o tempo jurídico e tempo econômico, e relata ter tratado casos no judiciário devido ao tempo do Cade, exemplificando com o caso Nestle Garoto.

Lilian Marques, Economista-chefe do Cade, afirma que a autarquia não tem o papel de regular. Existe uma certa confusão nesse sentido, uma vez que o princípio por trás da ação do Cade não é o da regulação. As agências reguladoras, responsáveis setoriais, têm a competência para atuar nesse sentido. No entanto, o Cade tem uma abordagem abrangente, olhando para todos os mercados.

A Economista considera que, para o Cade, o foco principal é se ater aos efeitos concorrenciais. Expandir sua atuação para questões ambientais e outras áreas poderia gerar dúvidas sobre prioridades. Adições contínuas podem fazer o órgão se afastar do cerne, que é o ambiente concorrencial. Lilian Marques lembrou da atuação do Cade em questões regulatórias que afetavam a concorrência no setor da aviação, assim como nas propostas de controle de preços durante a pandemia, entre outras situações.

Sob o tema dos objetivos da defesa da concorrência versus objetivos da regulação, o conselheiro do Cade, Victor Fernandes, pondera que, partindo de alguns teóricos, quando a regulação é exauriente do comportamento dos agentes econômicos, quando ela não dá nenhuma outra margem a esse agente, aí, nesse sentido, falece a competência do direito da concorrência. Dario Oliveira, Diretor do Global Antitrust Institute, destaca que o antitruste pode ser compreendido como um subconjunto da regulação, encarregado de lidar com o poder de mercado. Este representa um domínio especializado dentro da regulação, caracterizando-se pela intervenção do Estado na solução de falhas de mercado relacionadas ao exercício excessivo do Poder de Mercado.

A Professora de Direito da UnB, Dra. Amanda Flavio, traz a fala mais disruptiva e interessante de todo o evento. Segundo a professora, se configurado o pensamento em modo “economês”, regulação existe para correção de falhas de mercado. Se mudado para modo “juridiquês”, a regulação é para assegurar a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social, de acordo com a Constituição de 1988, que versa sobre o objetivo da ordem econômica.

Já a respeito dos objetivos da concorrência, nos mesmos dois “modos” anteriores, não se sabe, pois trata-se de uma discussão recorrente desde sua concepção, que agudamente ainda está posta no direito e na economia. A regulação e a concorrência têm uma premissa comum, que é a crença na capacidade do Estado de promover desenvolvimento, e outras subjacentes, como a neutralidade e infalibilidade do agente público.

Outra premissa é a existência de uma técnica soberana e definitiva. Há também uma fixação que existe no Brasil na ideia da solução de desigualdade e não no combate à pobreza, o que traz consequências que podem não estar sendo compreendidas. Existe também uma prevalência subjacente de que há um dever do agente de agir, que está na mente da população, fazendo com que todos anseiem por regulação. Na realidade, o agente público é falível, condenável é a pobreza, e em atividade econômica não há espaço constitucional para dever de agir apriorístico, e as técnicas são várias e estão sempre em evolução.

Em nosso sistema constitucional, só há um objetivo para regulação e política concorrencial: assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social. Se nossas premissas regulatórias e concorrenciais não se confirmam na realidade, a cautela e a autocontenção devem prevalecer. De vez em quando, precisamos parar de mergulhar em teorias e doutrinas e olhar as coisas como elas são, parar para pensar por que elas existem.

Fechando o primeiro dia, Guilherme Ribas, Diretor do Ibrac, trouxe um dado interessante: de outubro de 2022 a outubro de 2023, foram revisados pelo Cade 599 ACs. Dessas revisões, 192 casos, ou seja, aproximadamente um terço, estavam relacionadas a mercados regulados.

No segundo dia, abordando a análise de impacto regulatório e a avaliação de impacto legislativo, Fernando Meneguin, consultor legislativo do Senado Federal, discute o abuso regulatório e as falhas governamentais, destacando sua importância. De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), a Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) não está sendo devidamente implementada, uma vez que o governo não a está exigindo e os técnicos não estão familiarizados com o processo, correndo o risco de tornar-se letra morta. Não existem sanções para quem não a cumpre, e há várias exceções, como na área tributária, nos decretos presidenciais e nas proposições encaminhadas ao Congresso Nacional. Vale ressaltar que o relatório da AIR não é vinculante.

Fernando também menciona que conforme o RegBR da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) em 2021, na área de transporte e armazenamento, foram estabelecidas 149 normas, enquanto na área de saúde e serviços sociais foram 109, a maioria sem AIR. Além de buscar aprimorar a qualidade das normas, é essencial reduzir o número delas, pois no Brasil há uma cultura que sugere que todos os problemas podem ser resolvidos por meio de normas. Segundo o palestrante, é importante reconhecer que existem diversas outras maneiras de alcançar objetivos sociais sem necessariamente recorrer à criação de normas.

César Mattos, consultor da Câmara dos Deputados e colunista da WebAdvocacy, discute sobre as Iniciativas de Análise de Impacto Legislativo (AIL) na Câmara, que são iniciativas de pequeno porte cujo progresso é incerto. Ele destaca a importância do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) como entidade autônoma e apresenta o checklist de concorrência desenvolvido na Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) como um instrumento para avaliação de problemas concorrenciais.

O conselheiro do Cade, Gustavo Augusto de Lima, remonta à origem da Análise de Impacto Regulatório (AIR), que teve início no governo Reagan nos anos 80 e, na realidade, buscava evitar a criação de novas normas. Além disso, ele exemplifica como, no caso dos planos de saúde individuais, a regulação prejudicou esse produto. Ele também reforça a necessidade de utilizar estudos empíricos, simulações e análises baseadas em evidências.

Diogo Andrade, Superintendente-adjunto do Cade, enfatiza que, no campo do direito econômico, o excesso de normas não apenas pode, mas é, de fato, um entrave à livre iniciativa e à livre concorrência. Ele argumenta que esse excesso dificulta a intervenção estatal. No Cade, muitas vezes, surge a necessidade de intervir para corrigir um problema anticompetitivo específico em um caso concreto. No entanto, as regulamentações do setor, a maneira como algo está regulado ou outras normas tornam-se obstáculos e fronteiras, que às vezes são até insuperáveis.

Tratando-se da AIR nas agências reguladoras, autoridades de diversas agências reguladoras brasileiras expuseram sua estrutura, processos, metodologias, padrões e reconhecimentos que vêm obtendo devido à qualidade regulatória alcançada. Além disso, sugeriram que todos os poderes da República passem a adotar esse tipo de ferramenta relacionada à qualidade regulatória. Foi apresentado um dado do fórum econômico mundial indicando que de 1988 a 2019 mais de 6 milhões de normas foram editadas.

Sobre o tema de cartéis e regulação, Ana Patrícia Lira, subsecretária de Regulação e Concorrência do Ministério da Fazenda, destaca o papel da Secretaria de Reformas Econômicas na construção de regulamentações que inibam a formação de cartéis e outras práticas anticompetitivas. Além disso, apresenta ações em curso, como o estudo da necessidade de regulamentação de plataformas digitais. Adicionalmente, a subsecretaria atuou contra uma emenda que propunha a criação de um conselho de supervisão externa das agências. A SREG também esteve envolvida na proposta de alteração do Decreto n° 10.411/2020 para estabelecer a avaliação obrigatória do impacto concorrencial pelas resoluções das agências reguladoras e demais reguladores.

Fernanda Garcia Machado, superintendente-adjunta do Cade, informa que um terço das investigações em andamento ocorre em mercados regulados, tais como combustíveis, transportes, medicamentos, fretes e seguros. A teoria econômica reconhece que alguns fatores estruturais facilitam a formação de cartéis, como a homogeneidade de produtos e serviços, barreiras à entrada, entre outros. Muitos desses fatores são observáveis em mercados regulados. Desenvolver ações voltadas para aumentar a competitividade seria uma maneira eficaz de prevenir a formação de cartéis.

Valdir Alves, membro titular do MPF junto ao Cade, destaca que a regulação alcança todos os setores, seja de forma direta ou indireta. Ele fornece exemplos de excessos e abusos, como reservas de mercado e barreiras artificiais. Além disso, enfatiza a importância de considerar o destinatário da norma para determinar se deve ou não realizar uma análise de impacto.

No que diz respeito às regras concorrenciais, Alves acredita que o Brasil acertou ao ter uma lei específica de concorrência, que serve como um instrumento vigoroso para o tribunal. Ele destaca que a legislação abrange um tipo aberto de ilícito concorrencial, com um rol exemplificativo, permitindo ao tribunal atualizar constantemente as condutas, mesmo sem a menção explícita de termos como “cartel” na lei.

Alves reforça a importância da transparência no combate a cartéis em licitações públicas e aborda questões relacionadas à alteração da lei de licitações, destacando a permissão, como regra, para a realização de consórcios.

Luiz Hoffman, ex-conselheiro do Cade, lembra que a administração pública para o jurisdicionado é uma só, no sentido da necessidade de harmonização de regras. Além disso, aborda detalhes de casos concretos relativos a consórcio em licitações.

A respeito de regulação e concorrência no Brasil e nos Estados Unidos, o superintende-geral do Cade, Alexandre Barreto, exalta a importância da coordenação e troca de informações entre regulação e concorrência, mediante exemplos em casos concretos. Informa que nos últimos 4 anos, foram 626 atos de concentração sumários e 88 ordinários, totalizando 714 casos. No setor de energia 306 casos, telecomunicações 74 casos e tantos outros. Na investigação de condutas algo em torno de 25 casos em 2023 e 23 casos em 2022 em setores regulados.

Segundo Krisztian Katona, ex-membro da Federal Trade Commission (FTC), o ponto central de intensos debates globais sobre o equilíbrio adequado de regulação está nos mercados digitais. Os debates se encontram em diferentes estágios. Entre as várias regulações em andamento, a mais discutida é a europeia, DMA, que estará totalmente implantada em 2024. É crucial acompanhar os resultados. Até o momento, a Alemanha é o único país que implementou uma regulação ex-ante nos mercados digitais, mas é cedo para compreender completamente os efeitos desse regulamento.

Nos Estados Unidos, há uma proposta que despertou muita atenção: o American Innovation and Choice Online Act Bill. Muitas preocupações foram levantadas sobre diversos aspectos, resultando na perda da oportunidade de prosseguir. A regulação da concorrência não existe no vácuo; as características do mercado mudam rapidamente ao longo do tempo. As regulamentações de hoje mostram respostas diferentes ao longo de 3 a 5 anos. Por exemplo, nos EUA, no setor de transportes, houve lições aprendidas sobre como não regular, a partir do resultado observado com problemas para a concorrência e para os consumidores ao longo do tempo.

Por fim, processando tudo o que foi pronunciado nesse rico evento e, em parte, reproduzido aqui como objeto de estudo, as preocupações tornam-se pungentes em relação ao futuro do Brasil. Isso não se deve exatamente à quantidade exacerbada de normas, mas sim ao fato de que o povo brasileiro aparentemente gosta que seja assim e anseia por receber cada vez mais proteção do Estado por meio de regulamentações. Acrescente a isso o fato de que, já desde a antiguidade, filósofos como Platão, por meio de sua teoria das ideias ou formas, consideravam que o mundo, de fato, é mental. Portanto, no mundinho tupiniquim, a realidade deve continuar a ser essa enquanto uma outra perspectiva não for experimentada consistentemente desde a tenra idade.

Tanto é assim que, em cursos ou oficinas de inovação, é comum dedicar horas buscando reverter, nos adultos, os efeitos tolhedores de criatividade sedimentados ao longo dos anos quando crianças, no ensino de regras de conduta que talham em pedra como comportar-se, no sentido duplo de se moldar a algo. Então, essa criança passa por um sistema de ensino rígido e restrito, desembocando, quando possível, em uma formação universitária dominada por determinado viés, tornando-se servidor público e retroalimentando esse processo.

A frase comumente atribuída a Einstein, de que uma mente exposta a uma nova ideia nunca volta ao seu tamanho original, consiste em uma esperança. Ao conhecer inovações como o Uber e tantas outras disrupções rápidas o bastante para não dar tempo de o Estado pôr a mão, o brasiliano pode perceber que existe um outro mundo, mais leve, ágil e próspero. Nesse mundo, a tragédia dos concorrentes comuns ainda não foi instalada, e os gigantes podem ceder a pequenos pastores de ovelhas.


Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


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O Conceito de Concorrência sob Condições de Incerteza na Sociedade de Informação.

Cristina Ribas Vargas

A teoria econômica neoclássica, e particularmente a teoria microeconômica, forneceram importante instrumental analítico para o desenvolvimento da teoria da concorrência. Contudo, a partir da microeconomia subjacente aos fundamentos da Teoria Geral de Keynes, a conclusão sobre a necessidade de intervenção e regulação nos mercados foi em direção oposta ao recomendado pela teoria convencional.

A teoria econômica neoclássica parte do pressuposto de que os ofertantes, ou concorrentes em determinando mercado, assumem comportamentos que podem ser classificados como homogêneos, de tal modo que suas ações estratégicas não apresentariam diferenças significativas entre si em termos dos resultados alcançados. Nos mercados em que a estrutura pressuposta é a concorrência perfeita, as firmas, além de apresentarem comportamento homogêneo, são consideradas atomizadas, de tal forma que sua participação no mercado pode ser considerada desprezível.  A hipótese de atomismo tem o objetivo de garantir que as decisões individuais sejam incapazes de afetar significativamente as condições de mercado, particularmente os preços e as quantidades comercializadas. Essa hipótese exclui, portanto, a possibilidade de exercício de poder de mercado.

No entanto, a prática da concorrência é indissociável de dois conceitos econômicos fundamentais: assimetria e cumulatividade. O comportamento e a estrutura assimétrica dos concorrentes, vinculado ao acúmulo de conquistas sucessivas de parcelas de mercado, podem resultar em maior concentração e poder de mercado em médio e longo prazo.

Em sua Teoria Geral Keynes argumentava que existe imensa dificuldade por parte dos agentes econômicos em estimar uma distribuição de probabilidades para resultados a serem alcançados sob condições de incerteza. As informações compradas ou acumuladas com base na experiência dos agentes podem apresentar custos elevados e ser de difícil acesso, reduzindo as possibilidades de calcular o risco para a tomada de decisão.

Passaram-se noventa e um anos desde que Hayek e Keynes enfrentaram-se no debate pela primeira vez. Hayek argumentava que, dado que ninguém podia saber o que estava na mente de cada membro da sociedade, e que o melhor indicador de suas necessidades eram os preços de mercado, as tentativas do Estado em conduzir a economia seriam infrutíferas.

Se fizermos o exercício de supor que toda informação hoje disponível nas redes sociais e internet, que já estão disponíveis ao acesso de algumas grandes empresas de informação, estivessem amplamente acessíveis ao público, seria a incerteza eliminada do mercado e do Estado? O que os fatos da atualidade nos mostram indicam uma resposta negativa. No estágio atual de democratização da informação dois resultados no mínimo possíveis já são observáveis: aumento de assimetria produzido por grandes bigtechs, e a necessidade de uma profunda discussão social acerca das regras do jogo sobre a conveniência e oportunidade de universalização do acesso à informação. Neste caso, a teoria keynesiana sairia vitoriosa do debate, pois ainda seria necessária a presença do Estado mediador para assegurar o cumprimento das regras do jogo. Jogo este que estaria não só sujeito ao malogro das fake news, mas também de decisões estratégicas variadas diante de informações idênticas.

Supondo empresas atomizas com informações perfeitas em um mundo totalmente conectado em rede mundial, como as firmas buscariam continuar acumulando poder de mercado? Mesmo com sistemas que vasculham as preferências dos indivíduos, e diariamente oferecem bens e serviços com base em resultados de pesquisa dos consumidores em rede, ainda assim, na maioria das vezes a demanda não é efetivada.

Arrow (1962) já apontava as dificuldades de se criar um mercado de informação. Três características são inerentes a informação enquanto mercadoria: consumo não-rival, natureza indivisível e impossibilidade de verificação de seu valor antes mesmo de possuir a infomação.  Daí a importância de distinguir entre informação e conhecimento.  Enquanto a informação pode ser tratada como um algoritmo ou um dado qualquer, o conhecimento vai muito além disso, exigindo que o receptor possa interpretá-la e utilizá-la.

É cada vez mais perceptível que as mudanças velozes da nova sociedade de informação impactarão a formação de expectativas dos agentes econômicos. Freeman e Soete (2008) ao identificarem a importância dos sistemas nacionais de inovação para o desenvolvimento econômico, dedicaram atenção aos impactos da sociedade de informação na geração de empregos, produção e produtividade. Ainda, nesse sentido, destacaram a visão de Kuznets (1955) acerca da necessidade da economia em dialogar com as demais ciências sociais para aprimorar a mensuração dos impactos das atividades governamentais sobre as forças de mercado e redução de desigualdades:

“ Se fôssemos tratar adequadamente os processos de crescimento econômico, os processos de mudança a longo prazo, nos quais as próprias estruturas tecnológica, demográfica, e social também estão mudando – e de maneira que decididamente afeta a atuação das próprias forças econômicas -, torna-se imperativo que nos arrisquemos em áreas além da própria economia (…) É imperativo que nos tornemos mais familiares com as constatações daquelas disciplinas  sociais correlatas  que podem ajudar-nos a entender os padrões de crescimento da população, a natureza e a força na mudança tecnológica e os fatores que determinam as características e tendências das instituições políticas. (…) Um trabalho efetivo nesse campo requer necessariamente uma reorientação da economia de mercado para a economia política e social.” (Kuznets, 1955).

No último capítulo de sua teoria geral Keynes (1936) aponta três funções do Estado a fim de assegurar o pleno emprego: direcionamento da liquidez do Estado para práticas produtivas, tributação progressiva para financiar um orçamento que possa fazer frente a oscilações abruptas de demanda, e cooperação internacional para a redução de instabilidades que inviabilizem a busca pelo pleno emprego. A esse último ponto poderia ser acrescida a necessidade de regramentos sobre acesso a informação assimétrica por parte de grandes empresas de informação e do próprio Estado.

Referências

ARROW, K. Economicwelfareandtheallocationofresources for invention. The rate anddirectionofinventiveactivity. Princeton: Princeton University Press: 1962.

FREEMAN, C.; SOETE, L. A economia da inovação industrial. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

KEYNES, John M. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Saraiva, 2012 [1936].

MACEDO E SILVA, Antonio Carlos. Macroeocnomia sem equilíbrio, Campinas/Rio de Janeiro: Ed. Vozes/Fecamp: 1999.

POSSAS, MARIA SILVIA Concorrência e elementos subjetivos Competitivenessandsubjectiveelements Revista de Economia Política, vol. 18, nº 4 (72), pp. 595-611, outubro-dezembro/1998.

WAPSHOTT, Nicholas. Keynes x Hayek. As origens e a herança do maior duelo econômico da história. Rio de Janeiro, Record:2017.

Acordo Mercosul-UE: o que deu errado no maior acordo comercial da história?

Fernanda Manzano Sayeg

O acordo comercial negociado entre Mercosul e União Europeia desde 1999 e concluído 20 anos depois, em junho de 2019, passa por uma crise que dificilmente será superada.

O maior acordo comercial da história abrange um mercado de 780 milhões de pessoas e engloba 25% do PIB mundial. Se implementado, o Acordo eliminará 93% das tarifas aplicáveis às exportações do Mercosul para a UE, oferecendo tratamento preferencial para os 7% restantes. Da mesma forma, o acordo eliminaria o imposto de importação ou criaria cotas tarifárias para as principais exportações agrícolas da UE para o Mercosul.

Desde sua assinatura, o texto do Acordo passou por revisão legal e foi traduzido para todos os idiomas oficiais da UE. No entanto, o encaminhamento do documento para votação no Conselho da União Europeia e no Parlamento Europeu, contudo, depende não apenas de questões técnicas, mas também de alinhamentos políticos.  

Não é novidade que o Acordo sempre enfrentou a oposição de políticos europeus, que desconfiam de potenciais impactos ambientais com aumento do comércio com o Mercosul. Além de constantes declarações negativas do presidente francês, Emmanuel Macron, o Parlamento Europeu chegou a aprovar, em 2020, uma menção simbólica contra o tratado, sinalizando que o texto não seria ratificado sem alterações. Os parlamentares alegaram que o capítulo de sustentabilidade deveria ser revisto, pois careceria de mecanismos de sanção, caso uma das partes não cumpra os compromissos assumidos no Acordo de Paris.

Uma possibilidade aventada foi a reabertura do texto negociado durante 20 anos, que logo foi descartada. Para solucionar o impasse, a Comissão Europeia tem debatido sobre a implementação de algum mecanismo adicional ao acordo, que incremente as garantias ambientais, sem alterar o texto já negociado. Do lado do Mercosul, autoridades do bloco já se declararam favoráveis ao aprofundamento dos compromissos de sustentabilidade, desde que as medidas adicionais sejam aplicáveis a ambas as partes.

Além dos esforços para avanço do acordo dentro da Comissão Europeia, um grupo de nove países autointitulados “novos amigos do comércio” reforçou o apoio à parceria com o Mercosul. No final de 2020, representantes de Dinamarca, Estônia, Espanha, Finlândia, Itália, Letônia, Portugal, República Tcheca e Suécia defenderam a ratificação do tratado, ressaltando sua importância para a consolidação da autonomia estratégica do bloco, uma vez que fortaleceria a posição europeia na América do Sul, à frente de concorrentes como EUA e China, que ainda não possuem acordo com os países do bloco sul americano.

Outros países também se mostraram contrários ao acordo, por receio de perderem mercado no continente europeu. Para os parceiros tradicionais da região, a maior presença comercial da União Europeia no Mercosul e vice versa pode ter consequências nos fluxos de exportação existentes. Nesse sentido, cumpre mencionar o estudo publicado pelo Departamento de Agricultura dos EUA (USDA)[1], em janeiro de 2021, que alerta que as exportações dos EUA para a UE poderiam ser “potencialmente ameaçadas” pelo acordo do Mercosul, pois poderiam ser substituídas por produtos sul-americanos, com impacto de até US$ 4 bilhões. O USDA também alertou que o acordo estenderia o alcance dos padrões da UE para a América do Sul, criando uma vantagem para os produtos europeus em relação às exportações dos EUA no continente.

Se o ambiente político já não era favorável ao acordo, ficou ainda mais preocupante após a adoção de dois importantes regulamentos sobre mudanças climáticas que impactarão as exportações do Mercosul para o bloco europeu, a saber: o Regulamento que cria o mecanismo de ajuste de carbono na fronteira (CBAM) e o Regulamento Anti-desmatamento. Para os sul americanos, os novos regulamentos, aprovados em 2023, nada mais são do que medidas unilaterais protecionistas, impostas sob o pretexto da sustentabilidade, que prejudicariam ainda mais o equilíbrio das obrigações das partes no acordo aprovado em 2019 em questões ambientais.

Recentemente houve esforços mútuos para que o acordo fosse, de fato, concluído. Do lado do Mercosul, o presidente Lula se mostrou favorável ao acordo desde que houvesse um maior equilíbrio em questões ambientais. Foi proposta a criação de um fundo de 12 bilhões de euros (cerca de R$ 65 mil) para ajudar países do bloco a implementarem políticas ambientais e de redução do desmatamento. Já do lado europeu, foram apresentadas demandas em questões como compras governamentais, as quais teriam sido atendidas.

Não obstante os avanços obtidos nos últimos meses, as reuniões marcadas para o final de novembro e início de dezembro, que eram decisivas para o futuro do acordo, mostraram que o consenso é bastante improvável.

Um dos problemas enfrentados é a posse do novo presidente da Argentina, Javier Milei, que assume o país em 10 de dezembro. Os delegados argentinos que participavam das negociações foram mais duros nas conversas realizadas em novembro, alegando que o acordo estava desequilibrado e, se fosse fechado, os europeus teriam mais vantagens que o Mercosul. Trata-se de um recado de que o presidente derrotado Alberto Fernandez, que se recusou a dar esse acordo de presente para Milei, que é favorável à liberalização econômica. 

A declaração de Macron na COP28 ajudou a sepultar o acordo. O presidente francês que notoriamente é contrário ao tratado, reiterou sua posição na COP28 ao dizer “Sou contra o acordo Mercosul-UE, porque acho que é um acordo completamente contraditório com o que ele está fazendo no Brasil e com o que nós estamos fazendo, porque é um acordo que foi negociado há 20 anos, e que tentamos remendar e está mal remendado”. O presidente Lula, por sua vez, mostrou sua habilidade política em assumir crises e transformá-las em oportunidades para seu próprio governo, responsabilizando os europeus por um eventual fracasso das negociações.

Se o ano de 2023 for encerrado sem um acordo, perde-se a janela de oportunidade e, possivelmente, o tratado comercial entre UE e Mercosul será finalmente enterrado.

A pergunta que surge é: o que deu errado nesse acordo? Que lições podemos aprender para as futuras negociações comerciais?

Entendo que três fatores levaram ao fracasso dessa negociação: a falta de vontade política, a estrutura ambiciosa do acordo e o elevado número de partes.

O Acordo Mercosul-UE é mais abrangente que os demais acordos celebrados pelo bloco sul americano. Há compromissos em temas como defesa da concorrência, comércio e desenvolvimento sustentável e compras governamentais, que são sensíveis para diversos países, como o Brasil. Excluir os temas sensíveis da pauta certamente facilitaria um acordo entre os blocos. No entanto, resta saber se esse acordo ainda seria interessante para ambas as partes, o que não me parece ser o caso.

As negociações com os europeus denotam a dificuldade de se negociar um acordo desse porte com mais de 30 países, cada qual com a sua história, perspectiva e prioridades. Os interesses dentro do mesmo bloco são distintos. Basta comparar Brasil e Paraguai. Ambos são membros do Mercosul, mas Brasil é um país com forte agronegócio, indústrias, que ao mesmo tempo de vê oportunidades no acordo com os europeus, também teme pela concorrência. Paraguai, por sua vez, é um país muito mais dependente de importações, que está interessado em abrir seu mercado para os europeus.

Um acordo que exige unanimidade entre partes acaba sendo extremamente difícil quando estas são tão numerosas. Pelo mesmo motivo, a Organização Mundial do Comércio (OMC) está há 10 anos sem um novo acordo multilateral. O primeiro e único acordo multilateral celebrado no âmbito da OMC desde sua criação, em 1999, foi o Acordo sobre Facilitação de Comércio, que entrou em vigor em 22 fevereiro de 2017, com a assinatura de 112 dos então 164 membros da OMC.

Por fim, não observamos a vontade política de celebrar o acordo por parte de todos os atores envolvidos. Pelo contrário, parece que muitos países ficam aliviados sempre que a concretização do acordo é adiada. Transição de governo e processos eleitorais, sobretudo para presidência da república, costumam ser utilizados como desculpas para não assumir compromissos. É o que vemos neste momento com a Argentina.

O resultado final dessa longa negociação entre Mercosul e União Europeia certamente será decisivo para modular o modelo e o nível de ambição dos futuros acordos de livre comércio a serem celebrados pelo Mercosul.


[1] https://www.fas.usda.gov/data/eu-mercosur-trade-agreement-preliminary-analysis.

Caminhar Juntos

Adriana da Costa Fernandes

O Brasil finalmente  saiu do tempo do cobre.

Depois de uma longa e árdua jornada que quem viveu conhece bem, segundo o relatório TIC Domicílios 2022, da CGI.br, 80% das residências brasileiras já possuem acesso à internet e 71% das casas já se encontram conectadas via banda larga.

Para sanar a diferença em busca do atingimento da conectividade full, algumas alternativas para 2024 vem sempre sendo pensadas, ainda que nem sempre colocadas em prática.

No Futurecom 2023 (Out 23), as operadoras debateram, por exemplo, (a) novos focos em microtecnologias com o objetivo de compactar componentes físicos para facilitar as instalações de redes FTTB e FTTH, o que já é explorado no exterior; (b) a Web3 e a Indústria, a revolução no setor industrial; (c) as Agtechs e diversos outros temas essenciais para a alavancagem do setor e o estabelecimento de novos patamares econômicos e tecnológicos.

Segundo informações da plataforma Telesíntese e dados da consultoria britânica Juniper Research, já são 5 (cinco) as tecnologias em destaque, as quais são consideradas aptas a impactar de forma significativa o setor já a partir do próximo ano, influenciando as atividades das operadoras e dos provedores de internet.

São elas:

     (1) Satélites, setor do qual já há algum tempo se espera o impacto sobre as redes 5G em especial acerca do fornecimento de conectividade em áreas com pouca ou nenhuma cobertura móvel. 

     (2) APIs abertas, tema na pauta da GSMA, associação global de operadoras, a qual anunciou seus primeiros produtos no país no Projeto Open Gateway.

     (3) Dispositivo com ISim integrado, possibilitando que o smartphone possa se conectar à rede móvel sem a necessidade de comportar um SIM físico ou um eSIM (chip virtual).

     (4) Interoperabilidade entre plataformas, consideradas gatekeepers (controladoras de acesso digitais), Google, Meta, Microsoft, Apple, Amazon e TikTok que precisarão se adequar à Lei dos Mercados Digitais (DMA, em inglês) até março de 2024. O foco será buscar a interação com os consumidores, não importando o aplicativo de mensagens OTT usado. A questão na mesa há de ser: o nível mantido de privacidade e o comportamento dos algoritmos nisso?

     (5) Inteligência Artificial (IA) generativa, como prioridade, “the ultimate darling”, cabendo aqui novamente o sinal amistoso, – Hey, Jude, atenção, ferramenta em desenvolvimento.

Inclusive, nesta linha, o próprio Ministro Luís Roberto Barroso indicou o lançamento do Manifesto sobre a Simplificação da Linguagem no Direito

Curiosamente, mesmo que eu não soubesse do fato até agora, me alegro do que me contou aqui Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy acerca de um texto antigo dele chamado “A Revolução da Brevidade“, do querido autor Ítalo Calvino, em As Seis Propostas Para O Próximo Milênio, base para a 1ª Residência Literária Brasileira, da qual participei em Paraty (RJ), durante meu período sabático no ano de 2015.

Sobre Linguagem, bacana, em bases convergentes, como veremos.

Na toada da fibra ótica, a lista dos 6,5 mil órgãos públicos que devem se conectar à rede privativa de segurança nacional ainda não foi definida. A expectativa é a de que a rede tenha características mínimas, aderentes ao edital do 5G, posto ter sido condicionante, sendo 80% óptica e os 20% afetas a outras tecnologias.

Diante de todo este interessante cenário tech, ainda remanesce uma “espinha de peixe” atravessada na garganta do consumidor nacional apesar de inúmeros pontos de melhoria obtidos com o passar dos anos.

O fato é que, à medida que a disrupção se impõe e a inovação aumenta a sua presença, o desafio de prover cibersegurança e com maior agilidade de respostas a antigos dilemas que pareciam superados, mas realmente não foram, os temas voltam à pauta e novos atores tendem a repetir os mesmos erros.

Um destes problemas é a questão das antigas bases legadas das operadoras do Sistema Telebrás que foram unificadas nos sistemas das operadoras, das mais diferentes formas.

Em verdade, estas bases nunca geraram um cadastro único. As teles não possuem “o seu” cadastro integrado. O que existe são diversas bases internas que se comunicam, nem sempre da melhor forma possível e tantas vezes com certo delay.

Imensas, em face da quantidade de usuários deste país continental, bem como nem sempre preenchidas e continuadas da melhor forma, exigem atenção e novo investimento a cada vez que novos problemas surgem mais complexos de serem resolvidos, isto porque nem sempre acompanham a agilidade dos sistemas atuais.

Espera-se que esta migração já tenha sido providenciada ou venha sendo, mas não parece, quando se percebe que a base de cobrança, a de dados pessoais e a de marketing de grandes operadoras, continuam não se comunicando adequadamente.

A exemplo disto, uma story simples que acontece a todo o instante e que os indicadores da ANATEL e dos PROCONS conhecem, desrespeitando a legislação consumerista, em um verdadeiro “enxuga-gelo” e fomentando a máquina do Judiciário:

Marisa, mãe de quatro filhos, divorciada, advogada, na faixa etária dos 55 anos, dona de uma agenda lotada de compromissos, com perfil avesso à tecnologia, do tipo que sempre adorou fila de banco, pela sensação de “dever cumprido”. Inicia todo mês levando as contas organizadas por valor, do maior para o menor, à mesma Agência Bancária há 30 anos. Típica preocupação de quem terminou a faculdade nos anos 80, ainda gosta de ler jornal em papel, feliz por sujar a mão e comprar o pão na padaria às 7h. Se acostumou a enfrentar fila de cartório, fila de transporte, a pagar DARF com preenchimento manual e coisas do gênero. Apenas registros de uma geração, nada mais. E daí? Marisa sofre, sofre mesmo porque sua operadora de telefonia celular se recusa, e o faz abusadamente, a encaminhar a conta física para sua residência, apesar de ainda existir esta opção e ela a ter exercido. Sente-se agoniada todos os meses ao receber o código de barras para pagamento no APP, coisa que ela nem sabe direito usar e que precisa pedir ajuda ao filho mais novo, que ainda mora com ela, que, lógico, nunca tem tempo. E ao certo, a conta de celular normalmente atrasa entre 5-10 dias, o que a irrita profundamente. Marisa tem o típico perfil das pessoas preocupadas demais com o “decoro imaculado” do nome, como filha ou filho, que nem tarde em casa pode chegar, quanto mais atrasar um vencimento que a faria ficar sem se comunicar com seus mais importantes clientes e até perder prazos jurídicos. Coitada da Marisa, treme a alma todos os meses só de ouvir o nome da operadora de telefonia. Pois chegou fevereiro, carnaval e o filho viajou para a Bahia com a namorada. Ih, Marisa “ficou lascada”, na melhor das gírias adolescentes. 20 dias de atraso na conta. Ela começou a receber ligações diárias incessantes que simplesmente nada falavam ou diziam: – Oi, você é (pa-u-sa)… a (pa-a-u-s-sa no meio da sala de audiências. Não ela não desligaria, precisava informar que o filho viajou, mas ninguém falava com ela)… Marisa? … pi-pi-pi. Ufa! Ele voltou. – Ah, mãe, relaxa, agora existe uma opção de pagamento via PIX. Pago. E de imediato uma mensagem: – Agradecemos o seu pagamento. Ainda bem. Ufa! Uma semana inteira de paz. (…) Até que às 20h da sexta-feira, descansando, tomando vinho e ouvindo música clássica, uma mensagem: – Olá, como não recebemos o seu pagamento até o momento, o seu celular a partir de agora só receberá chamadas de emergência. Solicitamos que solucione o pagamento urgente. O reestabelecimento da linha apenas após a confirmação do pagamento, em até 72 (setenta e duas) horas.”

Este é um caso fake, criado pela inteligência natural que carrego comigo, mas poderia ser real, porque acontece o tempo todo por aí. Em verdade, quem nunca?

Dois problemas sérios: (a) a não interface entre as duas bases ocasionando a não baixa imediata do pagamento já confirmada ao consumidor. E, neste caso, em antagonismo à regra consumerista nacional, ao reconhecer o pagamento e depois novamente cobrar. (b) Dia e hora errados de contato e corte de um serviço que deveria ser considerado ao menos parcialmente essencial, aguardando ao menos o dia útil e um contato, priorizando o Princípio da Razoabilidade e a mitigação de danos. Onde estão os Jurídicos Consultivos Preventivos?

Ok, amenizando, isto tudo não é só um problema de telecom. Alto lá.

Quando da entrada da Estratégia Nacional do Governo Digital e as teles ficaram de fora, toda a coordenação foi das TICs, realizando exatamente a mesma operação, integrando as bases dos diversos Órgãos Públicos, Ministeriais e Institucionais, sobrepondo sobre o emaranhado de dados levantados uma “cobertura”, uma espécie de “colcha de retalhos da vovó” que busca dar ao usuário a sensação, o feeling, de estar lidando com uma coisa só, via GOV.br Ou seja, a problemática inicial foi e é exatamente a mesma.

O trabalho foi intensivo e continua sendo. Melhorou muitíssimo ao que era. Sensacional, mas se compararmos, por exemplo, as páginas das Agências Reguladoras dentro do GOV.br, os contextos são totalmente diversos. E muitas vezes, desproporcionais, justamente pelo fato de que a base legada de algumas era ruim, precisando ser muito trabalhada simultaneamente ao que é feito em termos de melhoria e inovação no GOV.br como um todo.

Este tema foi pauta, inclusive, de painel da Futurecom, onde se abordou até mesmo a grande dificuldade de conseguir boa mão de obra para a realização deste tipo de trabalho lapidar.

Ou seja, mexer no bolo e ao mesmo tempo assentar a cobertura, não é tarefa para qualquer um. Exige cautela, muito comprometimento e boa vontade.

É um problema geral. Uma das maiores empresas internacionais de varejo, aquela que todos amam, tem uma das maiores fragilidades de base que eu já vi neste quesito. A outra amadinha de alimentos idem.

Perdi a conta de quantas vezes precisei alterar meu cadastro, confirmar um milhão de  coisas tolas e, mesmo assim, pasmem, o número de telefone cancelado há mais de 1 (ano) é o que hoje, novamente, está valendo quando reinicio o telefone do zero, pois, das duas, uma, ou a falha interna voltou a ocorrer nos cadastros ou muito provavelmente estamos falando de uma questão severa de cibersegurança que eles não têm mecanismos, de fato, seguros e efetivos para identificar.

Novamente, isto só ocorre porque as empresas dispõem destas diversas bases de dados independentes, algumas recebidas, herdadas, legadas, que tiveram de ser tratadas, sem os adequados históricos de movimentação e acesso, que até pouco tempo não eram de todo confiáveis.

No caso dos endereços e informações pessoais, ponto de alta atenção quanto à Garantia prevista na LGPD acerca da privacidade de Dados Pessoais, a questão ainda é mais complexa, em especial quando hoje Dado é Petróleo, pois as bases são manipuladas por empresas terceiras, com pessoal sem preparo e normalmente sem muita estabilidade.

O maior risco continua sendo a falta de verificação do histórico dos profissionais x baixos salários x falta de preparo x descontrole de acessos (driblar ainda é fácil, seja pelos sistemas falhos, seja pela ineficiência de preenchimento). Não se tem controle do quantitativo da dita infiltração de pessoal.E isto é grave. Isto é cibercrime. O Brasil ainda não acordou.

Estes pontos são facilmente verificáveis, pois normalmente quando o consumidor atualiza sua informação pelo site da operadora ou via mobile dificilmente funciona. Algum grau de efetividade ocorre apenas quando o call center é acionado e assim mesmo, de forma parcial, porque, como dito, a base do sistema da operadora é diverso do call center. Quantas vezes já não se ouviu: – Nosso sistema está fora do ar. Leia-se, nossos sistemas não estão se falando agora de forma alguma, nem com delay.

Isto ocorre igualmente com a empresa prestadora de serviços que faz o atendimento na casa do usuário, com o da empresa de cobrança e com todos os serviços terceirizados.  

Trata-se de um o aspecto ao qual me referi em um de meus últimos textos, acerca da infraestrutura nacional (como um todo, não estou mencionando planta de engenharia instalada) ainda carecer de alguma atenção no quesito base antes de tanta celeuma com IA como Linguagem.

Mais uma vez, bolo bom se faz com os melhores ingredientes e a melhor ganache, mas não com massa ruim. Precisa ser palatável e ter consistência para crescer.

Esta mesma regra se aplica ao que se pretende agora construir no Judiciário.

Com mais cautela ainda, pondero. Em especial, em face de destinos individuais e da construção de uma rota coletiva segura. Da mesma forma, em se tratando da definição de bons rumos da Precedência, porque, sim, se estará indiretamente tratando cada vez mais disto. E IA tem inconteste o condão de cruzar, matricialmente, bases espetaculares (os excelentes ingredientes), como as doutrinárias, hermenêuticas, as linguísticas comunicantes (texto anterior) e, ao certo, os indicadores de eficiência que o mundo usa – KPIs (sem espanto, por favor) devidamente adaptados.

Afinal de contas o Direito não é uma ilha no meio do oceano da vida, ao contrário. É um ponto de convergência das muitas vidas plurais.

Não sou favorável à centralização institucional completa, isto é incompleto e diz respeito a um Estado engessado e antiquado. Bem como não é do que não se trata. Porém, as Instituições de topo de pirâmide precisam aprender a assumir papéis menos burocratas e mais principiológicos, formadores, orientativos, luminosos, inspiradores e acima de tudo, de mão reversa, ou seja, decisores, mas de acompanhamento de eficiência social. Delegando, de fato, tudo o que é realmente necessário, mas mantendo firmes as rédeas do que é essencial para o grupo caminhar junto, lado a lado, uníssono na mesma rota.

Assim, que bons ventos abracem nossos setores regulados, nosso Judiciário e a nós operadores e consumidores.

Que venha 2024 com muitos novos satélites no ar e com o fim do drama dos postes e do cabeamento aéreo, ainda que estes sejam papos para outras horas.

     Feliz Dezembro!

Armadilha da renda média: um enfoque objetivo e direto

Marco Aurélio Bittencourt

Muito se fala sobre o desempenho pífio da economia, mas poucos vão direto ao ponto. Alguns falam sobre isso com base em modelos genéricos, embora esclarecedores e sugestivos da armadilha da renda média; outros, em produtividade, refletindo circularidade explícita e outros caminham nos trilhos. Veja o que disseram os economistas Lara Resende, Stiglitz e Galbraith no seminário do BNDES. Fiz uma síntese desse painel – https://webadvocacy.com.br/2023/10/30/andre-lara-resende-stiglitz-e-james-galbraith-suas-contribuicoes-relevantes-ao-debate-sobre-politicas-publicas/

Então, seguiremos a trilha desses importantes economistas. A causa motivadora de nossos desequilíbrios está na dívida pública. Não exatamente pela sua dimensão. Mas pela sua gestão. André Lara Resende chega quase a berrar aos quatro ventos que a política de juros do Banco Central está profundamente equivocada. Claro, ele está se referindo à estratégia sistemática de juros elevados, que nos entregou uma taxa de juros real em média, nos últimos 28 anos (1995-2022), de 8,8%, com desvio padrão (volatilidade) de 8,1%, enquanto economias como a americana verificou, no mesmo período, uma taxa de juros real média de (-) 2,4% e desvio padrão de 3,4%.  Os gráficos e a tabela abaixo mostram essa realidade.

Como se dá a correlação entre essa trajetória dos juros com a do crescimento da economia? Principalmente pelo impacto na dinâmica orçamentária, fazendo seu cumprimento errático refletir negativamente sobre o crescimento da economia. De fato, essa volatilidade dos juros faz com que a despesa com o serviço da dívida, que está no grupo das despesas obrigatórias, juntamente com os salários dos funcionários públicos e transferências a estados e municípios, obrigue ajustes nas despesas de investimento e em alguns itens da despesa corrente, alcançando todas as funções de governo. O fato é que chegamos a uma situação orçamentária crítica, muito embora os ajustes cumpram os requisitos legais. Daí o efeito nocivo dessa volatilidade dos juros sobre a trajetória de crescimento da economia.

Como se sabe, o orçamento abraça quase 30 funções que vão desde as bem conhecidas, como saúde, educação, segurança e justiça e despesas sociais, bem como as econômicas, que abrangem itens como agricultura, combustíveis e energia, mineração, construção, transportes, comunicação e outros itens de menor importância orçamentária. Há também funções de proteção ambiental e de lazer e cultura.  Essas funções contam, em sua maioria, com planos detalhados que, para frutificarem em políticas públicas eficientes, dependem dos tributos que lhes são alocados e da continuidade dessas políticas públicas.

Como veremos, os gastos orçamentários que se ajustam a esse deslocamento dos juros da dívida pública apresentam trajetórias decrescentes e há um pouco de estabilidade no montante de gastos em educação e saúde, funções básicas. Mesmo assim, em termos orçamentários, difícil saber se as deficiências nessas duas funções básicas são compensadas com gastos privados ou se a qualidade das respectivas políticas públicas também está comprometida. Vejamos as tabelas que explicitam a situação orçamentária. A primeira, tabela 1, mostra os grandes grupos de gastos.

Tabela 1. Gastos orçamentários por funções segundo o Padrão COFOG – % PIB

São, portanto, quatro itens que absorvem a maioria dos recursos orçamentários. Em ordem de importância quantitativa, temos os seguintes gastos médios: Despesas com serviços públicos gerais (12,5% do PIB), Despesas sociais (12,2% do PIB), Educação (2,2 % do PIB), Saúde (2,1% do PIB) e Outros (3,1% do PIB). As posições finais e iniciais mostram claramente que os ajustes ocorrem necessariamente em Outros (2010, 3,7% do PIB e 2021, 2,3% do PIB) que abriga as demais funções do governo.

Importante detalhar o item Despesas com serviços públicos. A Tabela 2 mostra o detalhamento.

Tabela 2. Detalhamento despesas com serviços públicos gerais – % PIB

A tabela 2 destaca que o item transações da dívida pública absorve quase 63 % do gasto total em Despesa com serviços públicos gerais. Em média, gasta-se com esse item relativo às transações da dívida pública cerca de 7,9% do PIB. O outro item, também de despesa obrigatória, trata das transferências constitucionais para Estados e Municípios, alcançando em média 3,7% do PIB. Vê-se, então, que o elemento crítico reside no serviço da dívida pública (juros, principalmente).

A tabela 3 apresenta as implicações dessa dinâmica orçamentária que revelam o pivô dos desequilíbrios orçamentários:  as transações da dívida pública.

Tabela 3. Implicações das transações da dívida pública

A tabela 3 mostra, para cada ano, o incremento no item juros. Em alguns anos, os valores de ajustes diminuem e em outros, aumentam. Naqueles anos em que há aumento, por vezes, observam-se magnitudes expressivas, como indicado para o ano de 2015 e 2021. O fato é que esses impactos são corrigidos por aumento de impostos, redução de gastos econômicos, aumento da própria dívida e monetização que não estimamos.

Chegamos, pois, à situação da armadilha da renda média que pode ser expressa da seguinte forma. Política de juros exageradas (juros altos que acarretam juros reais de quase 9 % a.a. em média) tem impacto negativo sobre o investimento privado e distorce o orçamento público – esses gastos com juros no orçamento representam 8% do PIB em média. Os ajustes orçamentários têm implicações fortes sobre a trajetória de crescimento da economia. Os ajustes seriam os seguintes: 1) aumento da própria dívida e aumento de impostos (como parte da solução do problema); 2) deslocamento de gastos, com redução do quantitativo em investimentos e gastos correntes. Isso compromete a continuidade de políticas públicas e a qualidade dos gastos; 3) soluções de compadrio que envolvem gastos em subsídios ou programas específicos e uso das agências de fomento que geram políticas de apoio, que, em geral, acabam por produzir aumento de poder de mercado das empresas beneficiadas, com ausência de inovações. A perseguição a superávits fiscais e a manutenção da política de juros altos acarretam ajustes orçamentários que afetam negativamente o investimento público e o privado, encarecendo sobremaneira o investimento em capital de giro das pequenas e médias empresas. Os gastos públicos e privados mostram-se, assim, insuficientes para colocar a economia na sua trajetória de crescimento ótima; o ciclo se repete com novos ajustes orçamentários e redirecionamento dos investimentos privados, podendo piorar com choques desfavoráveis (preço da energia, pandemias, etc.).

Sabemos que, pela aritmética da solvência da dívida pública, se a taxa de crescimento do PIB for maior do que a taxa de juros, a razão dívida/PIB converge para um nível estável. O contrário só nos traz problemas. Vejamos o nosso quadro geral.

Se a razão taxa de crescimento/juros for maior do que 1, estamos caminhando para a convergência possível da razão dívida/PIB. Veja que o Brasil tem sistematicamente um valor da razão crítica (Tx Cresc./Juros) menor do que 1; só em 2021 alcançou um valor próximo de 1 e, pior de tudo, há repetidos períodos em que essa razão crítica é negativa. Já para a economia americana sistematicamente tem-se razão crítica em valores acima de 1, com uma média robusta e, quando está numa faixa crítica, claramente se dá em decorrência de crises (2008 e 2020). Os gráficos abaixo ilustram essa razão crítica.

A solução? Equacionar o problema da dívida pública tirando o bode da sala. A solução técnica, trivial. A política, um problema difícil de se esquadrinhar.

Esfera pública, em Habermas, e julgamento virtual nos Tribunais Superiores: a importância da democracia participativa

Fabíola Vianna Morais

A esfera pública para Habermas constitui o âmbito onde os problemas transparecem na pressão social exercida pelo sofrimento que se reflete no espelho de experiências pessoais de vida. É a rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posições e opiniões. É o canal para a legitimidade do Direito, exercendo influência no complexo parlamentar.

               Ressalta-se que estamos num momento pós-pandêmico, embora nunca queiramos recordar essa palavra, tampouco seus acontecimentos, mas por causa da pandemia, nos vemos tomados pelas novas necessidades que ela impôs; ao mesmo tempo temos a necessidade de colocar em ordem tudo que a pandemia desordenou e de certa forma absorver o novo e retomar ao que parece obsoleto, mas não o é, porque foram as circunstâncias que impuseram novas formas de agir e interagir, não fomos nós que escolhemos esse caminho, ele se impôs.

               Os julgamentos virtuais, embora não sejam novidade decorrente da pandemia do Coronavírus, foram por ela alavancados e se tornaram parte do cotidiano do advogado e do sistema de justiça de um modo geral.

               Ocorre que junto da automação processual tem se notado o afastamento de atos essenciais à boa administração da Justiça e principalmente indispensáveis ao asseguramento das garantias processuais constitucionais, que são os elementos que alicerçam a atividade jurisdicional e que legitimam a entrega da tutela jurisdicional. São os casos da proibição de sustentação oral[1], das sustentações orais enviadas por áudio ou vídeo[2] e a ausência de acompanhamento, por parte dos advogados e partes, em tempo real das sessões virtuais[3].

               Estar online, e não fisicamente, em qualquer situação, nos retira muito do poder comunicacional, que demanda interação entre as pessoas muito além da fala. É esse poder comunicacional que permite aos seres humanos o verdadeiro entendimento do emissor e do receptor, muitas vezes com conseqüências para terceiros.

               Por outro lado, no âmbito do sistema de justiça, o seu funcionamento online pode permitir maior celeridade processual na entrega da tutela jurisdicional e maior acesso à Justiça. No entanto, o Código de Processo Civil vigente prima por uma tutela jurisdicional efetiva, de qualidade[4].

               Associa-se ao estado atual, o uso da inteligência artificial, que é uma ferramenta útil, mas também tem poder destrutivo, a depender de como os algoritmos são desenvolvidos pode haver discriminação de todas as ordens. Lembra-se de um caso não muito divulgado, ocorrido na Holanda há cerca de uns dez anos atrás, no âmbito da Administração Fiscal Holandesa, em que diversas pessoas foram penalizadas por mera suspeita de fraude com base nos indicadores de risco do sistema de algoritmos que traçavam perfis de risco de contribuintes baseados em dupla nacionalidade ou baixa renda[5]. Esse fato causou irreparáveis à vida e dignidade dos contribuintes, levou o governo holandês a alterar os algoritmos e representou uma situação paradigmática para a Comissão Europeia, que estabeleceu os requisitos essenciais para a aplicação da inteligência artificial, nomeadamente que as máquinas têm que ter intervenção humana, que o uso dos algoritmos deve ser transparente, a não discriminação de dados inseridos na inteligência artificial e a responsabilização dos danos relativos à utilização da inteligência artificial[6].

               Mas tudo isso que venho dizer é para afirmar a importância da presença física das pessoas nas relações que estabelecem. Em se tratando da relação com o Estado, em que se está, nomeadamente nos Tribunais, na posição de jurisdicionado, mas antes, de uma pessoa que é anterior ao Estado e à sociedade, e que é a razão de existir do Estado e a quem o Estado serve, como a todas as demais pessoas, no sentido de que o Estado desempenha as funções que as pessoas lhe atribuem através do exercício democrático.

              E quando se chega a essa conclusão, lembra-se também que toda pessoa é digna, ou seja, é dotada de valores que se impõem ao Estado. E a dignidade da pessoa é o fundamento do Estado e do Direito, e é isso que nos diz a nossa Constituição da República logo no seu art. 1º e também o Código de Processo Civil no seu art. 8º [7].

              Em outras palavras, por mais que se queira garantir a celeridade processual, é preciso antes garantir a tutela jurisdicional de qualidade e mais ainda a dignidade da pessoa humana, no caso, do jurisdicionado. E isso fica bastante prejudicado quando não se estabelece o processo comunicacional que iniciei acima. O processo comunicacional visa também à estabilidade social e à solução de litígios, uma vez que permite o debate, que as vozes das pessoas, dos cidadãos, sejam ouvidas.

               É o que preconiza Habermas através da sua teoria da razão comunicativa, na qual a racionalidade se estabelece por meio de um procedimento discursivo, argumentativo, através do debate entre os argumentos que vão servir de alicerce para as estruturas normativas. É essa atividade dialogal que garante a legitimidade das normas, uma vez que advindas do exercício democrático da liberdade de expressão e manifestação no sentido de determinar os rumos do Estado Democrático.

               Desta forma é que os concernidos participam das decisões políticas, sendo responsáveis pela direção da coisa pública, cujo escopo é o aprimoramento do regime democrático e de cada um como pessoa e cidadão inerente e indispensável ao processo democrático.

               Habermas afasta a visão exclusivamente representativa da democracia para agregar a ideia de uma democracia participativa no sentido de se estabelecer uma esfera pública onde os debates a respeito das decisões políticas e normativas ocorram entre todos os concernidos. Com isso, afasta qualquer teoria de auto-reprodução do ordenamento jurídico, que incentiva uma administração burocratizante e automatizadora do Direito.

               Diante de todos os desafios que se apresentam, nomeadamente num cenário pós-pandêmico e em que a inteligência artificial avança, não existe solução mágica para superar as dificuldades que enfrentamos como jurisdicionados ou como advogados, mas certamente todos os impasses que se apresentam no novo modo de atuar nos Tribunais Superiores demandam uma participação efetiva por parte de todos os concernidos na elaboração das normas que conduzem esse novo modo de atuar nos Tribunais Superiores como verdadeiro exercício da democracia.


[1] Veja-se a manifestação da OAB Nacional a respeito do Regimento Interno do STF e o Estatuto da OAB, o CPC e a CRFB: Regimento Interno do STF não se sobrepõe a direito constitucional, diz OAB, de 9/11/2023.

[2] Ao exemplo do art. 184-B, 1º, do Regimento Interno do STJ.

[3] Embora o Regimento Interno do STJ preveja no seu art. 184-B, caput, que as sessões virtuais devem estar disponíveis para acesso às partes e aos seus advogados, o que se vê são apenas os votos dos Ministros que lá são dispostos, mas não o julgamento em tempo real.

[4] Art. 4º, in fine e art. 6º, in fine, todos do Código de Processo Civil.

[5] HEIKKLÃ, Melissa. Escândalo holandês serve de alerta para a Europa sobre riscos do uso de algoritmos.POLITICO, de 29/3/2022.

[6] Carta Europeia de Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial em Sistemas Judiciais e seu ambiente

adotada pela CEPEJ na sua 31.ª reunião plenária, Estrasburgo, 3 e 4 de dezembro de 2018.

[7] Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.


Fabíola Vianna Morais. Advogada. Doutora em Direito no Programa de Pós-graduação em Direitos, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense, na linha de pesquisa sobre o Saneamento Básico. Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra.


Práticas Anticompetitivas e Acessibilidade: Impacto em Tecnologias Assistivas para Pessoas com Deficiência. 

Carolina Mendonça e Élcio Pimenta

…combater o poder econômico e seu exercício abusivo nada mais é que combater o individualismo excludente das relações puras de mercado, imprimindo-lhes valores como informação ampla, respeito aos usuários e consumidores, melhor distribuição dos recursos na sociedade e regras mínimas de convivência econômica.” (SALOMAO FILHO 2021, 1) 

O acesso equitativo a produtos e serviços acessíveis desempenha um papel fundamental na promoção da inclusão e qualidade de vida das pessoas com deficiência.  Nota-se, no entanto, que são raras as ocasiões em que a intersecção entre o direito concorrencial e a acessibilidade são discutidas tanto no âmbito acadêmico quanto no político. Compreende-se que o cenário hodierno é complexo: ao mesmo tempo que a cada dia que passa novas tecnologias assistivas, serviços e produtos têm surgido e gerado facilidade e inclusão no cotidiano das Pessoas com deficiência, também conhecidas como PCDs, o mercado que os fornece é limitado, gerando produtos e serviços superfaturados e de difícil aquisição.  

Assim este artigo tem como objetivo exatamente lançar luz sobre esse tema, trazendo à baila como a concorrência — ou a falta dela  — pode afetar a acessibilidade, a precificação e disponibilidade de produtos e serviços voltados para portadores de deficiência, com destaque às novas tecnologias assistivas, a fim de que, com a compreensão sobre os desafios e oportunidades que envolvem essa intersecção do direito concorrencial e acessibilidade, seja possível caminhar para uma sociedade mais inclusiva.  

Notadamente, com o aprimoramento de tecnologias assistivas, que tem crescido de maneira exponencial e gerado produtos tecnológicos de última geração, existem atualmente no mercado, por exemplo, óculos de descrição dinâmica, os quais permitem a leitura para o usuário de maneira instantânea de qualquer texto: livros, revistas, cardápios, textos no computador ou celular, placas de rua e até bula de remédio, podendo inclusive escolher a voz e a velocidade da leitura. Destarte, é insigne o teor revolucionário que a supracitada tecnologia traz para pessoas com deficiência visual, entretanto, tal dispositivo não se destina às massas, principalmente por sua onerosidade e difícil acesso.  

Contudo, tal situação não é a prevista normativamente. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência traz por fundamento a destinação a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Adiante, é direito da pessoa com deficiência a tecnologia assistiva, no que se segue: 

Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se: 

III – tecnologia assistiva ou ajuda técnica: produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, visando à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social; 

Nesse sentido, segundo o especialista e sócio-fundador da Diversitera, Marcus Kerekes, um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) trouxe ponderações de alto interesse visto que, segundo este, pelo menos 1 bilhão de adultos e crianças, notadamente pessoas com deficiência, são excluídos do acesso a tecnologias, afastando o interesse normativo retro apresentado e tendo sido demonstrado uma realidade bem diferente. Em entrevista à CNN, ele destacou que esta é uma “luta antiga” e que chama a atenção a “discrepância entre países mais pobres e mais ricos” na tecnologia assistiva.  

Este tipo de inovação, segundo ele, vai desde aparelhos físicos, como cadeiras de rodas, quanto digitais, como softwares de leitura de tela, que de alguma forma consigam suprir a perda de funcionalidade das pessoas. “Ao longo do tempo, países ricos estabeleceram um conjunto de fatores, como investimento público, que possibilitaram o acesso dessas pessoas a essas tecnologias, e elas depois conseguiram se inserir no mercado de trabalho e ter acesso a elas, a cadeia foi se estruturando”, explicou. Paralelamente, em países mais pobres, o especialista destaca que “a falta de acesso faz com que menos pessoas cheguem ao mercado de trabalho, e fiquem mais à margem da sociedade em termos de renda, é um ciclo que vai se tornando”. 

“Para sairmos desse ciclo, ampliar as cadeias produtivas é um caminho e é uma das possibilidades também de sair da estagnação econômica, de adicionar valor ao mercado, aumentar o tamanho da pizza e não a briga por fatias dela”, completou. 

A indústria brasileira, no entanto, carece bastante de qualidade, já que as tecnologias assistivas importadas são melhores, visto que o quadro econômico nacional atual acaba dificultando e afastando as pessoas do acesso a essas tecnologias. Apesar de avanços terem sido feitos, o processo é longo e gradativo, tendo muito a ser feito, apesar de já existiram acertos nessa área, como o acesso à linha de financiamento para pessoas com deficiência. 

Não há dúvidas de que as tecnologias assistivas tornam a vida das pessoas com limitações físicas muito mais fácil. O que não é tão fácil é a aquisição desses recursos, principalmente os que envolvem tecnologia de ponta.  

Para se ter uma ideia, uma impressora jato de tinta de modelo mais básico não custa muito mais de R$ 200, enquanto uma impressora braile, também de modelo mais básico, não sai por menos de R$ 10 mil. Cadeiras de roda e outros equipamentos mecânicos, programas de computador, e muitas outros exemplos fazem uma grande diferença na qualidade de vida de quem utiliza, mas custa muito caro para se adquirir. 

Para o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Tecnologia Assistiva, Abiteca, Alexis Munõs, um dos fatores que elevam o custo desses produtos é a falta de concorrência.  “A partir do momento em que se tem mais pessoas trabalhando, mais concorrência, a tendência seria (e nós estamos aqui pra isso, pra organizar um pouco o setor para que se tenha equipamentos com um pouco mais de qualidade)… Chegando nesse ponto, acreditamos que a própria concorrência vá baixar o custo desses equipamentos.” 

Alexis Munõs salienta que a participação do Estado é muito importante nesse processo, através da desoneração dos produtos associados às tecnologias assistivas. Como contrapartida, ele defende que as empresas brasileiras produzam equipamentos com a mesma qualidade dos importados.  “Não é a ideia de incentivar tanto a política de importação. A ideia é incentivar que tenhamos tecnologia nacional para desenvolver produtos aqui no Brasil. Estamos em contato com vários ministérios, em especial o Ministério da Ciência e Tecnologia, que é a maneira da gente estar apoiando, incentivando o desenvolvimento de produtos nacionais, para a gente evitar essa taxação que a gente tem, esse trabalho de trazer produtos importados para as pessoas com deficiência.” 

Em boa parte dos países europeus, o governo dispõe de uma política de ajudas técnicas que financiam a aquisição de tecnologias assistivas por parte de pessoas com deficiência. No caso de programas adaptativos de computador, por exemplo, a pessoa paga pelo equipamento, mas os softwares de acessibilidade são instalados pelos fornecedores via programas de ajudas técnicas. É por essa razão que, nesses países, a quase totalidade dos indivíduos com deficiência que usa programas de computador para acessibilidade têm softwares registrados. 

O Sistema Único de Saúde possui um programa de distribuição de órteses, como cadeiras de roda, e próteses, como pernas mecânicas. No entanto, são equipamentos de modelos bastante simples, pois no Brasil, no entanto, ainda não existem programas que financiam tecnologias assistivas de ponta. 

Para a deputada Mara Gabrili, do PSDB paulista, mesmo com as políticas de órtese e prótese, o percentual das pessoas com deficiência beneficiadas é muito baixo.  

“Eu acho que toda a distribuição de equipamentos que é feita pelo SUS precisa ser muito bem trabalhada, porque não condiz com o tamanho da nossa realidade. E a gente tem outros equipamentos que ajudam as pessoas, deficientes visuais, software de voz, pernas mecânicas, e precisa um trabalho muito bem feito para que esses produtos consigam chegar nas pessoas. A gente acredita que esses 24 milhões já estão chegando nos 30 milhões, porque 24 é um dado do senso de 2000, e você pode ter certeza que nem 5 por cento desse público está coberto com tecnologias assistivas que realmente façam diferença na vida deles.” 

Assim compreende-se que, no cenário nacional atual, há ainda a necessidade de desenvolvimento de uma concorrência saudável no mercado visto que esta tende a promover a inovação, a redução de preços e a melhoria na qualidade dos produtos e serviços. No entanto, quando se trata de produtos e serviços voltados para pessoas com deficiência, a dinâmica da concorrência pode ser diferente. Isso se dá pela falta de visibilidade do mercado que envolve as tecnologias assistivas e demais aparelhagens correlatas que auxiliam, segundo dados do IBGE, uma população formada hoje por 18,6 milhões de deficientes visuais, físicos e mentais no Brasil. Ana Frazão aponta em sua obra: “Direito da Concorrência” que a proteção do consumidor e do próprio povo é a pedra de toque da criação da legislação antitruste, contudo é claro que certas medidas devem ser adotadas para a mudança da atual situação. O Estado, como agente normativo e regulador, nos termos do artigo 174 da Constituição Federal, deveria atuar a fim de que haja um fomento à Concorrência, apoiando a entrada de novos concorrentes no mercado por meio de políticas de apoio a startups e empreendedores na área de acessibilidade, para garantir que todos tenham igualdade de oportunidades e acesso aos recursos necessários para uma vida plena e independente. 

Breves Linhas sobre o Direito Comparado

Fabio Luiz Gomes

I – Metodologia interpretativa comparatística

Verifica-se que o estudo do direito comparado permite uma visão cosmopolita do direito, afinal o estudo do direito fixa no direito interno do seu país.

Dessa forma, quando o jurista estuda direitos de outros países precisa de método e o direito comparado permite a aprender e pensar comparativamente.

A análise do direito estrangeiro deve verificar o contexto do direito doméstico, que se desdobra no tripé lei-doutrina-jurisprudência, avançando na história jurídica comum, ou não, a margem interpretativa com os possíveis avanços ou transformações.

Acrescenta-se que a leitura de uma norma jurídica impõe uma interpretação, uma fundamentação, por essa razão a completude comparativamente estabelece a utilização da jurisprudência (se houver), ou mesmo, a doutrina pode justificar como fator do direito vivo fatores extralegais que possam levar a um resultado.

Neste sentido, examinar a dignidade da pessoa humana nos diversos fatores, o sistema socioeconômico, a fim de buscar fatores de comparação tendo como ponto de partida o ser humano.

Portanto, no seu Estado de origem A, as normas jurídicas origem, quando comparadas ao Estado de destino comparado, as diferenças jurídicas devem refletir as diferenças entre as sociedades.

O método comparativo permeia como primeira reflexão, o Estado A poderia seguir o caminho percorrido no Estado B? Se positivo, de que forma poderia ser feito? Poderia haver uma construção jurisprudencial para aplicação comparada? Poderia haver propostas legislativas para acomodar essa interpretação comparada?

A base dessas questões deve buscar delimitar o objeto do direito comparado.

Essa construção deve perquirir o conhecimento e a compreensão do direito do Estado de destino comparado.

Pode ser necessário algum elemento de motivação ou pressão para prosseguir na modificação do direito interno (Estado A), ao exemplo do desenvolvimento dos direitos humanos, ou desenvolvimento econômico através de modernização das normas jurídicas no Estado de origem.

Deve-se considerar que o transplante dos modelos estrangeiros impõe limites, portanto, devem ser discutidos nos meios jurídicos e sociais através de exposições públicas e publicações.

Não é incomum que essa análise comparada venha a se desenvolver diretamente do Poder Judiciário, ao fazer uso das normas estrangeiras ou da construção interpretativa dessas normas.

Observa-se que o direito judicial comparado pode participar ativamente dessa construção do seu direito interno, embora possa gerar preocupações, dado que seria voltado à solução de um caso concreto, portanto a delimitação do contexto da norma estrangeira tem que estar muito bem delimitada, pois a situação fática pode ser diferente.

Constata-se também que a formação dessa decisão judicial pode ser provocada por Advogados, membros Ministério Público, Pareceres externos, Perícias etc.

Além disso, o reconhecimento conceitual dessas normas jurídicas comparadas, o conhecimento das diferentes abordagens leva ao resultado adequado.

Não há como realizar uma análise comparatística do direito sem que se realize o aprofundamento no aspecto cultural, do conhecimento linguístico, o conhecimento normativo para que possam averiguar as semelhanças e diferenças entre as legislações em análise (no aspecto histórico, sistemático e teleológico), as decisões judiciais (precedentes) e a doutrina. Com esses resultados poder-se-á determinar o que se pode extrair de aprendizagem do sistema jurídico estrangeiro e de que forma poderá refletir no próprio sistema jurídico.

Verifica-se, portanto, que a mera comparação entre as normas jurídicas não é o suficiente para ser considerada uma análise comparada, é preciso ir ao fundo na cultura, no direito vivo, portanto, a influência cultural do país de origem. É preciso constatar a estrutura subjacente do direito, como a norma funciona dentro da sociedade, além das formações subestruturais, isto é, a história, a geografia, a moral, dentre outras forças motrizes de interpretação.

Faz-se necessária uma análise orientada com a maior imparcialidade possível, com alguma liberdade cognitiva, de modo que se permita visualizar o direito de origem interpretativa de forma clara, de modo que se possa identificar os derivativos da interpretação em análise, isto é, os institutos jurídicos através dos seus conceitos, assim seria facilitada e sistematizada a forma de comparar esses sistemas jurídicos.

Observa-se que o sistema jurídico do Estado de destino é de conhecimento de quem realiza a comparação, contudo, não se pode fixar nele de forma isolada, afinal poder-se-ia causar distorção, dito de outra forma, não é incomum que esse sistema jurídico possa ser aperfeiçoado.

Portanto, o direito comparado assume a relevância para aperfeiçoar o sistema jurídico do destino, e poderá ainda influenciar o próprio sistema jurídico da origem.

Apreciar a diferença das culturas jurídicas, os padrões de comportamento, formará o arquétipo dos princípios jurídicos em comum que servirá de ponte de comparação entre essas culturas jurídicas na construção de compreensão e cooperação mútuas.

A metodologia para realizar essa comparação entre os sistemas jurídicos estabelece-se a partir de alguns critérios para a interpretação comparativa:

1. O sistema jurídico do Estado de destino deve ser interpretado inicialmente identificando os princípios comuns.

2. Uma avaliação normativa deverá buscar de que forma ela se expressa concretamente, através da pesquisa empírica, doutrinária e jurisprudencial. Dessa forma será espelhado como forma de compreensão de como essa norma realmente é aplicada, os padrões normativos, de modo que se possa estabelecer uma interpretação crítica, portanto, neste ponto, o critério interpretativo busca no sistema jurídico o arcabouço interpretativo.

3. A metodologia deve avaliar também a cultura jurídica do Estado de destino, afinal, mesmo que haja normas próximas o resultado poderá ser diferente, portanto, os elementos estruturais fundacionais impulsionam a interpretação normativa.

4. O estudo cognitivo deve se libertar das vestes originárias para que se possa explorar e explicar as estruturas normativas em comparação. Para que isso ocorra, é necessário fazer uma imersão na realidade política, histórica e linguística. Assim, estudar de que forma os sistemas jurídicos se moldaram, portanto, a avaliação do intérprete impõe conhecer as externalidades normativas que subjaz a mera leitura da norma.

5. O estudo da filosofia do direito do Estado de origem pode ajudar ao intérprete a fundamentar suas conclusões, assim estruturar um critério de comparação.

6. O sistema jurídico de todos os Estados possui natureza interna e internacional (por mais que o Estado seja fechado politicamente), assim não se pode olvidar e considerar esse critério caso se faça necessária uma interpretação mais ampla do direito do Estado de origem.

II – Direito comparado e o direito internacional

Toda norma jurídica possui uma natureza multidimensional como desdobramento da análise doméstica (interna) e internacional (externa), nesta última pode ser originária de tratados internacionais nas relações entre Estados no espaço internacional, mas também pode ser oriunda de blocos regionais, ou mesmo nas relações entre os blocos/blocos e blocos/Estados.

Todas essas normas em suas múltiplas acepções podem ser objeto de direito comparado, portanto, não se comparam apenas direitos domésticos, mas também os direitos externos.

A interconexão entre os Estados em nível global exige cada vez mais o estudo do direito comparado e demonstra a sua importância.

O desenvolvimento tecnológico diminuiu os espaços e alterou a geografia do mundo, suas fronteiras ficaram mais fluidas, o desenvolvimento das transações de bens e serviços no cenário internacional vem pressionando cada vez mais os Estados a se adaptarem a essa nova realidade.

Portanto, é mister avaliar o direito comparado e estabelecer metodologias sólidas para compreender a era digital e suas influências que impulsionam os sistemas jurídicos.

Assim, no direito busca-se cada vez mais a harmonização dos institutos jurídicos, ou ao menos uma aproximação deles, como via de um entendimento comum ou próximo entre os povos.

Isso só será possível através de uma compreensão profunda entre os diversos sistemas jurídicos de modo a estabelecer elementos de conexão entre eles.

Constata-se que o direito possui uma relação espacial (território interno e internacional) que tem como norte a geografia, afinal, ao longo da história da humanidade sempre houve um nexo de causalidade entre o direito e a geografia através de estudos interdisciplinares.


FABIO LUIZ GOMES. Doutor em Direito Tributário pela Universidade de Salamanca. Mestre em Ciências Jurídicas-Comparatisticas pela Universidade de Coimbra. Professor de MBA’s e LLM em Direito. Advogado com atuação nos Tribunais Superiores.