Cristina Ribas Vargas

As notícias recentes no mundo, em meio a guerras, e o debate sobre o acesso desigual a informação, trouxeram-me a lembrança um estudo que sempre apreciei, de Fred Block: As origens da desordem econômica internacional.

Block descreve a economia no período entre as duas grandes guerras mundiais, quando a Europa foi assolada pela desordem econômico-financeira. Antes disso a Inglaterra era então a potência industrial, militar e financeira da Europa, e sua moeda era a mais valorizada do continente. Sua liderança na defesa do livre comércio confirmava-se na atuação dos banqueiros ingleses, que concediam crédito independentemente do país no qual os recursos seriam gastos, ao contrário dos banqueiros alemães e franceses, que apenas concediam os empréstimos se os recursos fossem gastos em seus próprios países. A Inglaterra entendia que lucraria independentemente do país onde esses recursos fossem empregados. Foi um país deficitário durante a maior parte do século XIX devido à forte dependência de importações de recursos naturais, necessários à movimentação de sua indústria, e quando o balanço de pagamentos se tornava deficitário, a solução convencional era elevar a taxa de juros internamente e arcar com redução nos níveis de renda e emprego. No entanto, a partir de 1900, com a ascensão de EUA e Alemanha, a postura Inglesa mudou. Os déficits tornaram-se exorbitantes e o país se negou a fazer o ajuste internamente via aumento da taxa de juros e redução de emprego.  E foi justamente no período do entre guerras que a Inglaterra, cuja moeda era o padrão de referência internacional, decidiu abandonar o padrão ouro, provocando instabilidade e insegurança nas transações financeiras entre os países. A primeira guerra veio como resultado de uma tentativa de restabelecimento do padrão ouro, que resultou infrutífera, já que nenhum país queria assumir a responsabilidade de ter a moeda como padrão de referência internacional. Para agravar mais o quadro e acabar tornando a guerra inevitável os banqueiros ingleses mudaram de postura, e passaram a restringir o crédito externo, além de iniciarem a cobrança aos devedores, o que resultou em declarações de moratórias e adoção de controles cambiais por parte de outros países, dificultando mais ainda a situação econômica da Inglaterra. Neste momento da história os banqueiros acreditavam que a crise poderia ser solucionada se houvesse o retorno ao padrão ouro. No entanto, de acordo com Block, o que parecia mais difícil de ser notado é que a crise vinha do lado real da economia. A Inglaterra já não era mais a potência econômica mundial. As cotações das moedas passaram a flutuar e as taxas de câmbio a serem determinadas pelos níveis de divisas, sem uma paridade fixa direta com o ouro. Isso gerou grandes movimentos especulativos de capital e ataques contra as moedas mais fracas. Com o auxílio dos EUA em 1925 a Grã-Bretanha restabeleceu o padrão ouro ao nível do pré-guerra. O acordo previa grandes vantagens aos EUA, que apresentava taxas de juros mais atrativas: empréstimos de longo prazo começaram a migrar de Londres para Nova York. Aos poucos os grandes capitais dos EUA influenciavam o seu governo na tentativa de assumir o controle das finanças mundiais e iniciar o processo de cobrança sobre Inglaterra e França, orientando-os a imputarem ao país perdedor, a Alemanha, a responsabilidade pelos pagamentos de suas dívidas. Nascia a segunda guerra e a triste ascensão do nazismo. Como diria Mark Twain, a história não repete trajetórias, mas frequentemente ela rima. A inabilidade em incentivar a retomada do crescimento econômico a partir de uma postura menos restricionista conduziu o mundo à grande depressão, e na sequencia a segunda guerra. A partir dai o padrão monetário ouro foi abandonado definitivamente, e o que passou a viger foi o ‘não sistema financeiro internacional’.

Essa história é apenas para lembrar a importância da política de crédito. Do ponto de vista interno, nos faz pensar sobre como a informação perfeita sobre o perfil de crédito por parte instituições financeiras pode ser utilizada para restringir mais ainda o acesso ao crédito às famílias de menor renda, e portanto de maior risco, enquanto o acesso à informação por parte das Bigtechs nos remete ao risco de avaliações no mercado externo sem regras claras sobre as condições de concessão de crédito internacional. Em mundo pouco pacífico, o detentor de grande poder de informação associado ao poder de concessão de crédito, pode engendrar a desordem econômica mundial, ao contrário do que esperam os mais otimistas defensores da informação irrestrita aos agentes econômicos financeiros. É o início de uma reflexão sobre o quanto o conhecimento total da informação por parte daqueles que controlam a oferta de crédito no Brasil e no mundo pode de fato promover um maior acesso aqueles que historicamente não dispuseram de acesso ao crédito. Em outras palavras, o crédito é importante justamente quando mais precisamos dele, em situações de crise. Do contrário, como diria Mark Twain, será o mesmo que dar um relógio como garantia ao sistema financeiro para poder descobrir que horas são.  A informação completa sobre o agente que solicita o crédito pode piorar as condições sob as quais ele contrata esse serviço. Lembrem-se que os EUA conhecia muito bem a situação financeira da Inglaterra quando resolveu “socorre-la”.  A restrição do crédito inibe o investimento, a renda e a possibilidade de geração de um efeito multiplicador. Imaginem agora todas as informações perfeitas sobre cada família, empresa e governo de posse dos maiores oligopólios financeiros mundiais: como seria a política de crédito internacional? Os impactos sobre a economia real e a produção de riqueza poderiam ser determinados por agentes que não receberam a delegação de poder para determinar os rumos da política econômica mundial.  Não desanimemos, um outro mundo sempre é possível, mesmo que a história repita trajetórias.

Referências

BLOCK, F. L. The Origins of International Economic Disorder, 1977. (Las Orígenes del Desorden Económico Internacional, Fondo de Cultura, México, 1980).

WebAdvocacy. O “X” do Xandão. Editorial, 9 de abril de 2024.

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