Felipe Fernandes Reis

Colunista

Felipe Fernandes Reis

Advogado, coordenador da equipe de Direito Econômico e Concorrencial do Malard Advogados Associados. Graduado em Direito e Master of Laws (LLM) – Direito dos Negócios e Governança Corporativa pelo IDP/Brasília. Membro Consultor das Comissões de Direito Econômico e de Energia de OAB/Federal; e membro das Comissões de Defesa da Concorrência e de Relações Governamentais e Institucionais da OAB/DF. Associado Internacional da American Bar Association, nos comitês de Antitrust Law e Environment, Energy and Resource Law. Participa como assessor jurídico do Open Delivery, além de coordenador-técnico dos Comitês de Compliance e Comitê de Regulação.

O imposto seletivo não pode servir para selecionar os vencedores

Felipe Fernandes Reis e Bianca Xavier

APEC 45/2019, atualmente em análise pelo Senado Federal, é uma das principais iniciativas para resolver o cruel, injusto e delirante Sistema Tributário Brasileiro. Por tais motivos, este artigo não se debruçará nas razões óbvias da necessidade de uma reforma tributária que simplifique, organize e modernize esse Sistema, como em grande parte a PEC 45/2019 o faz. Ademais, é importante registrar a dificuldade da técnica legislativa de reformular um sistema tão complexo como o atual, especialmente à nível constitucional.

Entretanto, a mesma PEC 45/2019 que visa simplificar o sistema atual, propõe emendar a nossa Constituição para instituir o denominado Imposto Seletivo, o qual incidirá sobre produção, comercialização ou importação de bens e serviços[1] “prejudiciais à saúde e ao meio ambiente”. Pela proposta, o referido imposto será regrado por Lei Ordinária. O Poder Executivo, aliás, poderá majorar sua alíquota com bastante flexibilidade, sem observar o princípio da anterioridade nonagesimal e por Decreto.

Conforme o relatório apresentado pela Câmara dos Deputados, o referido imposto “proporcionaria aumento de arrecadação, com baixo custo administrativo, onerando produtos cujo consumo se quisesse desestimular pelos efeitos nocivos à saúde e ao meio ambiente”. Destaca-se, ademais, que foram citadas como benchmarking as experiências europeias, especialmente os arts. 3º e 5º da Diretiva nº 92/12/CEE do Conselho das Comunidades Europeias e o art. 1º da Diretiva nº 2003/96/CE do Conselho da União Europeia.

Contudo, considerando fatores como: (i) a flexibilidade do Poder Executivo para fixar alíquotas; (ii) a mitigação das garantias da anterioridade, e a (iii) imprecisão e abrangência de sua incidência, existem riscos consideráveis do Imposto Seletivo servir não somente para desincentivar o consumo (nesse ponto, deve ser avaliado o grau de elasticidade da demanda desses bens, inclusive) ou compensar eventuais externalidades negativas -uma vez que parte considerável de sua receita já está destinada para outros fins-, mas também para onerar produtores e comercializadores de determinados bens e serviços em benefícios de outros, prejudicando o processo competitivo e os objetivos de isonomia tributária, os quais fundamentaram a reforma e estão consagrados na Constituição Federal (art. 150, II e 170 III).

Dessa forma, é preocupante a previsão da utilização do Imposto Seletivo como ferramenta de competitividade em favor de agentes e operações realizadas em determinadas regiões já beneficiadas (como Zona Franca de Manaus e de outras áreas de livre mercado). Uma vez que, além de não atender as justificativas lançadas para criação desse imposto, isso poderá servir como instrumento e  fator de desequilíbrio competitivo, elegendo, assim, o player vencedor.

Nesse sentido, é importante citar o estudo do ICC referente à necessária interação entre a política tributária e defesa da concorrência, para fins de impedir que agentes que atuam no mesmo mercado sejam expostos a regimes diferentes. Vejamos[2]:

‘“A adoção dessas medidas extrafiscais em buscar atingir determinados efeitos sociais deve ser cuidadosamente pensada e adotada com cautela. Fundamentalmente, devem garantir horizontalidade e neutralidade tributária, a fim de não criar assimetrias injustificadas entre produtos que integram o mesmo mercado relevante. Por vezes, percebe-se desvirtuamento na sua aplicação e mesmo desigualdades injustificadas, por exemplo, entre produtos que integram o mesmo mercado relevante e não deveriam usufruir de tratamento diferenciado entre si.”

Note-se que, para alcançar o objetivo de somente desincentivar o consumo e/ou compensar externalidades de determinados produtos e/ou serviços, a PEC 45/2019 deveria limitar a incidência do Imposto Seletivo somente em uma determinada etapa da cadeia, como: no momento final do consumo, ao invés de permitir que fosse aplicado em diferentes elos, como na produção e comercialização do mesmo bem, atendendo, assim, ao princípio da não cumulatividade plena.

Por outro lado, se o escopo do Imposto Seletivo for incentivar o consumo de determinado bem ou serviço, ou promover região específica, isso deveria ser realizado por meio de benefícios e incentivos fiscais, ao invés de majorar os ônus tributários a agentes específicos, sem ao menos considerar outros custos que são aplicados com os mesmos objetivos, como aqueles de natureza regulatória.

Nesse sentido, é importante citar estudo da OCDE a respeito das regras no âmbito da União Europeia envolvendo incentivos e benefícios por parte dos países membros, denominado como “State aid”. No referido estudo, a OCDE fez questão de ressaltar as preocupações da autoridade europeia com distorções concorrenciais, consignando que[3]:

However, a favour in the sense of EU state aid rules is only deemed to have come into existence if it leads (or, at least, has the potential to lead) to a distortion of competition. Aid (in the sense of a selective grant through state resources) distorts competition only if that aid improves the position of the beneficiary or a third party in the applicable market to the detriment of their (potential) competitors. In order to determine whether this applies, it is necessary to compare the competitive situation before and after an (intended) subsidy is compared (ECJ, 1974[17]) (ECJ, 1980[18])12.

No caso do Imposto Seletivo, além da sua abrangência e da mitigação às garantias da legalidade e anterioridade, nota-se também a ausência da previsão de quaisquer mecanismos que limitem a instituição do referido imposto, especialmente por meio de instrumentos de análise prévia de seu impacto e resultado, como AIR e ARR, bem como da necessidade de observar princípios como: isonomia entre contribuintes em situações semelhantes; capacidade contributiva; e a não cumulatividade com outros tributos de natureza e objetivos semelhantes, como é o caso da CIDE e/ou da seletividade da alíquota do IPI e/ou ICMS, bem como com outros fatores de custos (regulatórios, por exemplo) que também tenham o mesmo objetivo do Imposto Seletivo.

Desse modo, para que se alcance as motivações reformistas da simplificação e isonomia tributária, bem como da não cumulatividade, da eficiência e da previsibilidade da carga nos diferentes elos e setores da cadeia econômica, é indispensável que o Senado Federal aperfeiçoe o texto referente ao Imposto Seletivo, de modo a estabelecer limites mínimos para sua incidência e assegurar que o mesmo não servirá para distorções do processo competitivo.  


[1] Trata-se de mais um aumento da base de incidência promovido pela PEC, uma vez que o IPI (que teria essa natureza extrafiscal) não incide sobre serviços. 

[2] Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.iccbrasil.org/wp-content/uploads/2022/12/ICC-Tributac%CC%A7a%CC%83o-e-Concorre%CC%82ncia_Artigo.pdf

[3] Disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/sites/bf96ce64-en/index.html?itemId=/content/component/bf96ce64-en#back-endnotea2z4


 

FELIPE FERNANDES REIS. Advogado, coordenador da equipe de Direito Econômico e Concorrencial do Malard Advogados Associados.Coordenador do Comitê de Compliance e de Regulação do Open Delivery. Graduado em Direito e Mestrando em Economia pelo IDP/Brasília. Membro Consultor das Comissões de Direito Econômico e de Energia da OAB/Federal; e membro das Comissões de Defesa da Concorrência e de Relações Governamentais e Institucionais da OAB/DF. Associado Internacional da American Bar Association (ABA), nos comitês de Antitrust Law; e Environment, Energy and Resource Law. Autor de artigos publicados em livros, periódicos e sites especializados de Direito Econômico e da Concorrência.

BIANCA XAVIER GOMES. Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestre em Direito e Desenvolvimento pela UCAM. Professora de Direito Tributário da FGV DIREITO RIO.  Técnica Contábil pela UCAW. Coordenadora da Pós-Graduação em Direito Financeiro e Tributário do CEPED/UERJ. Advogada.

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