Direito Constitucional

Lei que Institui o Programa Emprega + Mulheres

Vanessa Vilela Berbel

A parentalidade positiva está associada ao adequado desenvolvimento da saúde mental e física de crianças e adolescentes. Muitos aspectos estão envolvidos nesta relação entre pais, mães e prole. Chen, Y., Haines, J., Charlton, B.M. et al.(2019), em artigo publicado na Nature Human Behavior, identificaram que aspectos como maior autoridade dos responsáveis e jantares familiares regulares também associam-se a maior bem-estar emocional dos infantes, menos sintomas depressivos, menor risco de comer demais e equilíbrio do comportamento sexual.

            A Recomendação Rec(2006)19, editada pelo Comitê Ministerial do Conselho Europeu  em de 13 de dezembro de 2019, traça diretrizes para apoio à parentalidade positiva e toma como premissa o papel vital do Poder Público no apoio a famílias em geral e, particularmente, aos que realizam a parentalidade, por meio de ações como transferências  de renda e tributação, medidas para o equilíbrio entre trabalho e família, cuidados na infância, dentre outras.

            Os Estados não estão sozinhos nesta missão. Em 2011, a ONU lançou o guia Guiding Principles on Business and Human Rights: Implementing the United Nations Protect, Respect and RemedyFramework,  aprovado pela Resolução 17/4, de 16 de Junho de 2011 do Conselho de Direitos Humanos.Nele há, claramente, a perspectiva de que Estados e empresas devem conjugar esforços para a garantia da efetividade dos direitos humanos. Ponto importante, os Estados não são responsáveis per se pelas violações aos direitos humanos praticadas por atores privados, mas desrespeitam suas obrigações de direito internacional quando não tomam as medidas apropriadas para prevenir, investigar, punir e reparar a violação por aqueles praticada.

            Mas, como se sabe, as sanções não são as principais garantias de efetividade do direito internacional, cuja regência também se opera por métodos de cooperação, reciprocidade e incentivos pecuniários e não pecuniários. Também assim se dá com  a implementação de políticas públicas de direitos humanos no âmbito interno, cuja efetividade depende de muitas outras condições além da punição a violadores.

            Seguindo a lição de John Brigham e Don Brown (1980), políticas públicas podem ter por base medidas de incentivos e punições. Punições são sanções que resultam em consequências negativas, impostas por uma autoridade legalmente instituída, ante o descumprimento da lei; por sua vez, incentivos incluem subsídios, isenções e medidas facilitadoras que procuram induzir uma mudança “voluntária” nos comportamentos.

            Pois bem, estando a parentalidade positiva no rol dos direitos humanos, cabe também ao Poder Público incentivá-la e, no que couber, coibir práticas dos atores privados que a violem. Mas, mais do que punições, cabe ao Estado implementar políticas de incentivo ao estabelecimento das condições mínimas ao exercício do comportamento parental baseado no melhor interesse da criança. Como fazer? A opção recentemente adotada pelo Estado brasileiro parece passar por medidas de incentivo não financeiro e de caráter reputacional.

            Caminhando neste sentido, a Secretaria Nacional da Família, por meio da Portaria nº 2.904, de 13 de novembro de 2020, lançou o programa Equilíbrio Trabalho-Família, com disposições que visam a promover informação, sensibilização e formação em temáticas relacionadas ao tema. Apesar das boas intenções, a normativa se apoiava em ações de fomento não financeiro, como a publicação da lista de melhores práticas em Portaria do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e a concessão de Selo Empresa Amiga da Família (SEAF), de pouca eficácia.

            Mais recentemente houve também o advento da Lei 14.457/2022, Instituidora do Programa Emprega + Mulheres, resultante da conversão o da Medida Provisória 1.116 de 2022, com algumas modificações pontuais. A Lei diz criar programas de apoio à parentalidade na primeira infância, por meio da flexibilização do regime de trabalho, incentivo à qualificação de mulheres em áreas estratégicas para a ascensão profissional e suposto apoio ao retorno ao trabalho das mulheres após o término da licença-maternidade; neste último caso, creio que ao invés de incentivo ao retorno ao trabalho seria, o certo, dizer desestimulo ao desligamento de mulheres após o término do afastamento legal. Vejamos:

            A Lei 14.457/2022 viabiliza a implantação do reembolso-creche, de que trata a alínea s” do § 9º do art. 28 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, destinado (i) ao pagamento de creche ou de pré-escola de livre escolha da empregada ou do empregado ou (ii) ao ressarcimento de gastos com outra modalidade de prestação de serviços de mesma natureza, comprovadas as despesas realizadas. Neste caso, a adesão à medida promove a dispensa dos empregadores da instalação de local apropriado para a guarda e a assistência de filhos de empregadas no período da amamentação e o benefício concedido não será considerado de natureza salarial, não se incorporando à remuneração para todos os efeitos e não sendo incluído na base de cálculo do FGTS. 

            A lei também prevê medidas de flexibilização da jornada de trabalho e prioridade na alocação de vagas para o teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho a distância, quando a atividade comportar, aos empregados e empregadas que possuam filho, enteado ou criança sob guarda judicial com até 6 (seis) anos de idade ou com deficiência, sem limite de idade.

            Dentre as medidas adotadas pela lei, está também a polêmica possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, prevista nos artigos 15 e 17, as quais consistem, respectivamente, (i) na suspensão de contrato trabalho da empregada para qualificação profissional e (ii) do empregado com filho, cuja mãe tenha encerrado o período da licença-maternidade, para apoiar o retorno ao trabalho de sua esposa ou companheira. Nestas hipóteses, a suspensão poderá ser formalizada por meio de simples acordo individual e, durante o período da suspensão, faculta-se ao empregador pagar ao empregado e à empregada uma ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial, como incremento à bolsa de qualificação profissional de que trata o art. 2º-A da Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990.

            Algumas impropriedades das disposições da Medida Provisória 1.116 de 2022 foram corrigidas. Agora, não mais se faculta ao empregador decidir sobre a suspensão ou não do contrato de trabalho da empregada para alocação em programa de qualificação, pois o ato depende de requisição formal da interessada. Outrossim, fato antes não previsto na MP, a Lei estipulou penalidade ao empregador se ocorrer a dispensa do empregado ou empregada no transcurso do período de suspensão ou nos 6 (seis) meses subsequentes ao seu retorno ao trabalho, impondo o direito, além das parcelas indenizatórias previstas na legislação, à percepção de multa a ser estabelecida em convenção ou em acordo coletivo, que será de, no mínimo, 100% (cem por cento) sobre o valor da última remuneração mensal anterior à suspensão do contrato de trabalho.

            A recentíssima lei demandará tempo para que possamos apurar se, de fato, estabeleceu efeitos positivos à empregabilidade feminina e à realização da parentalidade positiva por ambos os genitores ou outros socialmente imbuídos deste importante dever de cuidado e afetividade.

            Contudo, devemos lembrar que, para que os atores privados sejam de fato guiados pelas disposições da Lei 14.457/2022, várias condições são necessárias e baseiam-se nos quatro passos já traçados pelo guia da OCDE denominado Reducing the risk of policy failure: challenges for regulador compliance.

            A primeira condição para a conformidade legislativa é que o grupo-alvo deve estar ciente da regra e compreendê-la. Em segundo lugar, o grupo-alvo deve estar disposto a cumprir e, nisso, incentivos econômicos podem ser essenciais, os quais não vislumbramos que tenham sido satisfatoriamente previstos na lei. A terceira condição é que o grupo-alvo deve ser efetivamente capaz de cumpri-las, sendo indispensável a ciência de seus termos e o suporte técnico para sua implantação, fato ainda muito incipiente ante a pouca divulgação das disposições legais.

            Esperamos que, em colunas vindouras, os dados possam nos apontar a efetividade da lei. Por ora, nos cabe  divulgar sua existência e estimular o engajamento dos atores.

Referências

BRASIL. LEI Nº 14.457, DE 21 DE SETEMBRO DE 2022. Institui o Programa Emprega + Mulheres; e altera a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nºs 11.770, de 9 de setembro de 2008, 13.999, de 18 de maio de 2020, e 12.513, de 26 de outubro de 2011.

BRASIL. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.116, DE 4 DE MAIO DE 2022. Institui o Programa Emprega + Mulheres e Jovens e altera a Lei nº 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.

BRIGHAM, John e BROWN, Don W. Policy implementation: penalties or incentives? Beverly Hills, Calif. : Sage Publications, 1980.

Chen, Y., Haines, J., Charlton, B.M. et al. Positive parenting improves multiple aspects of health and well-being in young adulthood. Nat Hum Behav 3, 684–691 (2019). https://doi.org/10.1038/s41562-019-0602-x

OCDE – Organisation for Economic Co-operation and Development. REDUCING THE RISK OF POLICY FAILURE: CHALLENGES FOR REGULATORY COMPLIANCE. 2000. Disponível em: https://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/1910833.pdf

A robotização do Poder Judiciário brasileiro (Justiça 4.0) e o par eficiência e celeridade: o Juiz de Lata e os perigos da algoritmização da função de julgar

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

O Poder Judiciário brasileiro contava em 31.07.2022 com 75.855.539 milhões de processos em tramitação[1], segundo números do Relatório Justiça em Números de 2022 (Ano-Base 2021).[2] A busca por uma solução que contemple o par “eficiência” e “celeridade” no julgamento das lides urge e, nessa angústia, muitos apostam todas as suas fichas na algoritmização do Poder Judiciário.

Não parece haver dúvidas de que essa algoritmização faz parte da inclusão do Poder Judiciário na (nova) Sociedade da Informação e é fato que já vem auxiliando para a “celeridade” da prestação jurisdicional, na medida em que os algoritmos, treinados para determinados fins, fazem o trabalho de modo mais ágil que o ser humano.

No entanto, algoritmização do Poder Judiciário entregará a eficiência e a verdadeira prestação jurisdicional? Esse é o questionamento que esse artigo chama à atenção, além do perigo da algoritmização de toda e qualquer atividade desenvolvida pelo Poder Judiciário.

Para responder a esse questionamento, dividimos o artigo em três partes: (i) O estado atual da algoritmização do Poder Judiciário; (ii) Os algoritmos; (iii) O Juiz de Lata e o perigo da robotização do Poder Judiciário.

(i) O estado atual da algoritmização do Poder Judiciário

A algoritmização do Poder Judiciário caminha a passos largos. Programa criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – Justiça 4.0 – anuncia que “[o] Programa Justiça 4.0 torna sistema judiciário brasileiro da sociedade ao disponibilizar novas tecnologias de inteligência artificial”, “impulsiona a transformação digital do Judiciário para garantir serviços mais rápidos, eficazes e acessíveis”, além de “promover soluções digitais colaborativas que automatizam as atividades dos tribunais, otimizam o trabalho dos magistrados, servidores e advogados e garantem, assim, mais produtividade, celeridade, governança e transparência dos processos”, atuando em 4 eixos:

  • Inovação e Tecnologia;
  • Prevenção e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro e recuperação de ativos;
  • Gestão de informação e políticas judiciárias; e
  • Fortalecimento de capacidades institucionais do CNJ.[3]

O sítio eletrônico do CNJ também informa que há outras ações em andamento como: (i) Plataforma Digital do Poder Judiciário; (ii) Plataforma Sinapses/Inteligência Artificial; (iii) Plataforma Codex; (iv) Balcão Virtual; (v) Núcleos de Justiça 4.0; (vi) Juízo 100% Digital; (vii) Painel das Resoluções; e (viii) Domicílio Judicial Eletrônico.

O Segundo Relatório do CNJ elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) tratou sobre as “Tecnologias Aplicadas à Gestão de Conflitos no Poder Judiciário com ênfase no uso da inteligência artificial”[4] quando em 2020, já contava com 64 projetos de Inteligência Artificial em funcionamento ou em processo de implantação em 47 tribunais do país, além da Plataforma Sinapses do CNJ, sendo entendidas, pelo próprio CNJ, como um dos instrumentos mais importantes de gestão do Poder Judiciário, uma vez que implica em racionalizar recursos, mão de obra e atividades, diante de uma demanda cada vez mais crescente.[5]

Artigo escrito pelo Ministro Luis Felipe Salomão[6], Coordenador do Projeto, classifica os programas de Inteligência Artificial aplicados no Poder Judiciário em quatro grupos:

  • Primeiro grupo: Auxílio nas atividades-meio, relacionadas à administração da Justiça e melhor gestão de recursos financeiros e de pessoal. Exemplos: Chatbot Digep (TJRS), Judi Chatbot (TJSP) e Amon (TJDFT);
  • Segundo Grupo: Auxílio nas atividades-fim, sobretudo, relacionados aos fluxos de movimentação de processo e das atividades executivas e pré-determinadas em auxílio aos juízes, como apoio à gestão de secretarias e gabinetes, fazendo triagem e agrupamento de processos similares, classificação de petição inicial, transcrição de audiências etc. Exemplos: Athos (STJ), Júlia (TRF3ª Região), Tia (TJAP), Hércules (TJAL), Toth (TJDFT), Berna (TJGO), Larry (TJPR) etc.
  • Terceiro Grupo: em menor quantidade, possui modelos computacionais que dão suporte a elaboração de minutas de sentença, votos ou decisões interlocutórias. Exemplos: Victor no STF, Alei (TRF 1ª Região), Argos (TJES), Midas (TJPB), Jurimetria com Inteligência Artificial (apontam tendências de julgamentos);
  • Quarto Grupo: Programas que auxiliam na resolução de conflitos judiciais. Exemplo: Icia (TRF 4ª Região) e o Concilia (TRT 12ª Região). 

Recentemente, também foi noticiada a ocorrência da primeira audiência via metaverso na Justiça Federal na Paraíba,[7] o que confirma que o caminho em direção a algoritmização do Poder Judiciário brasileiro anda de vento em popa.  

 Essa é a fotografia atual da algoritmização do Poder Judiciário.

(ii) Os algoritmos

Os algoritmos estão por toda parte e podem ser usados com boas ou más intenções. Para se permitir indiscriminadamente a utilização de algoritmos no Poder Judiciário é fundamental entender como são construídos, por quem são construídos e quais os interesses, ideias e ideais das empresas que os constroem.

A origem da palavra algoritmo remete a Al Khowarizmi, famoso matemático árabe do século IX.[8]  Mas, o que são os algoritmos? Como são desenvolvidos? São opacos? Como são formadas as bases de informações no input para produzirem o resultado output?

Um algoritmo é, pois, uma sequência de raciocínios, instruções ou operações para alcançar um objetivo, sendo necessários que os passos sejam finitos e operados sistematicamente. Um algoritmo, portanto, conta com a entrada (input) e a saída (output) de informações mediadas pelas instruções. Na prática, “são apresentados, corriqueiramente, como fornecedores de insights de como somos como pessoas e são capazes de prever como nos comportaremos no futuro.”[9]

Segundo Leonardo Marques Vieira, “[o]s algoritmos são modelos matemáticos (softwares) ordenados por uma determinada finalidade, buscando padrões de números.”[10] Registre-se, pois, que os “algoritmos são falíveis e limitados”[11] e “as conclusões que tiram a nosso respeito podem ser discriminatórias”[12] mas, não obstante isso, já dominam todas as formas do comportamento humano na sociedade do controle.

David Sumpter parafraseando Cathy O’Neil diz que “os usos indevidos de algoritmos em tudo, desde a avaliação de professores e propagandas on-line de cursos universitários a fornecimento de crédito privado e previsões de reincidências criminais” e que “[s]uas conclusões eram assustadoras, eis que os algoritmos estavam nos julgando de maneira arbitrária, frequentemente baseados em pressuposições dúbias e dados imprecisos”.

            No estágio atual da transição paradigmática para a sociedade do controle, das redes, da tecnologia da informação, os algoritmos provocam ao menos dois grandes sentimentos:

  • o primeiro, o de que há uma dominação, uma submissão dos resultados que produzem condicionando as ações humanas, confundindo o fato de terem em seu core a matemática como ciência exata, eis que buscam transferir para os resultados que produzem a mesma exatidão da ciência matemática, o que não é fato;
  • o segundo, a de uma grande insegurança dos resultados “reais” com a má utilização dos algoritmos para o alcance desses resultados, como o que ficou amplamente verificado com a utilização da Cambridge Analytica por Donald Trump para ganhar as eleições norte-americanas em 2017.

            No que concerne as suas características, ao menos duas já foram identificadas:

(i) a primeira, a de que são opacos, verdadeiras “caixas pretas”, onde não há possibilidade dos juízes ou qualquer um dos jurisdicionados entender quais informações foram introduzidas no (Input) e nem como o algoritmo chegou a determinado resultado (Output), o que impede o conhecimento do funcionamento interno dos algoritmos, daí “[a]s pessoas quererem saber o que está acontecendo dentro das caixas-pretas que são usadas para nos avaliar e influenciar.”[13]

(ii) o segundo, o de que o modo como os algoritmos são “ensinados” partem de duas perspectivas bastante preocupantes do ponto de vista da retratação da “realidade fática”, ou seja, não só são projetados por meio das informações que o próprio homem ensina à máquina, como captam informações e vieses de outros algoritmos semelhantes por meio de machine learnings ou deep learnings.

Sobre a opacidade dos algoritmos, Sumpter aduz que o termo “caixa-preta” foi utilizado em duas oportunidades, tanto por Frank Pasquale, no título do seu livro “The Black Box Society”, quanto pela ProPublica, em sua série de matérias e vídeos curtos sobre algoritmos chamada “Breaking the Black Box”.” [14]

É fato que na sociedade da informação, “[k]nowledge is power.”[15] Frank Pasquale anuncia que “Deconstructing the black boxes of Big Data isn’t easy”[16] e que há três motivos, ao menos, para se manter as caixas pretas fechadas: sigilo real, sigilo legal e ofuscação, ex vi:

O verdadeiro sigilo estabelece uma barreira entre o conteúdo oculto e o acesso não autorizado a ele. Usamos sigilo real diariamente quando trancamos nossas portas ou protegemos nosso e-mail com senhas. O sigilo legal obriga aqueles que têm acesso a certas informações a mantê-las em segredo; um funcionário do banco é obrigado tanto por autoridade estatutária quanto por termos de contrato a não revelar saldos de clientes a seus amigos. A ofuscação envolve tentativas deliberadas de ocultação quando o sigilo foi comprometido. [17]

Posto isso, considerando que “[n]enhum modelo consegue incluir toda e qualquer complexidade do mundo real ou as nuances da comunicação humana e que “inevitavelmente alguma informação importante fica de fora”[18], acende-se um gravíssimo alerta para a algoritmização de toda e qualquer função no Poder Judiciário.

(iii) O Juiz de Lata e o perigo da robotização do Poder Judiciário

A partir de todas essas considerações, surgem alguns questionamentos importantes:

  • o resultado produzido pelo algoritmo é verdadeiro (corresponde a toda a realidade compreendida de modo holístico ou pode ser discriminatório?
  • a sentença feita por um juiz humano teria o mesmo resultado da que for feita por um juiz robô ou se se pode confiar no resultado dos algoritmos sem conhecer o processo de formação de sua base de dados, sem conhecer o processo inovativo que o conduz?
  • o modelo de personalidade Big Five utilizado pelas Big Techs permite a “[u]m computador nos entender melhor que um humano?[19]

Surge, então, uma reflexão, um balanceamento dos interesses em conflito, entre a “celeridade” que os programas tecnológicos constituídos por algoritmos podem proporcionar ao Poder Judiciário em termos de rapidez, organização de dados, diminuição da mão-de-obra humana, barateamento de recursos, dentre inúmeros outros e, de outro lado, o perigo para a robotização de todas as funções do Poder Judiciário e, sobretudo, a função de julgar (Terceiro Grupo de programas) que já estão sendo usados no Brasil.

Desse modo, por mais que se diga que a decisão elaborada por um “algoritmo, programa ou robô” ainda prescinda da intervenção humana, dada a quantidade de processos que assolam o Poder Judiciário, a pequena quantidade de servidores para dar conta de tão grande demanda, a pressão pelo atingimento das metas de julgamento, dentre inúmeros outros fatores, chegamos a duas importantes conclusões:

  • a primeira, a de que as atividades-fim de elaboração de sentenças, acórdãos e decisões interlocutórias jamais deveriam ter o suporte de um robô para a sua elaboração;
  • a segunda, a de o core da função do Poder Judiciário estar sendo, paulatinamente, transferida para programas algorítmicos formulados por empresas de tecnologia com base em suas crenças, ideais e interesses e tendem a não produzir a eficiência tão almejada para a verdadeira prestação jurisdicional, afinal, o algoritmo não está no mundo, não pode ser-em-si e nem ser-para-si e só a espécie humana é Dasein;
  • a terceira, a de que o Juiz de Lata não tem condições de analisar as peculiaridades de cada caso concreto e, por trás dos processos judiciais (físicos ou digitais, feitos de átomos ou de bits), existem vidas, existem problemas reais que estão no mundo, existe a ânsia para que o Poder Judiciário cumpra o seu verdadeiro papel que é a função de julgar.

 Posto isso, estejamos ainda mais atentos para que a humanidade e o Poder Judiciário não percam o que tanto o homem de lata buscou – um coração que possa compreender de modo holístico o que por trás dos processos judiciais (físicos ou digitais, átomos ou bits) porque atrás desses existem vidas e o sentimento de Justiça que não pode ser alcançado por um juiz de lata, sem coração.


[1] Disponível em Estatísticas do Poder Judiciário (cnj.jus.br) em 07/10/2022.

[2] Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf em 05/10/2022. (p. 30)

[3] Disponível em https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/

[4] Disponível em https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/relatorio_ia_2fase.pdf em 05/10/2022.

[5] Disponível em  https://www.cnj.jus.br/pesquisa-revela-que-47-tribunais-ja-investem-em-inteligencia-artificial/  em 05/10/2022.

[6] Disponívsel em https://www.conjur.com.br/2022-mai-11/salomao-tauk-estamos-perto-juiz-robo em 05/10/2022.

[7] Disponível em Justiça Federal na Paraíba realiza primeira audiência real do Brasil no metaverso – Portal CNJ em 05/10/2022.

[8] Disponível em https://rockcontent.com/br/blog/algoritmo/#:~:text=Um%20algoritmo%20%C3%A9%20uma%20sequ%C3%AAncia,matem%C3%A1tico%20%C3%A1rabe%20do%20s%C3%A9culo%20IX disponível em 28/07/2022.

[9] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 63.

[10] VIEIRA, Leonardo Marques. A problemática da Inteligência Artificial e dos vieses algorítmicos: caso Compas. Op. Cit.

[11] VIEIRA, Leonardo Marques. A problemática da Inteligência Artificial e dos vieses algorítmicos: caso Compas. Brasilian Technology Symposium, 2019. Disponível em https://www.lcv.fee.unicamp.br/images/BTSym-19/Papers/090.pdf  em 11/08/2022.

[12] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Tradução: Anna Maria Sotero e Marcello Neto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019, p. 23.

[13] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 27.

[14] Idem.

[15] PASQUALE, Frank. The black box Society: the Secret Algorithms That Control Money and Information. First Harvard University Press paperback edition, 2016, Sixth Printing, p.3.

[16] PASQUALE, Frank. The black box Society: the Secret Algorithms That Control Money and Information. Idem, p. 6.

[17] Tradução livre: Real secrecy establishes a barrier between hidden contente and unauthorized access to it. We use real secrecy daily when we lock our doors or protect our e-mail with passwords. Legal secrecy obliges those privy to certain information to keep it secret; a bank Employee is obliged both by staturory authority and by terms of employment not to reveal costumers’ balances to his buddies. Obfuscation involves deliberate attempts at concelament when secrecy has been comprommised.[17]

[18] O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Tradução: Rafael Abraham. Santo André, SP: Editora Rua do Sabão, 2020, p. 33.

[19] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 59.

Licença Menstrual Remunerada: uma medida urgente de saúde das trabalhadoras brasileiras

Vanessa Vilela Berbel

Os direitos reprodutivos da mulher são pauta recorrente do Poder Judiciário e da política nacional e internacional. Em 2022, enquanto a Suprema Corte Americana, em contraposição ao entendimento consolidado desde 1973 a partir do caso Roe vs. Wade, declarou a inexistência de um direito constitucional ao aborto pautado na Décima Quarta Emenda e o chefe do Poder Executivo brasileiro vetava dispositivos da lei de criação do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual (Lei 14.214/21), que autorizava a distribuição gratuita de absorventes pela rede pública de saúde, o governo espanhol, em caminhos opostos, propunha a criação de licença menstrual remunerada às trabalhadoras.

Por trás da proposta da criação da licença menstrual remunerada às trabalhadoras na Espanha há a organização político-partidária das mulheres do Unidas Podemos, associada a uma representatividade feminina do atual governo espanhol, composto por 14 (quatorze) mulheres e 08 (oito) homens em cargos ministeriais; o fato reforça a importância de temas que já abordamos em colunas anteriores, como o combate à violência política eleitoral e a importância da participação política das mulheres.

Em relação à licença menstrual remunerada, há também, por detrás desta decisão, um governo socialista, que alinhou, à sua pauta social-democrática, as bandeiras ecologistas e feminista, como afirmado durante o 40⁰ Congresso do Partido Socialista Operário Espanhol, ocorrido em Valência, no ano de 2021. Nenhum partido é obrigado a levar o socialismo em seu nome, mas, se o faz, precisa se alinhar a pautas protetivas do operariado e aceitar que compete ao Estado a missão de gerenciar as desigualdades sociais. O governo espanhol está, portanto, coerente com seu projeto.

Mas nada impede que pautas como a licença menstrual remunerada também caibam em governo não socialistas, ou seja, liberais. Como lembraram Amanda Flávio e Adriano Paranaíba na coluna “Liberalismo, esse desconhecido”, o liberalismo está longe de ser a ameaça do bem -estar social; trata-se de uma doutrina política em que se encontram diferentes escolas de pensamento, cujo ponto fulcral entre elas está “no enaltecimento da pessoa humana e a sua proteção contra os arroubos do Estado”. Neste conjunto, há diferentes matizes de pensamento sobre o quanto de Estado se é necessário aceitar.

Portanto, tudo é uma questão sobre quem deverá pagar a conta. O governo espanhol entendeu que as dores menstruais que, mensalmente, incapacitam para o trabalho diversas mulheres, devem ser repartidas pela sociedade. Segundo o Projeto de Lei Espanhol, caberia, à Previdência Social, remunerar o afastamento, em regra por três dias, às mulheres que precisam se ausentar durante o período menstrual. Poderia ser feita outra opção, obrigar o empregador a internalização este ônus, mas, a Espanha preferiu reparti-lo de outra maneira.

Hoje, no Brasil, os efeitos econômicos e sociais das dores menstruais são, via de regra, suportados exclusivamente pela trabalhadora, visto que a falta ao trabalho é apenas justificada por doença ou acidente e precisa ser sempre acompanhada de atestado médico. Menstruação não é uma doença e conseguir um atestado todo mês, além de certamente não ser bem compreendido pelo empregador acarretando sua demissão futura, será uma tarefa hercúlea em um sistema único de saúde congestionado. Repartir socialmente esse ônus parece ser uma boa medida para as mulheres e para toda a sociedade.

A Taxa de participação das mulheres no mercado laboral é baixa se considerarmos que somos nós a maioria da população brasileira. A parcela da população em idade de trabalhar (PIT) que está na força de trabalho, ou seja, trabalhando ou procurando trabalho e disponível para trabalhar, aponta a maior dificuldade de inserção das mulheres no mercado de trabalho. Em 2019, a taxa de participação das mulheres com 15 anos ou mais de idade foi de 54,5%, enquanto entre os homens esta medida chegou a 73,7%.

São diversas as razões para a baixa incorporação da mulher ao mercado de trabalho: maternidade na adolescência ou pré-adolescência, carência de vagas em creches e pré-escolas, desigualdade na distribuição das tarefas domésticas entre os casais, dentre outras. Claramente, há que se pensar em medidas para integrá-las. Mas não só, essa internalização também deve ser acolhedora, proporcionando um ambiente de trabalho saudável e compatível com suas necessidades biológicas. E quem já teve o dissabor de ter que trocar de roupa após o vazamento de um absorvente ou sentir um quase desmaio durante o trabalho pelo cansaço absurdo dos sangramentos ou a contração da cólica, sabe bem o que precisa: ficar em casa.

É preciso avançar em uma incorporação e promoção menos segregada e estereotipada nos empregos e implantar medidas transversais voltadas para elevar a taxa de emprego feminino, incluindo condições mais favoráveis ao exercício e permanência no labor remunerado, dentre elas a licença menstrual remunerada.

O metaverso e o metrô da linha 743:  o dia em que captar os pensamentos e sentimentos virou modelo de negócio das big techs

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

O que é o metaverso? Muito tem se falado nessa expressão, sobretudo, após Mark Zuckerberg ter anunciado em 28/10/2021 que o Facebook, o Instagram e o WhatsApp passariam a ser chamados de “Meta”[1] com o objetivo de lincar os produtos oferecidos nessas redes sociais a uma nova tecnologia que pretende promover a convergência entre uma realidade física virtualmente aprimorada e um espaço virtual fisicamente persistente, incluindo a soma de todos os mundos virtuais, realidade aumentada e Internet.[2]

A literatura registra que o termo “metaverso” foi idealizado por Neal Stephenson em um romance chamado Snow Crash em 1992, onde o autor se referia a um mundo virtual 3D habitado por avatares de pessoas reais. Ernest Cline, ao escrever Ready Player One, em 2011, igualmente tratou desse mesmo fenômeno. Etimologicamente, a palavra “metaverso” é a junção do prefixo “meta” que significa “além” e a palavra “universo”. Até então estávamos no plano da ficção científica.

No entanto, produtos desenvolvidos com tecnologia inspirada no metaverso já estão disponíveis há cerca de duas décadas no mundo e vem ganhando, paulatinamente, mercado, com os jogos on-line que combinam plataforma de relacionamento com interação entre pessoas e ambientes digitais imersivos, como o Habbo[3] e Club Penguin[4].

Registre-se que outras tecnologias mais recentes como a dos jogos GTA RP Cidade Alta ou PK XD, também disponíveis para celulares Android e Iphone (IOS), vem ganhando ainda mais mercado. O GTA RP, segundo especialistas, utiliza a técnica Roleplay que quer dizer “interpretação de personagem”, onde o jogador tem a possibilidade de criar uma história e fazer um tipo de simulação de vida, ou seja, se cria um personagem avatar que interage com outros personagens avatares, no mundo digital, por meio de pessoas reais.[5] Já o PK XD[6], muito direcionado ao público infantil e adolescente, inicialmente criado no âmbito da subsidiária PlayKids, rapidamente, diante de seu sucesso, deu origem a criação do estúdio de games da empresa Afterverse. A essência é a mesma, onde se cria um avatar que pode realizar diversas atividades e interagir ao mesmo tempo com outros jogadores por meio de um chat, mesclando o ambiente real e o virtual em uma única dimensão.  

Até então, as tecnologias de interação do mundo virtual e do mundo real estavam restritas aos games, mas diante do sucesso com o público e dos vultuosos lucros que geraram, a indústria já começou a desenvolver produtos tecnológicos diferenciados sob a mesma concepção tecnológica unindo o real e o virtual em uma única dimensão.

Um dos produtos que está em alta é o chamado “óculos do Facebook”, uma parceria entre a Ray Ban e o Facebook chamado de Ray-Ban Stories Smart Glasses que mescla a função precípua dos óculos de sol e agrega as funções de vídeo câmera e áudio, permitindo tirar fotos, gravar vídeos, ouvir músicas e compartilhar conteúdos pela mídia social.[7]

Há outros produtos que aderem tais tecnologias que estão sendo desenvolvidas para serem disponibilizadas em veículos, permitindo ao passageiro uma experiência de imersão muito maior que apenas a visual, despertando novos sentidos. A Holoride[8] é uma empresa que desenvolve tecnologias, como a XR, que permite o feedback físico em tempo real do veículo, fazendo com que você passe a sentir o que vê. Tais tecnologias já estão disponíveis em automóveis da marca Audi[9] e Porsche[10], por exemplo. Outras grandes empresas como a Neuralink e a Minlab desenvolvem tecnologias voltadas para o conhecimento (ilimitado) do cérebro, para entendê-lo em uma teia de comunicação que permite que você se mova, pense, sinta e perceba[11], para produzir uma interface com o cérebro, empurrando os limites da engenharia neural[12], além de promover engenharias junto ao cérebro com o objetivo de melhorar a vida[13]

Diante de tais exemplos, é possível afirmar que o Metaverso já é uma realidade incontornável. No entanto, nesse momento histórico, essa tecnologia ainda não foi capaz de alterar o modo de viver da humanidade. Ao que tudo indica, o Metaverso não será um plus da internet. Será uma outra dimensão real/virtual unívoca e pretende mudar a forma da humanidade se relacionar em todos os seus aspectos.

Mudanças paradigmáticas como essas ocorrem de tempos em tempos. Como exemplos, a invenção da escrita pelos povos sumérios na antiga civilização mesopotâmica (atual Iraque) por volta de 4.000 a.C; a invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutenberg no século XV, por volta de 1439 e a invenção da internet, no pós-guerra fria, com todos os desenvolvimentos tecnológicos que permitiram a Tim Berners-Lee criar a World Wide Web em 1992.

A tecnologia, de fato, encanta, seduz. É sempre a possibilidade de nos encontrarmos com o novo, com a descoberta, vivenciar novas emoções, experiências, facilidades e sensibilidades. A tecnologia representa superação e inteligência, expressão da criatividade do ser humano e acaba transformando em realidade a capacidade do ser humano produzir, inventar, proporcionar experiências ainda não vividas pela humanidade, inovar, expressar-se, utilizar sua inteligência para produzir o “novo”.

No entanto, a pergunta que fica é: o que está por trás dessas tecnologias do metaverso? Qual é a real intenção desse modelo de negócio? Shoshana Zuboff identificou que, no caso da internet, o modelo de negócios gira em torno da obtenção de superávit comportamental para ganhos alheios. Segundo a Autora,

“não somos mais os sujeitos da realização de valor. Tampouco somos, conforme alguns insistem, o “produto” das vendas do Google. Em vez disso, somos os objetos dos quais as matérias-primas são extraídas e expropriadas para as fábricas de predição do Google. Predições sobre o nosso comportamento são os produtos do Google, e são vendidos aos verdadeiros clientes da empresa, mas não a nós. Nós somos os meios para os fins dos outros.”[14]

Com o metaverso, o modelo de negócios que está por trás dessa tecnologia é a obtenção de superávit de pensamentos e sentimentos para ganhos alheios.  Assim, a obtenção dos “comportamentos” humanos está para o modelo de negócios da internet, como a obtenção dos “pensamentos e sentimentos” humanos está para o modelo de negócios do metaverso. E é aqui que surgem as significativas preocupações com o que está por vir e quais os impactos da adoção desse modelo de negócios para os direitos humanos fundamentais.

Raul Seixas, músico brasileiro, se estivesse vivo poderia não acreditar que, ainda que sob outro viés, teria sido um profeta da humanidade ao escrever a letra da música “O metrô da linha 743” e prever que o preço das mercadorias poderia variar conforme o nível mental do consumidor. Se o que interessa são os pensamentos e não os documentos e se as tecnologias do metaverso têm por propósito conhecer não mais só nossos comportamentos, mas também nossos pensamentos e sentimentos, é hora de se parar e avaliar se os Estados não precisam colocar limites ao desenvolvimento dessas tecnologias, por mais encantadoras que sejam.

Muitos questionamentos surgem dessas reflexões: Quais mudanças sociais, econômicas e jurídicas poderão advir da adoção em massa dessa nova tecnologia? Como será a humanidade ciborgue? O que diferencia as sociedades que pensam mais das que pensam menos? Como saber o que você pensa pode alterar a concentração econômica, o preço do arroz e do feijão, as regras de custo da oferta e da demanda e a lógica dos mercados? O que é o pensamento? O que pensa o pensamento?[15]

Pensar é um exercício. Pensar é refletir, é dar tempo de considerar opiniões em contrário, é parar, é considerar a opinião do outro, é, também, poder mudar de opinião. Pensar é um ato interno, privativo, solitário e só é compartilhado quando da vontade do pensador. Até aqui, o pensar faz parte da privacidade e da intimidade do ser humano.

Tecnologias que captam nossos pensamentos e sentimentos sem nossa permissão e usam tais informações contra o próprio ser humano,  como estratégia dos seus modelos de negócios, induzindo comportamentos (e porquê não pensamentos e sentimentos?) são aviltantes e é preciso que o desenvolvimento dessas tecnologias, se usadas como modelos de negócios, sejam “limitadas” para que a nossa cabeça “oca” não seja jogada no lixo da cozinha e nem nossos cérebros sejam comidos vivos à vinagrete por senhores alinhados, despertando ao nosso último pedaço, antes de ser engolido, o pensamento de “quem seria esse desgraçado dono dessa zorra toda”.

Lutemos, pois, enquanto há tempo, contra o abuso de poder econômico e imponhamos limites às tecnologias que possam violar direitos fundamentais do ser humano ao captarem nossos comportamentos, pensamentos e sentimentos, sem nosso consentimento. Chega de ganharmos espelhos.  


[1] https://tecnoblog.net/noticias/2021/10/28/facebook-muda-de-nome-para-meta-por-causa-do-metaverso/ disponível em 19/07/2022.

[2] https://tecnoblog.net/responde/entenda-o-que-e-metaverso-a-realidade-do-futuro/ disponível em 17/07/2022.

[3] https://www.habbo.com.br/ disponível em 20/07/2022.

[4] https://newcp.net/pt/ disponível em 20/07/2022.

[5] https://mktesports.com.br/blog/games/o-que-e-gta-rp/ disponível em 20/07/2022.

[6] https://canaltech.com.br/mercado/pk-xd-e-apenas-para-criancas-a-estrategia-da-afterverse-para-o-jogo-vai-alem-177960/

[7] Prontos para óculos inteligentes? Torne seus os Ray-Ban Stories, a última novidade em termos de tecnologia vestível. Nossos óculos de grau e de sol inteligentes, com videocâmara e áudio, combinam a lendária tecnologia de Facebook com o estilo icônico Ray-Ban. Com os óculos Ray-Ban X Facebook, você pode tirar fotos, gravar vídeos, ouvir músicas e fazer chamadas, além de compartilhar conteúdos diretamente nos seus canais de mídia social. Escolha seus óculos tecnológicos Ray-Ban entre 3 modelos atemporais e 20 combinações de cores de lentes e armação.[7] https://www.ray-ban.com/brazil/ray-ban-stories?cid=IN-SGA_210607-4.BR-RayBan-PT-NB-DSATargetUrl&gclid=EAIaIQobChMIz4_pt9uH-QIVGEJIAB1c3A1XEAAYASAAEgJ9oPD_BwE&gclsrc=aw.ds disponível em 20/07/2022.

[8] https://www.holoride.com/ disponível em 20/07/2022.

[9] https://www.audi.com/en/innovation/development/holoride-virtual-reality-meets-the-real-world.html disponível em 20/07/2022.

[10] https://newsroom.porsche.com/en/2022/innovation/porsche-entertainment-technology-startup-holoride-location-based-virtual-reality-lbvr-porsche-experience-center- pec-los-angeles-27561.html disponível em 20/07/2022.

[11] https://neuralink.com/science/ disponível em 20/07/2022.

[12] https://neuralink.com/approach/ disponível em 20/07/2022.

[13] https://neuralink.com/applications/ disponível em 20/07/2022.

[14] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução: George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 115.

[15] Em referência a Felipe Zenchet, professor de Filosofia do Direito na Universidade de Brasília.

Análise Inicial da Emenda Constitucional nº 125, de 14 de Julho de 2022, que instituiu o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional

Fabio Luiz Gomes & Thiago Tirolli

I – Critério temporal

Constata-se que o Art. 3º delimitou que a Emenda Constitucional entrou em vigor na data da publicação e fixou que a exigência da relevância aos recursos interpostos após a entrada em vigor da Emenda Constitucional, isto é, 14 de Julho de 2022.

Não restando dúvidas de que os recursos em trânsito no Superior Tribunal de Justiça não poderão ter como filtro de admissibilidade esta Emenda Constitucional.

II – Conceito de Relevância

Um dos desafios impostos pela Emenda Constitucional será estabelecer um conceito de “relevância”.

Estabelece o Art. 1º da Emenda Constitucional (acrescentou um § 2º ao Art. 105 da CRFB) que no Recurso Especial “o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso”.

Trata-se, nesse caso, de um reflexo claro da visão que o Superior Tribunal de Justiça possui de sua missão constitucional, de pacificar e dar a última palavra na aplicação da legislação federal, sem que funcione como verdadeira Corte de revisão.

Portanto, é fato constitutivo – decorrente do mandamento do próprio texto da emenda constitucional, ao dispor que o recorrente “deve” demonstrar a relevância – que a partir de 14 de Julho de 2022 o Recurso Especial traga em suas razões um tópico de admissibilidade recursal que fundamente o requisito da relevância das questões de direito infraconstitucional a ser demonstrado pelo recorrente.

Ao contrário do que ocorreu na regulamentação da transcendência dos Recursos de Revista direcionados ao TST, ocorrida em 2017 pela chamada “Reforma Trabalhista”, que define que o Tribunal analisará se a causa transcende aos interesses individuais – desobrigando o recorrente de trazer o tema como tópico recursal -, no presente caso o texto constitucional já prevê uma atuação positiva do recorrente.

Assim, a demonstração da relevância metaindividual, portanto, transcendente, deve fazer parte da petição recursal.

A negativa de trânsito ao Recurso Especial por conta da ausência de relevância apenas pode ocorrer pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente. Nesse caso, tratando-se de Resp, em regra o órgão julgador é uma das Turmas do STJ, compostas por 5 ministros. Assim, o não conhecimento do REsp, por esse motivo, apenas pode ocorrer pela manifestação de ao menos 4 Ministros.

Observa-se, contudo, que o próprio dispositivo utiliza o vocábulo “nos termos da lei”, parece que em uma interpretação mais açodada poder-se-ia considerar essa norma constitucional como sendo de eficácia limitada.

Contudo, ao se realizar uma interpretação sistemática constata-se que na verdade se trata de uma norma constitucional de eficácia contida, isto é, essa norma já possui a aplicabilidade direta e eficácia imediata, e se posteriormente houver uma norma infraconstitucional poderá restringir o seu alcance.

Posto isto, urge delimitar o alcance do que seja “relevância” para essa norma enquanto não houver a norma infraconstitucional restritiva.

De início, a própria norma traz previsões em que a relevância será presumida. Recursos Especiais  que envolvam matéria penal, improbidade administrativa e inelegibilidade não passam pelo filtro da relevância.

Ainda, o texto da EC nos aponta mais critérios: (i) Recursos especiais oriundos de causas cujo valor da causa seja superior a 500 salários mínimos; (ii) em que o acórdão afronte jurisprudência dominante do STJ; e (iii) demais casos previstos em Lei.

Tais critérios, que afastam a necessidade do Recurso Especial se sujeitar ao filtro da relevância, nos dão um direcionamento inicial em que casos teremos essa relevância “presumida”. Entretanto, decerto exigirão interpretação e discussão do próprio STJ para definir as especificidades de sua aplicação.

Por exemplo. Quando se fala que o valor da causa, é adequado considerar o valor apontado na inicial (ou em correção posterior) ou, em interpretação sistemática, deve-se considerar o proveito econômico da demanda e o seu potencial reflexo econômico? O tema é abordado com mais detalhamento no tópico adiante.

E mais. Não podemos apontar com segurança o que pode ser considerado jurisprudência dominante do STJ, pois se trata de conceito aberto. Seriam as decisões reiteradas de Turmas da Corte? Decisões chanceladas pela Corte Especial? Decisões vinculantes?

Por fim, sobre a presunção de relevância “nos termos da lei, poder-se-á fazer uma interpretação sistemática do termo “relevância” e por analogia se fixaria um critério terminológico, buscar-se-ia no requisito de repercussão geral nos recursos extraordinários[1], que também se utiliza o termo “relevância” para definição do que seja repercussão geral.

Portanto, a delimitação do conceito de “relevância”, enquanto não sobrevier a norma infraconstitucional restritiva, será relevante “do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa…”.

Tal se alinha com o desenho e atuação do Poder Judiciário brasileiro, em especial o STF que, por ser a Corte Suprema, em princípio, daria a última palavra sobre que temas entende haver transcendência dos interesses individuais.

Ou seja, uma causa em que o Supremo Tribunal Federal entendeu possuir Repercussão Geral, atrai a existência de transcendência para o Recurso e Revista trabalhista e assim deve ser para o Recurso Especial.

O STF assim já se manifestou, a exemplo da Rcl 38529 AgR-ED, em que estipulou que:

 “Nos termos da jurisprudência desta Corte, o óbice suscitado pelo Tribunal Superior do Trabalho à admissão do agravo de instrumento no recurso de revista (ausência de transcendência da matéria) está em descompasso com a premissa de que os julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal dos paradigmas referidos (Tema 246 e ADC 16) revelam a transcendência da questão debatida nos autos de origem.

Dessa desarmonia, resulta a usurpação da competência desta Suprema Corte, pela inadmissível obstrução da via recursal extraordinária”.

Portanto, adequado que na pendência de Lei que regule a EC, utilize-se os parâmetros de Repercussão Geral.

Em conclusão, os recursos especiais devem destacar um tópico que demonstrem a relevância recursal, apontando os casos em que a relevância seja presumida nos termos do próprio texto constitucional e enquanto não houver a norma restritiva, deverá ser uma causa meta-individual do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico.

E, ademais, como a EC trouxe conceitos abertos, cabe aos recorrentes iniciarem a discussão desses temas, em especial do que seria considerado, neste caso, jurisprudência dominante do STJ.

III – Valor da Causa

Em dois dispositivos o termo “valor da causa” é repetido:

  1. No primeiro faz parte do texto constitucional, fixando como causa relevante o consubstanciado no Art. 1º da Emenda Constitucional, que estabeleceu no rol exemplificativo, no § 3º, III do Art. 105 da Constituição: “ações cujo valor ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos.
  2. O segundo está disposto no Art. 2º da Emenda Constitucional: “ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do § 3º  do referido artigo.”

Em relação ao item 1, pode-se chegar às seguintes interpretações:

Uma primeira interpretação é a literal, de que não caberia recurso especial de causas que fossem inferiores a 500 (quinhentos) salários mínimos, porém, numa perspectiva interpretativa sistemática, não poderia infirmar tamanho impeditivo as causas inferiores a esse patamar, sob pena de contrariar diversos princípios constitucionais, dentre eles destacaríamos o do devido processo legal substantivo (due process of Law), afinal não se pode restringir a vida-patrimônio ou liberdade sem o devido processo, neste caso, nem uma lei, no caso uma emenda constitucional, poderiam fazê-lo.

No entanto, objetivamente, essa lei gera uma presunção de que nas causas superiores a esse valor poderia ser considerada relevante, com uma argumentação simplificada. Nesse diapasão, restaria simplificada a argumentação da relevância jurídica-social-econômica nas causas superiores a esse valor.

Ao passo que nas causas inferiores a esse valor, a parte recorrente deverá demonstrar de forma analítica-fundamentada a relevância jurídica.

Concluindo, as causas superiores a 500 (quinhentos) salários mínimos gozam de uma presunção relativa de que haja relevância jurídica, nas causas inferiores a esse valor, caberá às partes fazerem uma demonstração analítica da relevância jurídica de sua causa.

Já no item 2, inicialmente poderia se pensar que ao fixar o valor da causa com um valor inferior na petição inicial, no curso do processo ficar constatado o benefício econômico, poderia ser pleiteada a revisão do valor da causa em sede de recurso especial e com isso, se for superior a 500 (quinhentos) salários mínimos, poderia ser revista.

Contudo a Emenda Constitucional não se utilizou do conceito de benefício econômico, portanto, a atualização deverá ser versada do valor atribuído ao valor da causa.

IV – Jurisprudência dominante do STJ

O fato da emenda constitucional trazer o conceito aberto “Jurisprudência dominante” do STJ abre espaço para que o recorrente, utilizando-se da argumentação jurídica e retórica, classifique que o acórdão recorrido, de alguma forma, violou a jurisprudência dominante do STJ.

E a discussão é proveitosa e, ao nosso ver, decerto será parametrizada pelo STJ logo no início da aplicação do filtro de relevância nos Recursos Especiais.

A despeito da falta de definição, o Código de Processo Civil pode auxiliar em tal interpretação.

O artigo 489, § 1º, VI do CPC, ao falar das decisões que são consideradas não fundamentadas, inclui aquela que deixa de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte.

E sobre isso, o STJ já pôde se manifestar no sentido de que “A regra do art. 489, §1º, VI, do CPC/15, segundo a qual o juiz, para deixar de aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, deve demonstrar a existência de distinção ou de superação, somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos.”(REsp n. 1.892.941/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 1/6/2021, DJe de 8/6/2021.)

Portanto, é provável que o STJ, ao aplicar o filtro da relevância, considere que jurisprudência dominante seja apenas os precedentes qualificados e vinculantes que possui.

Não obstante, na visão dos produtores deste texto, para garantir o cumprimento do mister constitucional da Corte cidadã, jurisprudência dominante deve ser considerada aquela (i) reiterada nas turmas; (ii) oriunda da Corte Especial; ou (iii) consubstanciada em Súmula da jurisprudência da Corte.

Isso porque, a produção de precedentes qualificados no STJ pode não ocorrer na velocidade que os jurisdicionados necessitam, o que permitiria a interpretação descompassada da legislação federal pelos Tribunais Estaduais.

De toda forma, considera-se proveitoso o debate sobre o tema para ensejar a pacificação da questão desde logo.


[1]A regulamentação do § 3º do art. 102 da Carta Magna foi realizada pela Lei nº 11.418, de 2006, que inseriu os arts. 543-A e 543-B no Código de Processo Civil, e pela Emenda Regimental nº 21, de 2007, do Supremo Tribunal Federal (STF).


FABIO LUIZ GOMES. Advogado corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Mestre e Doutorando em Direito Público.

THIAGO TIROLLI. Advogado corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Especialista em Direito Processual Civil.

A Constituição em capítulos. Novas exigências para o Recurso Especial

Mauro Grinberg

Já se disse que a Constituição Federal é uma obra em capítulos. O último (até o momento em que este singelo artigo é escrito) é a Emenda Constitucional 125, de 14 de julho de 2022, que altera o art. 105 para introduzir o quesito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.

Estabelece o art. 105, III, “a”, que “compete ao Superior Tribunal de Justiça” “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e territórios, quando a decisão recorrida” “contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”.

Foi agora acrescentado, pela nova emenda, o § 2º: “No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento”.

Leonardo Carneiro da Cunha, em oportuno artigo, já nos adverte que a expressão “nos termos da lei” traz exigência: “O novo requisito de admissibilidade do recurso especial depende de regulamentação, pois o referido § 2º dispõe que o recorrente deve demonstrá-lo “nos termos da lei”, a exigir que haja disciplinamento legal”[1].

O que se vê é que a interposição de recurso especial com base na alínea “a”, acima referida, impõe a necessidade da demonstração de relevância (“nos termos da lei”), sendo que tal relevância pode, em tese, não ser conhecida pela maioria de 2/3 do órgão julgador. Até aqui temos um entendimento.

Mas a emenda acrescentou também o § 3º, que Leonardo Carneiro da Cunha trata como de “relevância automática”[2]: definindo em seus incisos os casos em que “haverá a relevância”: “ações penais”, “ações de improbidade administrativa”, “ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos”, “ações que possam gerar inelegibilidade”, “hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça” e “outras hipóteses previstas em lei”.

De início já se percebe que o legislador constitucional deixou aberta ao legislador ordinário a faculdade de acrescentar hipóteses de cabimento do recurso especial, no que parece ser uma alteração perigosa de competência, dando ao legislador ordinário o poder de, na prática, legislar constitucionalmente. Em linguagem mais clara, o legislador ordinário poder mudar a Constituição com quórum menor e procedimento mais simples. Mas há outra dúvida trazida pela nova emenda.

Tal dúvida é saber se o Superior Tribunal de Justiça (STJ) poderá negar seguimento a um recurso especial mesmo que se aplique um dos incisos do § 3º acima referido, como, por exemplo, se uma causa ultrapassa o valor de 500 salários mínimos – o que hoje resultaria no valor de R$ 660.000,00. Se o valor da causa for superior a este valor, pode o STJ ainda assim negar a relevância quando o novo texto constitucional diz que “haverá relevância” a esta hipótese? 

Em outras palavras, quando o novo texto constitucional diz que “haverá relevância” em determinadas hipóteses, ele parece, na leitura simples, ser determinante. E nem precisa de disciplinamento legal por ser de “relevância automática”. Então, a possibilidade de rejeição por 2/3 dos membros do órgão julgador parece ser destinada às demais hipóteses, que não estas previstas no § 3º acima referido. Isto porque a linguagem da emenda é determinante, indicando que, por exemplo, um recurso especial em uma causa cujo valor exceda 500 salários mínimos será necessariamente relevante. Assim, em um processo de valor superior a R$ 660.000,00, a demonstração de relevância é desnecessária porque o assunto é relevante por determinação constitucional.

Vale lembrar que o art. 2º da emenda permite que, nas causas iniciadas antes da sua entrada em vigor, a parte interessada altere o valor da causa. Aí existirá uma outra dúvida na hipótese do réu original da ação ser o recorrente pois o valor terá sido fixado pelo autor.

Aguardemos novos capítulos.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, advogado especializado em Direito Concorrencial e sócio fundador de Grinberg e Cordovil.


[1] “Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal”, Consultor Jurídico, 16/07/2022

[2] Artigo citado