Constitucionalismo digital

A robotização do Poder Judiciário brasileiro (Justiça 4.0) e o par eficiência e celeridade: o Juiz de Lata e os perigos da algoritmização da função de julgar

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

O Poder Judiciário brasileiro contava em 31.07.2022 com 75.855.539 milhões de processos em tramitação[1], segundo números do Relatório Justiça em Números de 2022 (Ano-Base 2021).[2] A busca por uma solução que contemple o par “eficiência” e “celeridade” no julgamento das lides urge e, nessa angústia, muitos apostam todas as suas fichas na algoritmização do Poder Judiciário.

Não parece haver dúvidas de que essa algoritmização faz parte da inclusão do Poder Judiciário na (nova) Sociedade da Informação e é fato que já vem auxiliando para a “celeridade” da prestação jurisdicional, na medida em que os algoritmos, treinados para determinados fins, fazem o trabalho de modo mais ágil que o ser humano.

No entanto, algoritmização do Poder Judiciário entregará a eficiência e a verdadeira prestação jurisdicional? Esse é o questionamento que esse artigo chama à atenção, além do perigo da algoritmização de toda e qualquer atividade desenvolvida pelo Poder Judiciário.

Para responder a esse questionamento, dividimos o artigo em três partes: (i) O estado atual da algoritmização do Poder Judiciário; (ii) Os algoritmos; (iii) O Juiz de Lata e o perigo da robotização do Poder Judiciário.

(i) O estado atual da algoritmização do Poder Judiciário

A algoritmização do Poder Judiciário caminha a passos largos. Programa criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – Justiça 4.0 – anuncia que “[o] Programa Justiça 4.0 torna sistema judiciário brasileiro da sociedade ao disponibilizar novas tecnologias de inteligência artificial”, “impulsiona a transformação digital do Judiciário para garantir serviços mais rápidos, eficazes e acessíveis”, além de “promover soluções digitais colaborativas que automatizam as atividades dos tribunais, otimizam o trabalho dos magistrados, servidores e advogados e garantem, assim, mais produtividade, celeridade, governança e transparência dos processos”, atuando em 4 eixos:

  • Inovação e Tecnologia;
  • Prevenção e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro e recuperação de ativos;
  • Gestão de informação e políticas judiciárias; e
  • Fortalecimento de capacidades institucionais do CNJ.[3]

O sítio eletrônico do CNJ também informa que há outras ações em andamento como: (i) Plataforma Digital do Poder Judiciário; (ii) Plataforma Sinapses/Inteligência Artificial; (iii) Plataforma Codex; (iv) Balcão Virtual; (v) Núcleos de Justiça 4.0; (vi) Juízo 100% Digital; (vii) Painel das Resoluções; e (viii) Domicílio Judicial Eletrônico.

O Segundo Relatório do CNJ elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) tratou sobre as “Tecnologias Aplicadas à Gestão de Conflitos no Poder Judiciário com ênfase no uso da inteligência artificial”[4] quando em 2020, já contava com 64 projetos de Inteligência Artificial em funcionamento ou em processo de implantação em 47 tribunais do país, além da Plataforma Sinapses do CNJ, sendo entendidas, pelo próprio CNJ, como um dos instrumentos mais importantes de gestão do Poder Judiciário, uma vez que implica em racionalizar recursos, mão de obra e atividades, diante de uma demanda cada vez mais crescente.[5]

Artigo escrito pelo Ministro Luis Felipe Salomão[6], Coordenador do Projeto, classifica os programas de Inteligência Artificial aplicados no Poder Judiciário em quatro grupos:

  • Primeiro grupo: Auxílio nas atividades-meio, relacionadas à administração da Justiça e melhor gestão de recursos financeiros e de pessoal. Exemplos: Chatbot Digep (TJRS), Judi Chatbot (TJSP) e Amon (TJDFT);
  • Segundo Grupo: Auxílio nas atividades-fim, sobretudo, relacionados aos fluxos de movimentação de processo e das atividades executivas e pré-determinadas em auxílio aos juízes, como apoio à gestão de secretarias e gabinetes, fazendo triagem e agrupamento de processos similares, classificação de petição inicial, transcrição de audiências etc. Exemplos: Athos (STJ), Júlia (TRF3ª Região), Tia (TJAP), Hércules (TJAL), Toth (TJDFT), Berna (TJGO), Larry (TJPR) etc.
  • Terceiro Grupo: em menor quantidade, possui modelos computacionais que dão suporte a elaboração de minutas de sentença, votos ou decisões interlocutórias. Exemplos: Victor no STF, Alei (TRF 1ª Região), Argos (TJES), Midas (TJPB), Jurimetria com Inteligência Artificial (apontam tendências de julgamentos);
  • Quarto Grupo: Programas que auxiliam na resolução de conflitos judiciais. Exemplo: Icia (TRF 4ª Região) e o Concilia (TRT 12ª Região). 

Recentemente, também foi noticiada a ocorrência da primeira audiência via metaverso na Justiça Federal na Paraíba,[7] o que confirma que o caminho em direção a algoritmização do Poder Judiciário brasileiro anda de vento em popa.  

 Essa é a fotografia atual da algoritmização do Poder Judiciário.

(ii) Os algoritmos

Os algoritmos estão por toda parte e podem ser usados com boas ou más intenções. Para se permitir indiscriminadamente a utilização de algoritmos no Poder Judiciário é fundamental entender como são construídos, por quem são construídos e quais os interesses, ideias e ideais das empresas que os constroem.

A origem da palavra algoritmo remete a Al Khowarizmi, famoso matemático árabe do século IX.[8]  Mas, o que são os algoritmos? Como são desenvolvidos? São opacos? Como são formadas as bases de informações no input para produzirem o resultado output?

Um algoritmo é, pois, uma sequência de raciocínios, instruções ou operações para alcançar um objetivo, sendo necessários que os passos sejam finitos e operados sistematicamente. Um algoritmo, portanto, conta com a entrada (input) e a saída (output) de informações mediadas pelas instruções. Na prática, “são apresentados, corriqueiramente, como fornecedores de insights de como somos como pessoas e são capazes de prever como nos comportaremos no futuro.”[9]

Segundo Leonardo Marques Vieira, “[o]s algoritmos são modelos matemáticos (softwares) ordenados por uma determinada finalidade, buscando padrões de números.”[10] Registre-se, pois, que os “algoritmos são falíveis e limitados”[11] e “as conclusões que tiram a nosso respeito podem ser discriminatórias”[12] mas, não obstante isso, já dominam todas as formas do comportamento humano na sociedade do controle.

David Sumpter parafraseando Cathy O’Neil diz que “os usos indevidos de algoritmos em tudo, desde a avaliação de professores e propagandas on-line de cursos universitários a fornecimento de crédito privado e previsões de reincidências criminais” e que “[s]uas conclusões eram assustadoras, eis que os algoritmos estavam nos julgando de maneira arbitrária, frequentemente baseados em pressuposições dúbias e dados imprecisos”.

            No estágio atual da transição paradigmática para a sociedade do controle, das redes, da tecnologia da informação, os algoritmos provocam ao menos dois grandes sentimentos:

  • o primeiro, o de que há uma dominação, uma submissão dos resultados que produzem condicionando as ações humanas, confundindo o fato de terem em seu core a matemática como ciência exata, eis que buscam transferir para os resultados que produzem a mesma exatidão da ciência matemática, o que não é fato;
  • o segundo, a de uma grande insegurança dos resultados “reais” com a má utilização dos algoritmos para o alcance desses resultados, como o que ficou amplamente verificado com a utilização da Cambridge Analytica por Donald Trump para ganhar as eleições norte-americanas em 2017.

            No que concerne as suas características, ao menos duas já foram identificadas:

(i) a primeira, a de que são opacos, verdadeiras “caixas pretas”, onde não há possibilidade dos juízes ou qualquer um dos jurisdicionados entender quais informações foram introduzidas no (Input) e nem como o algoritmo chegou a determinado resultado (Output), o que impede o conhecimento do funcionamento interno dos algoritmos, daí “[a]s pessoas quererem saber o que está acontecendo dentro das caixas-pretas que são usadas para nos avaliar e influenciar.”[13]

(ii) o segundo, o de que o modo como os algoritmos são “ensinados” partem de duas perspectivas bastante preocupantes do ponto de vista da retratação da “realidade fática”, ou seja, não só são projetados por meio das informações que o próprio homem ensina à máquina, como captam informações e vieses de outros algoritmos semelhantes por meio de machine learnings ou deep learnings.

Sobre a opacidade dos algoritmos, Sumpter aduz que o termo “caixa-preta” foi utilizado em duas oportunidades, tanto por Frank Pasquale, no título do seu livro “The Black Box Society”, quanto pela ProPublica, em sua série de matérias e vídeos curtos sobre algoritmos chamada “Breaking the Black Box”.” [14]

É fato que na sociedade da informação, “[k]nowledge is power.”[15] Frank Pasquale anuncia que “Deconstructing the black boxes of Big Data isn’t easy”[16] e que há três motivos, ao menos, para se manter as caixas pretas fechadas: sigilo real, sigilo legal e ofuscação, ex vi:

O verdadeiro sigilo estabelece uma barreira entre o conteúdo oculto e o acesso não autorizado a ele. Usamos sigilo real diariamente quando trancamos nossas portas ou protegemos nosso e-mail com senhas. O sigilo legal obriga aqueles que têm acesso a certas informações a mantê-las em segredo; um funcionário do banco é obrigado tanto por autoridade estatutária quanto por termos de contrato a não revelar saldos de clientes a seus amigos. A ofuscação envolve tentativas deliberadas de ocultação quando o sigilo foi comprometido. [17]

Posto isso, considerando que “[n]enhum modelo consegue incluir toda e qualquer complexidade do mundo real ou as nuances da comunicação humana e que “inevitavelmente alguma informação importante fica de fora”[18], acende-se um gravíssimo alerta para a algoritmização de toda e qualquer função no Poder Judiciário.

(iii) O Juiz de Lata e o perigo da robotização do Poder Judiciário

A partir de todas essas considerações, surgem alguns questionamentos importantes:

  • o resultado produzido pelo algoritmo é verdadeiro (corresponde a toda a realidade compreendida de modo holístico ou pode ser discriminatório?
  • a sentença feita por um juiz humano teria o mesmo resultado da que for feita por um juiz robô ou se se pode confiar no resultado dos algoritmos sem conhecer o processo de formação de sua base de dados, sem conhecer o processo inovativo que o conduz?
  • o modelo de personalidade Big Five utilizado pelas Big Techs permite a “[u]m computador nos entender melhor que um humano?[19]

Surge, então, uma reflexão, um balanceamento dos interesses em conflito, entre a “celeridade” que os programas tecnológicos constituídos por algoritmos podem proporcionar ao Poder Judiciário em termos de rapidez, organização de dados, diminuição da mão-de-obra humana, barateamento de recursos, dentre inúmeros outros e, de outro lado, o perigo para a robotização de todas as funções do Poder Judiciário e, sobretudo, a função de julgar (Terceiro Grupo de programas) que já estão sendo usados no Brasil.

Desse modo, por mais que se diga que a decisão elaborada por um “algoritmo, programa ou robô” ainda prescinda da intervenção humana, dada a quantidade de processos que assolam o Poder Judiciário, a pequena quantidade de servidores para dar conta de tão grande demanda, a pressão pelo atingimento das metas de julgamento, dentre inúmeros outros fatores, chegamos a duas importantes conclusões:

  • a primeira, a de que as atividades-fim de elaboração de sentenças, acórdãos e decisões interlocutórias jamais deveriam ter o suporte de um robô para a sua elaboração;
  • a segunda, a de o core da função do Poder Judiciário estar sendo, paulatinamente, transferida para programas algorítmicos formulados por empresas de tecnologia com base em suas crenças, ideais e interesses e tendem a não produzir a eficiência tão almejada para a verdadeira prestação jurisdicional, afinal, o algoritmo não está no mundo, não pode ser-em-si e nem ser-para-si e só a espécie humana é Dasein;
  • a terceira, a de que o Juiz de Lata não tem condições de analisar as peculiaridades de cada caso concreto e, por trás dos processos judiciais (físicos ou digitais, feitos de átomos ou de bits), existem vidas, existem problemas reais que estão no mundo, existe a ânsia para que o Poder Judiciário cumpra o seu verdadeiro papel que é a função de julgar.

 Posto isso, estejamos ainda mais atentos para que a humanidade e o Poder Judiciário não percam o que tanto o homem de lata buscou – um coração que possa compreender de modo holístico o que por trás dos processos judiciais (físicos ou digitais, átomos ou bits) porque atrás desses existem vidas e o sentimento de Justiça que não pode ser alcançado por um juiz de lata, sem coração.


[1] Disponível em Estatísticas do Poder Judiciário (cnj.jus.br) em 07/10/2022.

[2] Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf em 05/10/2022. (p. 30)

[3] Disponível em https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/

[4] Disponível em https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/relatorio_ia_2fase.pdf em 05/10/2022.

[5] Disponível em  https://www.cnj.jus.br/pesquisa-revela-que-47-tribunais-ja-investem-em-inteligencia-artificial/  em 05/10/2022.

[6] Disponívsel em https://www.conjur.com.br/2022-mai-11/salomao-tauk-estamos-perto-juiz-robo em 05/10/2022.

[7] Disponível em Justiça Federal na Paraíba realiza primeira audiência real do Brasil no metaverso – Portal CNJ em 05/10/2022.

[8] Disponível em https://rockcontent.com/br/blog/algoritmo/#:~:text=Um%20algoritmo%20%C3%A9%20uma%20sequ%C3%AAncia,matem%C3%A1tico%20%C3%A1rabe%20do%20s%C3%A9culo%20IX disponível em 28/07/2022.

[9] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 63.

[10] VIEIRA, Leonardo Marques. A problemática da Inteligência Artificial e dos vieses algorítmicos: caso Compas. Op. Cit.

[11] VIEIRA, Leonardo Marques. A problemática da Inteligência Artificial e dos vieses algorítmicos: caso Compas. Brasilian Technology Symposium, 2019. Disponível em https://www.lcv.fee.unicamp.br/images/BTSym-19/Papers/090.pdf  em 11/08/2022.

[12] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Tradução: Anna Maria Sotero e Marcello Neto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019, p. 23.

[13] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 27.

[14] Idem.

[15] PASQUALE, Frank. The black box Society: the Secret Algorithms That Control Money and Information. First Harvard University Press paperback edition, 2016, Sixth Printing, p.3.

[16] PASQUALE, Frank. The black box Society: the Secret Algorithms That Control Money and Information. Idem, p. 6.

[17] Tradução livre: Real secrecy establishes a barrier between hidden contente and unauthorized access to it. We use real secrecy daily when we lock our doors or protect our e-mail with passwords. Legal secrecy obliges those privy to certain information to keep it secret; a bank Employee is obliged both by staturory authority and by terms of employment not to reveal costumers’ balances to his buddies. Obfuscation involves deliberate attempts at concelament when secrecy has been comprommised.[17]

[18] O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Tradução: Rafael Abraham. Santo André, SP: Editora Rua do Sabão, 2020, p. 33.

[19] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 59.

O metaverso e o metrô da linha 743:  o dia em que captar os pensamentos e sentimentos virou modelo de negócio das big techs

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

O que é o metaverso? Muito tem se falado nessa expressão, sobretudo, após Mark Zuckerberg ter anunciado em 28/10/2021 que o Facebook, o Instagram e o WhatsApp passariam a ser chamados de “Meta”[1] com o objetivo de lincar os produtos oferecidos nessas redes sociais a uma nova tecnologia que pretende promover a convergência entre uma realidade física virtualmente aprimorada e um espaço virtual fisicamente persistente, incluindo a soma de todos os mundos virtuais, realidade aumentada e Internet.[2]

A literatura registra que o termo “metaverso” foi idealizado por Neal Stephenson em um romance chamado Snow Crash em 1992, onde o autor se referia a um mundo virtual 3D habitado por avatares de pessoas reais. Ernest Cline, ao escrever Ready Player One, em 2011, igualmente tratou desse mesmo fenômeno. Etimologicamente, a palavra “metaverso” é a junção do prefixo “meta” que significa “além” e a palavra “universo”. Até então estávamos no plano da ficção científica.

No entanto, produtos desenvolvidos com tecnologia inspirada no metaverso já estão disponíveis há cerca de duas décadas no mundo e vem ganhando, paulatinamente, mercado, com os jogos on-line que combinam plataforma de relacionamento com interação entre pessoas e ambientes digitais imersivos, como o Habbo[3] e Club Penguin[4].

Registre-se que outras tecnologias mais recentes como a dos jogos GTA RP Cidade Alta ou PK XD, também disponíveis para celulares Android e Iphone (IOS), vem ganhando ainda mais mercado. O GTA RP, segundo especialistas, utiliza a técnica Roleplay que quer dizer “interpretação de personagem”, onde o jogador tem a possibilidade de criar uma história e fazer um tipo de simulação de vida, ou seja, se cria um personagem avatar que interage com outros personagens avatares, no mundo digital, por meio de pessoas reais.[5] Já o PK XD[6], muito direcionado ao público infantil e adolescente, inicialmente criado no âmbito da subsidiária PlayKids, rapidamente, diante de seu sucesso, deu origem a criação do estúdio de games da empresa Afterverse. A essência é a mesma, onde se cria um avatar que pode realizar diversas atividades e interagir ao mesmo tempo com outros jogadores por meio de um chat, mesclando o ambiente real e o virtual em uma única dimensão.  

Até então, as tecnologias de interação do mundo virtual e do mundo real estavam restritas aos games, mas diante do sucesso com o público e dos vultuosos lucros que geraram, a indústria já começou a desenvolver produtos tecnológicos diferenciados sob a mesma concepção tecnológica unindo o real e o virtual em uma única dimensão.

Um dos produtos que está em alta é o chamado “óculos do Facebook”, uma parceria entre a Ray Ban e o Facebook chamado de Ray-Ban Stories Smart Glasses que mescla a função precípua dos óculos de sol e agrega as funções de vídeo câmera e áudio, permitindo tirar fotos, gravar vídeos, ouvir músicas e compartilhar conteúdos pela mídia social.[7]

Há outros produtos que aderem tais tecnologias que estão sendo desenvolvidas para serem disponibilizadas em veículos, permitindo ao passageiro uma experiência de imersão muito maior que apenas a visual, despertando novos sentidos. A Holoride[8] é uma empresa que desenvolve tecnologias, como a XR, que permite o feedback físico em tempo real do veículo, fazendo com que você passe a sentir o que vê. Tais tecnologias já estão disponíveis em automóveis da marca Audi[9] e Porsche[10], por exemplo. Outras grandes empresas como a Neuralink e a Minlab desenvolvem tecnologias voltadas para o conhecimento (ilimitado) do cérebro, para entendê-lo em uma teia de comunicação que permite que você se mova, pense, sinta e perceba[11], para produzir uma interface com o cérebro, empurrando os limites da engenharia neural[12], além de promover engenharias junto ao cérebro com o objetivo de melhorar a vida[13]

Diante de tais exemplos, é possível afirmar que o Metaverso já é uma realidade incontornável. No entanto, nesse momento histórico, essa tecnologia ainda não foi capaz de alterar o modo de viver da humanidade. Ao que tudo indica, o Metaverso não será um plus da internet. Será uma outra dimensão real/virtual unívoca e pretende mudar a forma da humanidade se relacionar em todos os seus aspectos.

Mudanças paradigmáticas como essas ocorrem de tempos em tempos. Como exemplos, a invenção da escrita pelos povos sumérios na antiga civilização mesopotâmica (atual Iraque) por volta de 4.000 a.C; a invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutenberg no século XV, por volta de 1439 e a invenção da internet, no pós-guerra fria, com todos os desenvolvimentos tecnológicos que permitiram a Tim Berners-Lee criar a World Wide Web em 1992.

A tecnologia, de fato, encanta, seduz. É sempre a possibilidade de nos encontrarmos com o novo, com a descoberta, vivenciar novas emoções, experiências, facilidades e sensibilidades. A tecnologia representa superação e inteligência, expressão da criatividade do ser humano e acaba transformando em realidade a capacidade do ser humano produzir, inventar, proporcionar experiências ainda não vividas pela humanidade, inovar, expressar-se, utilizar sua inteligência para produzir o “novo”.

No entanto, a pergunta que fica é: o que está por trás dessas tecnologias do metaverso? Qual é a real intenção desse modelo de negócio? Shoshana Zuboff identificou que, no caso da internet, o modelo de negócios gira em torno da obtenção de superávit comportamental para ganhos alheios. Segundo a Autora,

“não somos mais os sujeitos da realização de valor. Tampouco somos, conforme alguns insistem, o “produto” das vendas do Google. Em vez disso, somos os objetos dos quais as matérias-primas são extraídas e expropriadas para as fábricas de predição do Google. Predições sobre o nosso comportamento são os produtos do Google, e são vendidos aos verdadeiros clientes da empresa, mas não a nós. Nós somos os meios para os fins dos outros.”[14]

Com o metaverso, o modelo de negócios que está por trás dessa tecnologia é a obtenção de superávit de pensamentos e sentimentos para ganhos alheios.  Assim, a obtenção dos “comportamentos” humanos está para o modelo de negócios da internet, como a obtenção dos “pensamentos e sentimentos” humanos está para o modelo de negócios do metaverso. E é aqui que surgem as significativas preocupações com o que está por vir e quais os impactos da adoção desse modelo de negócios para os direitos humanos fundamentais.

Raul Seixas, músico brasileiro, se estivesse vivo poderia não acreditar que, ainda que sob outro viés, teria sido um profeta da humanidade ao escrever a letra da música “O metrô da linha 743” e prever que o preço das mercadorias poderia variar conforme o nível mental do consumidor. Se o que interessa são os pensamentos e não os documentos e se as tecnologias do metaverso têm por propósito conhecer não mais só nossos comportamentos, mas também nossos pensamentos e sentimentos, é hora de se parar e avaliar se os Estados não precisam colocar limites ao desenvolvimento dessas tecnologias, por mais encantadoras que sejam.

Muitos questionamentos surgem dessas reflexões: Quais mudanças sociais, econômicas e jurídicas poderão advir da adoção em massa dessa nova tecnologia? Como será a humanidade ciborgue? O que diferencia as sociedades que pensam mais das que pensam menos? Como saber o que você pensa pode alterar a concentração econômica, o preço do arroz e do feijão, as regras de custo da oferta e da demanda e a lógica dos mercados? O que é o pensamento? O que pensa o pensamento?[15]

Pensar é um exercício. Pensar é refletir, é dar tempo de considerar opiniões em contrário, é parar, é considerar a opinião do outro, é, também, poder mudar de opinião. Pensar é um ato interno, privativo, solitário e só é compartilhado quando da vontade do pensador. Até aqui, o pensar faz parte da privacidade e da intimidade do ser humano.

Tecnologias que captam nossos pensamentos e sentimentos sem nossa permissão e usam tais informações contra o próprio ser humano,  como estratégia dos seus modelos de negócios, induzindo comportamentos (e porquê não pensamentos e sentimentos?) são aviltantes e é preciso que o desenvolvimento dessas tecnologias, se usadas como modelos de negócios, sejam “limitadas” para que a nossa cabeça “oca” não seja jogada no lixo da cozinha e nem nossos cérebros sejam comidos vivos à vinagrete por senhores alinhados, despertando ao nosso último pedaço, antes de ser engolido, o pensamento de “quem seria esse desgraçado dono dessa zorra toda”.

Lutemos, pois, enquanto há tempo, contra o abuso de poder econômico e imponhamos limites às tecnologias que possam violar direitos fundamentais do ser humano ao captarem nossos comportamentos, pensamentos e sentimentos, sem nosso consentimento. Chega de ganharmos espelhos.  


[1] https://tecnoblog.net/noticias/2021/10/28/facebook-muda-de-nome-para-meta-por-causa-do-metaverso/ disponível em 19/07/2022.

[2] https://tecnoblog.net/responde/entenda-o-que-e-metaverso-a-realidade-do-futuro/ disponível em 17/07/2022.

[3] https://www.habbo.com.br/ disponível em 20/07/2022.

[4] https://newcp.net/pt/ disponível em 20/07/2022.

[5] https://mktesports.com.br/blog/games/o-que-e-gta-rp/ disponível em 20/07/2022.

[6] https://canaltech.com.br/mercado/pk-xd-e-apenas-para-criancas-a-estrategia-da-afterverse-para-o-jogo-vai-alem-177960/

[7] Prontos para óculos inteligentes? Torne seus os Ray-Ban Stories, a última novidade em termos de tecnologia vestível. Nossos óculos de grau e de sol inteligentes, com videocâmara e áudio, combinam a lendária tecnologia de Facebook com o estilo icônico Ray-Ban. Com os óculos Ray-Ban X Facebook, você pode tirar fotos, gravar vídeos, ouvir músicas e fazer chamadas, além de compartilhar conteúdos diretamente nos seus canais de mídia social. Escolha seus óculos tecnológicos Ray-Ban entre 3 modelos atemporais e 20 combinações de cores de lentes e armação.[7] https://www.ray-ban.com/brazil/ray-ban-stories?cid=IN-SGA_210607-4.BR-RayBan-PT-NB-DSATargetUrl&gclid=EAIaIQobChMIz4_pt9uH-QIVGEJIAB1c3A1XEAAYASAAEgJ9oPD_BwE&gclsrc=aw.ds disponível em 20/07/2022.

[8] https://www.holoride.com/ disponível em 20/07/2022.

[9] https://www.audi.com/en/innovation/development/holoride-virtual-reality-meets-the-real-world.html disponível em 20/07/2022.

[10] https://newsroom.porsche.com/en/2022/innovation/porsche-entertainment-technology-startup-holoride-location-based-virtual-reality-lbvr-porsche-experience-center- pec-los-angeles-27561.html disponível em 20/07/2022.

[11] https://neuralink.com/science/ disponível em 20/07/2022.

[12] https://neuralink.com/approach/ disponível em 20/07/2022.

[13] https://neuralink.com/applications/ disponível em 20/07/2022.

[14] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução: George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 115.

[15] Em referência a Felipe Zenchet, professor de Filosofia do Direito na Universidade de Brasília.