Maio 17, 2024 00:14

Colunista

Ana Sofia Monteiro Signorelli

Anglicanismo, eleições e antitruste:

“Uma casa dividida contra si mesma não se sustenta”

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

A igreja anglicana foi criada em 1534, a partir de um ato do Parlamento Britânico, o Ato de Supremacia, o que ocorreu após a excomunhão do então rei inglês, Henrique VIII, da igreja católica, em razão do requerimento de anulação de seu casamento com Catarina de Aragão para que pudesse casar-se novamente.

Inobstante o motivo pouco eclesiástico da sua criação, uma série de reformas posteriores, encabeçadas pela rainha Maria I, moldaram a religião, trazendo às práticas anglicanas elementos da reforma protestante, como a justificação exclusivamente pela fé. Com a morte de Maria I, sua meia-irmã, Elizabeth I promulgou o acordo elisabetano, que marcou a tentativa de encontrar um meio-termo entre o protestantismo radical e o catolicismo romano, atribuindo como principal característica ao anglicanismo o fato de ser uma igreja moderadamente reformada.

Eu cresci em uma igreja anglicana pela iniciativa dos meus pais. Enquanto minha mãe vinha de uma família católica “praticante”, meu pai era de uma família protestante pentecostal. Eles então encontraram na igreja anglicana esse meio-termo, ou melhor, essa forma de escutar os dois lados e tentar extrair o melhor de cada um. E, na prática, foi isso que o anglicanismo me ensinou: que sempre teremos muito a aprender, tanto com católicos, quanto com protestantes, afinal, eles comungam da mesma fé.

Em Apocalipse 3:15, a instrução sobre ser frio ou quente ao invés de morno incentiva que tomemos um lado e não nos isentemos. A diretriz, contudo, nunca foi sobre deixar de ouvir o lado contrário. Sempre há benefícios em dialogar, em se permitir melhorar a partir das ponderações do outro. Com os católicos, eu aprendi a disciplina de ir à missa, a devoção de rezar um terço. Com as diferentes denominações protestantes, eu aprendi sobre ter intimidade com Deus e levar o dízimo a sério.

A polarização das eleições de 2022 nos desafiou a pensar não apenas sobre o lado decidimos assumir, como também sobre a necessidade de ouvir o lado contrário. E neste momento histórico tão delicado para a nação, a pauta religiosa mostrou-se central, com 59% da população avaliando religião como uma variável importante na hora da escolha de seu candidato à presidência da república[1].

No último dia 12 de outubro, durante o Dia de Nossa Senhora da Aparecida, um incidente envolvendo política e religião demonstrou a urgência deste exercício de diálogo, especialmente entre cristãos. Afinal, a eleição não pode ser o gatilho para uma nova cruzada entre católicos e protestantes, que têm tanto a aprender um com o outro.

Com o antitruste não é diferente – e você, a essa altura do campeonato, deve estar se perguntando o porquê desta pouco óbvia tentativa de correlação. Há aproximadamente dois anos atrás, eu e Alexandre Cordeiro[2] publicamos um artigo sobre os objetivos do antitruste no pós-Covid 19, em que questionávamos o movimento transformista dos Neobrandesianos, especialmente no que se refere à factibilidade de suas propostas. No ano seguinte, eu e a Amanda Flávio tecemos algumas reflexões aqui no WebAdvocacy[3], inspiradas por uma palestra proferida pelo brilhante professor William Kovacic, ao descrever este novo momento histórico que temos vivido no antitruste americano.

Não é novidade para ninguém que os Estados Unidos, além de berço do antitruste, foram igualmente responsáveis por exportá-lo para outras jurisdições, que passam a ser fortemente influenciadas pela evolução do pensamento americano. Ocorre que, após a publicação do “Executive Order on Promoting Competition in American Economy”, em 14 de julho de 2021, as 72 recomendações realizadas pelo Presidente Joe Biden cunharam o início de uma aparente nova era para o Direito Concorrencial americano.

Décadas após o primeiro paradoxo inaugurado pelo então juiz Robert Bork, que, ao decidir sobre o paradigmático caso do Continental TV Inc v. GTE Sylvania Inc (433 U.S. 36, 1977), entendeu que o Direito Antitruste norte-americano cuidaria exclusivamente de atender a objetivos econômicos[4], Biden, influenciado pelas ideias neobrandesianas, incentivou uma ideia de antitruste mais interventivo.

Esta nova direção foi confirmada por suas nomeações para ocupar os principais cargos de liderança nas agências antitrustes americanas, como é o caso da presidência da Federal Trade Commission (FTC), que coube à Lina Khan[5], uma das expoentes do movimento neobrandesiano e autora do conhecido artigo “Amazon’s Antitrust Paradox”[6].

Este segundo paradoxo, descrito por Khan em seu artigo, remonta o pensamento dos Neobrandeisianos, termo atribuído àqueles que corroboram com as ideias difundidas por Louis Brandeis, segundo o qual o tamanho dos monopólios industriais seria o principal problema a ser enfrentado no final do século XIX. Para Brandeis, as grandes corporações, fossem elas monopolistas ou não, frustravam iniciativas individuais, restringiam a concorrência e, consequentemente, a inovação, valendo-se de seu grande porte para ocultar possíveis ineficiências econômicas[7].

Como eu e Amanda relembramos há quase um ano atrás, o professor Kovacic classificou as três escolas de pensamento que hoje dominam o direito antitruste americano como tradicionalistas, expansionistas e transformacionistas. Enquanto a primeira remete aos seguidores de Bork e, portanto, adeptos não apenas à lógica do consumer welfare standard, como também a uma visão mais conservadora sobre as ferramentas de análise, a terceira escola, por sua vez, diz respeito aos denominados “neobrandesianos”[8], que, segundo o autor, entendiam a necessidade de mudança dos objetivos do antitruste americano como um problema geracional e não filosófico.

A referência feita por Kovacic a este “conflito geracional” remonta a dura crítica dos neobrandesianos à gestão anterior, ou seja, à administração do FTC e do DOJ durante os dois governos Obama, bem como as gestões que o precederam. Para os transformacionistas, o ferramental atual da análise antitruste seria inapropriado, razão pela qual sua utilização deveria ser imediatamente descontinuada.

Ora, é evidente que não há fórmula perfeita. A “caixa de ferramentas” do antitruste muitas vezes falha e por isso precisa ser aprimorada constantemente. Contudo, aprimorar ferramentas é muito diferente de mudar sua finalidade, o que remete a questionar, inclusive, a razão para a sua existência.

Segundo pontuaram Wright et Al (2018, p. 3) em relação aos neobrandesianos, o direito antitruste já passou pela fase em que se incumbia da promoção de outros objetivos sociopolíticos. Este período ao qual os autores se referem é precisamente aquele anterior ao paradigmático julgado de Bork, onde o juiz identificou a existência de um paradoxo em razão das inconsistências trazidas com uma jurisprudência que equivocadamente condenava tanto condutas anticompetitivas, quanto condutas competitivas, o que, além de trazer insegurança jurídica ao jurisdicionado, acabava prejudicando o bem-estar do consumidor em favor do bem-estar das firmas.

Durante o 28º Seminário Internacional de Defesa da Concorrência, realizado pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (IBRAC) nos últimos dias 26 a 28 de outubro, o professor William Kovacic apresentou importantes reflexões sobre o contexto norte-americano e o futuro que vislumbramos para o antitruste, não apenas nos Estados Unidos, mas também em relação ao resto do mundo – inclusive no que se refere a países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.

Como fruto do primeiro paradoxo do antitruste, a sociedade norte-americana herdou a noção norteadora de que a defesa da concorrência deveria dedicar-se à proteção do bem-estar do consumidor[9], o que inclui a clareza de que a competição deve ser o instituto jurídico tutelado em detrimento à proteção de competidores e de nenhuma forma está limitado a uma análise sobre preços tão somente.

Acontece que nos propor a repensar o que virá a seguir não significa necessariamente comprometer a direção para onde pretendemos olhar. Podemos continuar mirando na concorrência, identificando a relevância de diferentes fatores de produção, como a mão-de-obra e o uso consciente dos recursos ambientais.

Podemos atualizar as ferramentas do antitruste sem precisar nos desfazer dos axiomas construídos durante as décadas de dedicação das brilhantes gerações que nos antecederam, mas que, infelizmente, ainda não haviam vivenciavam os novos e complexos desafios impostos pela economia digital – que nos obriga a pensar não como vender produtos ou serviços, mas como desenhá-los.

Podemos pensar o futuro do antitruste sem ignorar as críticas neobrandesianas, mas nos propondo a levá-las em consideração de forma responsável, pensando em novos instrumentos factíveis e que não tenham o condão de produzir um resultado contraditório em si mesmo, como a história outrora nos ensinou.

Assim como deve pensar o Brasil de 31 de outubro de 2022, a comunidade antitruste brasileira precisa lembrar que, como alertou Abraham Lincoln durante o discurso que proferiu antes de assumir a presidência de uma sociedade norte-americana dividida, em 1858, “uma casa dividida contra si mesma não se sustenta”.   

Assim como a igreja anglicana possibilitou e até hoje permite esse diálogo e aprendizado mútuo entre católicos e protestantes, a nova geração da comunidade antitruste brasileira pode personificar essa síntese e mostrar que a discussão não precisa ser intergeracional, mas estritamente técnica.


[1] Disponível em <https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/pesquisa-eleitoral/noticia/2022/10/15/datafolha-59percent-avaliam-como-importante-a-religiao-do-candidato-a-presidente-para-a-decisao-do-voto.ghtml>. Acesso em 21/10/2022.

[2] CORDEIRO, Alexandre; SIGNORELLI, Ana Sofia Cardoso Monteiro. Os objetivos do Direito Antitruste: a evolução e perspectivas para o pós-Covid-19. Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-objetivos-do-direito-antitruste-evolucao-e-perspectivas-para-o-pos-covid-19-01082020>. Acesso em 17.10.2022.

[3] OLIVEIRA, Amanda Flávio; SIGNORELLI, Ana Sofia Cardoso Monteiro. Finalidades do Antitruste: entre Khan e Kovacic. Disponível em <https://webadvocacy.com.br/2022/02/13/finalidades-do-antitruste-entre-khan-e-kovacic/>. Acesso em 18.10.2022.

[4]It is difficult to overstate the importance of GTE Sylvania as the foundation of the economic approach to antitrust analysis: antitrust would no longer serve multiple masters; economic goals would be exclusive. Soon the Court would determine more specifically that the “Congress designed the Sherman Act as a ‘consumer welfare prescription, and that a restraint that has the effect of reducing the importance of consumer preference in setting price and output is not consistent with this fundamental goal of antitrust law.” In GINSBURG, Douglas H; WRIGHT, Joshua D. The Goals of Antitrust: Welfare trumps choice. Fordham Law Review, 2014, Vol. 81, p. 2406.

[5] Além de Khan, foram também indicados, como Assessor Especial da Casa Branca para Tecnologia e Concorrência, o professor Tim Wu, e como assistência da Procuradoria-Geral da Divisão Antitruste do Departamento de Justiça americano (DOJ), Jonathas Kanter.

[6] KHAN, Lina. Amazon’s Antitrust Paradox. The Yale Law Journal, v. 126, no 3, 2017.

[7] “It was these creeping inefficiencies in sprawling firms that Brandeis thought of as comprising part of the curse of bigness. But there is another side to the curse, one associated with growing power. It is this: As a business gets larger, it begins to enjoy a different kind of advantages having less to do with efficiencies of operation, and more to do with its ability to wield economic and political power, by itself or conjunction with others. In other words, a firm may not actually become more efficient as it gets larger, but may become better at raising prices or keeping out competitors.” In WU, Tim. The Curse of Bigness – Antitrust in the New Gilded Age. New York: Columbia Global Report, 2018, p. 71.

[8] O nome do movimento remete à Louis Brandeis, ex-juiz da Suprema Corte americana, que defendeu uma política antitruste mais interventiva, criticando o tamanho dos monopólios industriais e atribuindo a eles a marca do principal problema enfrentado no século XIX. In WU, Tim. The Curse of Bigness – Antitrust in the New Gilded Age. New York: Columbia Global Report, 2018.

[9] Entendeu-se no julgamento FTC v. Superior Court Trial Lawyers Ass’n que a concorrência leva a preços mais baixos, maior produção, melhor qualidade e mais inovação, em outras palavras, resulta em benefícios para os consumidores. “The assumption that competition is the best method of allocating resources in a free market recognizes that all elements of a bargain—quality, service, safety, and durability—and not just the immediate cost, are favorably affected by the free opportunity to select among alternative offers.” In FTC v. Superior Court Trial Lawyers Ass’n, 493 U.S. 411, 423 (1990).

Repositório

ANA SOFIA CARDOSO MONTEIRO SIGNORELLI. Advogada formada pela UFRJ, economista e internacionaista, formada pelo IBMEC/RJ. Mestre em Administração de Empresas com ênfase em finanças pelo COPPEAD/UFRJ. Professora de Direito Econômico e Empresarial no IDP. Doutoranda em Direito Comercial na USP e coordenadora geral antitruste no CADE.

SHS Quadra 6, Conjunto A, Torre C, Sala nº. 901, Business Office Tower – Brasil 21, Asa Sul, Brasília-DF, CEP: 70.322-915 – Tel: (061) 3032-2733

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