Artigos de opinião

Há um trade-off entre regulação prudencial e concorrência? O caso da saúde suplementar

Sandro Leal Alves

  1. Introdução

O propósito desse artigo é avaliar a relação entre a regulação prudencial e a concorrência no mercado de seguros em geral, e o de saúde suplementar em particular. Busca-se apontar alguns caminhos e escolhas de políticas públicas quando dois objetivos são postos lado a lado. Como escolher entre objetivos igualmente desejáveis e aparentemente concorrentes entre si? Este parece ser o caso quando se pensa na regulação prudencial, que busca garantir a solvência de mercados que trabalham com riscos e a regulação da concorrência, que busca garantir diversidade e preços menores para os consumidores. A falta de regulação prudencial pode gerar insolvências e riscos sistêmicos enquanto a falta de concorrência leva a abuso de poder de mercado. Como escolher entre dois males?

Ao se criar licenças e requerimentos técnicos para entrada no mercado, elevam-se as barreiras à entrada, reduzindo a concorrência. Essa foi a opção adotada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar no início de sua regulação, no ano 2000. Naquele momento, com exceção das seguradoras, que já eram reguladas pela SUSEP, as demais operadoras não observaram regras prudenciais e tampouco se submetiam ao acompanhamento econômico-financeiro. Após 22 anos de regulação, o número de operadoras se reduziu de cerca de 2000 para algo em torno de 700 enquanto os preços dos planos de saúde seguem uma tendência crescente. Uma leitura rápida poderia levar ao entendimento de que preços elevados são consequência de uma concentração de mercado oriunda da regulação prudencial.  No entanto, para preservar a solvência do sistema é essencial que os preços sigam acompanhando a dinâmica peculiar da variação dos custos médico-hospitalares, acima dos índices de preços no Brasil e no mundo.[1]

O preço do plano de saúde depende evidentemente dos custos assistenciais e da própria estrutura do mercado. Tratei especificamente da precificação dos planos de saúde em coluna anterior.[2]Saindo das ciências atuariais e acrescentando microeconomia, sabemos que os preços de mercado dependem da estrutura do mercado, ou seja, das condições básicas (e elasticidades) de oferta e demanda. Um mergulho mais profundo vai nos mostrar que dependem também das características do produto, dos consumidores, da tecnologia (expressas na função de produção), da existência de economias de escala. Passaríamos então a uma análise do número de compradores e vendedores, o grau de diferenciação de produto, a estrutura de custos, integração vertical e as barreiras de entrada e saída. Não é objetivo deste artigo examinar as condições de organização industrial do mercado, mas chamar a atenção de que elas têm um papel fundamental na determinação do preço.

Nesse sentido, analisar as barreiras à entrada, em geral regulatórias, mas também derivadas das economias de escala, é fundamental para compreender a estrutura do mercado e a formação de preços. E dentre as barreiras regulatórias, as licenças e a regulação prudencial emergem como as principais formas de regulação de mercados que operam com riscos futuros como bancos, seguros e planos de saúde. Nesse segundo ponto que queremos focar.

  • Seguro e mutualismo

Uma breve exposição do mecanismo de funcionamento do seguro e da saúde suplementar é importante para compreendermos a importância da regulação prudencial. Sabemos que a exposição aos diferentes tipos de riscos faz parte da natureza humana. Antes mesmo do nascimento, já convivemos com o risco associado ao desenvolvimento do embrião até o momento do parto. Geralmente, os riscos geram “desutilidades” para os indivíduos na medida em que, na hipótese de sua materialização, impõem perdas físicas e monetárias para as pessoas. Desde a antiguidade, diante das incertezas e dos riscos, as comunidades desenvolveram maneiras de mitigar ou diluir este risco entre pessoas igualmente afetadas por sua ocorrência. Carregar o risco sozinho é um ato de coragem, mas não parece ser a atitude mais sensata sob o ponto de vista econômico, principalmente quando oportunidades de diluição se encontram disponíveis no mercado segurador.

O seguro é socialmente desejável por compartilhar riscos. Já que nem sempre é possível eliminá-los, muitas vezes é possível dividi-lo com outras pessoas que também se encontram na mesma situação. Diversificando o risco, ou seja, não colocando todos os ovos na mesma cesta, o indivíduo consegue reduzir a variabilidade da ocorrência do evento incerto tornando-o mais previsível. O mutualismo foi o termo cunhado da biologia para definir a cooperação entre indivíduos mediante a agregação de seus riscos. Na biologia, quando a interação entre duas espécies proporciona ganhos recíprocos decorrentes da associação entre elas, há mutualismo.[3]

O alicerce para o funcionamento dos mercados securitários é o mutualismo. Neste mecanismo, há um grupo solidário com todos contribuindo com suas mensalidades/prêmios para um fundo mútuo comum. A contribuição individual custeia as despesas do próprio indivíduo (se necessário) e as de todas as pessoas do grupo que necessitarem. O seguro fornece, portanto, uma possibilidade de troca mutuamente benéfica ao reduzir o custo do risco para os segurados. Se a troca é voluntária, a sua efetivação é um jogo de soma positiva em que ambos os agentes ganham, melhorando sua situação inicial. O seguro permite que um agente avesso ao risco consiga transferi-lo, mediante o pagamento de um prêmio de risco, para um agente comprador de riscos que é a seguradora. [4]

Cabe ressaltar que o contrato de seguros é disciplinado no Código Civil dos artigos 757 a 802, estabelecendo as obrigações e direitos das partes que o subscrevem. No art. 757, é destacado que, “pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo à pessoa ou à coisa, contra riscos predeterminados”. Ou seja, o segurador só se obriga pelos riscos que forem predeterminados no contrato, desde que receba o prêmio correspondente como condição fundamental para o atendimento do interesse legítimo do segurado (objeto do contrato de seguro) que incida sobre a pessoa ou a coisa (sobre bem material, patrimonial, de valor econômico).

A delimitação do risco é o DNA do seguro e fundamental para o equilíbrio financeiro da operação. Permite ao segurador medir o risco, taxar o prêmio, dimensionar sua responsabilidade e estabelecer as provisões técnicas pertinentes. Com isso, confere segurança jurídica e contratual, pois cabe ao gestor da mutualidade zelar para que os riscos cobertos sejam suscetíveis de indenização ou de pagamento do capital segurado. [5]

A relevância econômica do seguro é expressa em números. Em 2021, o mundo faturou US$ 6,8 trilhões em seguros, o Brasil estando na 17ª posição no ranking por países. A previsão é que o número mundial passe de US$ 7 trilhões em 2022. Mas, nesse ano, a taxa de inflação mundial e a queda do PIB vão trazer efeitos, sobretudo nas economias mais desenvolvidas.[6] A Tabela 1 apresentada a seguir mostra os dados de arrecadação do setor segundo ramos do seguro.

Fontes: DIOPS (ANS) – Extraído em 01/05/2022 SES (SUSEP) – Extraído em 14/07/2022. Elaboração CNseg.

  • O que é e a razão de ser da regulação prudencial

Guilaume e Rochet (2007) listam duas principais razões para que as seguradoras sejam submetidas à regulação prudencial. Em primeiro lugar, devido ao ciclo de produção invertido, ou seja, a seguradora recebe prêmios antecipadamente para posterior pagamento de indenizações, a gestão financeira da companhia pode ser incentivada a adotar comportamentos mais arriscados. Ocorre que o pagamento das indenizações contratadas pode ser prejudicado devido a imprudência da gestão, gerando externalidades negativas para os segurados.

O fluxo financeiro invertido acaba criando estímulo para um comportamento excessivamente arriscado na gestão. Em segundo lugar, a ausência de titulares de direitos (apólices) com poder de influência na gestão, faz com que essa dinâmica não termine até que um problema real de liquidez se revele. Neste caso, pode ser tarde demais para recuperar a empresa e honrar os compromissos contratados. Em suma, há uma dificuldade de os detentores de apólices controlarem o risco assumido pela gestão da seguradora.

Trata-se do conflito clássico de agência entre segurados e os proprietários de empresas seguradoras. O problema de assimetria de informação entre o agente e o principal suscita o comportamento típico de moral hazard. Nesse sentido, Jensen e Mackling (1976), definem a relação Principal-Agente como um contrato em que uma das partes (o principal) engaja a outra parte (o agente) a desempenhar algum serviço em seu nome, e que envolve uma delegação de autoridade para o agente. No caso em questão, o principal, que é o detentor da apólice (segurado), tem poucos mecanismos de monitoramento e incentivo para que o agente (seguradora) tome as melhores decisões sob o ponto de vista dele.

Diante dessa assimetria, o alinhamento de incentivos não ocorre e falências podem resultar da interação entre eles. Para controlar o risco de insolvência, surge a regulação prudencial que em síntese produz regras disciplinando o capital regulatório, as reservas, a alocação do capital da seguradora e de seus investimentos. Cada autoridade reguladora define suas regras de acordo com os objetivos de sua área de atuação.

No caso do sistema bancário, por exemplo, a regulação prudencial “estabelece requisitos para as instituições financeiras com foco no gerenciamento de riscos e nos requerimentos mínimos de capital para fazer face aos riscos decorrentes de suas atividades.  O gerenciamento de riscos e os requerimentos mínimos de capital contribuem para que eventual quebra de uma instituição financeira não gere um efeito dominó no sistema financeiro e, em última instância, perdas para a sociedade como um todo. Esse efeito dominó é conhecido como risco sistêmico”[7].

No setor segurador, a regulação prudencial “diz respeito ao estabelecimento de regras que visem a resguardar a solvência das sociedades e entidades supervisionadas pela Susep (ou seja, sua capacidade financeira para cumprir os compromissos assumidos junto aos segurados e beneficiários) mesmo em face de eventuais acontecimentos desfavoráveis. Seu objetivo é reduzir a probabilidade de eventos de insolvência (embora seja impossível garantir sua completa eliminação) e, caso estes ocorram, mitigar seus impactos para os segurados, o mercado segurador e o sistema financeiro como um todo. Alguns dos principais temas tratados no contexto da Regulação Prudencial são Provisões Técnicas, Ativos, Requerimentos de Capital, Governança, Gestão de Riscos, Controles Internos e Contabilidade”. [8]

No caso da ANS, conforme Serra (2016), “A regulação prudencial do mercado de saúde suplementar tem por objetivo a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do ente regulado como forma de garantir a continuidade e a qualidade do serviço contratado pelo consumidor. O ciclo invertido pode gerar falsa percepção de solidez, o que pode ocasionar decisões equivocadas e perigosas para a sustentabilidade do negócio.” Ainda segundo o autor, “a regulação prudencial, pretende que as operadoras reconheçam adequadamente as obrigações assistenciais a que estão sujeitas, minimizando a possibilidade de percepção irreal de liquidez, de forma que sejam mantidos recursos suficientes para a garantia de suas atividades. Como é mercado que envolve significativos riscos (a ocorrência do evento médico é imprevisível, tanto em termos de “quando” como principalmente em termos de “quanto”), traduzidos muitas vezes em prejuízos substanciais, é fundamental que haja, também, solidez patrimonial. A regulação busca, portanto, que sejam fortalecidos dois conceitos fundamentais: liquidez e solvência. Liquidez é o correto dimensionamento das obrigações assistenciais e a manutenção de uma estrutura de ativos suficiente para sua cobertura e solvência é manutenção de capital próprio em volume capaz de fazer frente a eventuais prejuízos, de forma que a operadora consiga atravessar períodos adversos sem comprometer a continuidade de suas operações.”

No caso da regulação prudencial da ANS, importante ressaltar que o mercado calcula seus riscos em modelos paramétricos e fórmulas padrões como a margem de solvência. No entanto, a regulação tem evoluído na direção de modelos de capital baseado em riscos. Até 2022 operam regras transitórias, mas a partir de 2023, entra em operação o capital baseado em riscos (RN 526/2022). Já foram regulados os riscos de subscrição, crédito, mercado e operacional. Adicionalmente, a comprovação da aderência às práticas mínimas de governança corporativa, permitem à operadora utilizar fatores reduzidos de capital (RN 518/2022). Há previsão inclusive da substituição do modelo de capital base regulatório pelo modelo interno, desde que aprovado pela ANS.

Os requisitos prudenciais não impedem necessariamente que uma instituição financeira enfrente dificuldades ou vá à falência, mas minimizam efeitos negativos de eventual encerramento das atividades de uma instituição financeira. A abordagem teórica padrão subjacente à regulação de seguros se origina em métodos atuariais e, mais especificamente, na teoria da ruína. De um modo geral, esta abordagem postula que o objetivo da regulação prudencial é garantir que a probabilidade de ruína das companhias de seguros esteja abaixo de um determinado valor “aceitável”. O segundo pressuposto é que a principal ferramenta de que o regulador dispõe para atingir este objetivo é a fixação de uma margem de solvência obrigatória, o montante mínimo de capital próprio de uma empresa que pode ser utilizado como buffer. O Gráfico apresentado a seguir mostra o volume de recursos alocados em termos de ativo, provisões e patrimônio líquido do setor.

  • Há um trade-off entre regulação prudencial e concorrência?

Feitas essas digressões sobre seguro e a regulação prudencial, cabe retornarmos à pergunta: Quanto a sociedade está disposta a sacrificar, em termos de menor garantia de solvência das empresas, para obter maiores ganhos de bem-estar resultantes de mais concorrência no mercado? Essa pergunta somente faz sentido se acreditarmos na existência de um trade-off entre esses dois objetivos. O primeiro certamente é tarefa primordial da autoridade reguladora dos mercados de riscos enquanto o segundo é o objetivo das políticas de defesa da concorrência. Evidentemente o custo regulatório não se limita ao esforço de cumprimento das exigências econômico-financeiras e de capitalização das empresas. Há que se considerar todos os demais custos de atendimento da regulação que encarecem a operação e reduzem a margem de lucro esperada e o retorno do investimento ao acionista. Mas para ficarmos apenas na questão prudencial, pode-se argumentar que há um nível ótimo em que a solvência fica preservada, mas ao mesmo tempo não cria barreiras à entrada a ponto de tornar-se o mercado não contestável, no sentido de Baumol.

O que se conclui neste artigo é que a agenda de elaboração de políticas de regulação e de defesa da concorrência precisaria ser colaborativa no sentido de atuarem em uma mesma direção. Se no curto prazo os objetivos parecem ser concorrentes, no longo prazo, com liberdade de entrada sujeita às regras prudenciais, a qualidade da concorrência tem dominância sobre a quantidade de concorrentes, permitindo uma agenda conciliatória entre as autoridades da concorrência e regulatória.

Não podemos deixar de considerar que em mercados de risco, a escala mínima viável, tradicional barreira à entrada, se submete à inevitável lei dos grandes números e a massa segurada é fundamental para a estabilidade dos resultados. No caso da saúde suplementar, o movimento em direção à concentração é impulsionado não somente pela melhoria das regras prudenciais, mas principalmente pelo risco assumido pelas operadoras que cresce a cada nova incorporação ao rol de procedimentos com inclusões de drogas cada vez mais caras.  

Nesse sentido, a regulação prudencial é a função de reação do próprio órgão regulador ao processo de inclusão vertiginosa de novas tecnologias que acrescentam custos ao setor de forma acelerada, nem sempre com a adequada verificação de sua custo-efetividade e, principalmente, da capacidade financeira da população suportar o aumento de custos da saúde, consistentemente acima dos índices oficiais de inflação. O Gráfico a seguir apresenta a redução da quantidade de operadoras no mercado de saúde suplementar. Muitas delas saíram voluntariamente, foram adquiridas ou foram retiradas do mercado pela ANS, após a decretação de liquidação extrajudicial ocasionada por problemas econômico-financeiros. Neste caso, a escolha tem sido sacrificar a concorrência em benefício da solvência do mercado. Com a aceleração nesse processo, a tendência é de redução ainda maior na oferta. Um bom ponto para discussão integrada entre os policy-makers regulatórios e concorrenciais.

Referências

ALVES, SL (2005). Regulação Prudencial e Concentração na Saúde Suplementar. Revista Cadernos de Seguro, Ed. Maio/2005, p. 52-54.

ALVES, SL (2022). Precificação de Planos de Saúde: Risco e Incerteza sobre o Rol de Procedimentos. Webadvocacy. Brasília. DF. Coluna de junho.

BAUMOL (1982). Contestable Markets and the Theory of Industry Structure, with J.C. Panzar and R.D. Wilig.

BERNSTEIN, P. (2007). Desafio aos Deuses. A Fascinante História do Risco. Ed. Campus.

CONTADOR, C.R. (2014). Economia do Seguro. Fundamentos e Aplicações. Versão revisada e ampliada. Ed. Atlas

CORIOLANO, M (2022). Nota: Há uma escala mínima de beneficiários para a operação segura de um plano de saúde regulado? https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6955907350318706688/

GALIZA, F (2011). Economia e Seguros: Uma Introdução. Ed. Funenseg, 3ª ed revisada e atualizada.

GUILAUME AND ROCHET, JC (2007). When Insurers go Bust. An Economic Analysis of the Role and Design of Prudential Regulation. Princeton University Press.

JENSEN, M.; MECKLING, W. Theory of the firm: managerial behavior, agency costs and ownership structure. Journal of Financial Economics, v. 3, n. 4, p. 305-360, 1976.

SERRA, C. (2016). Entendendo a regulação prudencial no mercado de saúde suplementar. A operação em preço preestabelecido e o incentivo à descapitalização. Revista Cadernos de Seguro nº 186, p.27-33.


[1] A Variação do Custo Médico Hospitalar – VCMH/IESS – para um conjunto de 688,9 mil beneficiários de planos individuais atingiu 27,7% nos 12 meses terminados em setembro de 2021 relativamente aos 12 meses terminados em setembro de 2020. Nesse mesmo período, o IPCA foi de 10%. Fonte: IESS.

[2] ALVES, SL (2022).

[3] Alguns autores contam ter se originado durante a travessia de cameleiros no deserto. Como durante as longas travessias, alguns camelos morriam, havia um acordo entre os cameleiros de reporem as perdas do participante que sofreu o infortúnio. Bernstein, P. (2007). Desafio aos Deuses. A Fascinante História do Risco. Ed. Campus.

[4] Para informações mais técnicas sobre a economia do seguro, sugere-se consultar a obra de Contador (2014) e Galiza (2011).

[5] É comum dizer que o risco é uma medida da incerteza. São conceitos distintos, como proposto pelo economista Frank Knight.  Se não sabemos o que acontecerá, mas conhecemos as probabilidades, temos o conceito de risco. Se não conhecemos nem mesmo as probabilidades, estamos falando de incerteza.  A incerteza é não quantificável, com regras de formação e causas desconhecidas.

[6] World insurance: inflation risks front and centre. Swiss Re Institute, 2022.  Disponível em: https://www.swissre.com/institute/research/sigma-research/sigma-2022-04.html

[7] www.bacen.gov.br.

[8] www.susep.gov.br

“If you can’t buy the art, buy the artist”: efeitos da verticalização e considerações acerca da conduta de self-preferencing

Polyanna Vilanova & Matheus Carvalho

Na série Billions, o coprotagonista Bobby Axelrod, em dado momento, afirma que se você não pode comprar a obra de arte, compre o artista. Transplantando a premissa para a realidade empresarial, surge uma ideia sempre presente para qualquer agente em processo de expansão: o controle das etapas do processo produtivo.

Em outras palavras, melhor do que negociar, muitas vezes é mais vantajoso adquirir um outro agente que esteja no mercado verticalmente relacionado. Quando isso acontece, a tendência é que o ente verticalizado passe a dar tratamento preferencial aos seus próprios produtos ou serviços, prática conhecida como self-preferencing.

Nesses casos, argumenta-se que é normal (até esperado) que as empresas que controlem diversas etapas do processo produtivo deem preferência aos seus próprios produtos em detrimento daqueles produzidos por concorrentes[1]. Trata-se de uma conduta em tese previsível e que muitas vezes é a pedra angular de uma concentração econômica. Contudo, em algumas situações, é possível que preocupações concorrenciais surjam a partir desse arranjo.

A grande questão, portanto, é estabelecer parâmetros confiáveis que possam indicar quando a conduta deve ser objeto de reprovação pelo ordenamento jurídico e qual o teste a ser aplicável para aferir a ilicitude.

Linhas gerais, para a caracterização da conduta, dois pressupostos são necessários. O primeiro pressupõe a existência de dois mercados que podem ser horizontais ou verticalmente relacionados[2]. Em segundo lugar, é preciso que haja algum mecanismo pelo qual o agente que atua no mercado “A” favoreça as suas atividades no mercado “B”[3].

Trata-se, conforme exposto, de uma estratégia pela qual um agente utiliza a posição dominante que dispõe em um mercado para alavancar sua posição em outro. Esta prática, conforme reconhecido pela OCDE, pode gerar eficiências para o consumidor além de proporcionar uma recompensa para o agente que inovou ou que adotou diferenciação competitiva[4].

Contudo, é possível que ao agir desta forma, o self-preferencing seja utilizado como instrumento de distorção do processo competitivo, comprometendo a livre concorrência e a contestabilidade do mercado.

Por esta razão, seguindo o que sugere a literatura econômica, a OCDE recomenda que a análise mais adequada de uma conduta de self-preferencing seja feita por efeitos, justamente por ser necessário analisar o que levou à conduta, quais os efeitos da prática no mercado analisado e quais as justificativas econômicas associadas à prática[5].

A grande questão é: quando a conduta é lícita e quando não é? Qual a teoria do dano aplicável? Nesse ponto, há quem diga que self-preferencing carece de balizas suficientemente claras na medida em que se sobrepõe a categorias legais distintas sujeitas a testes distintos, o que macula a justificativa econômica por trás da conduta[6][7].

Assim, advoga-se que não é propriamente o self-preferencing que deveria ser coibido – porque não haveria uma conduta autônoma a ser censurada – mas a consequência prática que ele traz no caso concreto (refuse to deal, tying, bundling etc.).

Ainda em termos de identificação da conduta, para alguns autores, o self-preferencing seria uma expressão da competição por mérito e que somente em hipóteses muito específicas, como no caso de essential facilities, é que haveria a obrigação de não discriminar[8][9]. Há, contudo, quem discorde frontalmente desta afirmação[10].

Na jurisprudência, o tema não é menos controverso. Na Europa, caso paradigmático foi a multa imposta ao Google por suposta violação ao artigo 102 do TFUE em razão do abuso de posição dominante (investigação semelhante foi instaurada nos EUA[11] com resultado diametralmente oposto).

No Brasil, recentemente, a Superintendência-Geral debruçou-se sobre o tema em, ao menos, 3 oportunidades no ano de 2022 (duas no setor portuário e uma no mercado de plataformas de delivery de refeições)[12].

De tudo quanto exposto (e não exposto), nota-se que há um vasto oceano a ser desbravado quando o assunto é self-preferencing. Longe do consenso, os debates são sofisticados e a tendência é o aprofundamento da discussão (para mercados tradicionais e digitais) no campo acadêmico e jurisprudencial.

Considerando que há efeitos pró-competitivos com a conduta, o desafio será identificar as exatas circunstâncias em que a conduta é anticompetitiva e qual a melhor forma de endereçar a discussão (via autoridade concorrencial ou regulação[13]) sem desestimular o incentivo à inovação e à diferenciação.


[1] No original: “Self-preferencing is an expected – if not inevitable – consequence of the integration of different activities under common ownership”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.

[2] No original: “First, the case involves two markets, which may be horizontally (for instance, two applications running on an operating system) or vertically related (for instance, an application and the operating system on which it runs). In: COLOMO, Pablo Ibañez. Self-Preferencing: Yet Another Epithet in Need of Limiting Principles (July 17, 2020). Forthcoming in (2020) 43 World Competition. Disponível em https://ssrn.com/abstract=3654083

[3] No original: “Second, there must be a (unilateral or contractual) mechanism through which a firm favours its activities on one of the markets at the expense of others.” In: COLOMO, Pablo Ibañez. Id. Ibid.

[4] No original: “Like vertical integration, leveraging can generate efficiencies for consumers and provide legitimate rewards for innovation or competitive differentiation”. In: OECD. Abuse of dominance in digital markets. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/abuse-of-dominance-in-digital-markets.htm

[5] No original “As with the other theories of harm associated with leveraging and refusals to deal, economic intuition suggests a need for a case-by-case approach to abusive leveraging.”. In: OECD. Op. cit.

[6] No original: “It follows from the analysis above that self-preferencing, as a label, overlaps (partially or totally) with several existing legal categories – including tying and refusal to deal. What is more, the latter apply to conduct that varies widely in its nature and effects and that, for the same reason, is subject to legal tests that are also different”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.

[7] No original: “As already explained, self-preferencing lacks clear boundaries. It overlaps with well-established categories which are, moreover, subject to different legal tests. However, the single most important problem with self-preferencing as a label is that it might lead to the abandonment of the case law without an appropriate examination of the rationale underpinning it and without evaluating the consequences of departing from it”. In: COLOMO, Pablo Ibañez. Op. cit.

[8] No original: “It follows that favouring one’s own business or product is not anti-competitive even if it leads to the marginalization or even disappearance of certain individual competitors, so long as the favouring is competition on the merits”. In: VESTERDORF, Bo. Theories of Self-Preferencing and Duty to Deal – Two Sides of the Same Coin? (January 31, 2015). Competition Law & Policy Debate, Volume 1, Issue 1, February 2015, p.4-9. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2561355

[9] No original: “There can therefore be no obligation on a dominant undertaking to treat its competitors in downstream or related markets in the same or substantially the same way as its own operations in such markets […] without establishing the existence of an “essential facility”. VESTERDORF, Bo. Id. Ibid.

[10] Ver: PETIT, Nicolas. THEORIES OF SELF-PREFERENCING UNDER ARTICLE 102 TFEU:

A REPLY TO BO VESTERDORF. Competition Law & Policy Debate 1 CLPD (2015). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2592253 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2592253

[11] “One of the first of these investigations internationally was the FTC’s inquiry into whether Google’s search results were “biased” towards its own “properties” and, if so, whether such self-preferencing was an unfair method of competition under Section 5 of the Federal Trade Commission Act. After a 19-month investigation, the FTC closed the investigation. In its strongly-worded closing statement, the FTC went well beyond saying that Google’s behavior did not violate U.S. competition law. Rather, it asserted that the behavior at issue was the sort of competitive behavior that competition statutes encourage”. In: SALINGER, Michael A. Self-Preferencing (November 11, 2020). The Global Antitrust Institute Report on the Digital Economy 10. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3733688 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3733688

[12] Ver NT nº 20/2022 (IA nº 1797/2022-09); NT nº 9/2022 (IA nº 3945/2020-50); Parecer nº 12/2022 (AC nº 7341/2021-63).

[13] A União Europeia largou na frente e tornou-se a primeira jurisdição a regular o tema. Para maiores aprofundamento, ver: COUTINHO, Diogo R. GONÇALVES, Priscila Brolio. KIRA, Beatriz. As big techs e a nova onda de regulação digital: o caso União Europeia. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-big-techs-e-a-nova-onda-de-regulacao-digital-o-caso-uniao-europeia-21072022.

Regulação de novas tecnologias

Amanda Flávio de Oliveira

Em 1800, 95% da população mundial encontrava-se em situação de extrema pobreza. Atualmente, esse número encontra-se abaixo de 10%. Certamente que o principal responsável por essa mudança expressiva não pode ser indicado como um grande líder global, que teria idealizado e implementado uma política vitoriosa de combate à pobreza. Tampouco decorreu de um conjunto de atuações oficiais/governamentais em convergência, sendo certo que ao longo desse período mais impactaram a esse título as divergências políticas entre países que suas convergências.

O que propiciou essa reviravolta mundial na qualidade de vida das pessoas foi a inovação consistente, sucessiva e cumulativa que proveio da mente criadora das pessoas, da força motriz das empresas, da iniciativa privada no exercício da liberdade econômica. E o resultado fascinante e auspicioso desse movimento global e convergente de autointeresse de pessoas – naturais e jurídicas – enseja reconhecimento e renovação, não contenção. Afinal, ainda temos quase 10% da população a acudir.

Entretanto, a duração da vida humana individual é um curto recorte dessa evolução, desse espaço de tempo. Para nascidos no atual cenário, os 10% remanescentes incomodam, e isso é bom. É bom porque os mobiliza a resgatá-los, dever de todos aqueles que se indignam com a indignidade. O problema surge quando são utilizadas premissas erradas nesse esforço, partindo do pressuposto de que os 90% atuais são garantidos, ou são históricos, e se atribui a iniciativas governamentais o encargo de acabar com a extrema pobreza, quase sempre, à custa de medidas que desencorajam o pleno vigor da livre iniciativa, que nos trouxe até aqui.

A bola da vez do ímpeto regulatório está no mercado digital. Na Europa, muito recentemente, dois instrumentos normativos surgiram com esse propósito: o Digital Service Act (DSA) e o Digital Market Act (DMA), divulgados como instrumentos jurídicos preocupados com a proteção de direitos individuais e com a concentração inédita de market share das plataformas digitais.

Os argumentos são sedutores, mas não resistem a uma análise desapaixonada ou racional. As normas que restringem liberdade econômica podem ser tudo, menos uma expressão de proteção de direitos individuais. Tampouco o padrão de concentração das plataformas é inédito na história das atividades econômicas essenciais e sobre isso já se escreveu e exemplificou em outro texto, ao qual se remete o leitor[1].

Mas é um dado relevante notar que a preocupação europeia volta-se a algumas poucas empresas quase todas americanas: Google (Alphabet), Facebook (Meta), Apple, Microsoft, e mais umas duas ou três. Inevitável constatar que não há empresas europeias na lista de preocupação. Certamente, portanto, a Europa não está sabendo promover a inovação.

No Brasil, a produção regulatória, tanto em mercados tradicionais quanto em mercados de inovação, segue a todo vapor. Tampouco nossas empresas estão na lista das motivadoras da produção normativa europeia. Aparentemente nossas empresas não estão conseguindo incomodar fora das nossas fronteiras. Mas, sim, nós também estamos correndo atrás de regular empresas de outros países, além das nossas mesmas.

No amplo rol de iniciativas legislativas em tramitação no Brasil, o mercado digital tem ensejado debates acadêmicos e muito estímulo à sua regulação por meio de normas. Os argumentos giram em torno dos mesmos tópicos: defesa dos indivíduos e controle do poder econômico.

O Projeto de Lei n. 21/20 busca estabelecer o Marco Legal de Inteligência Artificial no Brasil. Há o propósito de regular as plataformas digitais, dos quais o PL 2630/2020 é um exemplo. Há projetos de lei para regular criptoativos, curiosamente com o apoio ativo das empresas do setor. Há movimentos no sentido de produzir algo na linha do DMA europeu para o Brasil, e por aí vai.

Se os propósitos das regulações em mira aparentam ser nobres, sua capacidade de gerar os resultados desejados podem ser questionados. Quase sempre atualiza-se o setor em mira, mas os erros de iniciativa oficial seguem históricos: estabelece-se uma mesma régua para todos os regulados, são aumentadas ou instituídas barreiras à entrada, fecha-se o mercado.

No caso específico do mundo digital, o risco da ineficácia da norma é ainda maior. É que está-se diante de um ambiente anárquico por excelência, e os vazamentos de dados, inclusive de importantes Tribunais, apesar da LGPD e da ANPD, persistem; a Deep e a Dark Web resistem…

Precisamos aprender com a História. Regulação não promove inovação. Ou, pelo menos, não foi o que aconteceu ao longo dos dois últimos séculos. Quem inovou foi a mente humana, livre e autointeressada. Se não conseguimos abrir mão da regulação, por alguma razão política ou de escolha pública, que o façamos de forma a não confrontar esse movimento.

A conclusão é de Thomas K. McCraw. A história da regulação da atividade econômica nos revela um cenário amplo de frustrações e uma importante lição: reguladores e legisladores, se querem promover objetivos públicos por meio da intervenção estatal na economia, precisam sempre explorar os incentivos naturais dos regulados e convergir suas ações com os interesses deles. Caso contrário, ter-se-á apenas ineficácia e/ou ineficiência. Pagarão o preço por mais equívocos estatais os pouco menos de 10% ainda resistentes na linha da extrema pobreza. Ou, na pior das hipóteses, a eles se juntarão pessoas que já não estavam aí[2].


[1] Confira em: https://webadvocacy.com.br/2022/03/31/10824/

[2] MCCRAW, Thomas K.. Prophets of regulation: Charles Francis, Adams Louis D. Brandeis, James M. Landis, Alfred E. Kahn. Massachusetts: Harvard, 1984.

Um duelo entre direito e economia? Desmistificando o Guia de Análise de Preços*

Juliana Oliveira Domingues

Houve um pequeno engano, [….] numa comprida complicação”.[1]

No conto “Duelo”, de Guimarães Rosa (de onde se extraiu o trecho, acima) há duas histórias de vingança correlacionadas: de um lado, a do marido buscando o amante da esposa e, de outro, a do homem buscando o assassino do irmão.

O conto foi rememorado em uma conversa com um ex-orientando, professor e amigo diante de outro “duelo” mais sofisticado entre articulistas experientes: de um lado, um economista e, de outro, um advogado. Surpreendentemente, o referido duelo envolveu recorte de argumentos do Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços[1] numa espécie de réplica do segundo artigo para o primeiro. A divergência entre os autores poderia ter se dado de diversas formas, como em todo espaço em que se discutem ideias, mas chama a atenção a utilização, in casu, do referido “Guia”. 

Explico, pois estive na Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), entre janeiro de 2020 e março de 2022, ou seja, no ápice da pandemia. “Fora da cadeira”, não posso me furtar a trazer luz ao debate. 

Para essa finalidade, não preciso entrar no caso concreto que motivou o “duelo”. Também não discutirei outras questões sensíveis ainda que, como professora de Direito, eu me preocupe com o uso de espaços acadêmicos para defesas de teses sem o chamado full disclosure. Aliás, essa não é uma particularidade da academia brasileira[2].

Voltemos ao foco: o histórico do Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Como responsável à época (desde o início da pandemia) explicarei, de forma sintética, a gênese, a motivação e os objetivos centrais que culminaram no Guia, construído com esmero, ao longo da pandemia. 

Como Secretária Nacional do Consumidor, eu fui a primeira presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC), composto por representantes de entidades públicas estaduais e municipais de defesa do consumidor, do CADE, do Ministério da Economia, do Banco Central, de agências reguladoras, de entidades civis de defesa de consumidores, entre outros, promovendo um ambiente plural para debater temas desafiadores. A ideia central da criação do CNDC é meritória, proporcionando um foro de debate institucional para a redução de insegurança jurídica e a proposição de recomendações aos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC).

Vale lembrar que a Secretaria Nacional do Consumidor atua diante da atração das competências que envolvem a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Portanto, não se discute – e muito menos se coloca em dúvida – o interesse da Senacon em analisar supostas condutas que possam afetar os consumidores, por diversos motivos. O CDC traz um rol extenso de possíveis práticas lesivas/abusivas aos consumidores: falta de transparência, publicidade enganosa ou abusiva, venda casada, entre outras. Mas, o grande debate que antecedeu e motivou a elaboração do guia foi, especificamente, a dificuldade de definição do que seria “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços” (art. 39, X, do Código de Defesa do Consumidor), popularmente chamado de “preço abusivo” [3], especialmente em um livre mercado[4] durante uma grande pandemia.

Afinal, como aferir os tais preços arbitrários, leoninos ou abusivos? E o que pode configurar “abusividade”?

Pois bem, o tema é desafiador “per se”: logo, poderia se fazer nada (caminho mais simples) ou buscar mínimos denominadores comuns (caminho mais desafiador). Houve esforço do CNDC para estabelecer parâmetros mínimos, garantindo previsibilidade, segurança jurídica e um padrão uniforme de análise caso a caso.

Ou seja, pensando na defesa do consumidor compatibilizada com outros princípios constitucionais da ordem econômica, a orientação que o guia traz é analisar a cadeia produtiva a fim de identificar: i) o produto que se quer verificar abusividade; ii) as empresas que atuam como concorrentes nesse mercado; iii) a cadeia produtiva, incluindo a matéria-prima do produto; iii) racionalidade econômica no aumento de preços. Todas essas etapas são analisadas antes de qualquer conclusão. Em nenhum momento, o guia foi pensado ou direcionado à avaliação de uma relação puramente comercial, visto que cada análise depende de dados relacionados a cada produto e serviço individualizado e seu efeito (e preço final) na relação de consumo[5].

Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços é resultante dos 02 (dois) anos de debates e de relatórios de uma comissão presidida pela Senacon, que também contou com tripla relatoria: do Cade, da Seae/ME e de Procons. Foram colocados atores que possuíam entendimentos diferentes para um esforço inédito de padronização que decorreu das diversas demandas surgidas e que subsidiaram as atividades dos órgãos de proteção e defesa do consumidor, em um período desafiador[6]. Nesse sentido, foi salutar a experiência adquirida na pandemia.

No referido “Guia Prático”, houve cuidado ao explicar as competências de cada órgão (i.e. Senacon, Procons, SEAE, CADE, Ministério Público, Defensorias Públicas etc.) e princípios constitucionais que norteiam a ordem econômica foram destacados[7]. Por esse motivo, há explicações sobre os efeitos deletérios das tentativas artificiais de controle de preços[8] (como o tabelamento) vividos nos anos 80: experiências malsucedidas que geraram o desabastecimento de produtos à população, mercados informais e o aumento da cartelização[9]

Assim, o roteiro apresentado descreve quatro etapas[10]: i) a identificação dos possíveis indícios de comportamento abusivo, envolvendo o exame dos índices de inflação e, também, a definição do mercado. É preciso separar, por exemplo, setores regulados dos não-regulados; ii) encaminhamento de acordo com essa identificação (diante de uma possível atração da regulação setorial e concorrencial) avaliando-se os choques de oferta/demanda. Quando forem identificadas práticas anticoncorrenciais, encaminha-se, por exemplo, para a análise do CADE ou da Seae/ME; iii) exame de especificidades do período (i.e. casos de emergência ou de calamidade) e a especulação de preços dos fornecedores; iv) análise econômico-jurídica das causas dos aumentos, com base em critérios técnicos e objetivos, com possível identificação de falhas de mercado.

O Guia tem caráter de soft law e é orientativo. Seu lançamento como uma cartilha didática trouxe referenciais que reforçam que o Brasil é uma economia de mercado onde há liberdade para que as empresas estabeleçam seus preços. Abusividades devem ser analisadas de forma adequada para evitar interferências desnecessárias, ou medidas desproporcionais.

Portanto, o Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços sintetiza as orientações aprovadas no âmbito do CNDC, com um passo a passo, facilitando a sua correta aplicação, com base sólida constitucional, consumerista, regulatória e também com fundamentos tradicionais da Análise Economica de Direito. Pensando na imprescindível segurança jurídica, é preciso destacar: o guia se baseou em uma construção jurídica racional, baseada em dados e evidências, sempre voltada a avaliar preços finais de produtos e serviços ao consumidor.

As relações estabelecidas na cadeia produtiva são capazes de gerar externalidade negativas ao consumidor e ao bem-estar social? Sim, claro! Essas externalidades geradas por relações comerciais podem ser analisadas de outras formas, com base nos instrumentos jurídicos/regulatórios que existem para essa finalidade. “Nem tudo que reluz é ouro”, assim como nem todas as condutas com potenciais reflexos na relação de consumo atraem a aplicação do guia.


[1] BRASIL. MJSP. SENACON. Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Disponível em: <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/arquivos/guia-precos-abusivos.pdf> Acesso em: 26.7.2022. 

[2] Veja-se, nesse sentido, o documentário “Inside Job”, vencedor do Oscar em 2011 que retrata, também, as atividades dos acadêmicos.

[3] Sobre o conceito de preço, veja-se: GABAN, Eduardo M.: “O preço reflete o valor de um bem ou serviço, sendo este o resultado da interação simultânea do comportamento de todos os agentes econômicos (ofertantes e demandantes) em uma economia livre, isto é, em um ambiente concorrencial. Nessa linha, se posicionam desde os clássicos como Adam Smith (1776) e Stuart Mill (1848), aos neoclássicos Vilfredo Pareto (1909), John Hicks (1939) e Samuelson (1945). Preço é um sinal de quão desejado e disponível é um determinado bem ou serviço em um dado momento e localidade. Quanto maior a procura e maiores as dificuldades de acesso, maiores são os preços. Quanto maior o ganho, mais agentes se dispõem a ofertar o bem ou serviço. Essa é a ideia subjacente ao conceito de equilíbrio geral, o qual resulta da constante e dinâmica interação dos agentes econômicos no mercado. Em sentido similar, podemos empregar o conceito de eficiência potencial de Pareto, ou mais conhecido como critério Kaldor-Hicks de bem-estar, em alusão aos seus precursores Nicholas Kaldor – Welfare Propositions in Economics and Interpersonal Comparisons of Utility – (1939) e John Hicks – The foundation of welfare economics – (1939).” In: Coronavírus, preços abusivos e a deterioração do Estado Democrático de Direito, Coluna da ABDE do JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/coronavirus-precos-abusivos-e-a-deterioracao-do-estado-democratico-de-direito-31032020 Acesso em: Julho de 2022.

[4] Sobre esse tema e a Lei da Liberdades Econômica, veja-se: DOMINGUES, Juliana Oliveira; SANTACRUZ, A; GABAN, E. M. (coord). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica – Comentários À Lei 13.874/2019 (2020). 1. Ed.Juspodvum. 2020, 640 p.

[5] BRASIL. MJSP. SENACON. Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Disponível em: <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/arquivos/guia-precos-abusivos.pdf> Acesso em: 26.7.2022. 

[6] Cf. JOTA. Economia. Disponível em https://www.jota.info/jotinhas/senacon-institui-comissao-para-tratar-do-aumento-de-preco-em-itens-da-cesta-basica-15092020 Acesso em 30 de julho 2022.

[7] Mais sobre o tema, veja-se: DOMINGUES, Juliana Oliveira; SILVA, B. F. M.  A liberdade econômica tem limites? – Reflexões sobre a aplicação do princípio da livre iniciativa e da livre concorrência. In. RODAS, João Grandino; ATTIÉ JUNIOR, Alfredo (Org.). 30 anos da Constituição Federal. São Paulo: CEDES, 2019, p. 279-300.

[8] Parece não haver divergência sobre o tema entre PRATES TEIXEIRA, C; e MATTOS, C. “Os problemas de se interferir nas estruturas de preços”: “[…] Para além do dilema entre o Código de Defesa do Consumidor e a lei de Liberdade Econômica, o conceito pouco objetivo do que seja aumento abusivo de preços ou arbitrário dos lucros colocam sérias dificuldades analíticas. Muitas vezes o que pode se entender que seria algo abusivo não é mais do que o reflexo natural de mudanças de oferta e demanda. Devemos lembrar que preços são sinais na economia que definem o comportamento do consumidor e, principalmente, das empresas.” Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/precos-problemas-interferir-estrutura-08102020. Acesso em 30 de julho de 2022. E, também, em um passado recente: […] liberdade econômica ou livre iniciativa significa a liberdade de atuar e de participar do mercado (produzindo, vendendo ou adquirindo bens e serviços, alienando sua força de trabalho). Dito de outro modo é um princípio que estabelece, a priori, uma liberdade econômica, que antecede a sua regulação pelo Estado. Cf. TIMM, L. B. “O direito fundamental à livre iniciativa (ou à liberdade econômica)”. In. JOTA, Coluna da ABDE, 2019. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/o-direito-fundamental-a-livre-iniciativa-ou-a-liberdade-economica-22052019> Acesso em julho de 2022.

[9] Cf. DOMINGUES, J. O.; GABAN, E. M. Direito Antitruste. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

[10] Vale a pena conferir todo Guia: “BRASIL. MJSP. SENACON. Guia Prático de Análise de Aumentos de Preços de Produtos e Serviços. Disponível em: <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/arquivos/guia-precos-abusivos.pdf> Acesso em: 26.7.2022. 

 


[1] […] “E, ainda assim, saibamos todos, os capiaus gostam muito de relações de efeito e causa, leviana e dogmaticamente inferidas.” Cf. ROSA, João Guimarães. Duelo. Sagarana. 7a ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.

* Juliana Oliveira Domingues. Professora Doutora de Direito Econômico da USP e Ex-Secretária Nacional do Consumidor. As informações dispostas neste conteúdo refletem exclusivamente a opinião acadêmica da Professora Juliana Oliveira Domingues.

O Acordo de Livre Comércio entre MERCOSUL e Singapura: Um importante avanço na aproximação com os países asiáticos

Fernanda Manzano Sayeg

No dia 20 de julho de 2022, os Ministros das Relações Exteriores e da Economia dos Estados Membros do MERCOSUL e o Ministro do Comércio e Indústria de Singapura anunciaram a conclusão das negociações do acordo de livre comércio entre o bloco sul-americano e o país asiático, que vinha sendo negociado desde 2019. O acordo deve ser assinado até o fim do presente ano e entrará em vigor após a aprovação por todos os signatários.

Trata-se do primeiro acordo de livre comércio entre o MERCOSUL e um país do sudeste asiático. Atualmente, o continente asiático apresenta as maiores taxas de crescimento econômico e populacional do mundo, bem como um altíssimo nível de integração entre as economias regionais. 

A celebração do acordo comercial com o país asiático é estratégica do ponto de vista econômico. Singapura é uma ilha e um dos principais entrepostos comerciais do planeta, concentrando o fluxo comercial para o Sudeste Asiático. A economia do país tem sido tradicionalmente caracterizada por um robusto crescimento, inflação moderada, amplas reservas fiscais e monetárias, estabilidade financeira, forte posição externa e alto grau de abertura ao comércio e investimento internacionais. Singapura é um país de renda alta e com grande envolvimento no comércio internacional de bens e serviços, ocupando o 10º e 12º lugar no ranking de exportações e importações mundiais de bens e serviços. Com relação a investimentos estrangeiros diretos, o país do sudeste asiático é o 3º maior destino de investimentos estrangeiros e figura na lista como um dos principais investidores no mundo.

Atualmente, Singapura é o segundo principal parceiro comercial no Brasil na Ásia – atrás apenas da China – e o sexto maior destino das exportações brasileiras. A corrente de comércio de bens entre Brasil e Singapura totalizou US$ 6,7 bilhões em 2021 e, apenas em junho de 2022, o Brasil vendeu US$ 939,36 milhões para a ilha asiática, o equivalente a 2,88% do total exportado pelo país. O acordo com Singapura deverá aumentar ainda mais as exportações do MERCOSUL para o país asiático. Estimativas do Ministério da Economia demonstram que o acordo de livre comércio levará a um incremento nas exportações brasileiras de US$ 500 milhões por ano.

Justamente por ser um dos principais entrepostos comerciais do planeta, Singapura é parte de diversos acordos de livre comércio. O país é parte de 27 acordos de livre comércio, dentre os quais a Parceria Econômica Abrangente (RCEP) e Parceria Transpacífica (CPTPP) — que representam juntos cerca de 45% do PIB mundial. Tais acordos são caracterizados por uma alta ambição nas reduções tarifárias, em muitos casos com eliminação de tarifas sobre quase 100% dos bens comercializados entre as partes, bem como por compromissos robustos em temas não-tarifários, entre os quais propriedade intelectual, serviços e compras governamentais. Em razão dos referidos acordos comerciais, hoje Singapura aplica tarifa de 0% sobre todo o universo tarifário, exceto para duas categorias de produtos de cervejas de malte.

Ou seja, um acordo de livre comércio entre o MERCOSUL e Singapura não poderia ser um acordo substancialmente distinto dos 27 acordos de livre comércio celebrados pelo país asiático, que sempre esteve na vanguarda em relação a esse tema.

De fato, o acordo celebrado entre o bloco sul-americano e a ilha asiática é moderno, abrangente e inovador. Entre os temas abrangidos pelo acordo estão regras sobre comércio de bens, regras de origem, facilitação de comércio e cooperação aduaneira, barreiras técnicas ao comércio (TBT), medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), micro e pequenas empresas, serviços, investimentos, propriedade intelectual, compras governamentais, comércio eletrônico, defesa comercial e solução de controvérsias. Na área de investimentos, o acordo estabelece uma estrutura de governança que estimula a cooperação e a facilitação de investimentos e conta com elementos que favorecem a proteção a investimentos.

A aproximação comercial com a Ásia deve continuar nos próximos anos. Atualmente, o MERCOSUL mantém negociações comerciais com mais dois países situados na Ásia, a saber: Coreia do Sul e Líbano. Também existem mandatos negociadores para acordos de livre comércio com Vietnã e Indonésia.  De acordo com estimativas da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia, se concluídas, as negociações com Coreia do Sul, Indonésia, Vietnã e Singapura trarão um aumento no PIB brasileiro de R$ 502 bilhões em termos acumulados até 2040, além de impactos positivos nos investimentos, na corrente de comércio, na massa salarial e da queda nos preços.
Portanto, o acordo comercial com Singapura representa um importante primeiro passo em busca de maior inserção internacional da economia brasileira, com o estreitamento das relações com uma das regiões mais dinâmicas do mundo, o que pode resultar em diversões benefícios econômicos, incluindo o aumento das exportações para essa região e a inclusão de empresas sul-americanas nas cadeias globais de valor.

ANPD, uma autarquia especial para tratar de bens especiais

Eduardo Molan Gaban

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), durante seus quase 2 anos de vigência, já vem sendo matéria de diversos casos que tramitam pelo Poder Judiciário. Este, por sua vez, assume um papel relevante no sentido de direcionar a interpretação e aplicação desta recente lei.

Como é natural para as legislações recém-criadas/vigentes, é a experimentação em casos concretos que possibilita que sejam delineados os papéis dos atores envolvidos, os limites de sua aplicação e a fundamentação necessária para tanto.

Nesse sentido, podemos observar uma interessante decisão recente que nos ensina várias lições em alguns pontos cruciais da LGPD[1]: (i) a exclusão de empresas de pesquisa do conceito de instituição de pesquisa previsto na lei, por possuírem caráter lucrativo; (ii) a existência de violação da LGPD nas pesquisas de campo realizadas com dados sem o consentimento do titular; (iii) a aplicação concreta da responsabilidade solidária do operador.

Na aludida decisão, foi confirmada a condenação da Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda. e da WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. pela realização de pesquisa de mercado contendo informações pessoais e dados sensíveis sem o consentimento dos titulares.

Segundo o Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal, autor da ação, este foi surpreendido com diversas indagações dos sindicalizados acerca de uma pesquisa de mercado enviada por mensagem de texto e correio eletrônico. Diante de tais indagações, a entidade procurou esclarecer que não contratou qualquer empresa para realização da pesquisa ou forneceu acesso ao banco de dados interno do sindicato, e que conhece o caráter sigiloso das informações pessoais dos sindicalizados, tendo ocorrido o acesso sem sua anuência ou seu conhecimento.

Em resposta às acusações, a WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. relatou que a parceira Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda. deu início a pesquisa de sondagem de mercado com o objetivo de implementar campanha eleitoral para a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal no triênio 2021-2024, conforme informações disponíveis no sítio eletrônico do sindicato. Afirmou, ainda, que utilizou de banco de dados próprio, construído de forma lícita a partir de realização de outros trabalhos na área de pesquisa e de realização de campanhas eleitorais.

A Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda., por fim, apresentou o argumento de que foi contratada pela WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. com a finalidade de realizar a pesquisa de sondagem de mercado para as eleições no triênio 2021-2024 e que não houve utilização dolosa das informações constantes no referido banco de dados. Destacou que a responsabilidade deve recair exclusivamente sobre WHD Pesquisa e Estratégia Ltda., que a contratou, conduziu o processo e forneceu o banco de dados.

Após análise de todas as alegações, o Tribunal pontuou que a WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. não se insere no conceito previsto no art. 7º, inc. IV, da Lei n. 13.709/2018[2], que disciplina a regularidade da obtenção dos dados, uma vez que possui finalidade lucrativa e seu foco é comercial.

Da mesma forma, concluiu o Tribunal que, diante da falta de consentimento do titular para o tratamento de seus dados pessoais, fica caracterizado o seu uso irregular, conforme a LGPD. E neste ponto, o Relator reiterou em seu voto a condenação solidária de ambas as empresas, atuantes como agentes de tratamento de dados, com fundamento no artigo 42, § 1º, I e II, da LGPD.

Como pontuou o voto condutor do Relator, “O controlador deve demonstrar finalidade legítima a justificar o tratamento dos dados já existentes, visto que a disponibilização de dados pessoais pode causar lesão irreparável à intimidade e ao sigilo da vida privada dos envolvidos. O fundamento, no caso, para a utilização dos referidos dados está na implementação de proposta comercial para campanha eleitoral a se contrapor ao direito à privacidade e à inviolabilidade da intimidade dos filiados que tiveram seus dados manipulados”.

Ao final, assinalou a possibilidade de direito de regresso oportunamente, afirmando que “O agente de tratamento de dados poderá pleitear o ressarcimento de sua condenação em ação regressiva quando demonstrar que não realizou o tratamento de dados pessoais em questão ou se realizou, não houve violação à legislação regente, ou ainda, se demonstrar que a lesão decorre de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro”.

Trata-se um importante julgamento para balizar os limites da responsabilização solidária do operador do dado, bem como para traçar uma definição mais linear sobre as hipóteses de legitimidade do tratamento do dado previstas na lei.

Agora, esse tipo de tema, bem como tantos outros temas que ainda serão melhor sedimentados com a prática, passarão a ser uniformizados de maneira mais precisa pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), na qualidade de autarquia de natureza especial.

Em 13 de junho de 2022, foi publicada a Medida Provisória nº 1.124, editada pelo Presidente da República, a qual foi a responsável pela transformação da ANPD em uma autarquia de natureza especial[3]. Até então, a natureza jurídica da ANPD era de “órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República”.

Referida modificação já estava prevista na redação anterior do artigo 55-A, § 1º, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)[4], que dispunha sobre a natureza transitória da natureza jurídica da ANPD como órgão da presidência.

A Medida Provisória prevê, ainda, a necessidade de modificação da Estrutura Regimental da ANPD para que se adeque à sua nova característica de autarquia de natureza especial. Porém, até que seja alterada, a MP dispõe que a Estrutura Regimental atual permanece vigente e aplicável.

Na prática, a ANPD não mais se subordina hierarquicamente à Presidência, e ganha maior grau de autonomia técnica e decisória, assumindo personalidade jurídica equivalente às das agências reguladoras, como a Anvisa, a Anatel e a Aneel[5]. A Autoridade, a partir de agora, atuará de forma descentralizada nas suas atividades de controle e fiscalização, com autonomia inclusive financeira.

Além disso, com a nova Medida Provisória nº 1.124, é ampliada a capacidade processual do Órgão perante o Poder Judiciário na defesa do direito à proteção dos dados pessoais, direito esse elevado ao patamar constitucional (Emenda Constitucional nº 115/2022[6]).

Isso porque, antes da referida Medida Provisória, a ANPD não se qualificava como uma pessoa jurídica de direito público interno, pois era um órgão da administração pública federal integrante da Presidência da República, fora do rol das pessoas jurídicas de direito público interno do artigo 41 do Código Civil. Além disso, detinha apenas um órgão de assessoramento jurídico próprio.

Agora, qualificada como uma autarquia, a ANPD ganha a qualidade de pessoa jurídica de direito público interno (artigo 41, IV, do Código Civil) e uma Procuradoria especializada, assim como ocorre com outras autarquias, como é o caso do CADE.

O efeito concreto dessas mudanças é a ampliação de sua capacidade processual para promover ações judiciais em matéria de proteção de dados, como medidas cautelares (p. ex.,busca e apreensão e suspensão de atividades de tratamento de dados pessoais), execuções e pedidos de cumprimento de suas sanções administrativas contra as pessoas punidas em seus processos sancionadores.

A ANPD, como autarquia de natureza especial, terá maior independência em relação ao Poder Executivo, e expertise para fixar outras interpretações em matéria de proteção de dados, seja em seus julgamentos de processos administrativos sancionadores ou até mesmo em sua atuação perante o Poder Judiciário.

A mencionada Medida Provisória ainda deve ser aprovada pelo Congresso Nacional para que haja sua conversão em lei. Até lá, todas essas inovações trazidas pela Medida Provisória, com inquestionáveis ganhos à proteção de dados pessoais, continuarão em vigor.


[1] Apelação Cível nº 0709580-09.2021.8.07.0001, julgada pela 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.

[2] Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:

IV – para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais;

[3]  Art. 1º. Fica a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD transformada em autarquia de natureza especial, mantidas a estrutura organizacional e as competências e observados os demais dispositivos da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018.

[4] Art 55-A. Fica criada, sem aumento de despesa, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República.

§ 1º. A natureza jurídica da ANPD é transitória e poderá ser transformada pelo Poder Executivo em entidade da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada à Presidência da República.

[5] As agências reguladoras são previstas na Plataforma do Governo, cujo acesso é disponível em https://www.gov.br/ouvidorias/pt-br/cidadao/lista-de-ouvidorias/agencias_reguladoras.

[6] Nesse sentido, veja-se: https://webadvocacy.com.br/2022/03/17/protecao-e-tratamento-de-dados-pessoais-como-direito-fundamental-pec-17-2019-e-a-defesa-do-consumidor/

O metaverso e o metrô da linha 743:  o dia em que captar os pensamentos e sentimentos virou modelo de negócio das big techs

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

O que é o metaverso? Muito tem se falado nessa expressão, sobretudo, após Mark Zuckerberg ter anunciado em 28/10/2021 que o Facebook, o Instagram e o WhatsApp passariam a ser chamados de “Meta”[1] com o objetivo de lincar os produtos oferecidos nessas redes sociais a uma nova tecnologia que pretende promover a convergência entre uma realidade física virtualmente aprimorada e um espaço virtual fisicamente persistente, incluindo a soma de todos os mundos virtuais, realidade aumentada e Internet.[2]

A literatura registra que o termo “metaverso” foi idealizado por Neal Stephenson em um romance chamado Snow Crash em 1992, onde o autor se referia a um mundo virtual 3D habitado por avatares de pessoas reais. Ernest Cline, ao escrever Ready Player One, em 2011, igualmente tratou desse mesmo fenômeno. Etimologicamente, a palavra “metaverso” é a junção do prefixo “meta” que significa “além” e a palavra “universo”. Até então estávamos no plano da ficção científica.

No entanto, produtos desenvolvidos com tecnologia inspirada no metaverso já estão disponíveis há cerca de duas décadas no mundo e vem ganhando, paulatinamente, mercado, com os jogos on-line que combinam plataforma de relacionamento com interação entre pessoas e ambientes digitais imersivos, como o Habbo[3] e Club Penguin[4].

Registre-se que outras tecnologias mais recentes como a dos jogos GTA RP Cidade Alta ou PK XD, também disponíveis para celulares Android e Iphone (IOS), vem ganhando ainda mais mercado. O GTA RP, segundo especialistas, utiliza a técnica Roleplay que quer dizer “interpretação de personagem”, onde o jogador tem a possibilidade de criar uma história e fazer um tipo de simulação de vida, ou seja, se cria um personagem avatar que interage com outros personagens avatares, no mundo digital, por meio de pessoas reais.[5] Já o PK XD[6], muito direcionado ao público infantil e adolescente, inicialmente criado no âmbito da subsidiária PlayKids, rapidamente, diante de seu sucesso, deu origem a criação do estúdio de games da empresa Afterverse. A essência é a mesma, onde se cria um avatar que pode realizar diversas atividades e interagir ao mesmo tempo com outros jogadores por meio de um chat, mesclando o ambiente real e o virtual em uma única dimensão.  

Até então, as tecnologias de interação do mundo virtual e do mundo real estavam restritas aos games, mas diante do sucesso com o público e dos vultuosos lucros que geraram, a indústria já começou a desenvolver produtos tecnológicos diferenciados sob a mesma concepção tecnológica unindo o real e o virtual em uma única dimensão.

Um dos produtos que está em alta é o chamado “óculos do Facebook”, uma parceria entre a Ray Ban e o Facebook chamado de Ray-Ban Stories Smart Glasses que mescla a função precípua dos óculos de sol e agrega as funções de vídeo câmera e áudio, permitindo tirar fotos, gravar vídeos, ouvir músicas e compartilhar conteúdos pela mídia social.[7]

Há outros produtos que aderem tais tecnologias que estão sendo desenvolvidas para serem disponibilizadas em veículos, permitindo ao passageiro uma experiência de imersão muito maior que apenas a visual, despertando novos sentidos. A Holoride[8] é uma empresa que desenvolve tecnologias, como a XR, que permite o feedback físico em tempo real do veículo, fazendo com que você passe a sentir o que vê. Tais tecnologias já estão disponíveis em automóveis da marca Audi[9] e Porsche[10], por exemplo. Outras grandes empresas como a Neuralink e a Minlab desenvolvem tecnologias voltadas para o conhecimento (ilimitado) do cérebro, para entendê-lo em uma teia de comunicação que permite que você se mova, pense, sinta e perceba[11], para produzir uma interface com o cérebro, empurrando os limites da engenharia neural[12], além de promover engenharias junto ao cérebro com o objetivo de melhorar a vida[13]

Diante de tais exemplos, é possível afirmar que o Metaverso já é uma realidade incontornável. No entanto, nesse momento histórico, essa tecnologia ainda não foi capaz de alterar o modo de viver da humanidade. Ao que tudo indica, o Metaverso não será um plus da internet. Será uma outra dimensão real/virtual unívoca e pretende mudar a forma da humanidade se relacionar em todos os seus aspectos.

Mudanças paradigmáticas como essas ocorrem de tempos em tempos. Como exemplos, a invenção da escrita pelos povos sumérios na antiga civilização mesopotâmica (atual Iraque) por volta de 4.000 a.C; a invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutenberg no século XV, por volta de 1439 e a invenção da internet, no pós-guerra fria, com todos os desenvolvimentos tecnológicos que permitiram a Tim Berners-Lee criar a World Wide Web em 1992.

A tecnologia, de fato, encanta, seduz. É sempre a possibilidade de nos encontrarmos com o novo, com a descoberta, vivenciar novas emoções, experiências, facilidades e sensibilidades. A tecnologia representa superação e inteligência, expressão da criatividade do ser humano e acaba transformando em realidade a capacidade do ser humano produzir, inventar, proporcionar experiências ainda não vividas pela humanidade, inovar, expressar-se, utilizar sua inteligência para produzir o “novo”.

No entanto, a pergunta que fica é: o que está por trás dessas tecnologias do metaverso? Qual é a real intenção desse modelo de negócio? Shoshana Zuboff identificou que, no caso da internet, o modelo de negócios gira em torno da obtenção de superávit comportamental para ganhos alheios. Segundo a Autora,

“não somos mais os sujeitos da realização de valor. Tampouco somos, conforme alguns insistem, o “produto” das vendas do Google. Em vez disso, somos os objetos dos quais as matérias-primas são extraídas e expropriadas para as fábricas de predição do Google. Predições sobre o nosso comportamento são os produtos do Google, e são vendidos aos verdadeiros clientes da empresa, mas não a nós. Nós somos os meios para os fins dos outros.”[14]

Com o metaverso, o modelo de negócios que está por trás dessa tecnologia é a obtenção de superávit de pensamentos e sentimentos para ganhos alheios.  Assim, a obtenção dos “comportamentos” humanos está para o modelo de negócios da internet, como a obtenção dos “pensamentos e sentimentos” humanos está para o modelo de negócios do metaverso. E é aqui que surgem as significativas preocupações com o que está por vir e quais os impactos da adoção desse modelo de negócios para os direitos humanos fundamentais.

Raul Seixas, músico brasileiro, se estivesse vivo poderia não acreditar que, ainda que sob outro viés, teria sido um profeta da humanidade ao escrever a letra da música “O metrô da linha 743” e prever que o preço das mercadorias poderia variar conforme o nível mental do consumidor. Se o que interessa são os pensamentos e não os documentos e se as tecnologias do metaverso têm por propósito conhecer não mais só nossos comportamentos, mas também nossos pensamentos e sentimentos, é hora de se parar e avaliar se os Estados não precisam colocar limites ao desenvolvimento dessas tecnologias, por mais encantadoras que sejam.

Muitos questionamentos surgem dessas reflexões: Quais mudanças sociais, econômicas e jurídicas poderão advir da adoção em massa dessa nova tecnologia? Como será a humanidade ciborgue? O que diferencia as sociedades que pensam mais das que pensam menos? Como saber o que você pensa pode alterar a concentração econômica, o preço do arroz e do feijão, as regras de custo da oferta e da demanda e a lógica dos mercados? O que é o pensamento? O que pensa o pensamento?[15]

Pensar é um exercício. Pensar é refletir, é dar tempo de considerar opiniões em contrário, é parar, é considerar a opinião do outro, é, também, poder mudar de opinião. Pensar é um ato interno, privativo, solitário e só é compartilhado quando da vontade do pensador. Até aqui, o pensar faz parte da privacidade e da intimidade do ser humano.

Tecnologias que captam nossos pensamentos e sentimentos sem nossa permissão e usam tais informações contra o próprio ser humano,  como estratégia dos seus modelos de negócios, induzindo comportamentos (e porquê não pensamentos e sentimentos?) são aviltantes e é preciso que o desenvolvimento dessas tecnologias, se usadas como modelos de negócios, sejam “limitadas” para que a nossa cabeça “oca” não seja jogada no lixo da cozinha e nem nossos cérebros sejam comidos vivos à vinagrete por senhores alinhados, despertando ao nosso último pedaço, antes de ser engolido, o pensamento de “quem seria esse desgraçado dono dessa zorra toda”.

Lutemos, pois, enquanto há tempo, contra o abuso de poder econômico e imponhamos limites às tecnologias que possam violar direitos fundamentais do ser humano ao captarem nossos comportamentos, pensamentos e sentimentos, sem nosso consentimento. Chega de ganharmos espelhos.  


[1] https://tecnoblog.net/noticias/2021/10/28/facebook-muda-de-nome-para-meta-por-causa-do-metaverso/ disponível em 19/07/2022.

[2] https://tecnoblog.net/responde/entenda-o-que-e-metaverso-a-realidade-do-futuro/ disponível em 17/07/2022.

[3] https://www.habbo.com.br/ disponível em 20/07/2022.

[4] https://newcp.net/pt/ disponível em 20/07/2022.

[5] https://mktesports.com.br/blog/games/o-que-e-gta-rp/ disponível em 20/07/2022.

[6] https://canaltech.com.br/mercado/pk-xd-e-apenas-para-criancas-a-estrategia-da-afterverse-para-o-jogo-vai-alem-177960/

[7] Prontos para óculos inteligentes? Torne seus os Ray-Ban Stories, a última novidade em termos de tecnologia vestível. Nossos óculos de grau e de sol inteligentes, com videocâmara e áudio, combinam a lendária tecnologia de Facebook com o estilo icônico Ray-Ban. Com os óculos Ray-Ban X Facebook, você pode tirar fotos, gravar vídeos, ouvir músicas e fazer chamadas, além de compartilhar conteúdos diretamente nos seus canais de mídia social. Escolha seus óculos tecnológicos Ray-Ban entre 3 modelos atemporais e 20 combinações de cores de lentes e armação.[7] https://www.ray-ban.com/brazil/ray-ban-stories?cid=IN-SGA_210607-4.BR-RayBan-PT-NB-DSATargetUrl&gclid=EAIaIQobChMIz4_pt9uH-QIVGEJIAB1c3A1XEAAYASAAEgJ9oPD_BwE&gclsrc=aw.ds disponível em 20/07/2022.

[8] https://www.holoride.com/ disponível em 20/07/2022.

[9] https://www.audi.com/en/innovation/development/holoride-virtual-reality-meets-the-real-world.html disponível em 20/07/2022.

[10] https://newsroom.porsche.com/en/2022/innovation/porsche-entertainment-technology-startup-holoride-location-based-virtual-reality-lbvr-porsche-experience-center- pec-los-angeles-27561.html disponível em 20/07/2022.

[11] https://neuralink.com/science/ disponível em 20/07/2022.

[12] https://neuralink.com/approach/ disponível em 20/07/2022.

[13] https://neuralink.com/applications/ disponível em 20/07/2022.

[14] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução: George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 115.

[15] Em referência a Felipe Zenchet, professor de Filosofia do Direito na Universidade de Brasília.

Análise Inicial da Emenda Constitucional nº 125, de 14 de Julho de 2022, que instituiu o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional

Fabio Luiz Gomes & Thiago Tirolli

I – Critério temporal

Constata-se que o Art. 3º delimitou que a Emenda Constitucional entrou em vigor na data da publicação e fixou que a exigência da relevância aos recursos interpostos após a entrada em vigor da Emenda Constitucional, isto é, 14 de Julho de 2022.

Não restando dúvidas de que os recursos em trânsito no Superior Tribunal de Justiça não poderão ter como filtro de admissibilidade esta Emenda Constitucional.

II – Conceito de Relevância

Um dos desafios impostos pela Emenda Constitucional será estabelecer um conceito de “relevância”.

Estabelece o Art. 1º da Emenda Constitucional (acrescentou um § 2º ao Art. 105 da CRFB) que no Recurso Especial “o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso”.

Trata-se, nesse caso, de um reflexo claro da visão que o Superior Tribunal de Justiça possui de sua missão constitucional, de pacificar e dar a última palavra na aplicação da legislação federal, sem que funcione como verdadeira Corte de revisão.

Portanto, é fato constitutivo – decorrente do mandamento do próprio texto da emenda constitucional, ao dispor que o recorrente “deve” demonstrar a relevância – que a partir de 14 de Julho de 2022 o Recurso Especial traga em suas razões um tópico de admissibilidade recursal que fundamente o requisito da relevância das questões de direito infraconstitucional a ser demonstrado pelo recorrente.

Ao contrário do que ocorreu na regulamentação da transcendência dos Recursos de Revista direcionados ao TST, ocorrida em 2017 pela chamada “Reforma Trabalhista”, que define que o Tribunal analisará se a causa transcende aos interesses individuais – desobrigando o recorrente de trazer o tema como tópico recursal -, no presente caso o texto constitucional já prevê uma atuação positiva do recorrente.

Assim, a demonstração da relevância metaindividual, portanto, transcendente, deve fazer parte da petição recursal.

A negativa de trânsito ao Recurso Especial por conta da ausência de relevância apenas pode ocorrer pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente. Nesse caso, tratando-se de Resp, em regra o órgão julgador é uma das Turmas do STJ, compostas por 5 ministros. Assim, o não conhecimento do REsp, por esse motivo, apenas pode ocorrer pela manifestação de ao menos 4 Ministros.

Observa-se, contudo, que o próprio dispositivo utiliza o vocábulo “nos termos da lei”, parece que em uma interpretação mais açodada poder-se-ia considerar essa norma constitucional como sendo de eficácia limitada.

Contudo, ao se realizar uma interpretação sistemática constata-se que na verdade se trata de uma norma constitucional de eficácia contida, isto é, essa norma já possui a aplicabilidade direta e eficácia imediata, e se posteriormente houver uma norma infraconstitucional poderá restringir o seu alcance.

Posto isto, urge delimitar o alcance do que seja “relevância” para essa norma enquanto não houver a norma infraconstitucional restritiva.

De início, a própria norma traz previsões em que a relevância será presumida. Recursos Especiais  que envolvam matéria penal, improbidade administrativa e inelegibilidade não passam pelo filtro da relevância.

Ainda, o texto da EC nos aponta mais critérios: (i) Recursos especiais oriundos de causas cujo valor da causa seja superior a 500 salários mínimos; (ii) em que o acórdão afronte jurisprudência dominante do STJ; e (iii) demais casos previstos em Lei.

Tais critérios, que afastam a necessidade do Recurso Especial se sujeitar ao filtro da relevância, nos dão um direcionamento inicial em que casos teremos essa relevância “presumida”. Entretanto, decerto exigirão interpretação e discussão do próprio STJ para definir as especificidades de sua aplicação.

Por exemplo. Quando se fala que o valor da causa, é adequado considerar o valor apontado na inicial (ou em correção posterior) ou, em interpretação sistemática, deve-se considerar o proveito econômico da demanda e o seu potencial reflexo econômico? O tema é abordado com mais detalhamento no tópico adiante.

E mais. Não podemos apontar com segurança o que pode ser considerado jurisprudência dominante do STJ, pois se trata de conceito aberto. Seriam as decisões reiteradas de Turmas da Corte? Decisões chanceladas pela Corte Especial? Decisões vinculantes?

Por fim, sobre a presunção de relevância “nos termos da lei, poder-se-á fazer uma interpretação sistemática do termo “relevância” e por analogia se fixaria um critério terminológico, buscar-se-ia no requisito de repercussão geral nos recursos extraordinários[1], que também se utiliza o termo “relevância” para definição do que seja repercussão geral.

Portanto, a delimitação do conceito de “relevância”, enquanto não sobrevier a norma infraconstitucional restritiva, será relevante “do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa…”.

Tal se alinha com o desenho e atuação do Poder Judiciário brasileiro, em especial o STF que, por ser a Corte Suprema, em princípio, daria a última palavra sobre que temas entende haver transcendência dos interesses individuais.

Ou seja, uma causa em que o Supremo Tribunal Federal entendeu possuir Repercussão Geral, atrai a existência de transcendência para o Recurso e Revista trabalhista e assim deve ser para o Recurso Especial.

O STF assim já se manifestou, a exemplo da Rcl 38529 AgR-ED, em que estipulou que:

 “Nos termos da jurisprudência desta Corte, o óbice suscitado pelo Tribunal Superior do Trabalho à admissão do agravo de instrumento no recurso de revista (ausência de transcendência da matéria) está em descompasso com a premissa de que os julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal dos paradigmas referidos (Tema 246 e ADC 16) revelam a transcendência da questão debatida nos autos de origem.

Dessa desarmonia, resulta a usurpação da competência desta Suprema Corte, pela inadmissível obstrução da via recursal extraordinária”.

Portanto, adequado que na pendência de Lei que regule a EC, utilize-se os parâmetros de Repercussão Geral.

Em conclusão, os recursos especiais devem destacar um tópico que demonstrem a relevância recursal, apontando os casos em que a relevância seja presumida nos termos do próprio texto constitucional e enquanto não houver a norma restritiva, deverá ser uma causa meta-individual do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico.

E, ademais, como a EC trouxe conceitos abertos, cabe aos recorrentes iniciarem a discussão desses temas, em especial do que seria considerado, neste caso, jurisprudência dominante do STJ.

III – Valor da Causa

Em dois dispositivos o termo “valor da causa” é repetido:

  1. No primeiro faz parte do texto constitucional, fixando como causa relevante o consubstanciado no Art. 1º da Emenda Constitucional, que estabeleceu no rol exemplificativo, no § 3º, III do Art. 105 da Constituição: “ações cujo valor ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos.
  2. O segundo está disposto no Art. 2º da Emenda Constitucional: “ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do § 3º  do referido artigo.”

Em relação ao item 1, pode-se chegar às seguintes interpretações:

Uma primeira interpretação é a literal, de que não caberia recurso especial de causas que fossem inferiores a 500 (quinhentos) salários mínimos, porém, numa perspectiva interpretativa sistemática, não poderia infirmar tamanho impeditivo as causas inferiores a esse patamar, sob pena de contrariar diversos princípios constitucionais, dentre eles destacaríamos o do devido processo legal substantivo (due process of Law), afinal não se pode restringir a vida-patrimônio ou liberdade sem o devido processo, neste caso, nem uma lei, no caso uma emenda constitucional, poderiam fazê-lo.

No entanto, objetivamente, essa lei gera uma presunção de que nas causas superiores a esse valor poderia ser considerada relevante, com uma argumentação simplificada. Nesse diapasão, restaria simplificada a argumentação da relevância jurídica-social-econômica nas causas superiores a esse valor.

Ao passo que nas causas inferiores a esse valor, a parte recorrente deverá demonstrar de forma analítica-fundamentada a relevância jurídica.

Concluindo, as causas superiores a 500 (quinhentos) salários mínimos gozam de uma presunção relativa de que haja relevância jurídica, nas causas inferiores a esse valor, caberá às partes fazerem uma demonstração analítica da relevância jurídica de sua causa.

Já no item 2, inicialmente poderia se pensar que ao fixar o valor da causa com um valor inferior na petição inicial, no curso do processo ficar constatado o benefício econômico, poderia ser pleiteada a revisão do valor da causa em sede de recurso especial e com isso, se for superior a 500 (quinhentos) salários mínimos, poderia ser revista.

Contudo a Emenda Constitucional não se utilizou do conceito de benefício econômico, portanto, a atualização deverá ser versada do valor atribuído ao valor da causa.

IV – Jurisprudência dominante do STJ

O fato da emenda constitucional trazer o conceito aberto “Jurisprudência dominante” do STJ abre espaço para que o recorrente, utilizando-se da argumentação jurídica e retórica, classifique que o acórdão recorrido, de alguma forma, violou a jurisprudência dominante do STJ.

E a discussão é proveitosa e, ao nosso ver, decerto será parametrizada pelo STJ logo no início da aplicação do filtro de relevância nos Recursos Especiais.

A despeito da falta de definição, o Código de Processo Civil pode auxiliar em tal interpretação.

O artigo 489, § 1º, VI do CPC, ao falar das decisões que são consideradas não fundamentadas, inclui aquela que deixa de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte.

E sobre isso, o STJ já pôde se manifestar no sentido de que “A regra do art. 489, §1º, VI, do CPC/15, segundo a qual o juiz, para deixar de aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, deve demonstrar a existência de distinção ou de superação, somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos.”(REsp n. 1.892.941/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 1/6/2021, DJe de 8/6/2021.)

Portanto, é provável que o STJ, ao aplicar o filtro da relevância, considere que jurisprudência dominante seja apenas os precedentes qualificados e vinculantes que possui.

Não obstante, na visão dos produtores deste texto, para garantir o cumprimento do mister constitucional da Corte cidadã, jurisprudência dominante deve ser considerada aquela (i) reiterada nas turmas; (ii) oriunda da Corte Especial; ou (iii) consubstanciada em Súmula da jurisprudência da Corte.

Isso porque, a produção de precedentes qualificados no STJ pode não ocorrer na velocidade que os jurisdicionados necessitam, o que permitiria a interpretação descompassada da legislação federal pelos Tribunais Estaduais.

De toda forma, considera-se proveitoso o debate sobre o tema para ensejar a pacificação da questão desde logo.


[1]A regulamentação do § 3º do art. 102 da Carta Magna foi realizada pela Lei nº 11.418, de 2006, que inseriu os arts. 543-A e 543-B no Código de Processo Civil, e pela Emenda Regimental nº 21, de 2007, do Supremo Tribunal Federal (STF).


FABIO LUIZ GOMES. Advogado corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Mestre e Doutorando em Direito Público.

THIAGO TIROLLI. Advogado corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Especialista em Direito Processual Civil.

A Constituição em capítulos. Novas exigências para o Recurso Especial

Mauro Grinberg

Já se disse que a Constituição Federal é uma obra em capítulos. O último (até o momento em que este singelo artigo é escrito) é a Emenda Constitucional 125, de 14 de julho de 2022, que altera o art. 105 para introduzir o quesito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.

Estabelece o art. 105, III, “a”, que “compete ao Superior Tribunal de Justiça” “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e territórios, quando a decisão recorrida” “contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”.

Foi agora acrescentado, pela nova emenda, o § 2º: “No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento”.

Leonardo Carneiro da Cunha, em oportuno artigo, já nos adverte que a expressão “nos termos da lei” traz exigência: “O novo requisito de admissibilidade do recurso especial depende de regulamentação, pois o referido § 2º dispõe que o recorrente deve demonstrá-lo “nos termos da lei”, a exigir que haja disciplinamento legal”[1].

O que se vê é que a interposição de recurso especial com base na alínea “a”, acima referida, impõe a necessidade da demonstração de relevância (“nos termos da lei”), sendo que tal relevância pode, em tese, não ser conhecida pela maioria de 2/3 do órgão julgador. Até aqui temos um entendimento.

Mas a emenda acrescentou também o § 3º, que Leonardo Carneiro da Cunha trata como de “relevância automática”[2]: definindo em seus incisos os casos em que “haverá a relevância”: “ações penais”, “ações de improbidade administrativa”, “ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos”, “ações que possam gerar inelegibilidade”, “hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça” e “outras hipóteses previstas em lei”.

De início já se percebe que o legislador constitucional deixou aberta ao legislador ordinário a faculdade de acrescentar hipóteses de cabimento do recurso especial, no que parece ser uma alteração perigosa de competência, dando ao legislador ordinário o poder de, na prática, legislar constitucionalmente. Em linguagem mais clara, o legislador ordinário poder mudar a Constituição com quórum menor e procedimento mais simples. Mas há outra dúvida trazida pela nova emenda.

Tal dúvida é saber se o Superior Tribunal de Justiça (STJ) poderá negar seguimento a um recurso especial mesmo que se aplique um dos incisos do § 3º acima referido, como, por exemplo, se uma causa ultrapassa o valor de 500 salários mínimos – o que hoje resultaria no valor de R$ 660.000,00. Se o valor da causa for superior a este valor, pode o STJ ainda assim negar a relevância quando o novo texto constitucional diz que “haverá relevância” a esta hipótese? 

Em outras palavras, quando o novo texto constitucional diz que “haverá relevância” em determinadas hipóteses, ele parece, na leitura simples, ser determinante. E nem precisa de disciplinamento legal por ser de “relevância automática”. Então, a possibilidade de rejeição por 2/3 dos membros do órgão julgador parece ser destinada às demais hipóteses, que não estas previstas no § 3º acima referido. Isto porque a linguagem da emenda é determinante, indicando que, por exemplo, um recurso especial em uma causa cujo valor exceda 500 salários mínimos será necessariamente relevante. Assim, em um processo de valor superior a R$ 660.000,00, a demonstração de relevância é desnecessária porque o assunto é relevante por determinação constitucional.

Vale lembrar que o art. 2º da emenda permite que, nas causas iniciadas antes da sua entrada em vigor, a parte interessada altere o valor da causa. Aí existirá uma outra dúvida na hipótese do réu original da ação ser o recorrente pois o valor terá sido fixado pelo autor.

Aguardemos novos capítulos.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, advogado especializado em Direito Concorrencial e sócio fundador de Grinberg e Cordovil.


[1] “Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal”, Consultor Jurídico, 16/07/2022

[2] Artigo citado