Fabio Luiz Gomes & Thiago Tirolli

I – Critério temporal

Constata-se que o Art. 3º delimitou que a Emenda Constitucional entrou em vigor na data da publicação e fixou que a exigência da relevância aos recursos interpostos após a entrada em vigor da Emenda Constitucional, isto é, 14 de Julho de 2022.

Não restando dúvidas de que os recursos em trânsito no Superior Tribunal de Justiça não poderão ter como filtro de admissibilidade esta Emenda Constitucional.

II – Conceito de Relevância

Um dos desafios impostos pela Emenda Constitucional será estabelecer um conceito de “relevância”.

Estabelece o Art. 1º da Emenda Constitucional (acrescentou um § 2º ao Art. 105 da CRFB) que no Recurso Especial “o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso”.

Trata-se, nesse caso, de um reflexo claro da visão que o Superior Tribunal de Justiça possui de sua missão constitucional, de pacificar e dar a última palavra na aplicação da legislação federal, sem que funcione como verdadeira Corte de revisão.

Portanto, é fato constitutivo – decorrente do mandamento do próprio texto da emenda constitucional, ao dispor que o recorrente “deve” demonstrar a relevância – que a partir de 14 de Julho de 2022 o Recurso Especial traga em suas razões um tópico de admissibilidade recursal que fundamente o requisito da relevância das questões de direito infraconstitucional a ser demonstrado pelo recorrente.

Ao contrário do que ocorreu na regulamentação da transcendência dos Recursos de Revista direcionados ao TST, ocorrida em 2017 pela chamada “Reforma Trabalhista”, que define que o Tribunal analisará se a causa transcende aos interesses individuais – desobrigando o recorrente de trazer o tema como tópico recursal -, no presente caso o texto constitucional já prevê uma atuação positiva do recorrente.

Assim, a demonstração da relevância metaindividual, portanto, transcendente, deve fazer parte da petição recursal.

A negativa de trânsito ao Recurso Especial por conta da ausência de relevância apenas pode ocorrer pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente. Nesse caso, tratando-se de Resp, em regra o órgão julgador é uma das Turmas do STJ, compostas por 5 ministros. Assim, o não conhecimento do REsp, por esse motivo, apenas pode ocorrer pela manifestação de ao menos 4 Ministros.

Observa-se, contudo, que o próprio dispositivo utiliza o vocábulo “nos termos da lei”, parece que em uma interpretação mais açodada poder-se-ia considerar essa norma constitucional como sendo de eficácia limitada.

Contudo, ao se realizar uma interpretação sistemática constata-se que na verdade se trata de uma norma constitucional de eficácia contida, isto é, essa norma já possui a aplicabilidade direta e eficácia imediata, e se posteriormente houver uma norma infraconstitucional poderá restringir o seu alcance.

Posto isto, urge delimitar o alcance do que seja “relevância” para essa norma enquanto não houver a norma infraconstitucional restritiva.

De início, a própria norma traz previsões em que a relevância será presumida. Recursos Especiais  que envolvam matéria penal, improbidade administrativa e inelegibilidade não passam pelo filtro da relevância.

Ainda, o texto da EC nos aponta mais critérios: (i) Recursos especiais oriundos de causas cujo valor da causa seja superior a 500 salários mínimos; (ii) em que o acórdão afronte jurisprudência dominante do STJ; e (iii) demais casos previstos em Lei.

Tais critérios, que afastam a necessidade do Recurso Especial se sujeitar ao filtro da relevância, nos dão um direcionamento inicial em que casos teremos essa relevância “presumida”. Entretanto, decerto exigirão interpretação e discussão do próprio STJ para definir as especificidades de sua aplicação.

Por exemplo. Quando se fala que o valor da causa, é adequado considerar o valor apontado na inicial (ou em correção posterior) ou, em interpretação sistemática, deve-se considerar o proveito econômico da demanda e o seu potencial reflexo econômico? O tema é abordado com mais detalhamento no tópico adiante.

E mais. Não podemos apontar com segurança o que pode ser considerado jurisprudência dominante do STJ, pois se trata de conceito aberto. Seriam as decisões reiteradas de Turmas da Corte? Decisões chanceladas pela Corte Especial? Decisões vinculantes?

Por fim, sobre a presunção de relevância “nos termos da lei, poder-se-á fazer uma interpretação sistemática do termo “relevância” e por analogia se fixaria um critério terminológico, buscar-se-ia no requisito de repercussão geral nos recursos extraordinários[1], que também se utiliza o termo “relevância” para definição do que seja repercussão geral.

Portanto, a delimitação do conceito de “relevância”, enquanto não sobrevier a norma infraconstitucional restritiva, será relevante “do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa…”.

Tal se alinha com o desenho e atuação do Poder Judiciário brasileiro, em especial o STF que, por ser a Corte Suprema, em princípio, daria a última palavra sobre que temas entende haver transcendência dos interesses individuais.

Ou seja, uma causa em que o Supremo Tribunal Federal entendeu possuir Repercussão Geral, atrai a existência de transcendência para o Recurso e Revista trabalhista e assim deve ser para o Recurso Especial.

O STF assim já se manifestou, a exemplo da Rcl 38529 AgR-ED, em que estipulou que:

 “Nos termos da jurisprudência desta Corte, o óbice suscitado pelo Tribunal Superior do Trabalho à admissão do agravo de instrumento no recurso de revista (ausência de transcendência da matéria) está em descompasso com a premissa de que os julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal dos paradigmas referidos (Tema 246 e ADC 16) revelam a transcendência da questão debatida nos autos de origem.

Dessa desarmonia, resulta a usurpação da competência desta Suprema Corte, pela inadmissível obstrução da via recursal extraordinária”.

Portanto, adequado que na pendência de Lei que regule a EC, utilize-se os parâmetros de Repercussão Geral.

Em conclusão, os recursos especiais devem destacar um tópico que demonstrem a relevância recursal, apontando os casos em que a relevância seja presumida nos termos do próprio texto constitucional e enquanto não houver a norma restritiva, deverá ser uma causa meta-individual do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico.

E, ademais, como a EC trouxe conceitos abertos, cabe aos recorrentes iniciarem a discussão desses temas, em especial do que seria considerado, neste caso, jurisprudência dominante do STJ.

III – Valor da Causa

Em dois dispositivos o termo “valor da causa” é repetido:

  1. No primeiro faz parte do texto constitucional, fixando como causa relevante o consubstanciado no Art. 1º da Emenda Constitucional, que estabeleceu no rol exemplificativo, no § 3º, III do Art. 105 da Constituição: “ações cujo valor ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos.
  2. O segundo está disposto no Art. 2º da Emenda Constitucional: “ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do § 3º  do referido artigo.”

Em relação ao item 1, pode-se chegar às seguintes interpretações:

Uma primeira interpretação é a literal, de que não caberia recurso especial de causas que fossem inferiores a 500 (quinhentos) salários mínimos, porém, numa perspectiva interpretativa sistemática, não poderia infirmar tamanho impeditivo as causas inferiores a esse patamar, sob pena de contrariar diversos princípios constitucionais, dentre eles destacaríamos o do devido processo legal substantivo (due process of Law), afinal não se pode restringir a vida-patrimônio ou liberdade sem o devido processo, neste caso, nem uma lei, no caso uma emenda constitucional, poderiam fazê-lo.

No entanto, objetivamente, essa lei gera uma presunção de que nas causas superiores a esse valor poderia ser considerada relevante, com uma argumentação simplificada. Nesse diapasão, restaria simplificada a argumentação da relevância jurídica-social-econômica nas causas superiores a esse valor.

Ao passo que nas causas inferiores a esse valor, a parte recorrente deverá demonstrar de forma analítica-fundamentada a relevância jurídica.

Concluindo, as causas superiores a 500 (quinhentos) salários mínimos gozam de uma presunção relativa de que haja relevância jurídica, nas causas inferiores a esse valor, caberá às partes fazerem uma demonstração analítica da relevância jurídica de sua causa.

Já no item 2, inicialmente poderia se pensar que ao fixar o valor da causa com um valor inferior na petição inicial, no curso do processo ficar constatado o benefício econômico, poderia ser pleiteada a revisão do valor da causa em sede de recurso especial e com isso, se for superior a 500 (quinhentos) salários mínimos, poderia ser revista.

Contudo a Emenda Constitucional não se utilizou do conceito de benefício econômico, portanto, a atualização deverá ser versada do valor atribuído ao valor da causa.

IV – Jurisprudência dominante do STJ

O fato da emenda constitucional trazer o conceito aberto “Jurisprudência dominante” do STJ abre espaço para que o recorrente, utilizando-se da argumentação jurídica e retórica, classifique que o acórdão recorrido, de alguma forma, violou a jurisprudência dominante do STJ.

E a discussão é proveitosa e, ao nosso ver, decerto será parametrizada pelo STJ logo no início da aplicação do filtro de relevância nos Recursos Especiais.

A despeito da falta de definição, o Código de Processo Civil pode auxiliar em tal interpretação.

O artigo 489, § 1º, VI do CPC, ao falar das decisões que são consideradas não fundamentadas, inclui aquela que deixa de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte.

E sobre isso, o STJ já pôde se manifestar no sentido de que “A regra do art. 489, §1º, VI, do CPC/15, segundo a qual o juiz, para deixar de aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, deve demonstrar a existência de distinção ou de superação, somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos.”(REsp n. 1.892.941/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 1/6/2021, DJe de 8/6/2021.)

Portanto, é provável que o STJ, ao aplicar o filtro da relevância, considere que jurisprudência dominante seja apenas os precedentes qualificados e vinculantes que possui.

Não obstante, na visão dos produtores deste texto, para garantir o cumprimento do mister constitucional da Corte cidadã, jurisprudência dominante deve ser considerada aquela (i) reiterada nas turmas; (ii) oriunda da Corte Especial; ou (iii) consubstanciada em Súmula da jurisprudência da Corte.

Isso porque, a produção de precedentes qualificados no STJ pode não ocorrer na velocidade que os jurisdicionados necessitam, o que permitiria a interpretação descompassada da legislação federal pelos Tribunais Estaduais.

De toda forma, considera-se proveitoso o debate sobre o tema para ensejar a pacificação da questão desde logo.


[1]A regulamentação do § 3º do art. 102 da Carta Magna foi realizada pela Lei nº 11.418, de 2006, que inseriu os arts. 543-A e 543-B no Código de Processo Civil, e pela Emenda Regimental nº 21, de 2007, do Supremo Tribunal Federal (STF).


FABIO LUIZ GOMES. Advogado corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Mestre e Doutorando em Direito Público.

THIAGO TIROLLI. Advogado corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Especialista em Direito Processual Civil.

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