Lucia Helena Salgado

Há pouco, no dia 10 de setembro, o CADE completou 60 anos como a autoridade brasileira de defesa da concorrência. No desenrolar dessas seis décadas, a trajetória da instituição tem refletido com precisão o desenrolar da História contemporânea do país. O CADE conheceu um longo período ofuscado pelo intenso dirigismo estatal da economia durante o regime militar. O advento da Nova República representou uma verdadeira primavera para a instituição, com a indicação de juristas notáveis, como Isabel Vaz e Mauro Grinberg. O rito de passagem para a maioridade como instituição, identidade essa conferida pela lei 8.884/94, foi conduzido por agentes públicos do calibre de Neide Malard e Rui Coutinho, que não poderiam traduzir melhor os critérios legais de notório saber e ilibada reputação.

O momento em que o CADE como autoridade antitruste alcança a maioridade não por acaso coincide com aquele em que se gestava o Plano Real, os programas de transferência direta de renda e a reforma do Estado, com a introdução de novos atores, as Agências Reguladoras, e novas formas de gestão de setores de infraestrutura. Foi em meados dos anos 1990, que o CADE inaugura o desenho de “agência reguladora”, como autarquia dotada de autonomia decisória e recursos necessários para o enforcement legal (como capacitação técnica, procuradoria especializada e institutos como medidas preventivas e sancionadoras e ordens de cessação). No curso das mais de duas décadas, já neste século, sucessivas composições memoráveis da autoridade brasileira – sempre primando pela excelência técnica e a submissão ao interesse público – lograram difundir a cultura da concorrência, obtendo sucesso na alteração de padrões de conduta de firmas no mercado, firmar jurisprudência, propor ao legislativo aperfeiçoamentos ao enforcement legal – como os instrumentos de busca e apreensão e acordos de leniência firmados em casos de cartel. Foi o processo que levou a instituição à maturidade, com a promulgação da lei 12.529/11, que confirmou os avanços anteriores, corrigiu falhas e lapidou o desenho institucional da autoridade.

Esse processo de amadurecimento do CADE, no curso do qual firmou reputação que ultrapassa fronteiras pela qualidade e independência de suas decisões, acompanhou um processo mais amplo de construção institucional, inaugurado com a promulgação da Constituição Cidadã e moldado de forma especial pelos princípios da boa governança – autonomia, transparência e fundamentação técnica das decisões e prestação de contas à sociedade soberana. É com profundo assombro, portanto, que se recebe a notícia de que o atual presidente do CADE determinou de oficio à Superintendência Geral a abertura de inquérito administrativo para apurar suposta conduta colusiva de institutos de pesquisa de opinião em razão de erros de previsão semelhantes incorridos nos levantamentos de intenção de voto a candidatos à Presidência da República.

O desenho institucional do CADE, fortalecido pelo compromisso de seus integrantes – dirigentes e corpo técnico – com o cumprimento estrito das melhores práticas de governança, manteve-o por muito tempo infenso ao fenômeno que a literatura especializada denominou como captura. A reputação de qualidade técnica das decisões, por outro lado, sempre inibiu indicações fundadas no apadrinhamento político. Essas salvaguardas, contudo, demonstram perder força quando as instituições que sustentam o Estado de Direito – como as eleições – sofrem continuado ataque.

A determinação para que a SG abra inquérito para apurar suposto cartel entre institutos de pesquisa não encontra qualquer fundamento na Economia e no Direito Antitruste; os elementos econômicos básicos estão ausentes, a começar pela racionalidade da conduta: conluios quando organizados intencionam afetar artificialmente quantidades e preços visando maximizar lucros conjuntos.  Não há teoria do dano fundada em teoria ou jurisprudência de defesa da concorrência capaz de descrever como hipótese a racionalidade de institutos de pesquisa combinarem errar resultados de pesquisas de intenção de voto para assim maximizarem lucros no mercado de surveys de opinião.

A ilação de que haveria “uma ação orquestrada dos institutos de pesquisa na forma de cartel para manipular em conjunto o mercado e, em última instância, as eleições” (SEI/CADE – 1133237 – Oficio) revela um espantoso desconhecimento da economia aplicada à defesa da concorrência, do escopo da legislação em defesa da concorrência e das competências legais do CADE. Em última análise, estamos diante de um flagrante desvio de finalidade e de vicio de competência, condutas incorridas por parte do dirigente do CADE que ferem mortalmente a reputação construída pela instituição em décadas de esforço coletivo de seus integrantes e da comunidade antitruste que a acompanha e respeita.

Em editorial do último dia 15/10[1], a WebAdvocacy descreveu com perfeito didatismo o porquê da economia antitruste não se aplicar à análise de pretensa conduta de institutos de pesquisa de opinião, além de explicar as características básicas de uma análise estatística – algo que se esperaria ser de conhecimento da presidência do CADE, saber elementar que jamais faltou aos ocupantes desse importante cargo de Estado. Àquela análise, caberia acrescentar apenas uma conjectura: os surveys de opinião seguem metodologia estatística consagrada, usualmente supondo uma distribuição gaussiana (normal) da população. Contudo, o distanciamento entre resultados de pesquisa e resultados concretos de eleições na atualidade – como na eleição presidencial estadunidense de 2020 e nos referendos do Brexit também em 2020 e do projeto de Constituição chilena em 2022 – apontam para a necessidade de revisão da metodologia que supõe a distribuição normal da população (em formato de sino). É plausível supor que a divisão recente das sociedades entre posições inconciliáveis esteja gerando distribuições assimétricas de frequências, a serem melhor representadas por outros formatos de função.

Como é consabido, na mesma data de publicação do fatídico ofício do Presidente do CADE a seu Superintendente, a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou de pronto sem efeito a decisão de instaurar o referido inquérito administrativo, entendendo haver usurpação de competência da Justiça Eleitoral e indícios de abuso de poder político. Determinou ainda o envio do despacho à Corregedoria-Geral Eleitoral e à Procuradoria-Geral para apuração das irregularidades cometidas. Aguardemos com paciência – e confiança na solidez institucional do CADE – os resultados das apurações serem promovidas pelo TSE.

Mais uma vez, o instituto dos pesos e contrapesos, um dos pilares da engenharia institucional que sustenta o Estado de Direito, veio em socorro de nossa jovem Democracia. Que o funesto episódio sirva de alerta à Sociedade, para que esta atente à seriedade da exigência imposta pelo Legislador quando estabeleceu requisitos de notório saber e ilibada reputação aos indicados pela Presidência e sabatinados e aprovados pelo Senado da República para exercer mandato seja nas Agências Reguladoras, seja no CADE.

Lucia Helena Salgado, Professora Titular de Ciências Econômicas, UERJ, foi Conselheira do CADE por dois mandatos (1996-2000).


[1] WEBADVOCACY. Resultados semelhantes e distantes do efetivamente verificado são indícios de cartel capazes de merecer inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica? Vamos à teoria antitruste!!! – WebAdvocacy. Editorial. 15 de outubro de 2021. Disponível em: Resultados semelhantes e distantes do efetivamente verificado são indícios de cartel capazes de merecer inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica? Vamos à teoria antitruste!!! – WebAdvocacy.

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