Mauro Grinberg

Já se disse que a Constituição Federal é uma obra em capítulos. O último (até o momento em que este singelo artigo é escrito) é a Emenda Constitucional 125, de 14 de julho de 2022, que altera o art. 105 para introduzir o quesito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.

Estabelece o art. 105, III, “a”, que “compete ao Superior Tribunal de Justiça” “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e territórios, quando a decisão recorrida” “contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”.

Foi agora acrescentado, pela nova emenda, o § 2º: “No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento”.

Leonardo Carneiro da Cunha, em oportuno artigo, já nos adverte que a expressão “nos termos da lei” traz exigência: “O novo requisito de admissibilidade do recurso especial depende de regulamentação, pois o referido § 2º dispõe que o recorrente deve demonstrá-lo “nos termos da lei”, a exigir que haja disciplinamento legal”[1].

O que se vê é que a interposição de recurso especial com base na alínea “a”, acima referida, impõe a necessidade da demonstração de relevância (“nos termos da lei”), sendo que tal relevância pode, em tese, não ser conhecida pela maioria de 2/3 do órgão julgador. Até aqui temos um entendimento.

Mas a emenda acrescentou também o § 3º, que Leonardo Carneiro da Cunha trata como de “relevância automática”[2]: definindo em seus incisos os casos em que “haverá a relevância”: “ações penais”, “ações de improbidade administrativa”, “ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos”, “ações que possam gerar inelegibilidade”, “hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça” e “outras hipóteses previstas em lei”.

De início já se percebe que o legislador constitucional deixou aberta ao legislador ordinário a faculdade de acrescentar hipóteses de cabimento do recurso especial, no que parece ser uma alteração perigosa de competência, dando ao legislador ordinário o poder de, na prática, legislar constitucionalmente. Em linguagem mais clara, o legislador ordinário poder mudar a Constituição com quórum menor e procedimento mais simples. Mas há outra dúvida trazida pela nova emenda.

Tal dúvida é saber se o Superior Tribunal de Justiça (STJ) poderá negar seguimento a um recurso especial mesmo que se aplique um dos incisos do § 3º acima referido, como, por exemplo, se uma causa ultrapassa o valor de 500 salários mínimos – o que hoje resultaria no valor de R$ 660.000,00. Se o valor da causa for superior a este valor, pode o STJ ainda assim negar a relevância quando o novo texto constitucional diz que “haverá relevância” a esta hipótese? 

Em outras palavras, quando o novo texto constitucional diz que “haverá relevância” em determinadas hipóteses, ele parece, na leitura simples, ser determinante. E nem precisa de disciplinamento legal por ser de “relevância automática”. Então, a possibilidade de rejeição por 2/3 dos membros do órgão julgador parece ser destinada às demais hipóteses, que não estas previstas no § 3º acima referido. Isto porque a linguagem da emenda é determinante, indicando que, por exemplo, um recurso especial em uma causa cujo valor exceda 500 salários mínimos será necessariamente relevante. Assim, em um processo de valor superior a R$ 660.000,00, a demonstração de relevância é desnecessária porque o assunto é relevante por determinação constitucional.

Vale lembrar que o art. 2º da emenda permite que, nas causas iniciadas antes da sua entrada em vigor, a parte interessada altere o valor da causa. Aí existirá uma outra dúvida na hipótese do réu original da ação ser o recorrente pois o valor terá sido fixado pelo autor.

Aguardemos novos capítulos.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, advogado especializado em Direito Concorrencial e sócio fundador de Grinberg e Cordovil.


[1] “Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal”, Consultor Jurídico, 16/07/2022

[2] Artigo citado

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