ANPD, uma autarquia especial para tratar de bens especiais

Eduardo Molan Gaban

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), durante seus quase 2 anos de vigência, já vem sendo matéria de diversos casos que tramitam pelo Poder Judiciário. Este, por sua vez, assume um papel relevante no sentido de direcionar a interpretação e aplicação desta recente lei.

Como é natural para as legislações recém-criadas/vigentes, é a experimentação em casos concretos que possibilita que sejam delineados os papéis dos atores envolvidos, os limites de sua aplicação e a fundamentação necessária para tanto.

Nesse sentido, podemos observar uma interessante decisão recente que nos ensina várias lições em alguns pontos cruciais da LGPD[1]: (i) a exclusão de empresas de pesquisa do conceito de instituição de pesquisa previsto na lei, por possuírem caráter lucrativo; (ii) a existência de violação da LGPD nas pesquisas de campo realizadas com dados sem o consentimento do titular; (iii) a aplicação concreta da responsabilidade solidária do operador.

Na aludida decisão, foi confirmada a condenação da Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda. e da WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. pela realização de pesquisa de mercado contendo informações pessoais e dados sensíveis sem o consentimento dos titulares.

Segundo o Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal, autor da ação, este foi surpreendido com diversas indagações dos sindicalizados acerca de uma pesquisa de mercado enviada por mensagem de texto e correio eletrônico. Diante de tais indagações, a entidade procurou esclarecer que não contratou qualquer empresa para realização da pesquisa ou forneceu acesso ao banco de dados interno do sindicato, e que conhece o caráter sigiloso das informações pessoais dos sindicalizados, tendo ocorrido o acesso sem sua anuência ou seu conhecimento.

Em resposta às acusações, a WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. relatou que a parceira Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda. deu início a pesquisa de sondagem de mercado com o objetivo de implementar campanha eleitoral para a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal no triênio 2021-2024, conforme informações disponíveis no sítio eletrônico do sindicato. Afirmou, ainda, que utilizou de banco de dados próprio, construído de forma lícita a partir de realização de outros trabalhos na área de pesquisa e de realização de campanhas eleitorais.

A Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda., por fim, apresentou o argumento de que foi contratada pela WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. com a finalidade de realizar a pesquisa de sondagem de mercado para as eleições no triênio 2021-2024 e que não houve utilização dolosa das informações constantes no referido banco de dados. Destacou que a responsabilidade deve recair exclusivamente sobre WHD Pesquisa e Estratégia Ltda., que a contratou, conduziu o processo e forneceu o banco de dados.

Após análise de todas as alegações, o Tribunal pontuou que a WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. não se insere no conceito previsto no art. 7º, inc. IV, da Lei n. 13.709/2018[2], que disciplina a regularidade da obtenção dos dados, uma vez que possui finalidade lucrativa e seu foco é comercial.

Da mesma forma, concluiu o Tribunal que, diante da falta de consentimento do titular para o tratamento de seus dados pessoais, fica caracterizado o seu uso irregular, conforme a LGPD. E neste ponto, o Relator reiterou em seu voto a condenação solidária de ambas as empresas, atuantes como agentes de tratamento de dados, com fundamento no artigo 42, § 1º, I e II, da LGPD.

Como pontuou o voto condutor do Relator, “O controlador deve demonstrar finalidade legítima a justificar o tratamento dos dados já existentes, visto que a disponibilização de dados pessoais pode causar lesão irreparável à intimidade e ao sigilo da vida privada dos envolvidos. O fundamento, no caso, para a utilização dos referidos dados está na implementação de proposta comercial para campanha eleitoral a se contrapor ao direito à privacidade e à inviolabilidade da intimidade dos filiados que tiveram seus dados manipulados”.

Ao final, assinalou a possibilidade de direito de regresso oportunamente, afirmando que “O agente de tratamento de dados poderá pleitear o ressarcimento de sua condenação em ação regressiva quando demonstrar que não realizou o tratamento de dados pessoais em questão ou se realizou, não houve violação à legislação regente, ou ainda, se demonstrar que a lesão decorre de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro”.

Trata-se um importante julgamento para balizar os limites da responsabilização solidária do operador do dado, bem como para traçar uma definição mais linear sobre as hipóteses de legitimidade do tratamento do dado previstas na lei.

Agora, esse tipo de tema, bem como tantos outros temas que ainda serão melhor sedimentados com a prática, passarão a ser uniformizados de maneira mais precisa pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), na qualidade de autarquia de natureza especial.

Em 13 de junho de 2022, foi publicada a Medida Provisória nº 1.124, editada pelo Presidente da República, a qual foi a responsável pela transformação da ANPD em uma autarquia de natureza especial[3]. Até então, a natureza jurídica da ANPD era de “órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República”.

Referida modificação já estava prevista na redação anterior do artigo 55-A, § 1º, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)[4], que dispunha sobre a natureza transitória da natureza jurídica da ANPD como órgão da presidência.

A Medida Provisória prevê, ainda, a necessidade de modificação da Estrutura Regimental da ANPD para que se adeque à sua nova característica de autarquia de natureza especial. Porém, até que seja alterada, a MP dispõe que a Estrutura Regimental atual permanece vigente e aplicável.

Na prática, a ANPD não mais se subordina hierarquicamente à Presidência, e ganha maior grau de autonomia técnica e decisória, assumindo personalidade jurídica equivalente às das agências reguladoras, como a Anvisa, a Anatel e a Aneel[5]. A Autoridade, a partir de agora, atuará de forma descentralizada nas suas atividades de controle e fiscalização, com autonomia inclusive financeira.

Além disso, com a nova Medida Provisória nº 1.124, é ampliada a capacidade processual do Órgão perante o Poder Judiciário na defesa do direito à proteção dos dados pessoais, direito esse elevado ao patamar constitucional (Emenda Constitucional nº 115/2022[6]).

Isso porque, antes da referida Medida Provisória, a ANPD não se qualificava como uma pessoa jurídica de direito público interno, pois era um órgão da administração pública federal integrante da Presidência da República, fora do rol das pessoas jurídicas de direito público interno do artigo 41 do Código Civil. Além disso, detinha apenas um órgão de assessoramento jurídico próprio.

Agora, qualificada como uma autarquia, a ANPD ganha a qualidade de pessoa jurídica de direito público interno (artigo 41, IV, do Código Civil) e uma Procuradoria especializada, assim como ocorre com outras autarquias, como é o caso do CADE.

O efeito concreto dessas mudanças é a ampliação de sua capacidade processual para promover ações judiciais em matéria de proteção de dados, como medidas cautelares (p. ex.,busca e apreensão e suspensão de atividades de tratamento de dados pessoais), execuções e pedidos de cumprimento de suas sanções administrativas contra as pessoas punidas em seus processos sancionadores.

A ANPD, como autarquia de natureza especial, terá maior independência em relação ao Poder Executivo, e expertise para fixar outras interpretações em matéria de proteção de dados, seja em seus julgamentos de processos administrativos sancionadores ou até mesmo em sua atuação perante o Poder Judiciário.

A mencionada Medida Provisória ainda deve ser aprovada pelo Congresso Nacional para que haja sua conversão em lei. Até lá, todas essas inovações trazidas pela Medida Provisória, com inquestionáveis ganhos à proteção de dados pessoais, continuarão em vigor.


[1] Apelação Cível nº 0709580-09.2021.8.07.0001, julgada pela 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.

[2] Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:

IV – para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais;

[3]  Art. 1º. Fica a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD transformada em autarquia de natureza especial, mantidas a estrutura organizacional e as competências e observados os demais dispositivos da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018.

[4] Art 55-A. Fica criada, sem aumento de despesa, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República.

§ 1º. A natureza jurídica da ANPD é transitória e poderá ser transformada pelo Poder Executivo em entidade da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada à Presidência da República.

[5] As agências reguladoras são previstas na Plataforma do Governo, cujo acesso é disponível em https://www.gov.br/ouvidorias/pt-br/cidadao/lista-de-ouvidorias/agencias_reguladoras.

[6] Nesse sentido, veja-se: https://webadvocacy.com.br/2022/03/17/protecao-e-tratamento-de-dados-pessoais-como-direito-fundamental-pec-17-2019-e-a-defesa-do-consumidor/

O metaverso e o metrô da linha 743:  o dia em que captar os pensamentos e sentimentos virou modelo de negócio das big techs

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

O que é o metaverso? Muito tem se falado nessa expressão, sobretudo, após Mark Zuckerberg ter anunciado em 28/10/2021 que o Facebook, o Instagram e o WhatsApp passariam a ser chamados de “Meta”[1] com o objetivo de lincar os produtos oferecidos nessas redes sociais a uma nova tecnologia que pretende promover a convergência entre uma realidade física virtualmente aprimorada e um espaço virtual fisicamente persistente, incluindo a soma de todos os mundos virtuais, realidade aumentada e Internet.[2]

A literatura registra que o termo “metaverso” foi idealizado por Neal Stephenson em um romance chamado Snow Crash em 1992, onde o autor se referia a um mundo virtual 3D habitado por avatares de pessoas reais. Ernest Cline, ao escrever Ready Player One, em 2011, igualmente tratou desse mesmo fenômeno. Etimologicamente, a palavra “metaverso” é a junção do prefixo “meta” que significa “além” e a palavra “universo”. Até então estávamos no plano da ficção científica.

No entanto, produtos desenvolvidos com tecnologia inspirada no metaverso já estão disponíveis há cerca de duas décadas no mundo e vem ganhando, paulatinamente, mercado, com os jogos on-line que combinam plataforma de relacionamento com interação entre pessoas e ambientes digitais imersivos, como o Habbo[3] e Club Penguin[4].

Registre-se que outras tecnologias mais recentes como a dos jogos GTA RP Cidade Alta ou PK XD, também disponíveis para celulares Android e Iphone (IOS), vem ganhando ainda mais mercado. O GTA RP, segundo especialistas, utiliza a técnica Roleplay que quer dizer “interpretação de personagem”, onde o jogador tem a possibilidade de criar uma história e fazer um tipo de simulação de vida, ou seja, se cria um personagem avatar que interage com outros personagens avatares, no mundo digital, por meio de pessoas reais.[5] Já o PK XD[6], muito direcionado ao público infantil e adolescente, inicialmente criado no âmbito da subsidiária PlayKids, rapidamente, diante de seu sucesso, deu origem a criação do estúdio de games da empresa Afterverse. A essência é a mesma, onde se cria um avatar que pode realizar diversas atividades e interagir ao mesmo tempo com outros jogadores por meio de um chat, mesclando o ambiente real e o virtual em uma única dimensão.  

Até então, as tecnologias de interação do mundo virtual e do mundo real estavam restritas aos games, mas diante do sucesso com o público e dos vultuosos lucros que geraram, a indústria já começou a desenvolver produtos tecnológicos diferenciados sob a mesma concepção tecnológica unindo o real e o virtual em uma única dimensão.

Um dos produtos que está em alta é o chamado “óculos do Facebook”, uma parceria entre a Ray Ban e o Facebook chamado de Ray-Ban Stories Smart Glasses que mescla a função precípua dos óculos de sol e agrega as funções de vídeo câmera e áudio, permitindo tirar fotos, gravar vídeos, ouvir músicas e compartilhar conteúdos pela mídia social.[7]

Há outros produtos que aderem tais tecnologias que estão sendo desenvolvidas para serem disponibilizadas em veículos, permitindo ao passageiro uma experiência de imersão muito maior que apenas a visual, despertando novos sentidos. A Holoride[8] é uma empresa que desenvolve tecnologias, como a XR, que permite o feedback físico em tempo real do veículo, fazendo com que você passe a sentir o que vê. Tais tecnologias já estão disponíveis em automóveis da marca Audi[9] e Porsche[10], por exemplo. Outras grandes empresas como a Neuralink e a Minlab desenvolvem tecnologias voltadas para o conhecimento (ilimitado) do cérebro, para entendê-lo em uma teia de comunicação que permite que você se mova, pense, sinta e perceba[11], para produzir uma interface com o cérebro, empurrando os limites da engenharia neural[12], além de promover engenharias junto ao cérebro com o objetivo de melhorar a vida[13]

Diante de tais exemplos, é possível afirmar que o Metaverso já é uma realidade incontornável. No entanto, nesse momento histórico, essa tecnologia ainda não foi capaz de alterar o modo de viver da humanidade. Ao que tudo indica, o Metaverso não será um plus da internet. Será uma outra dimensão real/virtual unívoca e pretende mudar a forma da humanidade se relacionar em todos os seus aspectos.

Mudanças paradigmáticas como essas ocorrem de tempos em tempos. Como exemplos, a invenção da escrita pelos povos sumérios na antiga civilização mesopotâmica (atual Iraque) por volta de 4.000 a.C; a invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutenberg no século XV, por volta de 1439 e a invenção da internet, no pós-guerra fria, com todos os desenvolvimentos tecnológicos que permitiram a Tim Berners-Lee criar a World Wide Web em 1992.

A tecnologia, de fato, encanta, seduz. É sempre a possibilidade de nos encontrarmos com o novo, com a descoberta, vivenciar novas emoções, experiências, facilidades e sensibilidades. A tecnologia representa superação e inteligência, expressão da criatividade do ser humano e acaba transformando em realidade a capacidade do ser humano produzir, inventar, proporcionar experiências ainda não vividas pela humanidade, inovar, expressar-se, utilizar sua inteligência para produzir o “novo”.

No entanto, a pergunta que fica é: o que está por trás dessas tecnologias do metaverso? Qual é a real intenção desse modelo de negócio? Shoshana Zuboff identificou que, no caso da internet, o modelo de negócios gira em torno da obtenção de superávit comportamental para ganhos alheios. Segundo a Autora,

“não somos mais os sujeitos da realização de valor. Tampouco somos, conforme alguns insistem, o “produto” das vendas do Google. Em vez disso, somos os objetos dos quais as matérias-primas são extraídas e expropriadas para as fábricas de predição do Google. Predições sobre o nosso comportamento são os produtos do Google, e são vendidos aos verdadeiros clientes da empresa, mas não a nós. Nós somos os meios para os fins dos outros.”[14]

Com o metaverso, o modelo de negócios que está por trás dessa tecnologia é a obtenção de superávit de pensamentos e sentimentos para ganhos alheios.  Assim, a obtenção dos “comportamentos” humanos está para o modelo de negócios da internet, como a obtenção dos “pensamentos e sentimentos” humanos está para o modelo de negócios do metaverso. E é aqui que surgem as significativas preocupações com o que está por vir e quais os impactos da adoção desse modelo de negócios para os direitos humanos fundamentais.

Raul Seixas, músico brasileiro, se estivesse vivo poderia não acreditar que, ainda que sob outro viés, teria sido um profeta da humanidade ao escrever a letra da música “O metrô da linha 743” e prever que o preço das mercadorias poderia variar conforme o nível mental do consumidor. Se o que interessa são os pensamentos e não os documentos e se as tecnologias do metaverso têm por propósito conhecer não mais só nossos comportamentos, mas também nossos pensamentos e sentimentos, é hora de se parar e avaliar se os Estados não precisam colocar limites ao desenvolvimento dessas tecnologias, por mais encantadoras que sejam.

Muitos questionamentos surgem dessas reflexões: Quais mudanças sociais, econômicas e jurídicas poderão advir da adoção em massa dessa nova tecnologia? Como será a humanidade ciborgue? O que diferencia as sociedades que pensam mais das que pensam menos? Como saber o que você pensa pode alterar a concentração econômica, o preço do arroz e do feijão, as regras de custo da oferta e da demanda e a lógica dos mercados? O que é o pensamento? O que pensa o pensamento?[15]

Pensar é um exercício. Pensar é refletir, é dar tempo de considerar opiniões em contrário, é parar, é considerar a opinião do outro, é, também, poder mudar de opinião. Pensar é um ato interno, privativo, solitário e só é compartilhado quando da vontade do pensador. Até aqui, o pensar faz parte da privacidade e da intimidade do ser humano.

Tecnologias que captam nossos pensamentos e sentimentos sem nossa permissão e usam tais informações contra o próprio ser humano,  como estratégia dos seus modelos de negócios, induzindo comportamentos (e porquê não pensamentos e sentimentos?) são aviltantes e é preciso que o desenvolvimento dessas tecnologias, se usadas como modelos de negócios, sejam “limitadas” para que a nossa cabeça “oca” não seja jogada no lixo da cozinha e nem nossos cérebros sejam comidos vivos à vinagrete por senhores alinhados, despertando ao nosso último pedaço, antes de ser engolido, o pensamento de “quem seria esse desgraçado dono dessa zorra toda”.

Lutemos, pois, enquanto há tempo, contra o abuso de poder econômico e imponhamos limites às tecnologias que possam violar direitos fundamentais do ser humano ao captarem nossos comportamentos, pensamentos e sentimentos, sem nosso consentimento. Chega de ganharmos espelhos.  


[1] https://tecnoblog.net/noticias/2021/10/28/facebook-muda-de-nome-para-meta-por-causa-do-metaverso/ disponível em 19/07/2022.

[2] https://tecnoblog.net/responde/entenda-o-que-e-metaverso-a-realidade-do-futuro/ disponível em 17/07/2022.

[3] https://www.habbo.com.br/ disponível em 20/07/2022.

[4] https://newcp.net/pt/ disponível em 20/07/2022.

[5] https://mktesports.com.br/blog/games/o-que-e-gta-rp/ disponível em 20/07/2022.

[6] https://canaltech.com.br/mercado/pk-xd-e-apenas-para-criancas-a-estrategia-da-afterverse-para-o-jogo-vai-alem-177960/

[7] Prontos para óculos inteligentes? Torne seus os Ray-Ban Stories, a última novidade em termos de tecnologia vestível. Nossos óculos de grau e de sol inteligentes, com videocâmara e áudio, combinam a lendária tecnologia de Facebook com o estilo icônico Ray-Ban. Com os óculos Ray-Ban X Facebook, você pode tirar fotos, gravar vídeos, ouvir músicas e fazer chamadas, além de compartilhar conteúdos diretamente nos seus canais de mídia social. Escolha seus óculos tecnológicos Ray-Ban entre 3 modelos atemporais e 20 combinações de cores de lentes e armação.[7] https://www.ray-ban.com/brazil/ray-ban-stories?cid=IN-SGA_210607-4.BR-RayBan-PT-NB-DSATargetUrl&gclid=EAIaIQobChMIz4_pt9uH-QIVGEJIAB1c3A1XEAAYASAAEgJ9oPD_BwE&gclsrc=aw.ds disponível em 20/07/2022.

[8] https://www.holoride.com/ disponível em 20/07/2022.

[9] https://www.audi.com/en/innovation/development/holoride-virtual-reality-meets-the-real-world.html disponível em 20/07/2022.

[10] https://newsroom.porsche.com/en/2022/innovation/porsche-entertainment-technology-startup-holoride-location-based-virtual-reality-lbvr-porsche-experience-center- pec-los-angeles-27561.html disponível em 20/07/2022.

[11] https://neuralink.com/science/ disponível em 20/07/2022.

[12] https://neuralink.com/approach/ disponível em 20/07/2022.

[13] https://neuralink.com/applications/ disponível em 20/07/2022.

[14] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução: George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 115.

[15] Em referência a Felipe Zenchet, professor de Filosofia do Direito na Universidade de Brasília.

Análise Inicial da Emenda Constitucional nº 125, de 14 de Julho de 2022, que instituiu o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional

Fabio Luiz Gomes & Thiago Tirolli

I – Critério temporal

Constata-se que o Art. 3º delimitou que a Emenda Constitucional entrou em vigor na data da publicação e fixou que a exigência da relevância aos recursos interpostos após a entrada em vigor da Emenda Constitucional, isto é, 14 de Julho de 2022.

Não restando dúvidas de que os recursos em trânsito no Superior Tribunal de Justiça não poderão ter como filtro de admissibilidade esta Emenda Constitucional.

II – Conceito de Relevância

Um dos desafios impostos pela Emenda Constitucional será estabelecer um conceito de “relevância”.

Estabelece o Art. 1º da Emenda Constitucional (acrescentou um § 2º ao Art. 105 da CRFB) que no Recurso Especial “o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso”.

Trata-se, nesse caso, de um reflexo claro da visão que o Superior Tribunal de Justiça possui de sua missão constitucional, de pacificar e dar a última palavra na aplicação da legislação federal, sem que funcione como verdadeira Corte de revisão.

Portanto, é fato constitutivo – decorrente do mandamento do próprio texto da emenda constitucional, ao dispor que o recorrente “deve” demonstrar a relevância – que a partir de 14 de Julho de 2022 o Recurso Especial traga em suas razões um tópico de admissibilidade recursal que fundamente o requisito da relevância das questões de direito infraconstitucional a ser demonstrado pelo recorrente.

Ao contrário do que ocorreu na regulamentação da transcendência dos Recursos de Revista direcionados ao TST, ocorrida em 2017 pela chamada “Reforma Trabalhista”, que define que o Tribunal analisará se a causa transcende aos interesses individuais – desobrigando o recorrente de trazer o tema como tópico recursal -, no presente caso o texto constitucional já prevê uma atuação positiva do recorrente.

Assim, a demonstração da relevância metaindividual, portanto, transcendente, deve fazer parte da petição recursal.

A negativa de trânsito ao Recurso Especial por conta da ausência de relevância apenas pode ocorrer pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente. Nesse caso, tratando-se de Resp, em regra o órgão julgador é uma das Turmas do STJ, compostas por 5 ministros. Assim, o não conhecimento do REsp, por esse motivo, apenas pode ocorrer pela manifestação de ao menos 4 Ministros.

Observa-se, contudo, que o próprio dispositivo utiliza o vocábulo “nos termos da lei”, parece que em uma interpretação mais açodada poder-se-ia considerar essa norma constitucional como sendo de eficácia limitada.

Contudo, ao se realizar uma interpretação sistemática constata-se que na verdade se trata de uma norma constitucional de eficácia contida, isto é, essa norma já possui a aplicabilidade direta e eficácia imediata, e se posteriormente houver uma norma infraconstitucional poderá restringir o seu alcance.

Posto isto, urge delimitar o alcance do que seja “relevância” para essa norma enquanto não houver a norma infraconstitucional restritiva.

De início, a própria norma traz previsões em que a relevância será presumida. Recursos Especiais  que envolvam matéria penal, improbidade administrativa e inelegibilidade não passam pelo filtro da relevância.

Ainda, o texto da EC nos aponta mais critérios: (i) Recursos especiais oriundos de causas cujo valor da causa seja superior a 500 salários mínimos; (ii) em que o acórdão afronte jurisprudência dominante do STJ; e (iii) demais casos previstos em Lei.

Tais critérios, que afastam a necessidade do Recurso Especial se sujeitar ao filtro da relevância, nos dão um direcionamento inicial em que casos teremos essa relevância “presumida”. Entretanto, decerto exigirão interpretação e discussão do próprio STJ para definir as especificidades de sua aplicação.

Por exemplo. Quando se fala que o valor da causa, é adequado considerar o valor apontado na inicial (ou em correção posterior) ou, em interpretação sistemática, deve-se considerar o proveito econômico da demanda e o seu potencial reflexo econômico? O tema é abordado com mais detalhamento no tópico adiante.

E mais. Não podemos apontar com segurança o que pode ser considerado jurisprudência dominante do STJ, pois se trata de conceito aberto. Seriam as decisões reiteradas de Turmas da Corte? Decisões chanceladas pela Corte Especial? Decisões vinculantes?

Por fim, sobre a presunção de relevância “nos termos da lei, poder-se-á fazer uma interpretação sistemática do termo “relevância” e por analogia se fixaria um critério terminológico, buscar-se-ia no requisito de repercussão geral nos recursos extraordinários[1], que também se utiliza o termo “relevância” para definição do que seja repercussão geral.

Portanto, a delimitação do conceito de “relevância”, enquanto não sobrevier a norma infraconstitucional restritiva, será relevante “do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa…”.

Tal se alinha com o desenho e atuação do Poder Judiciário brasileiro, em especial o STF que, por ser a Corte Suprema, em princípio, daria a última palavra sobre que temas entende haver transcendência dos interesses individuais.

Ou seja, uma causa em que o Supremo Tribunal Federal entendeu possuir Repercussão Geral, atrai a existência de transcendência para o Recurso e Revista trabalhista e assim deve ser para o Recurso Especial.

O STF assim já se manifestou, a exemplo da Rcl 38529 AgR-ED, em que estipulou que:

 “Nos termos da jurisprudência desta Corte, o óbice suscitado pelo Tribunal Superior do Trabalho à admissão do agravo de instrumento no recurso de revista (ausência de transcendência da matéria) está em descompasso com a premissa de que os julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal dos paradigmas referidos (Tema 246 e ADC 16) revelam a transcendência da questão debatida nos autos de origem.

Dessa desarmonia, resulta a usurpação da competência desta Suprema Corte, pela inadmissível obstrução da via recursal extraordinária”.

Portanto, adequado que na pendência de Lei que regule a EC, utilize-se os parâmetros de Repercussão Geral.

Em conclusão, os recursos especiais devem destacar um tópico que demonstrem a relevância recursal, apontando os casos em que a relevância seja presumida nos termos do próprio texto constitucional e enquanto não houver a norma restritiva, deverá ser uma causa meta-individual do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico.

E, ademais, como a EC trouxe conceitos abertos, cabe aos recorrentes iniciarem a discussão desses temas, em especial do que seria considerado, neste caso, jurisprudência dominante do STJ.

III – Valor da Causa

Em dois dispositivos o termo “valor da causa” é repetido:

  1. No primeiro faz parte do texto constitucional, fixando como causa relevante o consubstanciado no Art. 1º da Emenda Constitucional, que estabeleceu no rol exemplificativo, no § 3º, III do Art. 105 da Constituição: “ações cujo valor ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos.
  2. O segundo está disposto no Art. 2º da Emenda Constitucional: “ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do § 3º  do referido artigo.”

Em relação ao item 1, pode-se chegar às seguintes interpretações:

Uma primeira interpretação é a literal, de que não caberia recurso especial de causas que fossem inferiores a 500 (quinhentos) salários mínimos, porém, numa perspectiva interpretativa sistemática, não poderia infirmar tamanho impeditivo as causas inferiores a esse patamar, sob pena de contrariar diversos princípios constitucionais, dentre eles destacaríamos o do devido processo legal substantivo (due process of Law), afinal não se pode restringir a vida-patrimônio ou liberdade sem o devido processo, neste caso, nem uma lei, no caso uma emenda constitucional, poderiam fazê-lo.

No entanto, objetivamente, essa lei gera uma presunção de que nas causas superiores a esse valor poderia ser considerada relevante, com uma argumentação simplificada. Nesse diapasão, restaria simplificada a argumentação da relevância jurídica-social-econômica nas causas superiores a esse valor.

Ao passo que nas causas inferiores a esse valor, a parte recorrente deverá demonstrar de forma analítica-fundamentada a relevância jurídica.

Concluindo, as causas superiores a 500 (quinhentos) salários mínimos gozam de uma presunção relativa de que haja relevância jurídica, nas causas inferiores a esse valor, caberá às partes fazerem uma demonstração analítica da relevância jurídica de sua causa.

Já no item 2, inicialmente poderia se pensar que ao fixar o valor da causa com um valor inferior na petição inicial, no curso do processo ficar constatado o benefício econômico, poderia ser pleiteada a revisão do valor da causa em sede de recurso especial e com isso, se for superior a 500 (quinhentos) salários mínimos, poderia ser revista.

Contudo a Emenda Constitucional não se utilizou do conceito de benefício econômico, portanto, a atualização deverá ser versada do valor atribuído ao valor da causa.

IV – Jurisprudência dominante do STJ

O fato da emenda constitucional trazer o conceito aberto “Jurisprudência dominante” do STJ abre espaço para que o recorrente, utilizando-se da argumentação jurídica e retórica, classifique que o acórdão recorrido, de alguma forma, violou a jurisprudência dominante do STJ.

E a discussão é proveitosa e, ao nosso ver, decerto será parametrizada pelo STJ logo no início da aplicação do filtro de relevância nos Recursos Especiais.

A despeito da falta de definição, o Código de Processo Civil pode auxiliar em tal interpretação.

O artigo 489, § 1º, VI do CPC, ao falar das decisões que são consideradas não fundamentadas, inclui aquela que deixa de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte.

E sobre isso, o STJ já pôde se manifestar no sentido de que “A regra do art. 489, §1º, VI, do CPC/15, segundo a qual o juiz, para deixar de aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, deve demonstrar a existência de distinção ou de superação, somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos.”(REsp n. 1.892.941/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 1/6/2021, DJe de 8/6/2021.)

Portanto, é provável que o STJ, ao aplicar o filtro da relevância, considere que jurisprudência dominante seja apenas os precedentes qualificados e vinculantes que possui.

Não obstante, na visão dos produtores deste texto, para garantir o cumprimento do mister constitucional da Corte cidadã, jurisprudência dominante deve ser considerada aquela (i) reiterada nas turmas; (ii) oriunda da Corte Especial; ou (iii) consubstanciada em Súmula da jurisprudência da Corte.

Isso porque, a produção de precedentes qualificados no STJ pode não ocorrer na velocidade que os jurisdicionados necessitam, o que permitiria a interpretação descompassada da legislação federal pelos Tribunais Estaduais.

De toda forma, considera-se proveitoso o debate sobre o tema para ensejar a pacificação da questão desde logo.


[1]A regulamentação do § 3º do art. 102 da Carta Magna foi realizada pela Lei nº 11.418, de 2006, que inseriu os arts. 543-A e 543-B no Código de Processo Civil, e pela Emenda Regimental nº 21, de 2007, do Supremo Tribunal Federal (STF).


FABIO LUIZ GOMES. Advogado corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Mestre e Doutorando em Direito Público.

THIAGO TIROLLI. Advogado corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Especialista em Direito Processual Civil.

A Constituição em capítulos. Novas exigências para o Recurso Especial

Mauro Grinberg

Já se disse que a Constituição Federal é uma obra em capítulos. O último (até o momento em que este singelo artigo é escrito) é a Emenda Constitucional 125, de 14 de julho de 2022, que altera o art. 105 para introduzir o quesito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.

Estabelece o art. 105, III, “a”, que “compete ao Superior Tribunal de Justiça” “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e territórios, quando a decisão recorrida” “contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”.

Foi agora acrescentado, pela nova emenda, o § 2º: “No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento”.

Leonardo Carneiro da Cunha, em oportuno artigo, já nos adverte que a expressão “nos termos da lei” traz exigência: “O novo requisito de admissibilidade do recurso especial depende de regulamentação, pois o referido § 2º dispõe que o recorrente deve demonstrá-lo “nos termos da lei”, a exigir que haja disciplinamento legal”[1].

O que se vê é que a interposição de recurso especial com base na alínea “a”, acima referida, impõe a necessidade da demonstração de relevância (“nos termos da lei”), sendo que tal relevância pode, em tese, não ser conhecida pela maioria de 2/3 do órgão julgador. Até aqui temos um entendimento.

Mas a emenda acrescentou também o § 3º, que Leonardo Carneiro da Cunha trata como de “relevância automática”[2]: definindo em seus incisos os casos em que “haverá a relevância”: “ações penais”, “ações de improbidade administrativa”, “ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos”, “ações que possam gerar inelegibilidade”, “hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça” e “outras hipóteses previstas em lei”.

De início já se percebe que o legislador constitucional deixou aberta ao legislador ordinário a faculdade de acrescentar hipóteses de cabimento do recurso especial, no que parece ser uma alteração perigosa de competência, dando ao legislador ordinário o poder de, na prática, legislar constitucionalmente. Em linguagem mais clara, o legislador ordinário poder mudar a Constituição com quórum menor e procedimento mais simples. Mas há outra dúvida trazida pela nova emenda.

Tal dúvida é saber se o Superior Tribunal de Justiça (STJ) poderá negar seguimento a um recurso especial mesmo que se aplique um dos incisos do § 3º acima referido, como, por exemplo, se uma causa ultrapassa o valor de 500 salários mínimos – o que hoje resultaria no valor de R$ 660.000,00. Se o valor da causa for superior a este valor, pode o STJ ainda assim negar a relevância quando o novo texto constitucional diz que “haverá relevância” a esta hipótese? 

Em outras palavras, quando o novo texto constitucional diz que “haverá relevância” em determinadas hipóteses, ele parece, na leitura simples, ser determinante. E nem precisa de disciplinamento legal por ser de “relevância automática”. Então, a possibilidade de rejeição por 2/3 dos membros do órgão julgador parece ser destinada às demais hipóteses, que não estas previstas no § 3º acima referido. Isto porque a linguagem da emenda é determinante, indicando que, por exemplo, um recurso especial em uma causa cujo valor exceda 500 salários mínimos será necessariamente relevante. Assim, em um processo de valor superior a R$ 660.000,00, a demonstração de relevância é desnecessária porque o assunto é relevante por determinação constitucional.

Vale lembrar que o art. 2º da emenda permite que, nas causas iniciadas antes da sua entrada em vigor, a parte interessada altere o valor da causa. Aí existirá uma outra dúvida na hipótese do réu original da ação ser o recorrente pois o valor terá sido fixado pelo autor.

Aguardemos novos capítulos.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, advogado especializado em Direito Concorrencial e sócio fundador de Grinberg e Cordovil.


[1] “Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal”, Consultor Jurídico, 16/07/2022

[2] Artigo citado

Importância do sistema SISCORI na fiscalização das operações de comércio exterior

Josefina Guedes & Rogério Pitta

Durante longos anos de ausência de um sofisticado e transparente sistema de estatísticas de comércio exterior no Brasil, dificultou os atores que atuam de forma legal e de boa fé, consequentemente favorecendo os importadores e exportadores que atuaram de má fé, resultando num enorme prejuízo ao Erário, ao emprego, investimentos e produção no país, por décadas.

A partir de 2007 até final de 2015, os operadores de comércio exterior e a indústria nacional passaram a contar, por parte da Secretaria da Receita Federal do Brasil, com dados das importações brasileiras e informações detalhadas, divulgados em bases acess no próprio site da SRFB, porém restritos a apenas alguns poucos Capítulos da Nomenclatura de Comércio Exterior (NCM) tidos como sensíveis no comércio exterior.

Com as rápidas e significativas mudanças no comércio internacional, ficou clara a necessidade de um novo sistema de divulgação de dados, com maior transparência e complexidade, tendo em vista as novas formas e regras que foram sendo incorporadas nos acordos comerciais de preferências tarifárias e da Organização Mundial do Comércio.

Além desses acordos, o comércio internacional tem se mostrado dinâmico a ponto de surgirem novas práticas, realizadas pelos novos players do comércio mundial. Então, todo esse novo cenário, fez com que as autoridades brasileiras tenham elaborado um novo sistema de divulgação de estatísticas de comércio exterior, o Siscori.

Pela primeira vez na história do comércio exterior brasileiro, o sistema de informações estatísticas de comércio exterior passou a ser formado com base de dados mais detalhados que o anterior, sendo que, o mais importante, foi disponibilizar ao público em geral, a partir de janeiro de 2016, informações mensais das operações, tanto de importação como de exportação.

Dados relativos às NCM, origens e destinos das operações, descrições detalhadas dos produtos, volumes, valores, fretes, seguros, preços unitários das operações, unidades de despacho (exportação) e de desembaraço (importação), entre outros, eram disponibilizados a todos os operadores no comércio exterior brasileiro.

Cabe ressaltar que, em ambos os métodos de divulgação de dados pela SRFB, a confidencialidade das empresas importadoras e exportadores sempre foi garantida, inclusive com a restrição da divulgação de operações realizadas por menos de quatro empresas em uma mesma NCM e mês.

De divulgação pública, o sistema Siscori era único em relação ao detalhamento dos dados das importações, e se mostrou fundamental no acompanhamento para o combate de ilicitudes no comércio exterior brasileiro, cada vez mais visado dentro desse novo cenário do comércio mercado mundial competitivo.

Esse sistema estatístico de comércio exterior teve papel fundamental e, durante sua duração, foi sine qua non para o combate de várias práticas ilegais e/ou desleais no comércio internacional brasileiro, como importações de produtos subfaturados e fraudes diversas, tais como falsa declaração de origem ou de classificação fiscal ou produtos que não cumprem requisitos regulatórios importantes para a proteção da saúde pública e do meio ambiente, exigidos dos produtores nacionais.

Principalmente em razão do aumento da complexidade de ações indevidas e/ou ilegais realizadas, por agentes do comércio exterior pelo mundo, prejudicando o combate às práticas lesivas ao Erário, aos empregos, aos investimentos e produção. Infelizmente esses agentes que atuam de forma irregular e prejudicial, obrigam as empresas que atuam de boa fé acompanhar e monitorar a atuação dos demais atores do mercado.      

Após o grande avanço no sistema estatístico de comércio exterior brasileiro, em 17 de dezembro de 2021, por meio da publicação no Diário Oficial da União da Portaria SRFB nº 100, de 16 de dezembro de 2021, foi determinada a descontinuidade do funcionamento do sistema Siscori, o que pode ser avaliado como um grande retrocesso para todo o ganho que o comércio exterior realizou após décadas de atraso.

Voltamos a época da falta de transparência, fator determinante para o combate às práticas ilícitas no comércio exterior brasileiro, décadas perdidas! Precisamos avaliar quem ganha com esse retrocesso, urge uma análise rápida e objetiva dessa questão!

É importantíssimo notar que, contrariamente à justificativa apresentada pelo governo brasileiro para o encerramento do sistema Siscori, este Sistema se diferencia de forma significativa dos dados disponibilizados pela Secretaria de Comércio Exterior do Brasil no Comexstat, e de qualquer outro sistema estatístico, pois é o único que fornecia descrição detalhada dos produtos importados e/ou exportados dentro de cada NCM, dado de total relevância para o combate de práticas ilícitas.

Diversos produtos classificados em uma mesma NCM têm características bastante amplas, com variações que afetam valores e preços das mercadorias transacionadas. Podem-se citar, como exemplo, produtos químicos com inúmeras composições e fórmulas, produtos têxteis produzidos com as mais diversas matérias-primas e produtos siderúrgicos, com uma infinidade características de tamanhos, espessuras, diâmetros, revestimentos e acabamentos, classificados dentro de um mesmo código tarifário.

Assim, tendo em vista a extensa gama de classificações dispostas pelos códigos da NCM, em muitos casos, é impossível identificar o verdadeiro produto, sem uma descrição detalhada da mercadoria comercializada. A ausência destas informações inviabiliza que os operadores nacionais denunciem, junto aos agentes públicos brasileiros, para colaborar no combate a práticas irregulares, como subfaturamento, falsa declaração de origem do produto, desvio de NCM para pagar menos impostos (Imposto de Importação, Imposto sobre Produtos Industrializados e impostos estaduais), bem como práticas de dumping, subsídios e outras estabelecidas em nossa legislação nacional.

Com o crescimento acelerado do comércio internacional e a diversificação cada vez maior das mercadorias vendidas pelo e ao Brasil, é fundamental que a informação do produto seja a mais detalhada possível permitindo assim, que o setor privado identifique as características específicas das mercadorias, tornando as medidas de combate às irregularidades no comércio internacional mais apuradas e precisas. De outra forma, a análise dos dados detalhados permite melhor identificação da “doença”, possibilitando a aplicação do “remédio” mais adequado.

Assim sendo, infere-se ao sistema Siscori extrema importância para que os setores público e privado possam, em colaboração mútua, monitorar o mercado e auxiliar no combate a fraudes, garantindo assim o comércio justo e legal, evitando prejuízos milionários ao Erário. Ademais, os dados detalhados são também absolutamente imprescindíveis nos casos de instrumentos de políticas comerciais, que o Brasil como membro da Organização Mundial do Comércio pode aplicar.

É sempre fundamental salientar, que a competição justa de comércio e dentro dos padrões e regras internacionais colaboram na geração de renda e empregos, o pagamento de impostos, a produção e o desenvolvimento industrial do país.

É muito importante o diálogo da SRFB e todo o setor privado nacional e a Secretaria tem se mostrado sensível à essa questão. Mas se faz necessária uma solução rápida e eficiente diante das necessidades do Brasil nesse momento. Recentemente, novos dados de importação passaram a ser divulgados pela SRFB, contemplando as seguintes informações:

Fonte: RFB (https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/resultados/aduana/dados-estatisticos/importacao)

Entretanto, estes dados estão apresentados de forma pouco didática, de difícil compreensão e não contemplam informações primordiais às análises do setor privado, como dados de volume importado (kg, toneladas, etc) e origem das importações.

Portanto, a questão segue sem solução. A indisponibilidade de ferramentas de consulta às operações, há mais de seis meses, tem dificultado a apresentação de denúncias, facilitando que o mercado nacional fique exposto às irregularidades citadas. É necessária absoluta celeridade, seja no restabelecimento do sistema Siscori, seja na criação de um sistema similar de divulgação de dados do comércio exterior brasileiro, pois enquanto não houver uma solução, as irregularidades/ilegalidades continuam a ocorrer e aumentar, uma vez que certos da impunidade, os criminosos se tornaram cada vez mais ousados, causando cada vez mais prejuízo para o Erário e todo país.

Especialização dos juízes como recurso para a administração da justiça[1]

Fernando de Magalhães Furlan

Os juízes são responsáveis pela última palavra do Estado nas relações sociojurídicas numa democracia. Representam o derradeiro controle dos atos do próprio Estado e das relações entre particulares. Mas ao juiz não cabe somente interpretar e aplicar a lei, a ele se espera que corresponda à Justiça, ainda que dentro dos limites estabelecidos pela Constituição.

A administração da Justiça é, portanto, não somente o melhor direito aplicado a situações concretas, mas o direito aplicado da forma a mais eficiente, rápida e consistente, por julgadores empenhados, informados e atualizados. Conferir justiça é mais do que a distribuir equitativamente, é mantê-la funcionando de forma qualificada, rápida e estável. Isso demanda diagnóstico, planejamento e execução.

O fato de que os recursos judiciais são escassos e não podem ser ampliados infinitamente apresenta um problema familiar: como fazer o melhor uso de uma “mercadoria limitada”[1]. A própria teoria econômica fornece uma resposta típica: a divisão do trabalho por meio da especialização do sistema judicial.

Este artigo trata brevemente de diferentes experiências internacionais na criação e operação de cortes especializadas em temas específicos, com ênfase nas matérias econômico-empresariais, bem como as melhores práticas e, naturalmente, a doutrina. O artigo busca contribuir com o debate sobre a criação e operação de varas federais especializadas em temas econômico-comerciais no Brasil e, eventualmente, no MERCOSUL e BRICS.

A Justiça especializada não é novidade. Na França[2], por exemplo, o Conselho de Estado (Conseil d’État) é um órgão do governo nacional francês que atua como consultor jurídico do Poder Executivo e como órgão jurisdicional, de última instância, para casos envolvendo o Estado francês, seja por atos administrativos ou como parte numa controvérsia. As decisões de juízes administrativos espalhados pelo país também poderão ser revistas pelo conselho. Foi criado em 1799 por Napoleão Bonaparte.

Além da Franca, a Inglaterra[3], a Bélgica[4] e a Alemanha[5], dentre vários outros países europeus, também adotam sistemas judiciais com variados graus de especialização[6]. Na verdade, de acordo com o relatório Doing Business[7] do Banco Mundial, trata-se de um fenômeno global, pois a criação de cortes especializadas foi uma das reformas mais comuns empreendidas no mundo entre 2005 e 2006, por exemplo.

Nos Estados Unidos, onde a organização do Poder Judiciário é competência exclusiva do Congresso, a última mudança legislativa criou, além da estrutura clássica dos juízes federais com jurisdição abrangente[8], os juízes administrativos, também conhecidos como juízes legislativos[9], com atuação limitada a áreas específicas e vinculados a agências e órgãos da Administração Pública Federal, com poderes quasi-judiciais e cujas decisões podem ser revistas pelos tribunais federais clássicos[10].

Na própria América Latina temos exemplos bastante recentes e bem-sucedidos como o do Tribunal da Concorrência do Chile, cujas decisões somente podem ser revistas pela Corte Suprema do país; e dos juizados especializados em defesa da concorrência e regulação das telecomunicações, no México, seguindo uma recente reforma constitucional.

Mesmo no Brasil, a Justiça também se especializou e as áreas mais conhecidas são a eleitoral, a militar e a do trabalho. Mas há também especializações em nível estadual como as varas de falência e recuperação judicial e as da Fazenda Pública. Mais recentemente também houve louváveis especializações como:

  1. Varas federais especializadas em crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de lavagem ou ocultação de bens[11], famosas internacionalmente por conta, inclusive, do caso “Lava-Jato” e do juiz especializado Sergio Moro[12]; e as diversas varas empresariais[13] no estado do Rio de Janeiro;
  1. Varas federais especializadas[14] em propriedade industrial e intelectual, inclusive marcas e patentes, e benefícios previdenciários do regime geral (INSS), no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ, ES)[15];

III.     Varas empresariais no estado de Minas Gerais[16].

  1. Varas federais especializadas em matéria de saúde (3ª vara de Curitiba e 1ª, 2ª, 4ª e 5ª varas de Porto Alegre); além de outras iniciativas estratégicas importantes.

Tais iniciativas, em prol de melhor administrar a Justiça, ao menos no caso brasileiro, vêm ao encontro de pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (IDESP), em 2000, que demonstrou que 89% da classe empresarial brasileira avaliava a agilidade do Poder Judiciário como “ruim” ou “péssima”[17].

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) lançou em junho de 2016 a “Agenda Internacional da Indústria”[18], e dentre as mais importantes medidas defendidas está a “Desburocratização do Comércio Exterior – por meio do aumento da segurança jurídica e da redução dos tempos de decisões com varas especializadas em comércio exterior no Judiciário brasileiro”. Foi a primeira vez que a CNI elaborou um documento específico para ampliar a inserção internacional das empresas brasileiras.

O Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE), ao realizar estudo[19] em 2005 para avaliar a confiança da população brasileira em suas instituições, revelou que dentre quatorze organizações investigadas, o Poder Judiciário ocupava a sétima colocação, atrás da Igreja Católica, das Forças Armadas, dos jornais, das redes de televisão, dos sindicatos e dos advogados.

De acordo com Sadek[20], para “ilustrar o descontentamento social para com o serviço prestado pelo Poder Judiciário”, levantamentos de institutos especializados, como Vox Populi, Data Folha, IBOPE e Gallup, mostram que, em média, 70% dos entrevistados não confiam no sistema de justiça brasileiro.

Uma das conclusões de estudo sobre a criação de varas especializadas em Defesa Comercial, publicado em 2012[21], foi a de que havia necessidade de melhoria do nível de conhecimento técnico-jurídico especializado em temas de comércio exterior por parte dos julgadores federais.

A confusão entre conceitos fundamentais[22] como: (i) características, objetivos e limitações de cada um, além de diferenças decisivas entre o antidumping, as medidas compensatórias e as salvaguardas; e (ii) o momento determinante da incidência da norma para fins de cobrança de medidas aplicadas, por exemplo, foram as situações mais apontadas.

A especialização judicial é um fenômeno mundial que acompanha a tendência de especialização profissional não somente na seara jurídica, mas em todas as áreas do conhecimento humano.

A necessidade de especialização de juízes não é diferente daquela dos advogados e acadêmicos, que buscam se adaptar às exigências de uma sociedade crescentemente complexa e que depende da atividade jurisdicional do Estado para uma miríade de situações e soluções.

É uma questão que irá se repetir, com crescente frequência, à medida em que os “atrasos judiciais conspirarem com a maior complexidade social e tecnológica[23] para estimular cada vez mais cortes especializadas em áreas jurídicas amplamente diversificadas.

A crescente penetração de entidades e órgãos do Poder Executivo nas finanças, nos negócios e na economia, exatamente para contrabalançar as poderosas forças econômicas, exige uma crescente preocupação em tornar o controle sobre os atos administrativos realmente efetivo.

Posner considera que talvez o problema jurídico central do nosso tempo seja “harmonizar o ‘direito em ação’ com o ‘direito dos livros’[24]. A enorme atividade legislativa iniciada há cerca de uma geração se preocupava com questões intrincadas e técnicas. A doutrina geral que governava os serviços públicos era bastante simples. Contudo, as “mais sutis dificuldades foram encontradas na sua aplicação. Problemas de direito tornaram-se problemas de administração[25]. Foram, então, necessários novos instrumentos de especialização e precisão. O direito tinha que atender às exigências de uma era de especialização.

Para fazer frente a essas exigências de uma sociedade industrial mais complexa, as cortes ou tribunais especializados surgem como uma resposta possível para exercer o controle sobre os sucessivos campos de legislação emanada do Executivo. Para Root, “as questões jurídicas administradas por eles chegam a ser tão diversificadas que fazem nascer novos ramos do direito administrativo[26].

Afinal, às vezes se diz que os juízes implementam políticas públicas feitas por outros Poderes. Mas para muitas questões, o oposto é verdadeiro: os juízes fazem política pública e outras instituições respondem à sua liderança[27], pois as restrições de jurisdição, impostas pelo princípio da inércia judicial, podem limitar a capacidade de formulação de políticas públicas dos juízes, mas “não os impedem de participar ativamente do processo de sua construção[28]. As decisões judiciais podem “antecipar metas de políticas públicas e mostrar que a justiça individual pode também influenciá-las[29].

Contudo, se os juizados e tribunais crescerem somente de forma horizontal, haverá mais juízes e oficiais judiciais a entregar mais decisões, elaboradas sob as mesmas premissas e sobre as mesmas questões. Isso produzirá maior incoerência jurídica, dando origem a ainda mais litígios.

Embora o problema da incoerência possa ser resolvido por meio da introdução de novas esferas recursais, ainda assim haverá uma proliferação de decisões, mesmo que de forma vertical. Nesse contexto, “se os tribunais não podem crescer para fora, e se crescer para cima também não é útil, o que resta é a diferenciação[30].

Cortes especializadas aliviam substancialmente os encargos de outros juizados e tribunais generalistas. Medir o alívio na sobrecarga de trabalho não é, no entanto, simplesmente uma questão de contar processos deslocados de uma corte ou de um tribunal para outro. O que importa é a quantidade de tempo e esforço poupados aos juízes. O truque, portanto, é “encontrar os casos que impõem os maiores encargos de recursos (tempo e pessoal) sobre os tribunais, em comparação com a sua importância[31].

Cortes judiciais que desempenham bem a função de controle judicial e prestação jurisdicional são um “determinante indireto da performance econômica[32] de um país. Elas promovem a produção e distribuição eficientes de bens e serviços e asseguram “dois pré-requisitos essenciais das economias de mercado: a segurança dos direitos de propriedade e o cumprimento e execução de contratos[33]”.

A segurança dos direitos de propriedade reforça os incentivos à poupança e aos investimentos, protegendo os retornos e a sustentabilidade dessas atividades. O cumprimento adequado dos contratos induz os participantes do mercado a manter relações econômicas, “desencorajando comportamentos oportunistas[34] e diminuindo os “custos de transação”[35].

Nesse contexto, é mister estudar a relevância, a viabilidade e os resultados sociais líquidos da criação de varas especializadas em matérias “econômico-empresariais”.

Emprestar segurança jurídica e institucional, além de credibilidade e confiança a investidores caprichosos, num ambiente internacional crescentemente competitivo, não é tarefa simples. Todavia, os juízes estão excepcionalmente qualificados para realizar um equilíbrio dos princípios processuais e substantivos na aplicação dos diversos ramos do direito econômico e empresarial, devido a pelo menos três razões principais[36]:

a)      independência de outros Poderes e entidades do Estado, o que lhes permite imparcialidade e coerência na interpretação do direito aplicável;

b)      experiência no processo de discernimento do(s) objetivo(s) subjacente(s) da lei e reconciliação de seus objetivos fundamentais com a necessidade de sua aplicação justa e transparente;

c)      especialização na interpretação da lei.

Órgãos jurisdicionais especializados, com competência para julgar causas relativas a assuntos que demandam notória especializaçãoe que, em regra, não são objeto de maiores aprofundamentos, quer na graduação, quer nos próprios concursos e cursos da magistratura, podem indicar uma solução viável ao crescente e desafiante problema do volume e acúmulo de processos no Judiciário brasileiro, assim como noutras Jurisdições.

Nesse contexto, e considerando a abordagem multijurisdicional para a designação de varas federais especializadas no Brasil, nossa conclusão vai ao encontro daquelas do Conselho da Justiça Federal (CJF)[37], ou seja:

a)      pela redefinição da organização judiciária da Justiça Federal, de modo a estabelecer uma ou mais varas com competência para resolver questões relacionadas à defesa da concorrência, comércio exterior[38], regulação[39], arbitragem[40][41] e mediação[42] e proteção do consumidor (ações coletivas e ações civis públicas). Assim, todas as ações ajuizadas na Justiça Federal de determinada região, independentemente da competência geográfica, seriam distribuídas à(s) vara(s) especializada(s) em temas econômico-difusos, conforme listados acima; ou, alternativamente;

b)      pela especialização de uma ou mais vara(s) nas capitais, em temas de defesa da concorrência, comércio exterior, regulação, arbitragem e mediação e proteção do consumidor. Essa(s) vara(s), contudo, manteria(m) as suas competências atuais, agregando estas novas competências jurisdicionais especializadas. Os processos dessas áreas especializadas seriam distribuídos às varas com preferência, e, havendo espaço para distribuição suplementar, se seguiriam os processos relativos às prioridades definidas na estratégia nacional do Judiciário, ou seja, as ações coletivas, as ações civis públicas e as ações de improbidade administrativa, nessa ordem.

Essa(s) vara(s) especializada(s) teria(m) atribuição preferencial para o julgamento de ações conforme os temas elencados acima, isto é, vara(s) específica(s) para a(s) qual(is) seriam distribuídos todos os processos que tratem de concorrência, comércio exterior, regulação, arbitragem e mediação e proteção do consumidor.

Havendo espaço para distribuição suplementar, tal(is) vara(s) também receberia(m) ações coletivas e ações civis públicas sobre outros temas previstos na legislação, bem como, eventualmente, as ações por improbidade administrativa.

Essa abordagem não pressuporia necessariamente a criação, com ônus, de nova(s) vara(s) na Justiça Federal, mas simplesmente uma reorganização e reestruturação de varas para que passe(m), alguma(s) dela(s), a atuar preferencialmente nessas áreas específicas, embora sem exclusividade.

É muito importante que se tenha cuidado, contudo, para que, ao incluir as ações civis públicas, as ações coletivas e as ações por improbidade administrativa na competência das varas especializadas, não acabem essas últimas por engolir aquelas competências que foram inicialmente propostas[43] e que têm o condão de melhorar o ambiente de negócios, a segurança jurídica, enfim, a estabilidade e credibilidade necessárias à atração e manutenção de investimentos, ao desenvolvimento econômico e, consequentemente ao bem-estar geral da sociedade.

A correta divisão do trabalho, por si só, é capaz de contribuir muito para promover a eficiência. A limitação de casos atribuídos a juízes especializados e o consequente aprofundamento de conhecimentos certamente produzirão decisões mais expeditas e sólidas.

Por fim, uma alternativa vai ao encontro do que já se faz em países como os Estados Unidos[44] e a Nova Zelândia[45], por exemplo. Trata-se da designação de panels (turmas ou câmaras) de juízes de primeiro grau que se reúnem periodicamente, em colegiado, para discutir casos semelhantes, esclarecer questões, aproximar interpretações e, possivelmente, apreciar alguns tipos de recursos, aliviando a 2ª instância, sem, contudo, perder o foco numa adjudicação especializada.

Em certa medida, essas eventuais câmaras especializadas da 1ª instância da Justiça federal se aproximariam das turmas julgadoras dos juizados especiais federais. Todavia, com competências em razão da matéria, e não em razão do valor.

Tais câmaras especializadas seriam integradas por juízes federais de 1º grau, com experiência profissional e conhecimentos teóricos suficientes e cujas atribuições singulares se concentrariam, preferencialmente, em casos envolvendo defesa da concorrência, comércio exterior[46], regulação[47], arbitragem[48][49] e mediação[50] e proteção do consumidor (ações coletivas e ações civis públicas). Não havendo volume suficiente (consoante média ponderada a ser atribuída) nessas áreas especializadas, seriam distribuídos também processos relativos às prioridades definidas na estratégia nacional do Judiciário, ou seja, as ações coletivas, as ações civis públicas e as ações de improbidade administrativa.

Dada a natureza complexa do direito da concorrência, do comércio internacional e da regulação, por exemplo – considerada a estreita relação entre os princípios jurídicos e econômicos –, os juízes devem ter experiência e conhecimentos especializados na interpretação desses ramos do direito, “a fim de equilibrar duas das suas principais funções, nomeadamente assegurar o devido processo legal e aplicar, quando apropriado, princípios econômicos substantivos no seu raciocínio[51]. Por conseguinte, a compreensão dos fatos e conceitos econômicos na interpretação do direito constitui uma parte importante da aplicação efetiva do direito pelo Poder Judiciário.

Ao resistir à especialização, o Judiciário pode vir a impor custos significativos à sociedade. É provável, portanto, que não seja simplesmente uma questão de implementação da especialização judicial, mas de quanto tempo o público permitirá que a falta de especialização continue no Judiciário. À medida que as despesas do Estado aumentam, as pressões sobre o Judiciário para conter custos e administrar eficientemente os recursos judiciais também crescem.

Novas “demandas de serviços e desafios organizacionais”[52] na prestação da Justiça criaram a necessidade de um planejamento mais sistemático e integrador a longo prazo. Para enfrentar esse ambiente cada vez mais complexo e dinâmico, os sistemas judiciais têm-se voltado para ferramentas e métodos de planejamento estratégico preestabelecidos.

Questão importante e fulcral para o bom funcionamento da Justiça especializada, e da Justiça em geral, é a concepção, o desenvolvimento e a constante evolução de sistemas integrados de informação, bancos de dados, relatórios, análises e estudos sobre a realidade e os números da Justiça brasileira.

A carência de ferramentas de diagnóstico e análise da situação do Judiciário torna muito difícil, senão impossível, determinar a sua melhor e mais eficaz estrutura, a mais consentânea com os crescentes desafios de tornar fluida a economia e garantir os interesses difusos.

Entretanto, parecem faltar instrumentos à Justiça Federal brasileira para um diagnóstico adequado do quadro atual de ações envolvendo temas como concorrência, regulação e comércio exterior, uma vez que o cadastramento, a autuação e a identificação dos processos por tema ou área ainda seriam falhos.

Conforme afirmado pela presidência do TRF da 1ª Região: “os parâmetros de pesquisa indicados não são suficientes para gerar um diagnóstico próximo da realidade. Inúmeros processos envolvendo agências reguladoras deixaram de ser relacionados, porque, na maioria das vezes, são autuados na classe ação ordinária/outras, sem levar em consideração qualquer outra especificidade. Sem falar nos mandados de segurança”.

Assim, resta mais dificultoso o labor de colheita de informações para embasar uma análise apropriada e conclusões judiciosas sobre a melhor, mais eficiente e sustentável estrutura de atuação do Judiciário, em suas mais diversas frentes.

Tão importante quanto a criação desse aparato para se conhecer, diagnosticar e melhorar a prestação jurisdicional é estabelecer mecanismos de intercâmbio de informações, estatísticas e análises entre instituições como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho da Justiça Federal (CJF), por exemplo.

Como medida de efetividade das propostas aqui apresentadas e estudadas, temos que, em 2022, a situação das varas federais especializadas em Direito da Concorrência, Regulação e Comércio Internacional é a seguinte:

–  O Tribunal Regional da 1ª Região tem 2 varas (a 14ª e a 20ª, ambas na Jurisdição de Brasília-DF) cíveis especializadas nos temas de concorrência e comércio internacional; e competência concorrente nos demais temas residuais de natureza cível;

– O Tribunal Regional da 2ª Região tem 3 varas especializadas (a 1ª, a 2ª e a 6ª), na Seção Judiciária do Espírito Santo; e 2 varas especializadas (a 16ª e a 29ª), na Seção Judiciária do Rio de Janeiro;

– O Tribunal Regional Federal da 3ª Região criou, em 2017, um grupo de trabalho para produzir um relatório sobre a criação de vara(s) especializada(s) em direito da concorrência e em comércio exterior. O relatório, apresentado recentemente, é favorável à designação de vara(s) especializada(s) em concorrência e comércio internacional.


[1] JORDAN, Ellen R. Specialized Courts: A Choice? Northwestern University Law Review, 1981, vol. 76, nº S. 76 Nw. U. L. Rev. 745 1981-1982. Disponível em: Pence Law Library, Washington College of Law, 2017.

[2] A maioria dos juizados especializados no sistema jurisdicional francês é abrangida pela categoria geral de tribunais administrativos – em vez de judiciais – dispostos numa estrutura hierárquica, cujo ápice é o Conselho de Estado. As cortes administrativas decidem questões envolvendo contratos governamentais, ações judiciais contra o governo, controvérsias fiscais selecionadas e apelações de decisões emitidas por órgãos administrativos. Embora tais ações tipicamente envolvam disputas entre o governo e particulares ou corporações, algumas envolvem disputas entre departamentos governamentais independentes. As distinções jurisdicionais entre os tribunais administrativos e judiciais não são tão precisas como se pode suspeitar. Existem tribunais judiciais especiais para resolver questões trabalhistas, previdenciárias e “rurais”. Além disso, os tribunais judiciais lidam com litígios envolvendo impostos indiretos, condenações de terras e responsabilidade municipal em casos envolvendo motins ou outros distúrbios públicos.

[3] Um dos mais antigos e mais renomados tribunais comerciais, o Tribunal de Comércio, um dos Tribunais Reais de Justiça em Londres, lida com casos complexos decorrentes de disputas comerciais, tanto nacionais como internacionais. Há especial ênfase no comércio internacional, nas atividades financeira e bancária, commodities e arbitragem. Os Tribunais Reais de Justiça incluem vários tribunais afiliados, incluindo o Tribunal do Almirantado, a Divisão da Chancelaria, o Tribunal Mercantil de Londres e o Tribunal de Construção e Tecnologia. No final de 2011 foram inauguradas as moderníssimas novas instalações do Tribunal de Comércio de Londres, com o objetivo de igualar a reputação de classe mundial do Reino Unido para o direito empresarial que atrai disputas de todo o mundo. A nova “super corte” proporciona 29 salas de julgamento, 12 salas de audiência, 44 salas de consulta pública e instalações de espera para as partes envolvidas em processos. Espera-se que isso consolide o trabalho desenvolvido pela Divisão de Chancelaria, pelo Tribunal de Comércio e pelo Tribunal de Tecnologia e Construção. A corte atrai para si todos os casos relacionados às empresas e aos negócios dos Tribunais Reais de Justiça, tais como marcas e patentes, processos de construção técnica, casos de almirantado (detenção de navios) e litígios contratuais internacionais. Para fins administrativos, o Tribunal de Comércio de Londres permanecerá ligado ao Grupo de Tribunais Reais de Justiça.

[4] Os tribunais comerciais especializados têm competência em litígios comerciais envolvendo valores acima de cinquenta mil euros. Um tribunal especializado em arbitragem tem jurisdição para resolver os conflitos entre (i) leis promulgadas pelo Parlamento Nacional e decretos ratificados pelos legislativos locais ou regionais/provinciais, (ii) entre decretos promulgados por vários legislativos locais ou regionais/provinciais e (iii) entre essas leis e decretos e dispositivos selecionados da Constituição.

[5] Aproximadamente 25% dos juízes do sistema judicial alemão atuam em sistemas judiciais especializados em matéria de direito administrativo, tributário e fiscal, trabalhista e previdenciário. Os tribunais do trabalho têm jurisdição em litígios entre empregadores e empregados que decorrem de relações de trabalho, questões de negociação coletiva e codeterminação empresarial na medida que as relações de trabalho estão envolvidas. Os tribunais administrativos têm jurisdição sobre questões de direito administrativo, tais como zoneamento, imigração, licenças estaduais – inclusive aquelas sob regulamentação de comércio exterior. A competência dos tribunais fiscais inclui questões fiscais gerais e estende-se aos direitos aduaneiros e outros impostos que envolvem o comércio internacional e exterior. Os tribunais sociais exercem jurisdição em litígios que se enquadram na legislação social, como a seguridade social e os cuidados públicos obrigatórios de saúde.

[6] ZIMMER, Markus B. Overview of Specialized Courts. International Journal for Court Administration, August 2009. Disponível em: <http://www.iacajournal.org/articles/abstract/10.18352/ijca.111/>. Acesso em: 23/05/2017.

[7] World Bank. Doing Business 2007 – How to reform. Disponível em: <http://www.doingbusiness.org/reports/global-reports/doing-business-2007>. Acesso em: 23/05/2017.

[8] Juízes do artigo III da Constituição Estadunidense.

[9] Juízes do artigo I da Constituição dos Estados Unidos da América, os Administrative Law Judges (ALJs).

[10] Tribunais de Apelação dos Estados Unidos (United States Courts of Appeals).

[11] Hoje no Brasil já são 27 varas federais especializadas em crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de lavagem ou ocultação de bens. Elas estão em 14 estados e no Distrito Federal. Em outros 12 estados, os casos denunciados pelo Ministério Público ainda são distribuídos entre varas criminais comuns. São Paulo concentra 2.968 processos desse tipo em andamento; Mato Grosso do Sul tem 613; Paraná, 331; Ceará, 314; Rio de Janeiro; 302 processos; e o DF, 91.

[12] Sérgio Fernando Moro, juiz federal da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba/PR, especializada em crimes financeiros, de lavagem de dinheiro e praticados por grupos criminosos organizados. Trabalhou como Juiz instrutor no Supremo Tribunal Federal durante o ano de 2012. Cursou o Program of Instruction for Lawyers na Harvard Law School em julho de 1998 e possui título de mestre e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Participou do International Visitors Program organizado em 2007 pelo Departamento de Estado norte-americano com visitas a agências e instituições dos EUA encarregadas da prevenção e do combate à lavagem de dinheiro. É Professor Adjunto de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

[13] Atualmente, há na comarca da capital do estado do Rio de Janeiro sete varas empresariais, que concentram ações atinentes à arbitragem, ações coletivas relativas ao Direito do Consumidor, falências e recuperação judicial, execuções por quantia certa contra devedor insolvente, direito societário, propriedade industrial e nome comercial; causas em que a Bolsa de Valores for parte ou interessada e Direito Marítimo. O desafio da Justiça fluminense nessas varas especializadas, de acordo com o advogado carioca Felisberto Caldeira Brant, entrevistado pelo autor em 7 de abril de 2017, é que há litígios complexos, em que fica difícil definir, com rapidez e precisão, se a competência é das varas empresariais ou das varas cíveis. Tanto mais, quando a competência é especializada, e, portanto, deve ser interpretada restritivamente. Tudo o que não estiver contido nos incisos, alíneas e números da norma que definiu a competência especializada deve, obrigatoriamente, ser remetido às varas cíveis. De acordo com o causídico carioca, “nada muito grave, pois o juiz pode enviar de ofício para outra vara (especializada ou não), mas quando se trata de ‘guerra de liminares’, um erro pode ser fatal”.

[14] 9ª, 13ª, 25ª e 31ª Varas Federais no Rio de Janeiro-RJ.

[15] Artigo 25 da Resolução 42/2011 do TRF2.

[16] Há hoje duas varas empresariais na comarca de Belo Horizonte, com competência para processar e julgar os feitos relativos às seguintes matérias: falência, recuperação judicial, resolução, dissolução e liquidação de sociedades empresariais e seus respectivos incidentes; homologação de plano de recuperação extrajudicial; litígios societários concernentes à constituição, deliberação, transformação, incorporação, fusão e cisão de sociedade empresária; liquidação extrajudicial ou ordinária de sociedade empresária; registro do comércio e propriedade industrial; incorporação de créditos ao patrimônio da massa falida; direito de retirada de que trata o art. 137 da Lei federal nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976; as ações, e seus respectivos incidentes, de execução específica de cláusula compromissória, proposta com fundamento no art. 7º da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996; os pedidos de cumprimento ou execução de sentença arbitral, promovidos na forma do art. 475-I e seguintes da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, que institui o Código de Processo Civil, bem como as impugnações oferecidas pelo executado; as ações para decretação da nulidade ou anulação de sentença arbitral, propostas com base no art. 33 da Lei nº 9.307, de 1996.

[17] SADEK, Maria Tereza. Judiciário e Sociedade. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 34.

[18] CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA – CNI. Agenda Internacional da Indústria 2016. Disponível em: <https://www.portaldaindustria.com.br/agenciacni/noticias/2016/06/cni-lanca-agenda-internacional-com-propostas-para-ampliar-comercio-exterior/>. Acesso em: 16 maio 2017.

[19] Idem, p. 35. Apud CABRAL, Marcelo Malizia. Administração Judiciária: caminho para a construção de um Judiciário mais eficiente e legítimo, 2010. Disponível em: <https://m.migalhas.com.br/depeso/109777/administracao-judiciaria-caminho-para-a-construcao-de-um-judiciario>. Acesso em: 27/05/2017.

[20] Ibidem, p. 13. Apud CABRAL, Marcelo Malizia, Op. cit.

[21] LIMA-CAMPOS, Aluísio de; KRAMER, Cynthia. Criação de Varas Especializadas em defesa comercial: uma necessidade para o comércio exterior brasileiro. Revista do IBRAC, São Paulo, ano 19-22, jul-dez. 2012.

[22] ÁRABE NETO, Abrão M.; BONOMO, Diego Z. Tribunal especializado em comércio exterior. Valor Econômico, 03/07/2012. Disponível em: <https://www.valor.com.br/imprimir/noticia/2735934/brasil/2735934/tri>. Acesso em: 27/05/2017.

[23] LEGOMSKY, Stephen H. Specialized justice: courts, administrative tribunals, and a cross-national theory of specialization. New York: Oxford University Press, 1990, p. 4.

[24] POSNER, Richard A. Federal Courts: crisis and reform. Cambridge: Harvard University Press, 1985.

[25] FRANKFURTER, Felix; LANDIS, James M. The business of the Supreme Court: a study in the federal judicial system. New York: The Macmillan Company, 1972, p. 146.

[26] ROOT, Elihu. Public Service by the Bar. 41 AM. Bar Assn. Rep. 355, 368.

[27] VAN HORN, C. E.; BAUMER, D. C.; GORMLEY, W. T. Politics and Public Policy. 3rd. CQ Press: Washington, DC, 2001. Vol. xiii, 366. p. 183.

[28] EPSTEIN, L.; KNIGHT, J. The Choices Justices Make. CQ Press: Washington, DC, 1998. Vol. xviii. p. 200.

[29] CHRISTENSEN, Robert K.; KREIS, Anthony M. Courts and Policy in the U.S. Encyclopedia of Public Administration and Public Policy, Third Edition, 2015. DOI: 10.1081/E-EPAP3-120053550, p. 707.

[30] MEADOR, Daniel J. An Appellate Court Dilemma and a Solution Through Subject Matter Organization, 16 U. Mich. J.L. Reform 471, 475-82 (1983).

[31] BRUFF, Harold H. Specialized Courts in Administrative Law. HeinOnline: 43 Admin. L. Rev. 329, 199. Available Through: Pence Law Library, Washington College of Law.

[32] OECD Economic Surveys: Mexico. 2013. OECD Publishing, Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1787/eco_surveys-mex-2013-en>. Acesso em: 28/05/2017.

[33] WILLIAMSON, Oliver E. The Mechanics of Governance. New York: Oxford University Press, 1996.

[34] O oportunismo é definido como a busca de interesses próprios com astúcia. Inclui formas flagrantes como mentir, furtar e trapacear, assim como formas sutis de engano, principalmente a divulgação incompleta ou distorcida de informação.

[35] Custos de transação são custos incorridos na realização de um intercâmbio econômico, isto é, o custo de participação em um mercado.

[36] OCDE. Judicial enforcement of competition law. Policy Roundtables, 1996.

[37] Sugestão nº 3 e, alternativamente, da nº 1, ambas do Conselho da Justiça Federal (CJF). Processo nº CJF-PPP-2016/00010, cujo objeto é: “Proposta de criação e instalação de varas federais especializadas em Direito da Concorrência e Comércio Internacional”.

[38] Defesa comercial (antidumping, medidas compensatórias e salvaguardas), licenças de importação, regimes de origem, financiamento e garantia às exportações e tarifas.

[39] Sistema Financeiro Nacional (BACEN); valores mobiliários e mercado de capitais (CVM); energia elétrica (ANEEL); telecomunicações (ANATEL); petróleo, gás natural e biocombustíveis (ANP); recursos hídricos (ANA); mineração (ANM – antigo DNPM); mercado audiovisual (ANCINE); saúde suplementar (ANS); fármacos e vigilância sanitária (ANVISA); aviação civil (ANAC); transportes terrestres (ANTT) e aquaviários (ANTAQ).

[40] Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem.

[41] Lei nº 13.129, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a possibilidade de a administração pública direta e indireta utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

[42] Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.

[43] Concorrência, regulação, comércio exterior, arbitragem e mediação e proteção do consumidor.

[44] UNAH, Isaac. Op. cit., p. 11.

[45] LEGOMSKY, Stephen H. Op. cit., p. 43.

[46] Defesa comercial (antidumping, medidas compensatórias e salvaguardas), licenças de importação, regimes de origem, financiamento e garantia às exportações e tarifas.

[47] Sistema Financeiro Nacional (BACEN); valores mobiliários e mercado de capitais (CVM); energia elétrica (ANEEL); telecomunicações (ANATEL); petróleo, gás natural e biocombustíveis (ANP); recursos hídricos (ANA); mineração (ANM – antigo DNPM); mercado audiovisual (ANCINE); saúde suplementar (ANS); fármacos e vigilância sanitária (ANVISA); aviação civil (ANAC); transportes terrestres (ANTT) e aquaviários (ANTAQ).

[48] Lei nº 9.307, de 23 de setembro de1996. Dispõe sobre a arbitragem.

[49] Lei nº 13.129, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a possibilidade de a administração pública direta e indireta utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

[50] Lei nº 13.140, de 26 de junho 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.

[51] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). A Resolução de Casos de Concorrência por Cortes Especializadas e Generalistas (The Resolution of Competition Cases by Specialised and Generalist Courts), 2016.

[52] BOTCH. Deborah A. Court System Strategic Planning. Encyclopedia of Public Administration and Public Policy, Third Edition DOI: 10.1081/E-EPAP3-120011040, 2015, p. 691.


[1] Excerto do livro “Especialização Judicial: uma Solução Econômica Para a Administrativo da Justiça”. FURLAN, Fernando de M. 1ª ed. Ed. Singular, São Paulo, 2017. ISBN-13: 9788586626951.

Novas regras de comércio exterior promovem o alinhamento da legislação brasileira a acordos multilaterais de comércio e resultam em benefícios econômicos

Fernanda Manzano Sayeg & Karla Borges Furlaneto

No mês de junho de 2022, foram publicadas importantes alterações legislativas relacionadas a comércio exterior. Em 8 de junho de 2022, foi publicado o Decreto nº 11.090, que alterou o artigo 77, do Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009 ao determinar que devem ser excluídos do valor aduaneiro os gastos incorridos no território nacional e destacados no custo do transporte, comumente denominados de capatazia. Já em 24 de junho, foi publicada a Instrução Normativa RFB nº 2090, de 22 de junho de 2022, que atualizou as regras de controle e valoração aduaneira de mercadorias e previu expressamente a exclusão da capatazia do valor aduaneiro.

As duas publicações foram comemoradas por entidades de classe, importadores e estudiosos do comércio internacional e do direito aduaneiro. Afinal, a legalidade da inclusão das despesas relativas à carga, à descarga e ao manuseio das mercadorias importadas, também conhecidas como “despesas de capatazia”, na base de cálculo do imposto de importação estava sendo questionada judicialmente há anos.

Com a publicação do Decreto nº 11.090/2022, de iniciativa do Ministério da Economia e motivada pela necessidade de redução do preço de bens essenciais importados em um cenário de alta de preços e inflação, prevaleceu a tese defendida pelos importadores e estudiosos do direito do comércio internacional, que havia sido rejeitada em 2020 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Entendimento equivocado que passamos a esclarecer.

As normas da Organização Mundial do Comércio (OMC), foro de caráter multilateral do qual o Brasil é parte, estabelecem parâmetros e critérios para o estabelecimento dos tributos que podem ser cobrados na importação de mercadorias.

Nesta linha, tanto o Poder Executivo, como o Legislativo brasileiro devem se ater ao que diz as normas da OMC para determinar quais itens integram a base de cálculo do imposto de importação. Em específico, ao Acordo sobre Valoração Aduaneira (AVA) do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) determina quais valores compõem o valor aduaneiro de um produto, ou seja, o que pode ser acrescentado ao preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias importadas.

O AVA visa a criar um sistema equitativo, uniforme e neutro para a valoração de mercadorias para fins aduaneiros, que exclua a utilização de valores aduaneiros arbitrários ou fictícios. Recordando que, o imposto de importação tem como base de cálculo o valor aduaneiro da mercadoria importada. Desta forma, o AVA estabelece que, sempre que possível, a base de valoração de mercadorias para fins aduaneiros deve ser o valor de transação das mercadorias a serem valoradas.

O artigo 8o do AVA autoriza a inclusão dos gastos relativos ao carregamento descarregamento e manuseio associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação. Contudo, não há previsão de inclusão das despesas incorridas após a chegada do navio no porto, a exemplo do descarregamento e manuseio da mercadoria, por se tratarem de despesas incorridas após a chegada da mercadoria até o porto ou aeroporto alfandegado de descarga ou ponto de fronteira alfandegado onde devam ser cumpridas as formalidades de entrada no território aduaneiro.

No Brasil, o AVA foi internalizado à legislação pátria pelo Decreto Executivo nº 1.355/94 e, até 1º de julho de 2022, era regulamentado pela Instrução Normativa (IN) SRF nº 327/03. Contrariamente ao AVA, o artigo 4º, § 3º, da IN SRF nº 327/03 determinava que os gastos relativos à descarga da mercadoria do veículo de transporte internacional no território nacional serão incluídos no valor aduaneiro, independentemente da responsabilidade pelo ônus financeiro e da denominação adotada.

Em outras palavras, a IN nº 327/03 desconsiderava que somente integram o valor aduaneiro os gastos de carga e descarga associados ao transporte da mercadoria até o porto ou o aeroporto e determinava que fossem incluídos os gastos de descarga de mercadoria após a entrada no porto/aeroporto, contrariando o texto do artigo 8o do AVA.

A esse respeito, é importante ressaltar que o AVA e demais acordos da OMC são aplicáveis no Brasil e devem prevalecer sobre a legislação tributária interna, nos termos do artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal, assim como dos artigos 96 e 98 do Código Tributário Nacional (CTN).

Logo, teve início uma relevante discussão sobre a legalidade da inclusão dos custos de descarga da mercadoria na composição do valor aduaneiro no Poder Judiciário, que chegou ao STJ em 2014. Muitos anos depois, em abril de 2020, a Primeira Seção desse tribunal superior definiu, sob o rito dos recursos repetitivos, que os serviços de capatazia deveriam ser incluídos na base de cálculo do Imposto de Importação.

Segundo o ministro Francisco Falcão, cujo voto prevaleceu no julgamento, o GATT estabelece normas para a determinação de valor para fins alfandegários, prevendo a inclusão no valor aduaneiro dos gastos relativos à carga, descarga e manuseio, associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação.

Assim, segundo a interpretação do STJ, tais serviços integrariam a atividade de capatazia, de acordo com a Lei nº 12.815/2013, editando a instrução normativa RFB explicitando que eles deveriam fazer parte do valor aduaneiro.

Desse modo, desde 2020, os pedidos de exclusão dos serviços da base de cálculo do imposto de importação estavam sendo julgados improcedentes, não obstante a flagrante violação às normas internacionais e os prejuízos econômicos que essa medida trouxe ao país.

Em estudo de 2020, a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) projetou que o fim da inclusão da capatazia no valor aduaneiro contribuiria para um acréscimo de R$ 3,6 bilhões ao PIB no acumulado dos próximos 20 anos. No setor de alimentação, esse valor seria de R$ 2,4 bilhões e, no de siderurgia e construção, de R$ 1,8 bilhão. Outros setores que elevariam sua contribuição para o crescimento do PIB seriam os de têxtil e calçados, em R$ 1,4 bilhão; eletroeletrônicos, em R$ 861 milhões; químicos com R$ 832 milhões; perfumaria, cosméticos e farmacêuticos, R$ 824 milhões; petróleo, etanol e outros R$ 523 milhões; e madeira, papel e celulose, com R$ 173 milhões.

O referido estudo elencou, ainda, os 20 produtos que teriam maiores ganhos na produção até 2040 caso fosse retirado o custo da capatazia portuária. Em valores, os produtos com maiores altas na produção seriam automóveis e utilitários, com R$ 4 bilhões, e semiacabados e outros aços, com R$ 2,3 bilhões. Máquinas e equipamentos e vestuário ficariam em terceiro e quarto lugar, com R$ 2,2 bilhões e R$ 1,9 bilhão, respectivamente.

Segundo as projeções feitas, a indústria de transformação exportaria R$ 11 bilhões a mais, no acumulado dos próximos 20 anos, com a retirada da capatazia do custo aduaneiro. Os números mostram que o setor de construção e siderurgia teria o maior ganho em exportações nesse período, de R$ 3,5 bilhões ou 4,8%. Para o setor químico, o ganho seria de R$ 2,3 bilhões ou 9,8%. O setor de bens de capital seria o terceiro com o maior ganho em exportações, de R$ 1,7 bilhão ou 1,9%, seguido do de alimentação, de R$ 1,6 bilhão ou 1,3%.

Fato é, que as alterações legislativas em questão possibilitarão uma importante redução no valor pago por importadores a título de imposto de importação, com impactos positivos na competitividade e na integração do Brasil aos fluxos globais de comércio. Afinal, a inclusão dessa taxa contribuía para inflar o custo de importação, na contramão da agenda de competitividade e da melhoria do ambiente de negócios no Brasil, onerando a produção nacional, inclusive para a exportação.

Da mesma forma, também representa o alinhamento da legislação aduaneira brasileira aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil junto aos parceiros do Mercosul e à Organização Mundial do Comércio. Exatamente em linha com o que a sociedade precisa, de uma mais competitivo e mais integrado ao comércio internacional.

O califa está de olho no decote dela: as implicações do caso Alibaba para a concorrência em mercados digitais

Angelo Prata de Carvalho

As permanentes discussões sobre o futuro do Direito da Concorrência e as disputas dogmáticas e narrativas quanto às suas finalidades têm há muito dominado a literatura antitruste, que constantemente se debruça sobre a dicotomia entre as premissas metodológicas tradicionalmente fixadas pelo direito norte-americano – baseadas, em larga medida, nos fundamentos estruturados pela Escola de Chicago e na teoria econômica neoclássica – e os entendimentos dissonantes advindos da Europa – com postura considerada mais intervencionista, na medida em que tende a limitar a concentração e a tomar decisões mais rigorosas no âmbito do controle de condutas.

No entanto, com a crescente integração da economia global, e especialmente com a avassaladora influência transnacional das chamadas big techs ou gigantes da internet – o que tem levantado preocupações relevantes inclusive nos Estados Unidos, notadamente com as autoridades nomeadas pelo governo Biden, marcadamente partidárias de visão crítica quanto às perspectivas dominantes que permitiram o grande movimento de concentração econômica das últimas décadas –, diversas vozes relevantes têm inclusive apontado ou para a necessidade de convergência de abordagens (perspectiva que também é potencialmente problemática, mas que será abordada em outra oportunidade), ou ao menos para problemas compartilhados que mereceriam a construção soluções holísticas. Pode-se mencionar, nesse sentido, recente discurso no qual a Comissária Europeia para a Concorrência Margrethe Vestager expressamente afirmou que mercados abertos e justos são um objetivo compartilhado por ambos os lados do Atlântico, de tal maneira que haveria forte convergência quanto às preocupações das duas jurisdições[1].

Por mais emocionantes que possam ser as disputas pelo protagonismo da defesa da concorrência, notadamente no que se refere aos mercados digitais, e por mais heroicas que sejam as iniciativas europeias e norte-americanas pelo controle do poderio econômico das big techs, tal narrativa insere o restante do mundo na plateia da exibição de um filme com legendas mal traduzidas. Causa inclusive alguma perplexidade que, apesar de os gigantes dos mercados digitais projetarem seu poder sobre todas as demais jurisdições, estas parecem estar, parafraseando-se a famosa carta de Aristides Lobo, assistindo bestializadas a tal processo, atônitas e surpresas, sem saber o que significa, acreditando seriamente estarem acompanhando mais um desfile de ideias.

No entanto, não somente há outros Direitos da Concorrência distintos daqueles ao norte, como há posturas firmes que desafiam diversas das premissas lá estabelecidas. Exemplo disso é o que vem ocorrendo na China, que desencadeou processo resumido pela manifestação do presidente Xi Jinping após sessão plenária da Comissão de Inspeção Disciplinar do Partido Comunista Chinês, segundo o qual “esforços deverão ser tomados para investigar e punir o comportamento corrupto por trás da expansão desordenada do capital e do monopólio das plataformas, e para cortar a ligação entre poder e capital”[2].

O pronunciamento vem na esteira da avassaladora condenação da gigante chinesa de tecnologia Alibaba, condenada em multa equivalente a 2.8 bilhões de dólares, em 2021, pela Administração Estatal de Regulação do Mercado da China (conhecida pela sigla em inglês SAMR), pela prática de conduta anticompetitiva consistente na criação de estrutura de incentivos que forçava vendedores a comercializarem seus produtos exclusivamente na plataforma da empresa. Conforme explica Sandra Colino, a rigorosa postura da autoridade concorrencial chinesa não consiste propriamente no ingresso do país asiático no movimento global de combate às big techs, mas no resultado de uma estratégia sui generis de controle do poder econômico, fundada na ideia de “observar e então agir” (observe-then-act)[3]. O caso da Alibaba, nesse sentido, é lapidar: após longo período de desenfreado e descontrolado crescimento, no qual o conglomerado liderado por Jack Ma conquistou habilmente mercados dominados por agentes ligados ao governo central (como ocorreu com a Alipay, braço financeiro do grupo Alibaba que rapidamente ocupou relevantes espaços dos pouco eficientes bancos chineses), vem sendo mais rigorosamente controlado pelas autoridades de regulação do mercado.

A distinção, aqui, não é meramente política e tampouco se trata tão somente de um novo golpe em uma complexa disputa por espaços de poder, mas diz respeito a uma forma particular de visualizar-se o desenvolvimento e a proteção de mercados. Isso porque, como explica Lillian Li, existe uma relação simbiótica entre as instituições públicas chinesas tradicionais e as instituições digitais privadas em ascensão, de tal maneira que a tecnologia se desenvolve da China a partir da premissa de que se trata de um país em desenvolvimento com instituições em desenvolvimento, de tal maneira que a tecnologia não está aprimorando instituições já existentes, mas verdadeiramente criando-as[4]. Trata-se, em síntese, segundo a autora, do processo enunciado por Deng Xiaoping ao propagar que “é preciso cruzar o rio sentindo as pedras sob os pés”: diante da ausência de consenso sobre a melhor forma de lidar com a inovação, pode ser interessante verificar como os agentes econômicos se comportam para então reequilibrar os mercados quando necessário.

Considerando que a inovação franca passou a dar lugar a uma série de abusos – como é o caso da conduta anticompetitiva perpetrada pela Alibaba, dentre outros exemplos[5] – o arcabouço regulatório e concorrencial chinês vem sendo robustecido com soluções originais, como a recente recomendação da Administração do Ciberespaço da China que vedou a utilização de algoritmos para a imposição de restrições indevidas sobre provedores da internet que obstem o regular funcionamento dos serviços informacionais ou produzam condutas monopolistas ou anticompetitivas[6].

            A postura adotada pela China serve, assim, para questionar diretamente o recorrente truísmo segundo o qual as autoridades concorrenciais dos Estados Unidos teriam historicamente adotado postura mais contida em razão da circunstância de que os gigantes da internet encontram-se sediados em território americano, ao passo que a União Europeia teria a possibilidade de tomar decisões mais arrojadas por não seguir as mesmas tendências protecionistas – e, ao contrário, contaria com incentivos para proteger-se da dominância das big techs norte-americanas. Evidentemente que não se ignora que tanto Estados Unidos quanto União Europeia podem ser movidos por anseios protecionistas ou outras finalidades políticas (tendo em vista que o Direito da Concorrência é, invariavelmente, político).

No entanto, igualmente não se pode deixar de levar em consideração o fato de que se trata de posturas teórico-ideológicas em disputa sobre o Direito da Concorrência que dificilmente serão verdadeiramente efetivas (especialmente se carregarem o ônus de promover a convergência) se não dialogarem com as idiossincrasias daqueles que terão de segurar o Tchan.


[1] https://ec.europa.eu/commission/commissioners/2019-2024/vestager/announcements/speech-evp-margrethe-vestager-american-chamber-commerces-transatlantic-business-works-summit-europes_en.

[2] http://www.news.cn/politics/2022-01/20/c_1128283479.htm.

[3] COLINO, Sandra Marco. The case against Alibaba in China and its wider policy repercussions. Journal of Antitrust Enforcement. v. 10, pp. 217-229, 2022.

[4] https://lillianli.substack.com/p/let-the-bullets-fly-for-a-while

[5] Ver: https://www.cigionline.org/articles/how-antitrust-facilitates-chinas-goal-to-achieve-technological-self-sufficiency/

[6] Disponível em: https://digichina.stanford.edu/work/translation-internet-information-service-algorithmic-recommendation-management-provisions-effective-march-1-2022/.

Precificação de Planos de Saúde: Risco e Incerteza sobre o Rol de Procedimentos

Sandro Leal Alves[*]

Uncertainty must be taken in a sense radically distinct from the familiar notion of Risk,  from which it has never been properly separated…. The essential fact is that ‘risk’ means in some cases a quantity susceptible of measurement, while at other times it is something distinctly not of this character; and there are far-reaching and crucial differences in the bearings of the phenomena depending on which of the two is really present and operating…. It will appear that a measurable uncertainty, or ‘risk’ proper, as we shall use the term, is so far different from an unmeasurable one that it is not in effect an uncertainty at all.” Frank Knight (Risk Uncertainty and Profit 1921 edition)

No momento em que escrevo este artigo, o Ministro Luis Roberto Barroso acaba de expedir decisão convocando audiência pública em setembro de 2022 para debater a taxatividade do rol de procedimentos da ANS, fruto de ADI recorrendo da decisão do STJ. Na própria decisão do Ministro Barroso, esclarece que “A matéria extrapola os limites do estritamente jurídico e exige conhecimento interdisciplinar apto a desvelar questões técnicas, médico-científicas, atuariais e econômicas relativas à definição da abrangência da cobertura dos planos de saúde, à previsibilidade de novos tratamentos, ao impacto financeiro de condenações judiciais ao fornecimento de terapias não incorporadas e ao processo de atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar.”

No dia 8/6, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu ser taxativo, em regra, o rol de procedimentos e eventos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde (ANS), não estando as operadoras de saúde obrigadas a cobrirem tratamentos não previstos na lista. Contudo, o colegiado fixou parâmetros para que, em situações excepcionais, os planos custeiem procedimentos não previstos na lista, a exemplo de terapias com recomendação médica, sem substituto terapêutico no rol, e que tenham comprovação de órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor.

Neste artigo, trago uma perspectiva econômica e atuarial com foco na precificação dos planos de saúde, atividade precípua dos atuários, registrados no Instituto Brasileiro de Atuária (IBA) que devem elaborar Nota Técnica Atuarial (NTA) e submeter à aprovação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Sem a aprovação da NTA, a operadora não pode comercializar seus produtos. Antes de abordar a precificação propriamente dita, é importante retornar às bases técnicas do produto.

  1. Fundamentos

O funcionamento da saúde suplementar é, sob vários aspectos, similar ao setor de seguros. Logo, é importante conhecer algumas definições aplicadas em ambos os mercados para aceitação e precificação de planos ou seguros.  O seguro é um mecanismo de transferência de risco de uma pessoa ou empresa para uma seguradora, ou operadora, que assumirá esse risco. Pode-se dizer que a matéria-prima da indústria de seguros é o risco.  Nas operações de seguro, risco é a possibilidade de ocorrência de um evento aleatório que cause danos de ordem material, pessoal ou ainda de responsabilidades. Ele é assumido pela seguradora, que se obriga a indenizar a importância segurada na ocorrência do risco coberto, mediante o pagamento do prêmio (custo do seguro) do seguro realizado. O risco é um evento incerto ou de data incerta que independe da vontade das partes contratantes e contra o qual é feito o seguro. Risco é expectativa de sinistro. Sob o ponto de vista legal, o risco constitui o objeto do seguro, pois o segurado transfere à seguradora, por meio do seguro, o risco e não o bem.

Mas saúde é diferente!

Os serviços prestados pelas operadoras de planos de saúde são diferentes, lidam com um bem incomensurável, que é a vida, e tem características bem específicas e uma regulação complexa. As especificidades do nosso setor foram identificadas desde a década de 60 com o trabalho seminal do economista Keneth Arrow, laureado pelo prêmio Nobel em economia.

A natureza da demanda por saúde é irregular e há prevalência de ampla incerteza em relação à quando e ao que utilizar nos momentos de adoecimento. Nunca saberemos quando necessitaremos de uma internação ou de outro serviço de saúde. As relações no mercado são caracterizadas por problemas derivados da assimetria de informação entre médico e paciente, médico e operadora, cliente e operadora e assim por diante. Não à toa, esse é um setor extremamente regulado tanto no Brasil como no mundo. Como o acesso aos serviços públicos universais nem sempre é efetivo, os planos de saúde emergem como uma importante fonte de acesso tanto das pessoas quanto das empresas que os contratam para seus colaboradores. Em resumo:

A saúde não é um bem transferível de um indivíduo para o outro. É um bem meritório e, em geral, é necessária a certificação de um profissional especializado para indicar o produto ou serviço a ser consumido em cada caso específico assim como atestar sua qualidade. Dessa forma, na ausência de uma certificação pública reconhecida pelos consumidores como confiável, a reputação do provedor do bem ou serviço passa a ser relevante tanto para as decisões de consumo, por parte dos pacientes, quanto para a prescrição médica dos profissionais de saúde.

O consumo de produtos e serviços de saúde se caracteriza pela dissociação entre o consumidor final e o agente responsável pela indicação terapêutica. Quem escolhe o tratamento não é quem paga, diferentemente, dos outros setores onde você escolhe o que deseja consumir.   

Alguns produtos e equipamentos do setor saúde se caracterizam por elevados gastos com pesquisa e desenvolvimento de novos processos e, sobretudo, de novos produtos. O acesso a determinados serviços médicos, em geral, e medicamentos, em particular, é considerado em diversos países como um direito de cidadania, resultando na classificação desses bens e serviços como meritórios, isto é, bens e serviços a que todos o cidadão deve ter acesso, sendo responsabilidade da política pública a garantia de acesso universal.

O valor do seguro decorre da imprevisibilidade dos gastos com saúde. As pessoas em geral optam pela segurança de ter acesso aos tratamentos contratados ao invés de carregarem consigo esses riscos. Em termos microeconômicos, sabemos que a demanda por seguro ocorre em um ambiente de escolha sob incerteza e agentes avessos a risco preferem arcar com o custo certo de pagar uma mensalidade a ter que incorrer na incerteza de precisar desembolsar elevadas somas financeiras quando ocorre a eventualidade de uma doença.

  • Mutualismo

Mutualismo é uma das principais características do seguro. Entende-se por mutualismo a reunião de um grupo de pessoas com interesses seguráveis comuns, que concorrem para a formação de uma massa estatística, com a finalidade de suprir, em determinado momento, necessidades eventuais de algumas daquelas pessoas do grupo ou de parte do grupo. Desse modo, o impacto financeiro de um evento, que poderia ser fatal ou catastrófico para um indivíduo ou uma empresa, é distribuído entre os integrantes de um grupo maior por custo relativamente baixo.

No caso da saúde suplementar, as operadoras reúnem todas as mensalidades (ou prêmios no caso do seguro) que recebem em um fundo mutual usado para pagar as despesas com os eventos aleatórios tais como uma internação hospitalar. Dificilmente, esses eventos de alto custo, como internações, são suportados individualmente. Mas coletivamente, pela aquisição de um plano, é possível ter acesso a essas coberturas por meio do mecanismo de solidariedade entre os contratantes que o plano possibilita. Cerca de ¼ da população brasileira é coberta por algum tipo de plano de saúde. Segundo dados da ANS, em dezembro de 2019 havia 47 milhões de beneficiários em planos privados de assistência médica com ou sem odontologia e 26 milhões de beneficiários em planos privados exclusivamente odontológicos. Esse contingente expressivo da população atendida pelo setor privado acessa o setor, principalmente, mediante os contratos coletivos. Em períodos em que a empregabilidade vai bem, a saúde suplementar tende a acompanhar. O inverso também é verdadeiro. Quando a economia e o emprego formal desaceleram, a capacidade de aquisição de planos de saúde também é afetada.

Segundo Maia (2018), o risco, no âmbito da saúde, é definido como a consequência financeira de uma alteração no estado de saúde do indivíduo. Tais alterações podem resultar em despesas com bens e serviços de saúde para recuperação ou tratamento da saúde, despesas com cuidados de reabilitação e até mesmo perda de renda em função da incapacidade laboral.  Na saúde, o que se segura é o acesso aos tratamentos assistenciais decorrentes de alterações no estado de saúde, seja este acesso realizado pela rede própria da operadora, pela rede credenciada ou pela livre escolha do segurado mediante o reembolso, conforme o contrato.

  • Precificação

A precificação deve incluir o custo ou prêmio do risco que se está segurando além de incluir despesas administrativas e de comercialização. Falaremos de algumas regras para essa precificação. Para organizar toda essa operação, o plano de saúde deve contratar e remunerar funcionários das mais variadas especialidades como gestores, médicos, dentistas, atuários, estatísticos, advogados, administradores, economistas, dentre outros. Também deve remunerar corretores e vendedores que comercializam seus produtos.  O preço deve incorporar uma margem de segurança estatística calculada a partir de metodologia adequada para garantir, com a maior probabilidade possível, que as ocorrências estarão cobertas no preço, de tal forma que a operadora siga solvente. Adicionalmente, como toda empresa privada, a operadora deve incorporar uma margem de lucros esperada. A arte é precificar o produto para ser ao mesmo tempo competitivo e economicamente sustentável.  Veja a fórmula abaixo:

  • Preço do Seguro = Custo do Risco + Margem de Carregamentos de Despesas + Margem de Segurança Estatística + Margem de Lucro

As operadoras têm a função de organizar o mútuo, que envolve a avaliação do risco, a definição do preço do plano, a cobrança e gestão financeira dos recursos, a organização da rede de assistência à saúde, pagamento aos prestadores e a gestão de saúde de seus beneficiários.

Ressalta-se importante diferença da saúde suplementar para outros setores econômicos é que ao precificar um produto, a operadora não conhece os seus custos a priori, pois estes são aleatórios e estimados pelas técnicas da probabilidade. Uma indústria, por exemplo, precifica seus produtos após conhecer os seus custos de produção. Isso significa, na prática, que a operadora recebe as mensalidades, antecipadamente, para a cobertura de riscos no futuro.

Já em uma indústria tradicional, a firma recebe as receitas e paga os custos que já incorreram. Na saúde, esse fluxo financeiro é invertido. Daí a importância de um bom processo de precificação e contratação para que as receitas sejam suficientes para cobrirem os custos que ainda irão ocorrer.  Errar na precificação pode levar uma operadora à falência!

O processo de judicialização que se agrava no Brasil faz com que, muitas vezes, as operadoras arquem com custos de procedimentos que não foram previstos nem precificados, ou por não estarem no contrato ou por não constarem no rol de procedimentos da ANS. Quando isso ocorre, toda a coletividade é chamada a contribuir com recursos adicionais em forma de maiores mensalidades. Logo, é necessário ter previsibilidade nos custos para que os planos possam ser oferecidos.

Devemos ressaltar que existem regras para a precificação segundo as faixas etárias definidas pela legislação. Basicamente, são três momentos: antes da lei 9.656/98, entre a lei 9.656/98 e o Estatuto do Idoso, e após o Estatuto do Idoso.  É importante destacar que qualquer utilização feita que não tenha sido contratada, fora do contrato ou fora do rol, torna a previsibilidade e precificação uma tarefa absolutamente complexa, senão impossível.

A operadora consegue precificar os procedimentos que estão cobertos no contrato e no rol de procedimentos da ANS. Casos que extrapolam tais limites não são considerados no momento da precificação. Logo, se isso ocorre por algum motivo, como decisões judiciais ou um rol de procedimentos aberto, ou exemplificativo, esse custo é transferido para os demais participantes da mutualidade que devem incorrer em maiores despesas para assegurar o equilíbrio econômico do contrato. Em termos econômicos, trata-se de um caso de externalidade negativa, pois a ação de um indivíduo impõe custos sobre terceiros.  A precificação pode ser feita segundo os seguintes métodos:

  • Community rating

Neste caso, o mutualismo se dá entre todos os indivíduos. O preço é único para toda a população e é baseado no custo médio desta mesma população. O problema com esse método é que ele funciona quando o seguro é obrigatório. Para seguros voluntários, como no caso do plano de saúde individual, esse método estimula a anti-seleção de riscos, ou seja, como é uma média, os indivíduos que se auto-avaliam como sendo de riscos superiores ao preço tendem a aderir ao contrato. Analogamente, os indivíduos de baixo risco, não tem interesse em aderir e preferem carregar o próprio risco.

  • Experience rating

Nessa metodologia, o preço baseado no custo per capita por idade. Por exemplo, o preço seria estimado para cada idade. Essa metodologia implica no mutualismo entre os indivíduos que possuem a mesma idade, mas será prejudicial para os indivíduos mais idosos. Para estes, o seguro ficaria inviável. O legislador brasileiro, seguindo ampla referência internacional, entendeu que deve haver solidariedade entre grupos de risco formado por faixas etárias. E assim, chega-se ao terceiro método, explicado a seguir.

  • Community rating modificado

Neste caso, o preço é baseado no custo médio por faixa etária que atualmente é segmentada de 5 em 5 anos conforme mostrado a seguir. O risco é, portanto, solidarizado entre os indivíduos que estão em uma mesma faixa etária.

O legislador brasileiro estabeleceu a divisão solidária do risco entre 7 (sete) faixas etárias na Lei 9.656/1998. Posteriormente, com o advento do estatuto do idoso, foi proibido o aumento de mensalidades após os 60 anos e a ANS revisitou as suas faixas etárias. São 10 atualmente. Adicionalmente, o legislador previu o pacto intergeracional, ou seja, os mais jovens devem pagar um pouco mais para que os mais idosos possam pagar um pouco menos do que o custo do seu risco. O pacto intergeracional é garantido pela regra que limita o preço da última faixa etária como sendo no máximo 6 vezes o preço da primeira. E a variação da 7ª a 10ª faixa etária deve ser menor ou igual ao valor da 1ª a 7ª faixa etária. São as condições de contorno para manutenção da solidariedade intergeracional.

  • Precificação sujeita a incertezas

A principal consequência de um rol exemplificativo para a precificação é a impossibilidade de cálculo do preço com base em dados.  Vejamos a figura abaixo para tentar compreender esse ponto. Lembrando que o cálculo do preço deve ser feito por agrupamentos (clusters), segundo os grandes grupos de eventos: Consultas médicas – diversas especialidades, exames complementares, terapias, outros atendimentos ambulatoriais, internações hospitalares e demais custos assistenciais. Cada grupo desses é desdobrado em diversos subgrupos de coberturas e os procedimentos que são estabelecidos no rol da ANS servem para que as operadoras saibam previamente quais os riscos que está assumindo. A partir deste momento, irão avaliar a disponibilidade de rede assistencial, avaliar os preços praticados e incluir no cálculo do custo assistencial. Portanto, o quadrado superior da figura descreve os procedimentos cobertos pelo rol da ANS.

Para cada um dos 3379 procedimentos do rol, a operadora deve obter dados de frequência de utilização e o preço para se chegar ao custo médio (ou severidade média). Ressalta-se que pela legislação atualmente em vigor, os procedimentos devem ser submetidos à Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) a fim de verificar as evidências científicas que suportam a inclusão, sua eficácia e seu custo-efetividade. Não nos esqueçamos da fosfoetanolamina, tida como cura do câncer em um período no Brasil, mas que posteriormente demonstrou-se absolutamente ineficaz. Quantos recursos públicos e privados foram desperdiçados? Difícil prever. Em todo mundo desenvolvido, o processo de ATS é um requerimento necessário para que alguma nova tecnologia seja incorporada. No Brasil, o setor público faz a ATS na CONITEC. Na saúde suplementar, essa avaliação está a cargo da ANS.

As operadoras de planos de saúde são especializadas em precificar o risco atuarial se valendo de ciência para chegar nas melhores estimativas possíveis, dados os dados disponíveis. No entanto, ao se falar em rol exemplificativo, ou procedimentos extra-rol, saímos do campo do risco e adentramos no terreno da incerteza. Não é possível fazer previsões sobre quais procedimentos vão ser incorporados pois estes são frutos do desenvolvimento tecnológico da indústria de medicamentos, materiais, equipamentos etc. A incorporação automática no rol, além de inviabilizar o processo de precificação, também coloca sob risco a saúde da população tendo em vista que não passou pelo rigor científico do crivo da ATS.

É possível carregar na margem de segurança para tentar alcançar. Não obstante, quanto maior for a margem, maior será o preço. No limite, a operadora pode optar por não oferecer o produto pois não conseguirá fazer uma gestão adequada do risco. Cabe lembrar que é objetivo da precificação que o valor presente das receitas seja suficiente para pagar todos os compromissos assumidos. Se estes compromissos mudam ao longo do tempo, e o preço se mantém constante, haverá déficit na carteira. A ocorrência de déficit deve ser provisionada pois pelas regras prudenciais, baseadas em risco, a subscrição se tornará excessivamente elevada. Evidentemente, déficits irão demandar maior volume de capital das operadoras, reduzindo a rentabilidade do negócio e a atratividade para a entrada de investidores potenciais.

Sair do terreno do risco e adentrar o campo da incerteza não parece ser uma política pública sustentável. Alguns dirão que faz parte do risco do negócio. Mas se queremos mais eficiência da regulação a ponto de entrar para a OECD, esse pode ser um elemento de muita vulnerabilidade regulatória. Afinal, risco regulatório é até possível se precificar, mas incerteza não.

REFERÊNCIAS

ALVES, Sandro Leal. Fundamentos, regulação e desafios da saúde suplementar no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: FUNENSEG, 2015

ARROW, Keneth. Uncertainty and the Welfare Economics of Medical Care. In: The American Economic Review, v. LIII, n. 5, dec., 1963

CARLINI, Angélica. Judicialização da Saúde Pública e Privada. Ed. Livraria do Advogado, 2014.

CECHIN, José; ALVES, Sandro Leal; ALMEIDA, Álvaro. Dinâmica dos Custos, Formação de Preços e Controle de Reajustes dos Planos de Saúde no Brasil: a Urgência de se Revisar a Regulação. R. Bras. Risco e Seg., Rio de Janeiro, v. 12, n. 21, p. 133-156, abr.-set., 2016.

FERREIRA, Paulo Pereira. Modelos de Precificação e Ruína para Seguros de Curto Prazo.1ª ed. Rio de Janeiro: FUNENSEG, 2002.

FERREIRA, Paulo Pereira. Desafio do Preço Justo no Seguro Saúde. Revista Cadernos de Seguro. 195. 2018

FLÁVIO, AMANDA e LEAL, SANDRO, Sandro: Saúde suplementar e o Brasil: sobre escassez, escolhas, rol de procedimentos e almoço grátis. Coluna Webadvocacy. Fev.2022

LIMA; William. Manual de solvência: aspectos principais. Cartilha Planos e Seguros de Saúde – O que saber. Fenasaúde, 2018. Disponível em: www.fenasaude.org.br.

MAIA; A.C. Gestão de Risco em Planos de Saúde. Cartilha Planos e Seguros de Saúde – O que saber. Fenasaúde, 2018. Disponível em: www.fenasaude.org.br.

NAZARENO, JOSÉ M. Jr. Precificação dos planos de saúde: apresentando alguns aspectos técnicos envolvidos. https://www.linkedin.com/pulse/precifica%C3%A7%C3%A3o-dos-planos-de-sa%C3%BAde-apresentando-alguns-maciel-junior/?originalSubdomain=pt

On Risk Classification. A Public Policy Monograph.American Academy of Actuaries Risk Classification Work Group. November 2011

RESOLUÇÃO IBA Nº 02/2019. Dispõe sobre os princípios gerais que devem nortear os trabalhos de formação e revisão de preços no âmbito da saúde suplementar no Brasil, em consonância com os Princípios Básicos Atuariais definidos pelo CPA nº 001 – IBA.


[*] Economista. Superintendente de Estudos e Projetos Especiais da FenaSaúde. Este artigo expressa a opinião do autor.