Mudança à vista nas investigações de defesa comercial

Fernanda Manzano Sayeg

A partir de 1º de setembro de 2021, os autos das investigações de defesa comercial conduzidas pela Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) migrarão do Sistema Decom Digital (SDD) para o Sistema Eletrônico de Informações do Ministério da Economia (SEI/ME).

A Portaria Secex nº 103, de 27 de julho de 2021, publicada no Diário Oficial da União do último dia 28 de julho, revogou a Portaria SECEX nº 30, de 7 de junho de 2018, e determinou que o SEI/ME passará a ser utilizado para produzir, editar, assinar, tramitar, receber e concluir os processos eletrônicos referentes a investigações de defesa comercial.

Até 2015, os processos administrativos de defesa comercial eram todos em papel. Isso significava que os representantes legais da indústria doméstica, exportadores e importadores passavam dias imprimindo, organizando e numerando centenas de documentos, que eram compilados em verão pública e confidencial e enviados por courier para protocolo em Brasília. A consulta aos autos era agendada e só podia ser realizada in loco, o que resultava em centenas de cópias impressas das páginas relevantes dos autos dos processos.

À época, o sistema representou um importante avanço institucional no sentido de modernizar as práticas processuais da SDCOM. As partes interessadas passaram a ter a possibilidade de realizar protocolo e a consulta dos autos eletrônicos dos processos de forma remota, a qualquer momento. Porém, o SDD era um sistema engessado, com acesso restrito em alguns sistemas operacionais e navegadores, e diversos problemas começaram a surgir. Com os prazos apertados das investigações de defesa comercial, as partes interessadas eram significativamente prejudicadas sempre que o SDD apresentava instabilidades ou problemas técnicos, resultando em algumas horas para que um simples protocolo fosse realizado.

Assim, é possível dizer que o SDD se tornou um gargalo operacional na SDCOM, tendo em vista o custo relacionado à manutenção, suporte técnico e instabilidades recorrentes do sistema.

Por sua vez, o SEI/ME é uma ferramenta simples, acessível por qualquer sistema operacional, que é amplamente utilizada pela Administração Pública, sendo, inclusive, utilizado pelas partes interessadas para protocolos e acompanhamento dos autos eletrônicos de Avaliações de Interesse Público.

Com a migração dos processos de defesa comercial p[ara o SEI/ME, a partir de setembro, os representantes legais das partes interessadas terão acesso a nada menos do que quatro autos no SEI com numerações distintas, a saber: (a) restrito de defesa comercial; (ii) confidencial de defesa comercial; (c) público de interesse público; e (d) confidencial de interesse público.

Uma outra alteração relevante consiste no fato de que a assinatura de documentos de defesa comercial e interesse público seguirá procedimentos distintos no SEI/ME. Nos processos de defesa comercial, passará a ser obrigatória a assinatura de documentos por meio de certificado digital, conforme disposto no art. 17 da Lei 12.995 de 18 de junho de 2014). Na prática, funcionará da seguinte forma: os representantes legais das partes interessadas devem assinar os documentos com certificado digital, os atos processuais serão previamente assinados pelos usuários externos com a utilização de certificado digital padrão ICP-Brasil e, posteriormente, juntados aos autos na forma de documentos externos mediante upload com usuário e senha no SEI/ME.

É importante observar que a obrigação de que os documentos protocolados sejam assinados por meio de certificado digital não existe para os processos de interesse público, conforme estabelecido pelo artigo 1º, §2º da Portaria nº 103, de 2021.  Assim, SEI/ME continuará sendo utilizado na condução dos processos eletrônicos de avaliação de interesse público e os documentos protocolados nos autos público e confidencial de interesse público continuarão sendo assinados apenas por meio de usuário e senha no SEI.

Todo o processo de transição entre os sistemas vem sendo executado pela equipe de servidores da SDCOM juntamente com uma consultora externa. A Circular nº 52, de 2 de agosto de 2021, publicada no Diário Oficial da União de 3 de agosto de 2021, divulgou o Guia Interno e Externo Do Processo Eletrônico no SEI para Processos Administrativos de Defesa Comercial e Interesse Público, que traz orientações para os usuários sobre a transição dos processos para o SEI/MF.  Ademais, no dia 20 de agosto, a SDCOM realizará um treinamento externo de forma virtual para esclarecer dúvidas sobre a transição entre os sistemas eletrônicos.

Os usuários dos instrumentos de defesa comercial e seus representantes legais saúdam essa importante mudança no sistema de gestão processual eletrônica dos autos dos processos de defesa comercial, que representa uma bem vinda modernização e otimização das práticas processuais pela SDCOM.

Defesa comercial em tempos de pandemia

Fernanda Manzano Sayeg

A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus (COVID-19) e as medidas adotadas pelos governos para seu enfrentamento, em todo o mundo, resultaram em restrições à circulação e ao ingresso em diversos países e afetaram diretamente as investigações de defesa comercial no Brasil, que são conduzidas pela Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (“SDCOM”).

Uma das principais consequências das restrições para evitar a propagação do vírus foi a adoção do home office. Diversas empresas se viram obrigadas a realizar inúmeras alterações em suas estruturas. Para as empresas que eram partes interessadas em investigações nde defesa comercial, essas adaptações tiveram um grande impacto na obtenção de informações necessárias para as respostas aos questionários e aos ofícios enviados pela autoridade investigadora às partes interessadas, que possuem prazos exíguos e demandam um grande esforço.

Se já era difícil cumprir os prazos de uma investigação antidumping antes da pandemia, as mudanças introduzidas na pandemia tornaram essa tarefa praticamente impossível. Havia uma grande insegurança jurídica em relação aos procedimentos que seriam adotados para a verificação das informações apresentadas pelas partes interessadas e pela ausência de reuniões presenciais com as autoridades nas quais costumava-se discutir aspectos relevantes dos casos. Não obstante as reuniões presenciais tenham sido substituídas por videoconferências, a pandemia levou a uma maior dificuldade de contato entre as partes interessadas e a SDCOM.

Apenas em 18 de agosto de 2020, foi publicada a Instrução Normativa nº 1/2020, que dispõe sobre as adaptações necessárias aos procedimentos das investigações de defesa comercial e das avaliações de interesse público conduzidas pela SDCOM em decorrência da pandemia.

A referida Instrução Normativa suspendeu, por prazo indeterminado, a realização das verificações presenciais nas fábricas e escritórios das partes interessadas nas investigações de defesa comercial. Ademais, determinou que, em razão da impossibilidade de realização das verificações in loco, a SDCOM promoveria uma análise detalhada de todas as informações submetidas pelas partes interessadas, buscando verificar sua correção com base na análise cruzada das informações protocoladas nos autos do processo e de informações constantes de outras fontes disponíveis. 

Adicionalmente, a Instrução Normativa nº 1/2020 dispõe que a SDCOM poderá solicitar informações complementares adicionais e outros elementos de prova, tais como amostras de operações constantes de petições e respostas a questionários e detalhamentos de despesas específicas, a fim de validar informações apresentadas pelas partes interessadas, nos termos do parágrafo único do art. 179 do Decreto nº 8.058, de 2013.

Cumpre notar que a Instrução Normativa nº 1/2020 determina que os documentos e dados que visam a validar as informações protocoladas pelas partes interessadas sejam apresentadas forma mais completa, clara e precisa possível, e que estes sejam acompanhados de suas respectivas comprovações, justificativas, fontes e metodologias utilizadas, bem como das planilhas e documentos auxiliares utilizados na elaboração dessas informações. Isso sem falar nas traduções juramentadas para o português de todos os documentos elaborados originalmente em língua estrangeira – com exceção do inglês, francês e espanhol – em conformidade com o artigo 18 da Lei nº 12.995, de 18 de junho de 2014.

Assim, desde 18 de agosto de 2020, o procedimento de verificação in loco tem sido substituído pela SDCOM pelo envio de um único ofício, que deve ser cumprido no prazo de 10 dias, prorrogável por igual período, com vistas a validar todas as informações apresentadas por determinada empresa na investigação antidumping. Não obstante o art. 3º da Instrução Normativa estabeleça que podem ser solicitadas informações complementares adicionais àquelas solicitadas após a submissão dos questionários do produtor doméstico, exportador e importador, a SDCOM tem limitado o pedido de informações adicionais a apenas um ofício.

As partes interessadas – sobretudo os exportadores – acabam enfrentando inúmeras dificuldades para cumprir com esse único ofício. Se durante a verificação in loco a maioria dos documentos é analisada presencialmente – sobretudo as telas do sistema contábil e números – e não é solicitada a juntada de tradução juramentada dos mesmos para o português, o mesmo não ocorre quando a comprovação dos dados é realizada por ofício. Simplesmente não há tempo hábil para que que as partes obtenham as inúmeras informações solicitadas nesse ofício no exíguo prazo determinado pela SDCOM, muito menos para que sejam realizadas todas as traduções juramentadas dos documentos, de modo a atender o artigo 18 da Lei nº 12.995, de 18 de junho de 2014.

Como se não bastasse, as partes interessadas ainda se deparam com a dificuldade de apresentar todas as informações solicitadas e respectivas traduções antes do término do período probatório. Embora os artigos 7º e 8º da Instrução Normativa nº 1/2020, determinem que os prazos previstos no Decreto nº 8.058, de 2013, poderão ser suspensos, com base no art. 67 da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, de forma a garantir tempo adequado para a coleta e análise das informações necessárias às determinações da SDCOM, levando em consideração as necessidades de cada processo administrativo individualmente, bem como os princípios constitucionais da razoabilidade e da eficiência, esse não tem sido o caso.

Passados mais de dez meses da entrada em vigor da Instrução Normativa nº 1/2020, resta evidente que a metodologia introduzida por ela é ineficiente, aumentou o grau de dificuldade de comprovação das informações apresentadas nas investigações de defesa comercial para as partes interessadas e os custos das mesmas (haja vista o elevado número de documentos cuja tradução passou a ser necessária), e tornou praticamente impossível para qualquer exportador apresentar todos os dados solicitados de forma completa antes do término do período probatório.

É irrealista esperar que a realização de uma verificação in loco, tanto no exportador quanto no importador, possa ser substituída pelo simples envio de um único ofício requerendo que a empresa transformasse todo o intenso trabalho realizado por uma equipe ao longo de dias em uma resposta escrita e completamente suficiente para validação de todos os dados. Se fosse esse o caso, a realização de verificações in loco com o traslado e dedicação integral de funcionários ao longo de todos esses anos, por várias autoridades no mundo, teria sido um excesso e desperdício de recursos públicos.

Faz-se necessário repensar a condução das investigações de defesa comercial até o término da pandemia, sobretudo no que diz respeito aos prazos e procedimentos para apresentação de informações, de modo a evitar que as decisões nesses processos sejam questionadas tanto judicialmente, no Brasil, quanto no Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (“OMC”).

Como as regras multilaterais de comércio podem auxiliar no fim da pandemia e a restaurar o prestígio da OMC

Fernanda Manzano Sayeg

A Organização Mundial do Comércio (“OMC”) é, indiscutivelmente, uma das mais importantes organizações internacionais. Desde os inícios de suas atividades, em 1º de janeiro de 1995, a OMC tem gerenciado os acordos que compõem o sistema multilateral de comércio, atuado como fórum para a negociação de novas regras, supervisionado a implementação dos acordos pelos membros e solucionado os conflitos gerados pela aplicação de suas regras.

Contudo, a OMC foi perdendo, progressivamente, a capacidade de atualizar a sua agenda temática e, atualmente, vive um momento extremamente delicado.

Nos últimos anos, as disputas comerciais entre Estados Unidos e China resultaram na adoção de medidas protecionistas e sanções comerciais que são contrárias às regras da OMC. Além disso, o Órgão de Apelação da organização está impossibilitado de funcionar por falta de quórum, visto que os Estados Unidos conseguiram bloquear a indicação de novos membros para o Órgão.

Em meio às discussões sobre a necessidade de reforma da organização, teve início a pandemia da COVID-19 e, com ela, ficou clara que a interdependência das cadeias produtivas, que são transnacionais, bem como a relevância da liberalização do comércio internacional, já que insumos para medicamentos, equipamentos de proteção individual e vacinas são, muitas vezes, importados.

Assim, quando foi deflagrada a pandemia, com o intuito de evitar a escassez doméstica, muitos países, incluindo os Estados Unidos e alguns membros da União Europeia, impuseram restrições temporárias à exportação de certos produtos médicos e alimentícios. Entre tais medidas estava a necessidade de autorização para a exportação para equipamentos de proteção individual. Outros países aumentaram a concessão de subsídios e incentivos fiscais para fortalecer a produção interna de medicamentos e equipamentos médicos. 

No entanto, a maioria das medidas introduzidas pelos países buscavam facilitar o comércio, com a eliminação ou a redução da alíquota de imposto de importação para bens relacionados ao tratamento ou prevenção da COVID-19, bem como a aceleração das inspeções alfandegárias para determinados bens, como equipamentos médicos usados no tratamento da doença.

Nesse cenário, não é surpreendente que, até 21 de agosto de 2020, os Membros tenham apresentado à OMC 225 notificações sobre a adoção de medidas relacionadas à COVID-19. Como as notificações dependem de apresentações oficiais e, portanto, muitas vezes estão atrasadas ou incompletas, acredita-se que o número real de medidas introduzidas no contexto da COVID-19 seja ainda maior.

Assim, a pandemia trouxe à tona a necessidade de se repensar e, quem sabe, reestruturar as cadeias globais e valor de forma a garantir o suprimento de itens essenciais a todos os países, mesmo em situações excepcionais, como aquela gerada pela COVID-19. Da mesma forma, a pandemia está acelerando tendências como a mudança para uma economia prioritariamente digital, que não era uma realidade em muitos membros da OMC antes da COVID-19, sobretudo em países de menor desenvolvimento econômico relativo. E, principalmente, a pandemia tem colocado em xeque questões como a proteção às patentes em um momento em que milhares de vidas humanas poderiam ter sido salvas com vacinas, medicamentos e equipamentos hospitalares, muitos dos quais são protegidos por direitos de propriedade intelectual.

Em outubro de 2020, momento em que as vacinas para a COVID-19 estavam em fase de testes, e de modo a evitar o que se chamaria posteriormente de “nacionalismo da vacina”, Índia e África do Sul apresentaram ao Conselho do TRIPS uma proposta para a concessão de um waiver temporário à implementação, aplicação e execução das Secções 1, 4, 5, e 7 da Parte II do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) em medicamentos utilizados na prevenção, na contenção ou no tratamento da COVID-19. A proposta objetiva suspender as proteções dos direitos de propriedade intelectual (patentes, direitos autorais, desenhos industriais e informações não divulgadas) em medicamentos utilizados na proteção e no tratamento da COVID-19 até que a pandemia esteja sob controle. 

Se por         um lado a proposta de waiver conta com o apoio de 57 Membros, incluindo todo o Grupo Africano e países menos desenvolvidos, por outro, países desenvolvidos como Inglaterra, Suíça e os Estados Unidos, que têm grandes indústrias farmacêuticas domésticas, se manifestaram contrários, alegando que a proteção dos direitos de propriedade intelectual incentivou a pesquisa e a inovação e que a suspensão desses direitos não resultaria em um súbito aumento no fornecimento de vacinas. O Brasil, após semanas de silêncio sobre o tema – com vistas a evitar uma crise política com a Índia, que é um importante fornecedor do imunizante se manifestou contrariamente à proposta da Índia e da África do Sul.

Propostas alternativas, incluindo a decretação de uma moratória de dois anos para a aplicação de patentes, sem as exigências de renúncia à proteção da propriedade intelectual sobre direitos autorais, desenhos industriais e informações confidenciais, bem como a proposta de flexibilização de quaisquer restrições e impostos de exportação que possam estar restringindo o fluxo de vacinas e tratamentos para a COVID-19.  Também há esperanças de que os Membros possam chegar a um acordo com empresas farmacêuticas sem que necessariamente ocorra um waiver do TRIPS, como vem sugerindo a Diretora-Geral da OMC.

Em todos os cenários, o que se depreende é que a necessidade de consenso entre todos os Membros, que é um dos princípios basilares da OMC, tornou-se um dos principais obstáculos à atuação da Organização, seja como um fórum que poderia estar criando novas regras mais adequadas para o momento atual, seja atuando na fiscalização do cumprimento das normas existentes. É imprescindível que os membros repensem essa questão e procurem uma solução, que pode estar na celebração de acordos plurilaterais.

Portanto, a crise da COVID-19 pode dar o impulso necessário para que os 164 membros da OMC busquem modernizar a organização e cheguem a um acordo sobre uma ambiciosa agenda de reformas. A Conferência Ministerial da OMC, que ocorreria no Cazaquistão, em junho de 2020, e que foi transferida para junho de 2021, parece ser a ocasião perfeita para esse acordo.

Neste cenário otimista, a nova Diretora-Geral, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, que tomou posse, no início de março de 2021, tem a oportunidade de fazer história não apenas como a primeira mulher e a primeira africana a dirigir a OMC, mas como a mulher que ajudou colocar fim à pandemia e a desenhar uma nova OMC, adequada ao Século XXI. Afinal, a liberalização comercial não é mais um objetivo, mas uma realidade inexorável.

Referências Bibliográficas

FUNKE, Martha. Geopolítica envolve o licenciamento compulsório. Publicado no Valor Econômico em 25/02/2021. Disponível em: https://valor.globo.com/publicacoes/suplementos/noticia/2021/02/25/geopolitica-envolve-o-licenciamento-compulsorio.ghtml

SAYEG, Fernanda M. O papel decisivo da OMC na pandemia. Publicado no JOTA em 18 de março de 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-papel-decisivo-da-omc-na-pandemia-18032021

SCHNEIDER-PETSINGER, Marianne. Reforming the World Trade Organization: Prospects for Transatlantic Cooperation and the Global Trade System. Disponível em: https://www.chathamhouse.org/2020/09/reforming-world-trade-organization/02-wto-reform-and-covid-19.

ZUCOLOTO, Graziela; MIRANDA, Pedro; PORTO, Patrícia. A propriedade industrial pode limitar o combate à pandemia? Publicado em 04/30/2020. Disponível em https://www.ipea.gov.br/cts/en/topics/188-a-propriedade-industrial-pode-limitar-o-combate-a-pandemia

Atualização das regras aplicáveis às investigações de subsídios e aos procedimentos de verificação in loco

Fernanda Manzano Sayeg

O mês de outubro de 2021 foi marcado pela modernização do arcabouço normativo na área de defesa comercial.

Em 19 de outubro de 2021, foi publicado o Decreto no 10.839, de 18 de outubro de 2021, que regulamentará as investigações sobre subsídios conduzidas pela autoridade brasileira e a aplicação de medidas compensatórias. O decreto entrará em vigor 120 dias após sua publicação e substituirá o Decreto no 1.751/1995, que foi promulgado no contexto da criação da Organização Mundial do Comércio (“OMC”). Desde então, houve avanços significativos na defesa comercial, no Brasil e no mundo, tendo o antigo decreto ficado à margem dessa evolução.

O Decreto no 10.829/21 atualiza as normas procedimentos utilizados nas investigações de subsídios e atualiza os conceitos de subsídios com base na jurisprudência construída pela OMC, além de harmonizar os procedimentos das investigações de subsídios com as investigações de dumping, cujo regulamento foi modernizado em 2013. Grande parte dos artigos do novo decreto é bastante similar às disposições do Regulamento Antidumping Brasileiro, tanto no conteúdo quanto na ordem de disposição.

Da mesma forma que ocorre em investigações antidumping, o novo Decreto prevê a possibilidade de não-aplicação de medida compensatória pela Câmara de Comércio Exterior (“CAMEX”) caso seja constatado interesse público. 

O novo regulamento estabelece um cronograma preciso sobre as etapas da investigação, como fases probatórias e de manifestações, além de estabelecer a obrigatoriedade de determinações preliminares para investigações originais, que são essenciais para aplicação de direitos compensatórios provisórios. Ademais, traz inovações importantes em temas não abarcados pelo decreto antigo, como o procedimento de avaliação de escopo, a redeterminação e a anticircunvenção. Há também disciplinas específicas para investigações que envolvam Estados Partes do Mercosul e um maior detalhamento para as condições de aceitação de compromissos de preços.

A SDCOM estima que haverá maior celeridade e segurança jurídica ao processo investigação de subsídios e medidas compensatórias, reduzindo os prazos de análise das petições e das investigações. A expectativa é que os trâmites sejam encurtados em até um terço. Cumpre notar, ainda, que a elaboração do novo decreto foi debatida com o setor privado, por meio de consulta pública.

A atualização da legislação brasileira sobre subsídios e medidas compensatórias é extremamente necessária e bem vinda. Não há dúvidas que a aproximação entre essas investigações e aquelas relacionadas à prática da investigação de dumping é um grande avanço para a indústria doméstica, para os importadores, para os exportadores e para os consultores que atuam nessa área, que lidam há quase 10 anos com o detalhado Regulamento Antidumping Brasileiro.

Com a modernização da legislação, a tendência é que a indústria doméstica recorra cada vez mais a esse instrumento de defesa comercial. Atualmente, há apenas três medidas compensatórias em vigor no Brasil em comparação às 141 medidas antidumping em vigor. No mundo, a frequência na aplicação de medidas compensatórias pelos membros da OMC tem aumentado. Acredita-se que estratégias de incentivos às indústrias nacionais pós-pandemia pelos Estados possa levar a uma maior necessidade de utilização de medidas compensatórias pela indústria brasileira. A modernização do arcabouço normativo no Brasil, garantindo maior transparência e previsibilidade nas investigações de subsídios conduzidas pela autoridade investigadora brasileira, certamente aumentará a atratividade dessa medida de defesa comercial.

Durante o período de vacatio legis do Decreto nº 10.839, será publicada nova portaria com a atualização do arcabouço normativo relacionado às investigações de subsídios e medidas compensatórias, a qual já foi objeto de consulta pública. Também está nos planos da SDCOM publicar em 2022 um guia de investigações de subsídios e medidas compensatórias, nos moldes dos diversos guias da SDCOM já publicados.

Adicionalmente, em 26 de outubro de 2021, a Secex abriu consulta pública sobre quatro petições relacionadas às investigações de subsídios que não tinham fundamento legal na legislação anterior, a saber: (i) petição de revisão anticircunvenção, que trata da investigação de práticas elisivas que frustrem medidas compensatórias aplicadas; (ii) petição de restituição de direitos recolhidos, se o montante de subsídios apurado para o período de revisão for inferior ao direito vigente; (iii) petição de avaliação de escopo, por meio da qual qualquer parte interessada poderá solicitar que se apure se um certo produto está sujeito à medida compensatória em vigor; e (iv) petição de redeterminação, na qual é determinado se a medida compensatória aplicada teve sua eficácia comprometida em razão da forma de aplicação da medida ou em razão da absorção da medida compensatória. A ideia é manter o paralelismo com o já estabelecido nas investigações antidumping.

Nessa mesma data, foi publicada a Circular nº 71, que abriu o prazo de 20 dias para que sejam apresentados dúvidas, questões e temas de interesse no âmbito de investigações sobre subsídios e medidas compensatórias, que serão abordados pela SDCOM no Guia de Investigações sobre subsídios que será publicado futuramente.

Já a Instrução Normativa Secex nº 3, de 22 de outubro de 2021, quer foi republicada no Diário Oficial da União em 3 de novembro, traz novas determinações sobre a realização da verificação in loco em investigações de defesa comercial. Em razão da pandemia da COVID-19, as verificações presenciais das informações prestadas pelos exportadores estavam temporariamente suspensas desde julho de 2020. De acordo com a nova Instrução Normativa, a partir de agora, será dada preferência à verificação in loco e, apenas na impossibilidade de realização desse tipo de verificação, será realizada a verificação dos elementos de prova, por ofício.

Essa alteração é muito benéfica para os exportadores, que foram muito prejudicados com as demasiadas exigências burocráticas e com os prazos extremamente curtos da verificação dos elementos de prova, e voltarão a ter oportunidade de comprovar as informações apresentadas nas respostas aos questionários de forma presencial, em suas próprias instalações.  

A necessidade de aprimoramento da avaliação de interesse público em casos de defesa comercial

Fernanda Manzano Sayeg

Nos últimos anos, a principal alteração na legislação brasileira de defesa comercial diz respeito à avaliação de interesse público.

O Decreto nº 9.745, de 2019, transferiu à Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (“SDCOM”) do Ministério da Economia a competência para propor a suspensão ou alteração de aplicação de medidas antidumping ou compensatórias em razão de interesse público, e a Portaria SECEX nº 13/2020 disciplinou o processo administrativo de avaliação de interesse público no Brasil.

Essa avaliação não está prevista nos Acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Assim, a maioria dos Membros da OMC não adotou previsão específica sobre o assunto em suas legislações. Entre os poucos países que ponderam o interesse público ao aplicar medidas de defesa comercial estão Brasil, Canadá, União Europeia, Nova Zelândia, China, Malásia e Tailândia, os quais incluíram provisões normativas de interesse público em suas legislações.

A avaliação de interesse público tem por objetivo analisar se há elementos que justifiquem a suspensão ou a alteração de medidas antidumping definitivas compensatórias, provisórias ou definitivas. A avaliação de interesse público também pode concluir pela necessidade de não aplicação de medidas antidumping provisórias, caso seja recomendada a aplicação desses direitos na investigação de defesa comercial.

Interesse público é um bastante conceito bastante amplo. A legislação brasileira tenta delimitar esse conceito ao estabelecer que há interesse público sempre que o impacto da imposição da medida antidumping ou compensatória sobre os agentes econômicos se mostrar potencialmente mais danoso quando comparado aos efeitos positivos da aplicação da medida de defesa comercial. O processo administrativo de avaliação pública visa a analisar o eventual impacto da adoção da medida de defesa comercial na oferta do produto em questão no mercado brasileiro, de modo a prejudicar a dinâmica do mercado nacional (incluindo os elos a montante, a jusante e a própria indústria), em termos de preço, quantidade, qualidade e variedade entre outros.

Atualmente, tanto processo administrativo da investigação dumping ou de subsídios quanto o processo administrativo de avaliação de interesse público são conduzidos pela SDCOM, de forma concomitante, seguindo o mesmo rito processual. No caso da avaliação de interesse público, a SDCOM recebe informações, as analisa e pode recomendar: (i) a suspensão da exigibilidade de direito antidumping definitivo ou de compromissos de preços; (ii) a não aplicação do direito antidumping provisório, a homologação de compromisso de preços ou a aplicação de direito antidumping definitivo em valor diferente do recomendado; (iii) a suspensão da aplicação de direito compensatório provisório ou definitivo ou a não homologação de compromissos e a aplicação do direito compensatório provisório ou definitivo em valor diferente do recomendado. Contudo, cabe ao Comitê-Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior (GECEX/CAMEX) o encerramento da avaliação de interesse público e da decisão final na investigação de defesa comercial, em caso de determinação positiva de aplicação ou prorrogação de medida antidumping ou compensatória[1].

Sem querer adentrar na discussão se o argumento de interesse público seria compatível com a lógica da defesa comercial – em que medida o reconhecimento de uma prática desleal de comércio como o dumping comporta uma mitigação? – há alguns aspectos do processo administrativo de avaliação de interesse público que não só podem como devem ser aprimorados, de modo a possibilitar que essa análise seja ainda mais precisa e completa.

No caso de investigações originais, de modo geral, o prazo para envio da resposta ao questionário de interesse público é o mesmo prazo para envio da resposta ao questionário do importador e do exportador. Na maioria das vezes, empresas acabam dedicando muito tempo ao preenchimento do questionário do importador e/ou do exportador a ser apresentado na investigação de dumping ou de subsídios, sem o qual não é possível obter uma margem individual de dumping, e não conseguem se dedicar a obter todas as informações solicitadas no questionário de avaliação de interesse público.

As informações solicitadas no questionário de avaliação de interesse não são informações fáceis de ser obtidas, sobretudo por importadores, que são os principais interessados em evitar a aplicação ou suspender uma medida de defesa comercial em vigor. Ao contrário do questionário do importador e do exportador, que devem ser preenchidos com informações contábeis e do dia-a-dia das empresas, o questionário de avaliação de interesse público solicita informações de natureza concorrencial e de mercado que muitas vezes são desconhecidas por aqueles que não são fabricantes. Basta lembrar que o questionário solicita que sejam apresentados dados de natureza concorrencial como o cálculo de índices de concentração de mercado (em especial do HHI) considerando produção nacional (nos termos de defesa comercial), importações e substitutos e barreiras à entrada. Essa dificuldade é ainda maior quando se trata de um bem que é apenas um dos diversos bens classificados em uma determinada sub posição da NCM, já a que é com base nessa classificação que é possível obter parte das informações publicamente disponíveis sobre determinado produto.

Ao contrário da que ocorre em uma investigação de defesa comercial, não há peticionário nas avaliações de interesse público em investigações originais. O fato de não haver empresa ou associação faz com que o processo administrativo não receba tantas informações nem tanta atenção das autoridades, o que pode resultar em uma avaliação de interesse público incompleta, imprecisa e superficial. Isso é extremamente prejudicial à sociedade como um todo, já que a aplicação de direito antidumping ou compensatório pode resultar no encarecimento do produto objeto da investigação, com reflexos nos demais bens que utilizam esse produto em sua fabricação.

É importante notar que a avaliação de interesse público representa um custo adicional às partes, visto que, como desconhecem as informações solicitadas recorrem à contratação de advogados, economistas e consultorias especializadas, bem como de institutos de pesquisas e relatórios setoriais, para obter as informações solicitadas no questionário.

Não há dúvidas que, dada a relevância da verificação dos efeitos das medidas de defesa comercial sobre o interesse público, a insuficiência de dados substantivos que subsidiem devidamente o processo decisório pode prejudicar a funcionalidade dessa avaliação. Assim, é importante que a sociedade debata formas de tornar essa análise ainda mais eficaz.

Entre as possíveis sugestões, estão a ampliação do escopo da análise – que, na prática, está limitada aos itens estabelecidos no questionário de avaliação de interesse público – para que ela seja adaptável a cada tipo de produto. É evidente que o impacto de uma medida antidumping sobre um bem intermediário deve ser analisada de forma diferente do impacto de uma medida antidumping sobre um bem final. Da mesma forma, há questões específicas relacionadas a produtos agrícolas que não se aplicam a produtos químicos e vice-versa.

Outra medida que pode fazer muita diferença é um maior engajamento da SDCOM não só na análise, mas também na obtenção das informações. Hoje observa-se uma grande passividade na condução da avaliação de interesse público. Não é aceitável que a SDCOM decida que não há impactos apenas porque não recebeu informações das partes, as quais muitas vezes não dispõem dos dados ou de condições econômicas para levantá-los.

Por fim, os aspectos atinentes à concorrência doméstica que fazem parte da análise também deveriam receber mais atenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Embora o CADE seja consultado nas avaliações de interesse público, suas análises são superficiais e em nada se assemelham àquelas analises profundas realizadas em atos de concentração ou investigações de cartel. Da mesma forma, outros órgãos da administração pública poderiam ser engajados, de modo que a avaliação de interesse público seja cada vez mais precisa e completa.


[1] Sempre que a SDCOM concluir por a uma determinação negativa de aplicação ou prorrogação de medida antidumping ou compensatória na investigação original ou na revisão de final de período, caberá à Secretaria de Comércio Exterior (“SECEX”) o encerramento concomitante da investigação de defesa comercial e da avaliação de interesse público, por perda de objeto.

Há razões econômicas para se obrigar os licitantes à contratação de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar?

Vanessa Vilela Berbel

Combater a violência doméstica é tarefa compartilhada por todos e claramente enunciada na Constituição Federal, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; destaca-se, ainda, o §2º, art. 3º, da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que reza caber à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos por ela enunciados.

Mas, infelizmente, se o combate à desigualdade de gênero e o enfrentamento à violência contra as mulheres integrassem a matriz curricular do ensino universal, poucos países passariam de ano. Estudo do Fórum Econômico Mundial de 2020 (World Economic Forum/ WEF) revelou que nem eu ou você estará vivo para ver a paridade entre homens e mulheres na saúde, educação, no trabalho e na política, a qual demorará, com sorte, 99,5 anos.

A dimensão “participação econômica e oportunidades”, infelizmente, hoje, não escapa ao trágico diagnóstico, estando o Brasil na posição 89 do ranking (The Global Gender Gap Index rankings by subindex, 20, WEF). Apesar da progressiva queda histórica na diferença entre a taxa de participação masculina e feminina no mercado de trabalho, ela continua substancial, sendo de 22 pontos percentuais em 2015; vários fatores são apontados como causas dessa diferença, dentre eles: discriminação no mercado de trabalho, responsabilização da mulher da maior parte dos trabalhos não remunerados domésticos, dentre outros.

Há muito a se fazer, não se nega; trata-se de resultado histórico que não se logra mudar em curto tempo ou sem a participação maciça dos atores sociais. A questão é: estamos fazendo algo para essa mudança? Parece-nos que sim. Estudo elaborado por FOGUE e RUSSO (IPEA, 2019), aponta a expectativa de elevação da presença feminina no mercado de trabalho para 64,3% em 2030, ou seja, 8,2 pontos percentuais acima da taxa em 1992[1], considerando uma população de idade ativa demarcada entre 17 e 70 anos.

Contudo, apesar de todos os avanços promovidos pelo processo contínuo de cooperação transversal entre governo, sociedade civil e comunidade internacional, há uma classe no universo de mulheres carece de maior atenção: as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Daí serem louváveis todas as iniciativas que foquem neste grupo, dentre elas a disposição contida no artigo 25, § 9º, inciso II, da Lei 14.133, de 1° de abril de 2021, que permite aos editais dos processos licitatórios preverem que percentual mínimo de mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por mulheres vítimas de violência doméstica.

Infelizmente, a família, lugar de acolhimento e suporte, pode, para alguns, representar sofrimento e agressão. Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos[2] revelam que das 221.427 denúncias de violência contra pessoas do sexo feminino (entre mulheres e crianças), 75.753 delas referem-se à violência doméstica e familiar contra mulheres.

Os dados reforçam a constatação do relatório “Progress of The World’s Women 2019–2020: families in a changing world”, da ONU Mulheres: “famílias são espaços contraditórios para as mulheres. São lugares de amor, nutrição e solidariedade, mas também local onde as mulheres mais experimentam violência e discriminação”. Não se quer, com essa afirmação, desprestigiar a família; famílias não são apenas importante para o amor e cuidado do indivíduo, mas também representam relação simbiótica com governo e economia. Mercados e Estados que funcionam bem precisam das famílias para produzir trabalho, comprar bens e serviços, pagar impostos e nutrir membros produtivos de sociedade; devem ser, portanto, tratadas com muito zelo pelas legislações e políticas governamentais.

 Recente estudo elaborado por Paulo RA Loureiro (LOUREIRO, 2020) revela que uma mulher que sofre violência doméstica normalmente ganha menos que aquela que não vive em situação de violência; a análise vai além, apura os custos econômicos e financeiros da violência doméstica, justificando a atuação do Estado para o aumento da oferta de emprego e ampliação do acesso ao capital humano.

Segundo levantamento feito por LOUREIRO[3], a violência tem alto custo econômico em países de centro e periferia. Os custos da violência doméstica, em 1995, nos Estados Unidos, chegam a valores atuais de US$ 8,3 bilhões anuais: uma combinação de US$ 5,8 bilhões para cuidados da saúde física e mental e US$ 2,5 bilhões em perda de produtividade. Inglaterra e País de Gales somam o custo de £ 15,7 mil milhões de libras anualmente; por sua vez, Chile e Nicarágua estimam em 6% e 2%, respectivamente, o impacto da violência doméstica sobre o produto interno bruto, dada as perdas de renda das mulheres (LOUREIRO, 2020, p.06).

Além dos custos sociais globais, o estudo revela que a violência doméstica é um dos fatores

predominantes nas perdas salariais individualmente sentidas pelas mulheres. Mulheres vítimas de violência doméstica, quando comparadas com aquelas que não sofrem violência doméstica têm uma perda de 30,6 % do salário real. Mulheres agredidas tiveram, na média, renda do trabalho principal de R$ 528, contra R$ 1.056 das que não sofrem agressão (LOUREIRO, 2020).

Logo, pode-se concluir que andou bem o legislador ao prever a possibilidade de se obrigar licitantes a empregar mão de obra feminina vítima de violência doméstica, não sendo desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação; a  mulher, além de eminentemente vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e psicológicos em âmbito privado, ao sofrê-los também importa em custos econômicos sociais e individuais, cabendo a todos internalizá-los e prevenir suas ocorrências. Esperamos que as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entendam a importância de darem efetividade ao dispositivo legal.


[1] FOGUE, Miguel Nathan e RUSSO, Felipe Mendonça. Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados – IPEA. Decomposição e projeção da taxa de participação do Brasil utilizando o modelo idade-período-coorte, 1992 a 2030. In: Mercado de trabalho, conjuntura e análise, n. 25: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2019. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/mercadodetrabalho/190515_bmt_66_NT_decomposicao_e_projecao.pdf

[2] Somatória dos dados obtidos em Painel de Dados 2021/1 e 2020/2, disponível em: Painel de dados da ONDH — Português (Brasil) (www.gov.br)

[3] LOUREIRO, Paulo RA. A Violência Doméstica Causa Diferença Salarial entre Mulheres?. No prelo.

Adicional de obstetrícia nos planos de saúde: equilíbrio econômico do contrato ou tratamento não igualitário do sexo feminino?

Vanessa Vilela Berbel

Metrópole, o clássico filme do austríaco Fritz Lang, roteirizado em parceria com Thea von Harbou, passa-se em 2026 e tem como protagonista um robô, Maria (Brigitte Helm), que tem como objetivo semear a discórdia entre os trabalhadores em um mundo devastado pelos paradoxos do capitalismo. Bem, estamos em 2021 e, ainda que muito avançada a inteligência das coisas, eu não tive a oportunidade de duvidar se meus interlocutores eram humanos ou máquinas…Metrópole ainda parece ser uma realidade bastante distante.

Enquanto isso, continuamos morrendo e nascendo pelos métodos tradicionais, contando com um apoio ou outro da ciência para superação de algumas barreiras biológicas. Portanto, provavelmente você que lê esse artigo nasceu de uma mulher de carne e osso, a qual deve ter precisado de apoio hospitalar e médicos para que isso ocorresse.

Todavia, para que uma mulher tenha o assessoramento de saúde ao parto no Brasil, exceto se contar com o sistema de saúde público, deverá programar o pagamento antecipado de um adicional do seu plano de saúde. E veja, não pagará pelo serviço de saúde, pagará pelo risco de ficar grávida, visto que há carência ao uso dos serviços.

A Lei 9.656/98 prevê a segmentação dos planos de saúde segundo a amplitude de cobertura, prevendo as seguintes categorias: (i) plano referência, (ii) ambulatorial, (iii) hospitalar sem obstetrícia, (iv) hospitalar com obstetrícia e (v) odontológico.

O plano-referência, previsto no artigo 10 da Lei, consiste no “pacote completo” da assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos realizados no Brasil, centro de terapia intensiva, ou similar, e internação hospitalar; todavia, ao lado desta modalidade, faculta-se a venda das demais modalidades listadas acima, incluindo o atendimento hospitalar com e sem obstetrícia.

Ressalva-se que desde o Projeto de Lei n° 4.425, DE 1994 (Do Senado Federal) PLS 93/93 já se proibia a exclusão de cobertura de despesas com tratamento de determinadas doenças em contratos que asseguram atendimento médico-hospitalar pelas empresas privadas de seguro-saúde ou assemelhadas, ressalvando a possibilidade de exclusão da cobertura obstétrica. Não se trata, pois, de alteração legislativa recente.

O segmento hospitalar tem função de conferir cobertura de serviços em regime de internação (sendo vedado o limite de tempo), facultando-se a inclusão de cobertura da assistência ao parto (obstetrícia), que poderá ter até 300 dias de carência para partos a termo, ou seja, partos dentro do tempo convencional de gestação. Ou seja, apenas partos de bebês prematuros estão cobertos quando, contratado o adicional de obstetrícia, não esteja completada a carência.  

Ademais, a quem paga o adicional de obstetrícia é facultada a cobertura assistencial ao recém-nascido, filho natural ou adotivo do consumidor, ou de seu dependente, durante os primeiros trinta dias após o parto, seja o adicional pago pelo pai ou pela mãe. Mas veja, nada disso lhe será garantido se, antes de pensar em engravidar, os genitores já não tiverem previsto o risco “gravidez” e aderindo ao adicional.

Se de um lado a obstetrícia é tratada como uma opção a quem prospecte ser genitor/genitora, de outro a Resolução Normativa nº 167 da ANS tornou obrigatória, a partir de 2 de abril de 2008, a cobertura de procedimentos para anticoncepção (DIU, vasectomia e ligadura tubária).

Não se nega que existam métodos contraceptivos que permitem a programação familiar, mas, ao que nos parece, a legitimação legal da exclusão da obstetrícia dos planos de saúde se trata de política pública que, muito além de objetivar reduzir os ônus financeiros dos que não almejem a maternidade/paternidade, impõe à mulher o ônus de planejá-la por meio de métodos contraceptivos naturais ou artificiais, ao viabilizar a carência de trezentos dias para a cobertura.

De fato, não podemos programar a doença, por isso o legislador impediu que se extraia a cobertura a doenças e lesões, inclusive as preexistentes; contudo, quanto à gravidez, podemos impor a responsabilidade por sua programação a partir de métodos contraceptivos (naturais ou não) e penalizar, com a exclusão de cobertura, aos que não o utilizam? Ainda, trata-se de pena ou de incentivo ao planejamento familiar responsável?

Conforme artigo 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade [maternidade] responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 

A Lei 9656/98 deve dialogar, pois, com a Lei 9263/96, a qual regula o planejamento familiar, direito de todo cidadão e parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde; com base nestas disposições, tem-se que compete ao Estado a garantia de direitos iguais de reprodução ao homem e à mulher, orientado por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade, exigindo-se, como contrapartida a responsabilidade no ato de reprodução, sem, contudo, a exclusão de cobertura e assistência à saúde materna quando as formas de previsão e educação falhem. Os serviços de saúde suplementar necessitam prever métodos que, resguardando o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, viabilizem o exercício do direito à maternidade saudável.

BRASIL. Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Disponível em: L9263 (planalto.gov.br)

BRASIL. Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1996. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Disponível em L9656 (planalto.gov.br)

*Vanessa Vilela Berbel é coordenadora-geral do Sistema Integrado de Atendimento à Mulher (Ligue 180) do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Doutora (PUC/SP) e mestre (USP) em Filosofia e Teoria geral do Direito, graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professora adjunta do Instituto Federal do Paraná e

Não existe almoço de graça (?)

Vanessa Vilela Berbel

“Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro”, questiona Clarice Lispector em seu conto “A repartição dos pães”. A não nominada “dona de casa” (nas palavras da autora), resignada, acostumou-se a servir. Doadora de si e do que é seu, a “dona de casa” oferece mesa farta aos convidados pouco desejosos da partilha – provavelmente seus filhos e familiares, que, constrangidos, aceitam a oferta sincera e desinteressada; deleitam-se, sem nenhuma palavra de amor. Apesar de deixar claro ao leitor que a farta mesa foi construída e posta com o labor da “dona de casa” generosa (a mãe), a narradora (provavelmente filha) revela a quem pertenciam os produtos consumidos: “aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade”. À dona de casa não é atribuída qualquer propriedade ou remuneração; reserva-se a ela apenas o constrangimento dos participantes pela sua benevolência.

Há um consenso geral de que o trabalho doméstico é subvalorizado, mal pago, desprotegido e mal regulado; infirmar ou confirmar cientificamente esse senso comum depende da apuração econômica do trabalho doméstico: pode esse labor ser mensurado? qual sua importância para o desenvolvimento econômico?

Há 80 anos James Meade and Richard Stone ditaram os padrões que globalmente formam o Produto Interno Bruto (PIB). Como a maioria dos estatísticos econômicos da época, Meade e Stone se concentraram quase inteiramente na medição do valor dos bens e serviços que foram realmente comprados e vendidos.

Por sua vez, a padronização internacional sobre a compilação de mensurações econômicas, System of National Accounts (SNA,2009), produzida pelas Nações Unidas, a Comissão Europeia, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Fundo Monetário Internacional e  Banco Mundial, expandiu o limite de produção, de modo que as contas deveriam incluir o trabalho de subsistência e o trabalho informal. Recomendou-se, por este método, a consideração de toda produção para consumo próprio, mas a continuidade de exclusão da produção do trabalho doméstico não remunerado. Isso significa que a agricultura (de subsistência) e produção não mercantil de bens para o consumo das famílias são mensuradas e contabilizadas pelo SNA, permanecendo a exclusão do trabalho doméstico (incluindo o preparo de refeição), cuidado com crianças, idosos e deficientes, e outros serviços relacionados à família. Esta tomada de decisão promove contradições; como alerta WARING (2004): “um balde de água: lave a louça, lave a criança, cozinhe o arroz – não produção. Use a mesma água para pulverizar o milho e lavar o porco – isso é produtivo”. Em termos, o trabalho doméstico não remunerado permanece excluído das contas macroeconômicas, inviabilizando a formulação de políticas, análises e pesquisas.

Como se nota, a par do consenso majoritário, há quem acuse esses padrões de subestimar a mensuração interna anual da produção econômica. Há razões para a acusação? Economistas como Phyllis Deane também nos conferem argumentos para se opor a esta tradição e reivindicar a consideração do trabalho doméstico não remunerado nas contas macroeconômicas. Após analisar famílias das Colônias britânicas do Malawi e na Zâmbia, Deane foi pioneira em perceber que era um erro excluir o trabalho doméstico não remunerado do PIB. Especialmente em países em desenvolvimento, a mensuração do trabalho não remunerado nos agregados macroeconômicos importa para a promoção de igualdade de gênero, sendo ferramenta indispensável para uma mudança social positiva.

Muitos serviços que as famílias produzem para si mesmas não são reconhecidos em receita oficial e medidas de produção, mas constituem um aspecto importante da atividade econômica. Nesta esteira, como recomenda o Relatório Stiglitz-Sen-Fitoussi Report (Stiglitz, Sen and Fitoussi, 2009), são necessários trabalhos sistemáticos nesta área para mensurar como pessoas gastam seu tempo ao longo dos anos, visto que, especialmente nos países em desenvolvimento, a produção de bens e serviços (por exemplo, comida e limpeza) pelas famílias são também termômetros do processo de desenvolvimento.

Muitos dos produtos e serviços produzidos de forma não remunerada por familiares, ao longo do desenvolvimento econômico,  passaram a ser adquiridos no mercado, expressando uma mudança econômica importante, uma “conta satélite” dos agregados macroeconômicos que expande o conceito de produção. A análise desta modificação é importante, visto que a lacuna entre o tempo médio gasto por homens e mulheres para o trabalho não remunerado diminuiu com o desenvolvimento econômico mais por causa do advento de substitutos perfeitos ao trabalho das mulheres na cozinha, na lavanderia, nos cuidados, do que por uma mudança na distribuição das tarefas domésticas entre os membros da família, notadamente os homens.

Segundo a PNAD Contínua, em 2019, 146,7 milhões de pessoas de 14 anos ou mais de idade destinam horas para a realização dos afazeres domésticos, cuidado de pessoas, trabalho voluntário e produção para o próprio consumo.

Todavia, a destinação de esforços e tempo nestas tarefas é desproporcional em relação aos gêneros, afetando sobretudo as mulheres. Entre o grupo de mulheres que despendem labor não remunerado no âmbito familiares, são ainda mais afetadas aquelas que se encontram na faixa etária de 25 a 49 anos e com maior grau de escolaridade. A taxa de realização de afazeres doméstico é de 93,4% para as mulheres de nível superior, contra 85,7% para os homens do mesmo nível de escolaridade.

Outrossim, se analisarmos com grano salis os afazeres domésticos realizados por homens e mulheres, tem-se que enquanto as tarefas mais desempenhadas pelo gênero masculino consistem em cuidar da organização do domicílio (pagar contas, contratar serviços, orientar empregados, etc.) e fazer compras ou pesquisar preços de bens para o domicílio, às mulheres destina-se prioritariamente as atividades de preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar louça e cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos. São atividades que requerem competência e habilidades bastantes diversas, inclusive quanto ao desgaste físico.

Esta distribuição desigual é prejudicial para as mulheres, sobrecarregando de forma bastante desproporcional principalmente às que estão em faixa etária em que se dá o auge da produtividade e escalonamento profissional; por consequência, elas têm menos tempo para aprender, relaxar, trabalhar em hobbies, ou se dedicarem a horas extras no trabalho.

E é justamente o destino do tempo e as pesquisas sobre ele, como afirma Marilyn Waring, que podem revelar “qual sexo torna o trabalho servil, chato, de baixo status e invisível não remunerado”. Neste aspecto, importa mensurá-lo e mais, considerá-lo em políticas públicas eficientes para a superação das desigualdades criadas por este desequilíbrio de atribuições. Por exemplo, atualmente se é possível a dedução tributária de custos com empregados domésticos em imposto de renda da pessoa física, mas não se pode fazer o mesmo com a redução de remuneração obtida pelo membro familiar que destina seu labor à esta atividade; ao mesmo tempo, é possível a dedução de pagamento de pensão de dependentes, mas não se pode proceder o mesmo abatimento das horas de trabalho com cuidados com a prole. Incoerências que precisam ser repensadas de forma séria e imediata e que, infelizmente, pesam mais ao gênero feminino.

Referências:

European Communities; International Monetary Fund; Organisation for Economic Co-operation and Development; United Nations and World Bank. System of National, 2008. Disponível: SNA complete.book (un.org)

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínu. PNAD Contínua – 2019: outras formas de trabalho. 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101722_informativo.pdf

STIGLITZ, Joseph E.; SEN, Amartya; FITOUSSI, Jean-Paul. Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress, 2009. Disponível em: www.stiglitz-sen-fitoussi.fr

WARING, Marilyn. 1999. Counting for Nothing: What Men Value and What Women Are Worth. Toronto: University of Toronto Press.

______. Unpaid Workers The Absence of Rights. CANADIAN WOMAN STUDIESILES CAHIERS DE LA FEMME. 2004. Disponível em: https://cws.journals.yorku.ca/index.php/cws/article/viewFile/6245/5433

Violência de gênero e regulação das mídias digitais

Vanessa Vilela Berbel

Estudo da ONU, publicado em parceria entre a We Are Social e a Hootsuite, revelou que, em 2019, 53,6% da população de todo o mundo possuía acesso à internet. O estudo apontava, contudo, desigualdades de gênero no acesso ao mundo digital, estimando-se que a proporção de todas as mulheres do globo que usavam a internet era de 48%, contra 58% de todos os homens, à exceção da América Latina em que há quase paridade de gênero neste quesito.

Ainda em 2019, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontou que 82,7% dos domicílios nacionais possuíam acesso à internet, sendo que, destes, 99,5% valem-se de dispositivos móveis (smartfones). Com um celular na mão e a internet à disposição, não mais se pode controlar as expectativas de receptores e emissores nas trocas comunicativas, como se fazia nas interações face a face.

Antes dos meios de difusão, os emissores eram facilmente identificados. Difamar, humilhar ou injuriar alguém demandava que o (a) agressor(a) o fizesse cara a cara com o(a) agredido(a). Agora, no mundo digital, as faces se transmutam em perfis, muitos deles falsos, mas, ainda assim, determináveis e rasteáveis.

A pandemia do COVID-19 acelerou ainda mais a inclusão digital da população mundial e a redução da desigualdade de gênero ao acesso à internet; computa-se, em 2021, mais de 4,66 bilhões de usuários da Internet em todo o globo, ou seja, 59,5% da população mundial, dos quais 49,6% são mulheres e 50,4% homens.

Destes incluídos no mundo digital, 4,20 bilhões são também usuários de mídia sociais, o que equivale a mais de 53% da população total do mundo, sendo facebook, youtube e whatsapp as três plataformas mais utilizadas.

Calcula-se, em média, mais de 1,3 milhão de novos usuários das mídias sociais a cada dia, os quais dedicarão de 51 minutos (média do Japão) a 4 horas e 5 minutos (média das Filipinas) diários ao uso das ferramentas digitais.

No Brasil, o usuário médio gasta 3 horas e 42 minutos em mídias sociais digitais, o que equivale a mais de um dia inteiro na semana. Se, em regra, a maioria se vale da ferramenta para conhecer conteúdos e interagir com famílias e amigos, alguns apropriam-se da facilidade para ataques de ódio, pelo que são chamados de “haters”.

Em 2021, no Brasil, são mais de 213.3 milhões de usuários da internet, em sua maioria mulheres (50.9%), com média de idade de 33.7 anos e alfabetizadas. Destes, 150 milhões são também usuários de mídias sociais, o que equivale a 70,3% da população brasileira, dos quais 130 milhões valem-se do Facebook, sendo 53,5% mulheres e 46,5% homens. Essas mulheres, maioria no mercado de consumido dos serviços das mídias sociais necessitam ter o direito à não violência também neste espaço de socialização humana.

Infelizmente, no mundo físico, pesquisa do Banco Mundial apontou que, em 2019, 35% da população feminina mundial sofreu violência psicológica e/ou física, 7% sofreu violência sexual e 200 milhões de mulheres sofreram mutilação genital. Em 2021, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) , uma a cada três mulheres sofreu violência, ou seja, 736 milhões de mulheres são submetidas à violência pelo simples fato de ser mulher.

Uma característica da violência de gênero é que ela não conhece fronteiras sociais ou econômicas e afeta mulheres e meninas de todas as origens socioeconômicas, pelo que as agressões sofridas no mundo físico veem sendo repercutidas no mundo digital; são ataques que objetificam a mulher, seu corpo, sua imagem e ameaçam-lhe a integridade física e psíquica.

Um estudo de 2018 realizado pela União Interparlamentar em 45 países europeus descobriu que mais da metade das mulheres parlamentares e funcionários parlamentares entrevistados (58%) sofreram ataques sexistas nas redes sociais, incluindo repetidos insultos misóginos e incitação ao ódio, fotomontagens de nudez e pornografia. Metade dos entrevistados (47%) sofreram ameaças de morte ou estupro. Na maioria dos casos (76%), os perpetradores eram homens anônimos (União Interparlamentar, 2018).

Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Ligue 180) revelam mais de 5.520 denúncias de violência praticadas contra pessoas do sexo feminino e ocorridas no âmbito da internet, em sua maioria contra a integridade psíquica da vítima, tais como ameaças, constrangimentos, torturas psíquicas, calunias, injúrias e difamações. Destas denúncias de violência contra a mulher no âmbito digital, 78,14% foram praticadas por agressores do sexo masculino.

Sabe-se que as interações nas redes sociais são impulsionadas a partir de algoritmos capazes de compreender padrões de comportamentos dos usuários. São os algoritmos imunes à propagação de misoginias e conteúdos de ódio? Segundo Francis Haugen, não.

Haugen, ex-funcionária do Facebook, engenheira da equipe de integridade cívica, em 03 de outubro deste ano (2021) rompeu o anonimato em entrevista ao “Wall Street Journal” e “CBS News” e acusou a rede social de promover conteúdo nocivo e não fazer nada a respeito daqueles que os disseminam.

Na mesma toada, Marianna Springs, repórter da BBC, em matéria intitulada “Recebo xingamentos e ameaças online – por que é tão difícil combater isso” (Estado de Minas, 20/10/2021) relatou que, após receber diariamente mensagens abusivas nas redes sociais carregadas de expressões de ódio em referências a estupros e atos sexuais, decidiu criar um perfil fake de “trollagem” nas cinco redes sociais mais populares do mundo para ver se elas promoviam conteúdos misóginos. Para sua surpresa, a conta falsa recebeu recomendações de conteúdos de ódio contra mulheres, inclusive envolvendo violência sexual, o que demonstra a ausência de uma efetiva autorregulação das plataformas.

Entende-se, a partir destes fatos, a importância da existência de autorregulação e controle interno das mídias sociais para a tomada de iniciativas imediatas à suspensão das agressões (retirada do conteúdo e bloqueio do perfil), a partir da construção de um due dilligence obligations que permita remediar danos decorrentes de publicações indevidas sem ferir a liberdade de expressão e que, ao mesmo tempo, permita a rápida apuração e encaminhamento dos conteúdos aos órgãos da rede de enfrentamento à violência para punição efetiva dos agressores.

Contudo, a autorregulação não dispensa o controle externo, a partir de uma metarregulação, ou, em outros termos, uma “autorregulação regulada”, como explica Lucas Amato em seu artigo “Fake News: regulação ou metarregulação?” (2020). Nestes termos, caberá ao Estado cobrar das mídias sociais o desenvolvimento de mecanismos de responsabilização e os parâmetros de sancionamento necessários.

Portanto, compete ao Estado traçar as diretrizes gerais para viabilizar a construção normativa própria das mídias sociais quanto aos procedimentos internos de abertura de canais de reclamação e monitoramento de denúncias, desenvolvimento de procedimentos para a suspensão de contas inautênticas e suspensão das atividades de usuários que descumpram seus regramentos; todavia, ao mesmo tempo, deve instituir regras jurídicas claras quanto ao descumprimento destes deveres de fiscalização interna e vigilância, impondo a responsabilização destes fornecedores em caso de desídia no controle interno das práticas de integridade cívica e do encaminhamento dos casos delitivos às autoridades responsáveis pela rede de enfrentamento à violência.

Fontes:

AMATO. Lucas Fucci. Fake News: regulação ou metarregulação?. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 58, n. 230, p. 29-53 abr./jun., 2021

BRASIL. Ministério das Comunicações. Notícia: Pesquisa mostra que 82,7% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet — Português (Brasil) (www.gov.br), disponível em: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2021/abril/pesquisa-mostra-que-82-7-dos-domicilios-brasileiros-tem-acesso-a-internet, de 14.04.2021. Acesso em 24.10.2021

Inter-Parliamentary Union, 2018. Disponível em: https://eige.europa.eu/publications/gender-equality-index-2020-report/abbreviations?lang=nl. Acesso em 24.10.2021

WE ARE SOCIAL AND HOOTSUITE. Digital 2021: Global Overview Report. Disponível em: https://wearesocial-net.s3-eu-west-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/common/reports/digital-2021/digital-2021-global.pdf. Acesso em 24.10.2021

THE WORLD BANK. Gender-Based Violence (Violence Against Women and Girls) (worldbank.org). Disponível em: https://www.worldbank.org/en/topic/socialsustainability/brief/violence-against-women-and-girls. Acesso em 24.10.2021

OMS e PNUD. Global, regional and national estimates for intimate partner violence against women and global and regional estimates for non-partner sexual violence against women, 2021. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/9-3-2021-devastadoramente-generalizada-1-em-cada-3-mulheres-em-todo-mundo-sofre-violencia. Acesso em 24.10.2021