Artigos de opinião

Entre o Fisco e o Contribuinte – Direito de Coadjuvação

Fábio Luiz Gomes

Ao longo da história, a relação entre o fisco e o contribuinte sempre foi conturbada, não havia uma relação de confiança, somente de um poder hierarquizado.

O termo “imposto” já dissemina a sua natureza compulsória, a sua gênese encontra em Genghis Kahn, um dos grandes méritos do notório conquistador de outrora, foi impor o pagamento de impostos aos povos conquistados, como meio de lhes garantir proteção-vida-hierarquia.

Já em Roma os impostos eram utilizados não só para custeio das intermináveis guerras em que se envolvia, mas também para a ampliação das prestações positivas do Estado, começaram a cobrar dos seus próprios cidadãos não só impostos, mas também as taxas.

Conforme se constata, a origem dos tributos foi turbulenta e o medo era o espelho da sua cobrança.

Nos dias de hoje, o “Leão” é o grande símbolo do Fisco, uma fera que impõe temor aos contribuintes, os quais devem servir ao Estado através do pagamento de tributos.

Não se nega a importância da tributação para manutenção do Estado, contudo, a relação entre o Estado e o Contribuinte deve ser mais humanizada, pautada na confiança-transparência-boa-fé.

Portanto, o “Leão” não seria o símbolo mais adequado para estreitar essa relação.

Observa-se que segundo o relatório Insper 2020 o custo do contencioso tributário em 2019 aos cofres públicos foi de 5,44 trilhões de Reais, correspondendo a 75% do PIB neste mesmo ano nas três esferas públicas.

Acrescenta-se que somente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais tramita um contencioso de 784,5 bilhões de Reais.

Essa relação conflituosa entre o Fisco e o Contribuinte, além de gerar um grande passivo contencioso tributário, mantém a desconfiança entre esses.

No terceiro milênio não há como justificar tamanho descalabro, resquício de sociedades tirânicas.

Dever-se-ia buscar normas que não priorizassem somente o combate aos “jogadores” que com argúcia burlam a legislação.

Ao invés, deveriam ser criadas normas direcionadas à coadjuvação entre o Fisco e o Contribuinte, com sanções severas àqueles que abusassem do seu direito praticando ilícitos.

Já há movimentos internacionais neste sentido (OCDE – Fórum Global de Transparência e Troca de Informações Tributárias) e, no Brasil, a Lei nº 13.988 de 14 de Abril de 2020, que dispõe sobre a transação resolutiva de litígio a cobrança de créditos da Fazenda Pública.

A Lei nº 13.988/2020 já conseguiu resultados expressivos, pois já conseguiu formalizar 268 mil acordos com os contribuintes e recuperou um passivo de R$ 81,9 bilhões de Reais.

Mas, os números mostram que há muito que se fazer – a relação entre o Fisco e o Contribuinte deve avançar para uma coadjuvação, isto é, pautada na necessidade de igualdade entre o Fisco e o Contribuinte e a Presunção da Boa-fé do Contribuinte.

Ativos não-operacionais e a obrigação de notificação

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

Desde a entrada em vigor da 12.529/2011, lei que recentemente completou sua primeira década de vida, o controle dos chamados atos de concentração tem sido realizado de maneira “ex ante”, de modo que as operações notificáveis somente possam ser consumadas após a autorização da autoridade concorrencial brasileira.

Dentre as principais alterações do regime de controle de estruturas anterior para o modelo atual encontra-se a especificação no que diz respeito à necessidade de notificar ao Cade as operações envolvendo a aquisição de ativos, sejam eles tangíveis ou intangíveis.

Na última sessão de julgamento do ano passado, ocorrida em 15/12/2021, o Tribunal do Cade resolveu, por unanimidade, absolver a JBS, havendo entendido, conforme dispôs o voto condutor, que a aquisição do frigorífico localizado em Iguatemi/MS não deveria ser entendida como uma operação de notificação obrigatória, uma vez que, à época da consumação do ato, ou seja, em 08/08/2014, inexistia outro direcionamento da Autarquia senão o entendimento manifestado pelo então conselheiro Marcos Paulo Veríssimo, que ao julgar o possível descumprimento de seis Atos de Concentração envolvendo a JBS[1], pontuou:

“Ora, é evidente que o arrendamento de uma unidade fabril em pleno funcionamento equivale, em tudo e por tudo, e ao menos pelo prazo em que durar o arrendamento, a uma operação societária de aquisição dos mesmos ativos por meio da aquisição de controle societário. O ponto, aqui, é antes substantivo que formal. Trata-se de perceber que o conceito de “empresa” em direito não diz respeito a uma certa estrutura societária, mas sim à organização de um conjunto de fatores produtivos destinada a produzir certos resultados que seriam impossíveis de serem produzidos pelos fatores isoladamente, ou seja, a um organismo econômico que põe esses fatores em funcionamento, dentro de um sistema coordenado, para produzir um certo resultado de lucro, na famosa conceituação de Cesare Vivante. Portanto, ter acesso a esse sistema de fatores produtivos, ordenados para a produção, é ter acesso à própria empresa, ainda que isso não implique participação societária formal e ainda que esse acesso seja transitório, como no caso das operações de arrendamento de unidades fabris. O critério, para que tais operações possam ser consideradas “atos de concentração”, é que elas incidam sobre a empresa como um todo, e não sobre seus elementos isolados. Em outras palavras, é que incidam sobre o conjunto dos elementos que forma a empresa entendidos como um sistema em plena atividade. Por isso, não tenho dúvida que as operações de arrendamento de unidades em atividade deveriam ter sido submetidas ao CADE, mas concordo que os arrendamentos de ativos que já não estavam mais a serviço de uma certa atividade empresarial não”. (grifo próprio)”[2]

De fato, como bem asseverou a Conselheira-Relatora, existem dois cenários jurisprudenciais que não podem ser ignorados, isto é, o cenário que remonta o entendimento do Cade à época da aquisição (agosto de 2014) e o cenário mais recente, no qual a Autarquia tem reiteradamente manifestado seu entendimento no sentido de que, mesmo a aquisição de ativos não-operacionais seria de notificação obrigatória.

Entretanto, há que se atentar para o fato de que, em 2013, quando o então Conselheiro Marcos Paulo manifestou seu entendimento, ele procurava interpretar os fatos (descumprimento dos seis atos de concentração) à luz da Lei 8.884/1994, que vigorava à época das operações sob análise, e cuja redação dispunha:

“Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE” (grifo próprio)

A Lei 12.529/2011, por sua vez, entende que um ato de concentração realizar-se-á quando, in verbis:

Art. 90 (…) (I) 2 (duas) ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; (II) 1 (uma) ou mais empresas adquirem, direta ou indiretamente, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações, ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma, o controle ou partes de uma ou outras empresas; (III) 1 (uma) ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas; ou (IV) 2 (duas) ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture. (grifo próprio)

Ora, não precisa de muito para se perceber que a distinção entre os dois tratamentos legislativos é latente, isto é, ao passo em que a lei anterior dá ampla discricionariedade para que o legislador interprete o que será entendido como atos que limitem ou possam vir a prejudicar a livre concorrência (ou mesmo resultar na “dominação de mercados relevantes”)[3], a nova norma define de forma objetiva as hipóteses que devem ser entendidas como possíveis atos de concentração, especificando, dentre elas, a aquisição de ativos, seja ela contratual ou não.

Reabre-se então a discussão sobre se a aquisição de um ativo não-operacional deveria despertar preocupação da Autarquia. O “novo cenário jurisprudencial” entendido pela Conselheira-Relatora demonstra que, para além da operacionalidade do ativo à época da aquisição, é importante também analisar qual viria a ser a destinação deste ativo na atividade econômica em questão, considerando-se ainda quais seriam os investimentos necessários para o desenvolvimento desta atividade.

Assim, para além dos casos citados pela Conselheira, a saber, o AC nº 08700.006524/2016-02, que envolveu as empresas Biomm S.A. e Novartis Biociências S.A., e o AC nº 08700.002190/2020-76, envolvendo a Aircastle Holding Corporation Limites. e a General Electric Company, há outros precedentes em que o tema foi tratado no contexto de decisões sobre o conhecer ou não da operação, como foi o caso, por exemplo, do AC 08700.003501/2020-14, onde argumentou-se que a aquisição de um imóvel inativo onde estava localizado o antigo resort Club Med Itaparica pela hoteleira Eidom não deveria ser de conhecimento do Cade, tendo-se em vista não apenas a inatividade do imóvel, mas também o fato de que, à época da operação, o comprador ainda não havia definido a sua finalidade.

Na ocasião, a SG manifestou o entendimento de que tal aquisição conferiria sim capacidade produtiva ao grupo, vez que lhe permitiria desenvolver atividades no ramo hoteleiro ou ainda imobiliário, mesmo que o ativo, à época da aquisição, ainda não estivesse operacional. Explicou ainda que a estrutura instalada existente poderia produzir reflexos no mercado, não obstante a sua inatividade momentânea, vez que os requisitos para a construção de um hotel são exatamente disponibilidade imobiliária, adequação da propriedade e aprovações ambientais e regulatórias – todos estes, presentes no imóvel adquirido, mesmo sendo de difícil constituição.

Noutra oportunidade, inclusive citada no precedente anterior, a SG igualmente manifestou-se no sentido de que a transferência de ativos, apesar de não estarem operacionais à época da apreciação da operação, poderia “implicar um aumento na capacidade de oferta de um player relevante do mercado em questão, em detrimento dos demais concorrentes (que, eventualmente, podem enfrentar dificuldades para expandir sua capacidade de oferta)” – AC nº 08700.008315/2016-95 (Silcar Empreendimentos, Comércio e Participações LTDA. e Polimix Concreto LTDA).

Ora, a evolução neste entendimento em nada contraria o conceito de empresa segundo Cesare Vivante, conforme parafraseou o ex-Conselheiro Veríssimo, isto é, de “um organismo econômico que põe os fatores produtivos em funcionamento, dentro de um sistema coordenado, visando um resultado de lucro”. De fato, isoladamente, é impossível que um ativo não-operacional atinja esse status, exatamente por faltar-lhe a capacidade de coordenação. Também no contexto de uma aquisição, só é possível atingir a funcionalidade conjunta na medida em que haja uma identificação entre a possível finalidade do ativo e o ramo de atividade da adquirente – é precisamente o que se verificou nos precedentes citados e também na situação da JBS, ao adquirir o frigorífico inativo de Iguatemi/MS.

Assim, em que pese a decisão unânime dada pelo Conselho, respeitando a segurança jurídica, no sentido de manter a instrução dada pelo ex-Conselheiro Veríssimo, no ano de 2013, de que a aquisição de ativos não-operacionais não deveria ser submetida à notificação obrigatória, é necessário que este precedente não seja interpretado de forma equivocada, ou seja, como um passo atrás para a instituição. 


[1] AC no 08012.008074/2009-11 (JBS S.A. e Bertin S.A.); AC no 08012.002148/2012-01 (JBS S.A. e JEMA Participações Ltda.); AC no 08012.002149/2012-48 (JBS S.A. e MJE Administração de Bens Ltda.); AC no 08012.003367/2012-08 (JBS S.A. e FR Participações Ltda.); AC no 08700.004230/2012-12 (JBS S.A. e SSB Administração e Participações Ltda.); AC no. 08700.004226/2012-46 (JBS S.A., Tiroleza Alimentos Ltda. e Rodo GS – Transportes e Logística Ltda.)

[2] Ato de Concentração 08012.002148/2012-01, Volume 2, Página 290.

[3] Ao analisar o Ato de Concentração 08012.009064/2009-95, o então Conselheiro Fernando de Magalhães Furlan entendeu que, por se tratar de um bem imóvel, a aquisição indireta de imóveis da Companhia Brasileira de Distribuição (CBD) não seria de notificação obrigatória, devendo ser considerado como crescimento orgânico ou crescimento interno da empresa.

Os ventos do norte não movem moinhos? O Direito da Concorrência brasileiro diante das transformações do Antitruste norte-americano

Angelo Prata de Carvalho

O Direito da Concorrência brasileiro contemporâneo parte de bases constitucionais sólidas, é disciplinado por robusto diploma normativo, com institutos já amplamente testados na prática, e conta com uma dogmática nacional já bastante desenvolvida a partir dessas bases normativas. Não obstante, não se pode ignorar as profundas influências que tanto a teoria quanto a prática do Direito da Concorrência brasileiro ainda sofrem diante dos influxos do Antitruste dos Estados Unidos – que remontam à primeira lei antitruste brasileira e mesmo aos comentários de Benjamin Schieber (cuja influência será objeto do próximo artigo desta coluna), mas que também podem ser verificadas nas posturas jurisprudenciais mais recentemente adotadas ao norte.

Basta ver que, na medida em que o Antitruste norte-americano acolheu as ideias da Escola de Chicago, notadamente a partir da adoção dos critérios propostos por Robert Bork para, a pretexto de defender o bem-estar do consumidor, substituir a racionalidade jurídica pelo critério da eficiência econômica, as metodologias de análise desenvolvidas naqueles contexto foram em larga medida adotadas também na prática do Direito da Concorrência brasileiro.

De fato, Bork soube apresentar a sua proposta de forma interessante e sedutora, porém o “bem-estar do consumidor” propalado pelo autor, além de descolado da realidade, não apresentava nenhum componente ético ou jurídico, assim como era indiferente a qualquer problema relacionado à pobreza ou à distribuição de renda, na medida em que dizia respeito exclusivamente à eficiência – por mais controversos e limitados que sejam critérios como o de Pareto e o de Kaldor-Hicks.

A adoção desses critérios metodológicos, como aponta Tim Wu, levou a um intenso movimento de concentração no contexto norte-americano, com inúmeros exemplos de monopólios e oligopólios formados com a anuência das autoridades da concorrência[1]. Exemplo disso são as posições hoje detidas pelos chamados gigantes da internet, que ao longo dos anos beneficiaram-se da postura leniente das autoridades para adquirir concorrentes efetivos ou potenciais para perpetuar seu poder de mercado e originar estrutura de mercado que dificilmente poderá ser desafiada.

Diante desse cenário, com a eleição do Presidente Joe Biden, os ventos do Direito Antitruste nos Estados Unidos pareceram iniciar uma mudança, tendo em vista que determinados autores com posições críticas relevantes contra as metodologias de Chicago e o movimento concentracionista dos últimos anos assumiram importantes nas autoridades norte-americanas. É o caso das indicações de Lina Khan para a Federal Trade Commission e de Tim Wu para o National Economic Council, que produziram importantes repercussões: basta ver que, no dia 9 de julho, a FTC publicou comunicado manifestando sua intenção de alterar as suas Merger Guidelines diante da excessiva permissividade a autoridade com a concentração de mercado e da realidade econômica contemporânea[2].

Após vários anos de reafirmação das metodologias de Chicago, o Direito Antitruste norte-americano parece estar incorporando às suas práticas institucionais tanto achados empíricos recentes sobre estruturas de mercado – notadamente no âmbito de mercados digitais – quando novas perspectivas metodológicas, assim iniciando um processo de verdadeira transformação na análise antitruste. De fato, pode ainda ser muito cedo para que se conclua que tais mudanças alterarão fundamentalmente as bases do Direito da Concorrência, porém minimamente representam uma oportunidade de incorporar perspectivas críticas às metodologias e sobretudo à ideologia de Chicago, que não raro serve muito mais para ocultar aspectos relevantes da realidade econômica do que para analisar o funcionamento de mercados reais.

Restar aguardar, nesse sentido, se o Direito da Concorrência brasileiro terá com essas transformações a mesma permeabilidade que teve para com a incorporação das premissas da Escola de Chicago e outros institutos oriundos da prática dos Estados Unidos. Do contrário, será possível verificar se a influência norte-americana no contexto brasileiro limita-se a um determinado período histórico cujas perspectivas somente seguirão sendo aplicadas em virtude de um inexplicável movimento inercial – em que, ao passo que os ventos do norte mudam de direção, os moinhos do sul giram no mesmo sentido.


[1] Ver: WU, Tim. The curse of bigness. Nova York: Columbia University Press, 2018.

[2] Disponível em: https://www.ftc.gov/news-events/press-releases/2021/07/statement-ftc-chair-lina-khan-antitrust-division-acting-assistant.

As Fake News são passíveis de serem analisadas pela teoria antitruste?

Elvino de Carvalho Mendonça

O mercado de informações é composto por editores e produtores de conteúdo. Os produtores de conteúdo podem produzir Fake News e notícias verdadeiras, onde as Fake News possuem custo próximo de zero, ao passo que as notícias verdadeiras apresentam custos positivos.

Os editores de mídias tradicionais se remuneram pela venda de assinaturas e pelo faturamento com anúncios publicitários, enquanto os  editores de mídias sociais disputam os mesmos recursos no mercado publicitário.

Os produtores de conteúdo verdadeiro se remuneram a partir da venda do seu conteúdo, ao passo que os produtores de conteúdo Fake News se remuneram a partir de grupos interessados na veiculação da informação fraudulenta.

O mercado de informações tende a ser encharcado por Fake News e a razão está associada com o problema da seleção adversa observado no modelo de Akerlof. No modelo em comento, os carros bons tendem a ser excluídos do mercado, uma vez que o consumidor somente observa o custo médio do salão de vendas. Sendo assim, carros com qualidade que impliquem em preços superiores à média nunca serão demandados.

Com as informações acontece a mesma coisa. O consumidor de notícias observa o preço médio das informações, de maneira que informações que tenham preços superiores aos preços médios nunca serão demandadas e, nesse caso, somente serão demandadas Fake News.

As empresas de mídias sociais ofertam informações a custo zero para os consumidores, ao passo que as empresas de mídia tradicional exigem pagamentos e assinaturas para a obtenção da informação. No entanto, as empresas de mídias sociais somente são capazes de ofertar informações a custo zero porque existem produtores de conteúdo que desenvolvem essas informações a custo zero.

A diferença fundamental entre os editores de mídias sociais e os editores tradicionais (i) está na capacidade dos primeiros de possuir os dados de grande parte da população, inclusive de gostos e preferências, e (ii) na elevada concentração de empresas de mídias sociais.

É importante lembrar que o produtor de conteúdo de informações verídicas pode disponibilizar os seus produtos de forma remunerada ou gratuita, significando dizer que este produtor de conteúdo pode atuar nas mídias sociais ou nas mídias tradicionais. Entretanto, este fato não acontece para o produtor de conteúdo de Fake News, pois ele somente tem acesso para veicular as suas informações nas mídias sociais.

Tendo em vista que o produtor de conteúdo Fake News somente pode trabalhar com as mídias sociais e que o custo para fazer a publicação das informações é zero junto a essa mídia, o incentivo deste tipo de produtor é o de entender a forma como o algoritmo funciona e, a partir daí, reproduzir o seu conteúdo.

O editor de mídia social, por seu turno, necessita da informação (qualquer que seja ela) para gerar conteúdo para o seu espaço virtual. Tendo em vista que o custo de obtenção do conteúdo Fake News é zero, empresas como as Big Techs tendem a divulgar uma quantidade de Fake News muito superior à divulgação das informações verdadeiras.

De acordo com Hubbard (2017)[1], as Fake News tornam-se um problema de defesa da concorrência porque as empresas do mercado de Big Techs ganham participação de mercado a partir das informações fraudulentas, elevando, dessa forma, os custos dos editores da mídia tradicional.

A aquisição de informação fraudulenta como forma de ampliação de participação de mercado, haja vista que as Big Techs possuem elevadas participações de mercado, nada mais é que abuso de posição dominante.

Hubbard (2017) entende que a solução das Fake News como problema de defesa da concorrência está na necessidade de haver concorrência nos mercados de informação das mídias sociais, pois assim, o produtor de conteúdo Fake News[2]  se defrontaria com os custos de aprendizagem dos algoritmos das empresas, o que tenderia a fazer com que o preço da produção desse conteúdo se tornasse próximo ao preço do conteúdo verdadeiro.

Portanto, não parece haver dúvidas que as Fake News também devem ser tuteladas pela defesa da concorrência e, a partir dessa assertiva, passa-se a analisar que remédio deve ser aplicado para minimizar o efeito anticompetitivo das informações fraudulentas.


[1] HUBBARD, Sally. Fake News Is A Real Antitrust Problem. Competition Policy International. 2017. Disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/fake-news-is-a-real-antitrust-problem/. Acesso em: 24.11.2021

[2] https://laweconcenter.org/wp-content/uploads/2018/01/CPI-Hurwitz.pdf

A análise de defesa da concorrência no Brasil: aplicação da Escola Harvard, da Escola de Chicago ou de ambas?

Elvino de Carvalho Mendonça

Certa vez eu fui convidado por um amigo para dar uma aula inaugural no curso de pós-graduação de direito econômico em uma importante universidade brasileira.

Comecei por explicar que o guia de análise de concentrações horizontais brasileiro, americano e da comunidade europeia compreendiam um misto do paradigma Estrutura-Conduta-Desempenho (ECD) e da Escola de Chicago.

Qual não foi a minha surpresa quando o anfitrião mencionou que nunca havia pensado que um instrumento como o Guia brasileiro e outros tantos carregavam consigo tantos fundamentos teóricos e que os pontos de vistas tão antagônicos pudessem conviver em um único documento orientativo.

Aqueles que militam na defesa da concorrência, quer seja submetendo atos de concentração ao CADE quer seja instruindo e julgando os mesmos atos, partem, inexoravelmente, dos mesmos elementos e sempre começam dos mesmos pontos: definição de mercado relevante; análise de posição dominante; avaliação das barreiras, da rivalidade e das condições de entrada; e estudo das eficiências da operação.

Prima facie, estes elementos nada mais são do que a confluência de elementos da escola de Harvard (paradigma ECD) e da Escola de Chicago.

Pois é!! A controvérsia “saudável” entre a escola de Harvard e de Chicago é muito conhecida pelos amantes da defesa da concorrência, mas nem todo mundo se dá conta de que convivemos com as duas escolas na elaboração dos seus afazeres diários. Senão Vejamos!!!

O paradigma ECD, nas próprias palavras de Bain (1951), significa que a estrutura dos mercados (concentração) conduz a condutas nestes mesmos mercados e o seu desempenho (efeitos preços e quantidades) depende inevitavelmente de quão concentrados são os mercados[1].

A escola de Chicago, por seu turno, inverte a relação de causalidade, afirmando que o desempenho precede a estrutura, o que significa, em apertada síntese, que a concentração de mercado é, na verdade, responsável pelos ganhos de eficiência na economia, uma vez que as empresas com maiores poderes de mercados são aquelas mais capazes de fazerem inovações.

De fato, o Guia de Análise de Concentração Horizontal do CADE é fundamentado no paradigma ECD até o ponto em que se chega à análise de eficiências. Nesta etapa, avalia-se a possibilidade de que as eficiências geradas pela operação contraponham a ampliação da concentração de mercado ou, em outras palavras, que os benefícios das eficiências compensam a eliminação de um concorrente no mercado.

Na verdade, o que é certo é que controle de estruturas no Brasil e em grande parte das jurisdições se utiliza dos ensinamentos da Escola de Harvard e da Escola de Chicago, sendo que a análise sempre começa pelo paradigma ECD da Escola de Harvard e pode, em alguns casos, terminar com a prevalência das eficiências sobre a concentração de mercado postulada pela Escola de Chicago.

Entretanto, vale registrar que a combinação destas teorias em um documento não impede que o CADE adote uma ou outra teoria de forma mais prevalente, pois prevalência depende, em grande medida, da composição do plenário, não sendo fato estranho nem incomum observar, ao longo da história da autoridade de defesa da concorrência brasileira, decisões colegiadas que oscilam entre a Escola de Harvard e a Escola de Chicago.


[1] O paradigma ECD foi dominante nas décadas de 1960, 1970 e 1980 com Bain, Mason, Kaysen eTurner e recebeu o nome de Escola Estrutural de Harvard.

BAIN, J. Barriers to New Competition: Their Character and Consequences in Manufacturing Industries (1956); J. Bain, ‘Relation of Profit Rate to Industry Concentration: American Manufacturing, 1936-40’ 65 Quarterly Journal of Economics 293. 1951.

MASON, E. Economic Concentration and the Monopoly Problem. 1964.

KAYSEN, C; TURNER, D.  Antitrust Policy: An Economic and Legal Analysis. 1959.

Da Lei de Concessões ao Decreto de AIR: o tortuoso (será?) caminho da regulação econômica no Brasil

Elvino de Carvalho Mendonça

Muito se tem falado a respeito da importância da Análise de Impacto Regulatório (AIR) nas agências reguladoras. Um dos reclames da sociedade sobre a condução da regulação econômica via agências reguladoras estava centrado na grande quantidade de regramentos que acabavam por representar verdadeiras barreiras à entrada regulatórias e, nesse caso desmoronavam a missão precípua da regulação econômica que é a de mimetizar o ambiente concorrencial onde existem falhas de mercado instransponíveis para a economia de mercado.

Antes da Constituição Federal de 1988, os setores econômicos que hoje são conduzidos pelas agências reguladoras eram “regulados” pelos Ministérios do Poder Executivo. Nesse formato, havia a influência direta das questões do governo central e a política era menos de Estado e mais de governo.

Com a promulgação da Constituição de 1988, o art. 174 previu a possibilidade de constituição de agências reguladoras como agente normativo e regulador da atividade econômica com as finalidades de fiscalização, incentivo e planejamento determinante para o setor público e indicativo para o setor privado,[1] permitindo maior autonomia, privilegiando a técnica. Por outro lado, no art. 175, também previu que os serviços públicos poderiam ser concedidos ou permitidos a iniciativa privada mediante a realização de processos licitatórios, por prazo longo e mediante contrapartidas das empresas vencedoras[2].

Dada essa condução, a decisão foi a de privatizar as empresas estatais que prestavam serviços públicos, que eram monopólios naturais (ex. eletricidade e telefonia) e criar marcos regulatórios com agências independentes operacional e financeiramente para a gestão das empresas, segundo métodos tradicionais de regulação econômica, como, por exemplo, o regime de preço-teto.

O desafio dos marcos regulatórios era o de selecionar uma empresa por meio de processo licitatório que viesse a ofertar a melhor combinação de tarifa/qualidade da prestação serviço para o contribuinte e recursos para a União. Com esse marco regulatório vieram as regulamentações e com estas as normas, portarias e resoluções.

Várias experiências se sucederam após a criação dos marcos regulatórios dos onze setores regulados no Brasil, mas foi somente com a publicação da Lei das Agências (Lei nº 13.848/2019) e da Lei de Liberdade econômica (Lei nº 13.874/2019) e do Decreto de AIR (Decreto nº 10.411/2020) que a análise de impacto regulatório se tornou uma realidade exigível não somente para as agências reguladoras, mas também para toda a elaboração de atos normativos da administração pública direta, não obstante, aqui e ali, algumas agências já fizessem análises de impacto regulatório.

Os mencionados diplomas legais, sobretudo o Decreto de AIR, disciplinaram o rito do AIR e os métodos para se obterem medidas quantitativas e qualitativas dos atos normativos sobre os regulados e a sociedade como um todo. Salvo para as exceções, toda norma deve ser precedida de AIR e deve ser transformada em relatório, que será submetido ao escrutínio da participação social (tomadas de subsídio, consultas públicas e audiências públicas).

Está claro, portanto, que a regulação econômica no Brasil seguiu as premissas dos bons manuais de regulação econômica ao redor do mundo, pois privatizou empresas estatais deficitárias, criou agências reguladoras, elaborou marcos regulatórios e agora institucionalizou a prática do AIR em todas as agências.      

A ausência de instrumentos que medissem a intervenção do Estado por meio da regulação talvez seja o ponto mais negativo da regulação econômica no Brasil nesses últimos 26 anos. Antes da entrada em vigor da lei das agências, da lei de liberdade econômica e do Decreto de AIR, o Estado era soberano na elaboração de normas, o que fazia dos seus atos uma intervenção ativa no domínio econômico, com efeitos, muitas vezes, não muito positivos para a segurança jurídica dos regulados e dos investidores privados.

É inescapável que a instituição do AIR veio para atribuir poder a sociedade no balanço de forças com o Estado, na medida em que algumas normas anticompetitivas e/ou excessivas regulatoriamente tendem a ser eliminadas no processo de análise de impacto regulatório. Mas fica uma dúvida: qual é a medida certa?

Se é certo que a ausência de barganha de forças com o Estado acabou por gerar normas, muitas vezes, excessivas que acabaram gerando barreiras à entrada para o mercado, por outro lado, também é certo que é fundamental que o Estado tome a condução de diretrizes, ao menos, mínimas em mercados onde são visíveis as falhas de mercado, evitando o abuso do poder de mercado.

A medida correta é a de controlar o abuso, seja do Estado (abuso de poder regulatório) ou abuso do mercado (abuso do poder de mercado).

Não é difícil perceber que a quantidade de atos normativos que são necessários para a boa regulação é muito superior à capacidade de análise das agências reguladoras. Obviamente que um grande percentual desses atos não possui qualquer prejuízo para os setores regulados, a exemplo do que acontece com os 80% de atos de concentração submetidos ao CADE não possuem qualquer problema de natureza concorrencial.

 Esse é um desafio que o CADE e grande parte das agências de defesa da concorrência ao redor do mundo resolveram a partir da elaboração de critérios para separar os casos que realmente eram problemáticos daqueles que não o eram. A solução de triagem com publicidade ao público por meio da publicação de atos simples no DOU deu celeridade ao processo decisório, reduziu a insegurança jurídica e transformou o CADE em uma das melhores agências das Américas.

No entanto, nem sempre foi assim para o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). Quem não se lembra do duplo trabalho na elaboração de pareceres pela então Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) e pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) antes da entrada em vigor da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência)? Foram precisos alguns bons anos para que o SBDC identificasse que o modo como o sistema funcionava era disfuncional e gerava custos amplos tanto para o erário quanto para o setor privado.

Não obstante o Decreto de AIR tenha trazido os métodos para calcular o impacto regulatório, que nem sempre é uma boa solução devido ao engessamento da autoridade regulatória, não trouxe qualquer critério de triagem. A exemplo do que se viu com a experiência do SBDC, a eliminação do que não é relevante abre espaço para a aplicação de métodos sofisticados em casos que realmente merecem ajustes. Importante lembrar que há diferenças consideráveis entre as operações no CADE e os atos normativos das agências e a principal delas está no fato de que o órgão antitruste é um examinador externo das condições de concorrência que são geradas pela ação de duas ou mais empresas, ao passo que a AIR é elaborada por um examinador interno, que transforma a decisão diretamente conectada à vontade da agência.

Portanto, como criar um fast track para algo que está permeado por interferência direta? É importante lembrar que a AIR é um ônus da prova da agência para publicar um novo normativo e o julgamento é feito pela sociedade por meio da participação social (consulta pública, audiências públicas etc).

Há quem diga que a obrigatoriedade de realização da AIR inibe a produção de normas ruins do ponto de vista regulatório e concorrencial, pois há uma alta probabilidade de que esses normativos não sejam publicados na forma como foram propostos ou que sequer sejam produzidos, em razão da necessidade de produção de um trabalhoso AIR. Nesse caso, o entendimento seria de que somente seriam submetidas para AIR normativos que fossem relevantes e o problema do fast track estaria resolvido.

No primeiro caso, não há o comando da aprovação, ao passo que no segundo, o fast track no CADE, está baseado no tamanho das empresas que fazem as operações (faturamento bruto e participação de mercado).

Mais do que dizer que método utilizar é importante excluir aquilo que não gera preocupação e dar publicidade para a sociedade, pois, do contrário, é como “matar uma formiga utilizando uma bomba atômica”.


[1] Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.         (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

[2] Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – os direitos dos usuários;

III – política tarifária;

IV – a obrigação de manter serviço adequado.

De Montesquieu a Boushey: qual é o papel das leis nas sociedades capitalistas?

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

Qual é o papel das leis nas sociedades capitalistas e como o teor das leis criadas pelo Parlamento podem influenciar na construção de uma sociedade mais ou menos desigual? Por que há países mais iguais e outros com uma desigualdade social, cultural e econômica extrema? O que o teor das leis tem a ver com isso?

Sabe-se que o regime capitalista, fruto da Revolução de 1789 na França, teve seus primeiros firmes passos dados com a a promulgação da Lei dos 2 -17 de Março de 1791, cujo teor assegurou a liberdade do comércio e da indústria. Georges Ripert narra que “o legislador não entendia declarar apenas um princípio; queria destruir alguma coisa[1], destruir o regime antigo e, para isso, o papel da lei foi fundamental para assegurar “[a] propriedade individual, livre e sagrada, a convenção livremente formada e tendo foros de lei, como as duas bases que vão permitir a criação da nova ordem[2].

Para essa breve reflexão, voltamos a origem da estruturação do poder e vemos que Montesquieu, em “[o] espírito das leis” ao propor a teoria dos três poderes desenhou o exercício das atividades do Estado em três poderes: Legislativo, Judiciário e Executivo, cujas funções principais seriam a de criar regras de conduta, julgar os conflitos de interesses e administrar o Estado,  respectivamente, tudo em observância as leis vigentes em cada espaço temporal.

Em toda a sua narrativa, o filósofo francês do século XVII (1689-1755) registra grande preocupação com a desigualdade social, denotando o importantíssimo papel que o legislador tem para não só criar regras de condutas, mas para pautar-se pela justiça e igualdade no desenvolvimento de sua atividade fim, para o bem da democracia.

Dois exemplos ilustram bem a preocupação do filósofo com a igualdade que deveria reger as leis criadas. Ao tratar da divisão igualitária de terras pelos antigos legisladores Licurgo e Rômulo, Montesquieu asseverou que “se quando o legislador efetuar tal divisão, ele não criar leis para mantê-la, não terá feito mais do que uma constituição passageira; a desigualdade entrará pelo lado que as leis não tiverem protegido e a república estará perdida.”[3] (g.n)

Em outra passagem, Montesquieu aduz que:

assim como a igualdade das riquezas mantem a frugalidade, a frugalidade mantém a igualdade das riquezas. Estas coisas, embora diferentes, são tais que não podem subsistir uma sem a outra; cada qual é a causa e o efeito, e quando uma delas é retirada da democracia e outra sempre a segue.

É verdade que quando a democracia está baseada no comércio pode muito bem acontecer que alguns particulares possuam grandes riquezas e os costumes não estejam corrompidos. É que o espírito do comércio traz consigo o espírito da frugalidade, de economia, de moderação, de trabalho, de sabedoria, de tranquilidade, de ordem e de regra. Assim, enquanto subsiste este espírito, as riquezas que ele produz não têm nenhum mau efeito. O mal acontece quando o excesso das riquezas destrói este espírito de comércio; assistimos subitamente ao nascimento das desordens da desigualdade, que ainda não haviam aparecido.

.

“…falta muito para que o mundo inteligente seja tão bem governado quanto o mundo físico. Pois, embora aquele também possua leis que, por sua natureza, são invariáveis, ele não obedece a elas com ao mesma constância com a qual o mundo físico obedece as suas. A razão disto é que os seres particulares inteligentes são limitados por sua natureza e, portanto, sujeitos ao erro; e, por outro lado, é de sua natureza que eles atuem por si mesmos. Eles não obedecem, portanto, suas leis primitivas; e aquelas mesmas leis que dão a si mesmos, não obedecem a elas sempre.”[4]

Nessa toada, cerca de um século mais tarde, outro francês Claude Fréderic Bastiat, ao escrever a obra “A lei” (1850) tratou da mesma preocupação de Montesquieu ao aduzir que “a perversão da lei causa conflito” e que se “desviada de seu propósito, ela pode violar os direitos de propriedade em vez de garanti-los, então, qualquer pessoa quererá participar fazendo leis, seja para proteger a si próprio contra a espoliação, seja para espoliar os outros.[5]

É fato que 170 anos após Bastiat, Heather Boushey no livro Unbound: How Inequlity Constricts Our Economy and What We Can Do About it” torna ao mesmo ponto para chamar à atenção de que “a desigualdade obstrui o crescimento econômico e a regular dinâmica dos mercados[6].

Desse modo, a arquitetura jurídica dos mercados como um produto de criação das leis e das reais forças de poder influenciam diretamente na maior ou menor desigualdade social, cultural e econômica de um país, cabendo aos policymakers a criação de leis e políticas públicas que possam produzir maior igualdade entre os indivíduos, não só por uma questão humanitária, mas também por uma questão estratégica de país, na medida em que quanto mais pessoas capacitadas puderem produzir riqueza, maior será o resultado para o crescimento do país e para a melhora de sua condição de país em desenvolvimento para país, de fato, desenvolvido.

Sobre esse ponto, Heather Boushey diz que

“a desigualdade obstrui o crescimento econômico e a regular dinâmica dos mercados” e que “a extrema desigualdade que estamos vivenciando é decorrência da subversão das instituições públicas, de forma que o policymaking process necessário para dar apoio à economia foi afastado do interesse público e direcionado para promover o rent seeking de agentes econômicos privilegiados, permitindo-lhes obter mais lucros e rendas do que conseguiriam em um mercado realmente competitivo”.[7]

Desse modo, as leis que beneficiam, desmedidamente, mais o capital que o trabalho, sob a escusa de que é preciso “crescer o bolo para depois dividi-lo”, como concessão de benefícios fiscais, desonerações e financiamentos para grandes grupos econômicos detentores do capital precisam ser repensadas pelos nossos legisladores para que a real “liberdade econômica” tanto defendida possa ser, de fato, implementada. Liberdade econômica com subvenções do Estado não traduz o conceito da  “liberdade” que se postula.

Por outro lado, educar o seu povo não é só uma questão de justiça, mas também de estratégia de país para que os cidadãos brasileiros possam melhor contribuir para o crescimento do PIB do país. 

Seja por Montesquieu, Bastiat, Ripert ou Boushey é fato que ao longo dos séculos, desde o surgimento do capitalismo como uma nova ordem econômica, os autores identificam que o conteúdo da lei é fundamental para gerar uma sociedade mais igual, social, cultural e economicamente e, portanto, as práticas de rent seeking e logrolling, devem ser evitadas ou, minimamente, balanceadas para que a lei possa exercer, de fato, a sua grande função que é a de produzir normas de conduta abstratas e gerais beneficiando a todos os seus cidadãos e não só a parcela mais rica da sociedade, detentora das reais forças de poder.  A reflexão que se propõe, pois, é a de que pensemos, sobre o papel das leis e de seu conteúdo.


[1] RIPERT, Georges. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. São Paulo: AM2 Editora, 2021, p. 25.

[2] Idem.

[3] MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 56.

[4] MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 12.

[5] BASTIAT, Claude Fréderic. A lei. 3. Ed. São Paulo: Ludwig, von Mises Brasil, 2010, p. 18.

[6] FRAZÃO, Ana. Novas perspectivas para a regulação jurídica dos mercados: o que ainda temos a aprender com o livro de Heather Boushey, especialmente diante do cenário de crise da Covid 19. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/novas-perspectivas-para-a-regulacao-juridica-dos-mercados-parte-vi-0 8042020 em 11/05/2022.

[7] BOUSHEY, Heather. Unbound: How Inequlity Constricts Our Economy and What We Can Do About it. Cambridge: Harvard University Press, 2019, p. 85-86.

Defesa Comercial é sinônimo de Protecionismo?

Fernanda de Magalhães Furlan

Apesar da redução de barreiras ao comércio internacional ser condição necessária para diminuir o poder de mercado de oligopólios domésticos, não é condição suficiente quando há empresas com poder de mercado em nível mundial[1].

Neste contexto, é assente o importante papel desempenhado pela defesa comercial no esforço de combate às nocivas práticas internacionais de comércio desleal. Aliás, as medidas de defesa comercial impostas num ano pelo Brasil, bem como na maior parte dos países membro da OMC[2], correspondem historicamente a percentuais inferiores a um por cento (1%) das importações totais do país no período. Ou seja, o impacto das medidas de defesa comercial é irrelevante quando inseridas no contexto do total das importações brasileiras, ou de qualquer player relevante no comércio internacional.

Uma política eficaz para aumentar a inserção internacional do país e “abrir a economia” ao mercado externo seria, por exemplo, a redução de tarifas de importação, como, aliás, foi questão relevante da agenda econômica da disputa presidencial de 2018.  Isso porque as importações de bens e serviços pelo Brasil somaram apenas 15,5% do Produto Interno Bruto em 2020[3].

Parece, infelizmente, e com o devido respeito, haver uma visão distorcida em setores do Poder Executivo sobre os objetivos e a utilidade dos instrumentos de defesa comercial. Como visto, uma simples redução unilateral de tarifas melhor resolveria o problema da “agorafobia comercial”[4] do Brasil, do que um acinte retórico sobre mecanismos de defesa contra práticas desleais.

As importações nem sempre são uma ameaça. Na verdade, elas somente são sancionáveis quando realizadas a preços artificiais (dumping ou subsídios) e capazes de gerar dano/prejuízo à indústria doméstica. Ou seja, não são todas as importações que são atingidas pelos instrumentos de defesa comercial, mas somente aquelas em que há prática desleal de comércio (preços artificialmente baixos).

No Brasil, inclusive, há ainda a utilização obrigatória da lesser duty rule (regra do menor direito), que determina a aplicação do direito antidumping apenas em medida suficiente a eliminar o dano à indústria doméstica.

É sempre bom atentar para o fato de que, independentemente do poder de mercado da indústria nacional, a não aplicação de medidas de defesa comercial poderá significar, de outro modo, a consolidação de poder de mercado de oligopólios internacionais e, no longo prazo, o próprio desaparecimento da produção nacional.

A participação do CADE e da SEAE/ME nas discussões de comércio exterior[5], no âmbito institucional da CAMEX, é bem-vinda. Ela serve para contribuir com informações e dados que possam resultar no aumento da competitividade da economia brasileira. Porém, não deve ser uma participação de mão única, ou seja, o CADE também deve instar as autoridades de comércio a atuar para o bom funcionamento do mercado interno e para a saúde da concorrência[6] no Brasil.

A opinião dos integrantes do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (CADE e SEAE/ME) nas análises de interesse público em defesa comercial é construtiva, contudo, sua participação também na própria análise de dano e nexo causal parece ser dispensável e até invasiva.

Infelizmente, a ofensiva contra os instrumentos de defesa comercial é perene, como se eles incorporassem a própria essência do mal, chamado protecionismo. Pois o Ministério da Economia, vem publicando regulamentações que dispõem sobre questões afetas à defesa comercial e, em especial, ao antidumping, que inovam onde não haveria espaço para tanto, consideradas as leis atualmente em vigor.

Tais propostas contêm disposições que extrapolam parâmetros do Acordo Antidumping da OMC[7]. Elas concebem critérios inovadores de análise e aplicação de direitos antidumping, sem amparo no Acordo da OMC e que não são adotados por qualquer outro país membro da organização, enfraquecendo posições negociadoras do Brasil e diminuindo, na sua própria essência, os atuais instrumentos de defesa comercial contra práticas desleais de comércio, fruto de extensas negociações no seio do GATT/OMC.

Além disso, as regras da OMC foram internalizadas no Brasil por meio da Lei nº 9.019/95 e Decreto nº 1.355/94, não podendo ser alteradas por simples portarias do Ministério da Economia. As competências das secretarias do Ministério da Economia são de regulamentar os procedimentos relativos às investigações de defesa comercial e às avaliações de interesse público, desde que, naturalmente, não extrapolem ou contrariem o estabelecido em legislação de hierarquia superior.

A Lei da Concorrência (Lei 12.529/11), por exemplo, em seu artigo 119, dispõe não ser ela aplicável “aos casos de dumping e subsídios de que tratam os Acordos Relativos à Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, promulgados pelos Decretos nº 93.941 e 93.962[8], de 16 e 22 de janeiro de 1987, respectivamente”.

Não parece legítimo, portanto, que se busquem, de forma enviesada, os mesmos efeitos proibidos pelo legislador. Ou seja, ao aplicar conceitos e, em especial, parâmetros de análise, típicos da investigação antitruste, aos processos e procedimentos de defesa comercial, estaríamos desobedecendo a própria Lei Antitruste.

De acordo com o artigo 3.4 do Acordo Antidumping, da OMC, o exame do impacto das importações a preços de dumping sobre a indústria nacional correspondente deverá incluir a avaliação de todos os fatores e índices econômicos relevantes que tenham relação com a situação da referida indústria, inclusive queda real ou potencial das vendas, dos lucros, da produção, da participação no mercado, da produtividade, do retorno dos investimentos ou da ocupação, da capacidade instalada, fatores que afetem os preços internos, a amplitude da margem de dumping, efeitos negativos reais ou potenciais sobre o fluxo de caixa, estoques, emprego, salários, crescimento, capacidade para aumentar capital ou obter investimentos. Tais fatores, contudo, não são exaustivos, nem poderão, isoladamente ou em conjunto, ser tomados necessariamente como indicação decisiva.

Contudo, parece haver alguma confusão quando passam a se utilizar parâmetros de investigação antitruste, em investigações de defesa comercial, ao invés de simplesmente considerar um (participação de mercado), entre vários critérios de análise de dano. Ao se socorrer de parâmetros[9] de análise antitruste para as investigações de dano, em defesa comercial, a autoridade competente está utilizando premissas invertidas.

Ao não aplicar direitos antidumping, comprovadamente cabíveis, a um setor da indústria nacional, simplesmente por considerá-lo concentrado ou porque esteja sendo investigado por comportamento anticompetitivo; a autoridade governamental, com todo o respeito, está promovendo uma intromissão desnecessária e ilegítima, pois, tal controle de concentração de mercado deve ser prévio e realizado pelo CADE e qualquer punição/sanção às empresas deve se dar dentro do processo respectivo e não fora dele.

Não há dúvidas dos avanços que vem sendo feitos pelo Ministério da Economia, por meio da Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) em relação à processualidade[10] e à transparência, tanto nas investigações de defesa comercial, quanto nas análises de interesse público.

Tais avanços não devem ser obscurecidos por ofensivas deliberadas sobre os instrumentos de defesa comercial, como se fossem medidas ilegítimas e protecionistas, tanto mais quando se utilizam para tanto, parâmetros estranhos à tradicional análise de dumping/subsídios, dano e nexo causal.


[1] MATTOS, César. Harmonização das Políticas de Defesa da Concorrência e Comercial: Questões Teóricas e Implicações para o Mercosul, Alca e OMC. Disponível em: http://www.iadb.org/intal/intalcdi/PE/2008/01184.pdf. Acessado em: 26/02/2014.

[2] Na União Europeia, por exemplo, todas as medidas antidumping e compensatórias em vigor no final de 2006 correspondiam a somente 0,6% do volume total de importações do bloco. Apud MUELLER, Wolfgang et al. EC and WTO Anti-Dumping Law: A Handbook. 2a ed. Oxford. 2009.

[3] Disponível em: https://data.worldbank.org/indicator/NE.IMP.GNFS.ZS?name_desc=false. Acesso em: 30/01/2022.

[4] A agorafobia é caracterizada por sintomas como medo e ansiedade de viver situações que fogem do controle e causam constrangimento em meio a locais abertos, reunião de pessoas e multidões. O termo “agorafobia comercial” indica o receio de um país em abrir a sua economia ao mercado externo.

[5] O artigo 22, inciso VIII, da Constituição Federal dispõe competir privativamente à União legislar sobre comércio exterior.

[6] O artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal elege a livre concorrência como princípio geral da atividade econômica.

[7] Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 30/94 e promulgado pelo Decreto no 1.355/94, bem como o disposto na Lei nº 9.019/95, na parte que dispõe sobre a aplicação das medidas previstas no Acordo Antidumping.

[8] De acordo com o artigo 49 da Constituição Federal, compete ao Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados”, por meio de processo legislativo próprio, que culmina com a publicação de decretos do presidente da República, que insere os tratados na legislação brasileira, no nível de lei federal (exceto para tratados sobre Direitos Humanos, cuja estatura é de emenda constitucional).

[9] Parâmetros são princípios e regras a serem considerados na estruturação ou equacionamento de um dado problema, sistema de problemas ou situação.

[10] A processualidade é a instrumentalidade metodológica construída a partir dos conflitos existentes na sociedade para se chegar ao processo e procedimento adequados para solucioná-los, de modo a obter a tutela processual e de direitos, em caráter efetivo e justo. 

Mudança à vista nas investigações de defesa comercial

Fernanda Manzano Sayeg

A partir de 1º de setembro de 2021, os autos das investigações de defesa comercial conduzidas pela Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) migrarão do Sistema Decom Digital (SDD) para o Sistema Eletrônico de Informações do Ministério da Economia (SEI/ME).

A Portaria Secex nº 103, de 27 de julho de 2021, publicada no Diário Oficial da União do último dia 28 de julho, revogou a Portaria SECEX nº 30, de 7 de junho de 2018, e determinou que o SEI/ME passará a ser utilizado para produzir, editar, assinar, tramitar, receber e concluir os processos eletrônicos referentes a investigações de defesa comercial.

Até 2015, os processos administrativos de defesa comercial eram todos em papel. Isso significava que os representantes legais da indústria doméstica, exportadores e importadores passavam dias imprimindo, organizando e numerando centenas de documentos, que eram compilados em verão pública e confidencial e enviados por courier para protocolo em Brasília. A consulta aos autos era agendada e só podia ser realizada in loco, o que resultava em centenas de cópias impressas das páginas relevantes dos autos dos processos.

À época, o sistema representou um importante avanço institucional no sentido de modernizar as práticas processuais da SDCOM. As partes interessadas passaram a ter a possibilidade de realizar protocolo e a consulta dos autos eletrônicos dos processos de forma remota, a qualquer momento. Porém, o SDD era um sistema engessado, com acesso restrito em alguns sistemas operacionais e navegadores, e diversos problemas começaram a surgir. Com os prazos apertados das investigações de defesa comercial, as partes interessadas eram significativamente prejudicadas sempre que o SDD apresentava instabilidades ou problemas técnicos, resultando em algumas horas para que um simples protocolo fosse realizado.

Assim, é possível dizer que o SDD se tornou um gargalo operacional na SDCOM, tendo em vista o custo relacionado à manutenção, suporte técnico e instabilidades recorrentes do sistema.

Por sua vez, o SEI/ME é uma ferramenta simples, acessível por qualquer sistema operacional, que é amplamente utilizada pela Administração Pública, sendo, inclusive, utilizado pelas partes interessadas para protocolos e acompanhamento dos autos eletrônicos de Avaliações de Interesse Público.

Com a migração dos processos de defesa comercial p[ara o SEI/ME, a partir de setembro, os representantes legais das partes interessadas terão acesso a nada menos do que quatro autos no SEI com numerações distintas, a saber: (a) restrito de defesa comercial; (ii) confidencial de defesa comercial; (c) público de interesse público; e (d) confidencial de interesse público.

Uma outra alteração relevante consiste no fato de que a assinatura de documentos de defesa comercial e interesse público seguirá procedimentos distintos no SEI/ME. Nos processos de defesa comercial, passará a ser obrigatória a assinatura de documentos por meio de certificado digital, conforme disposto no art. 17 da Lei 12.995 de 18 de junho de 2014). Na prática, funcionará da seguinte forma: os representantes legais das partes interessadas devem assinar os documentos com certificado digital, os atos processuais serão previamente assinados pelos usuários externos com a utilização de certificado digital padrão ICP-Brasil e, posteriormente, juntados aos autos na forma de documentos externos mediante upload com usuário e senha no SEI/ME.

É importante observar que a obrigação de que os documentos protocolados sejam assinados por meio de certificado digital não existe para os processos de interesse público, conforme estabelecido pelo artigo 1º, §2º da Portaria nº 103, de 2021.  Assim, SEI/ME continuará sendo utilizado na condução dos processos eletrônicos de avaliação de interesse público e os documentos protocolados nos autos público e confidencial de interesse público continuarão sendo assinados apenas por meio de usuário e senha no SEI.

Todo o processo de transição entre os sistemas vem sendo executado pela equipe de servidores da SDCOM juntamente com uma consultora externa. A Circular nº 52, de 2 de agosto de 2021, publicada no Diário Oficial da União de 3 de agosto de 2021, divulgou o Guia Interno e Externo Do Processo Eletrônico no SEI para Processos Administrativos de Defesa Comercial e Interesse Público, que traz orientações para os usuários sobre a transição dos processos para o SEI/MF.  Ademais, no dia 20 de agosto, a SDCOM realizará um treinamento externo de forma virtual para esclarecer dúvidas sobre a transição entre os sistemas eletrônicos.

Os usuários dos instrumentos de defesa comercial e seus representantes legais saúdam essa importante mudança no sistema de gestão processual eletrônica dos autos dos processos de defesa comercial, que representa uma bem vinda modernização e otimização das práticas processuais pela SDCOM.

Defesa comercial em tempos de pandemia

Fernanda Manzano Sayeg

A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus (COVID-19) e as medidas adotadas pelos governos para seu enfrentamento, em todo o mundo, resultaram em restrições à circulação e ao ingresso em diversos países e afetaram diretamente as investigações de defesa comercial no Brasil, que são conduzidas pela Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (“SDCOM”).

Uma das principais consequências das restrições para evitar a propagação do vírus foi a adoção do home office. Diversas empresas se viram obrigadas a realizar inúmeras alterações em suas estruturas. Para as empresas que eram partes interessadas em investigações nde defesa comercial, essas adaptações tiveram um grande impacto na obtenção de informações necessárias para as respostas aos questionários e aos ofícios enviados pela autoridade investigadora às partes interessadas, que possuem prazos exíguos e demandam um grande esforço.

Se já era difícil cumprir os prazos de uma investigação antidumping antes da pandemia, as mudanças introduzidas na pandemia tornaram essa tarefa praticamente impossível. Havia uma grande insegurança jurídica em relação aos procedimentos que seriam adotados para a verificação das informações apresentadas pelas partes interessadas e pela ausência de reuniões presenciais com as autoridades nas quais costumava-se discutir aspectos relevantes dos casos. Não obstante as reuniões presenciais tenham sido substituídas por videoconferências, a pandemia levou a uma maior dificuldade de contato entre as partes interessadas e a SDCOM.

Apenas em 18 de agosto de 2020, foi publicada a Instrução Normativa nº 1/2020, que dispõe sobre as adaptações necessárias aos procedimentos das investigações de defesa comercial e das avaliações de interesse público conduzidas pela SDCOM em decorrência da pandemia.

A referida Instrução Normativa suspendeu, por prazo indeterminado, a realização das verificações presenciais nas fábricas e escritórios das partes interessadas nas investigações de defesa comercial. Ademais, determinou que, em razão da impossibilidade de realização das verificações in loco, a SDCOM promoveria uma análise detalhada de todas as informações submetidas pelas partes interessadas, buscando verificar sua correção com base na análise cruzada das informações protocoladas nos autos do processo e de informações constantes de outras fontes disponíveis. 

Adicionalmente, a Instrução Normativa nº 1/2020 dispõe que a SDCOM poderá solicitar informações complementares adicionais e outros elementos de prova, tais como amostras de operações constantes de petições e respostas a questionários e detalhamentos de despesas específicas, a fim de validar informações apresentadas pelas partes interessadas, nos termos do parágrafo único do art. 179 do Decreto nº 8.058, de 2013.

Cumpre notar que a Instrução Normativa nº 1/2020 determina que os documentos e dados que visam a validar as informações protocoladas pelas partes interessadas sejam apresentadas forma mais completa, clara e precisa possível, e que estes sejam acompanhados de suas respectivas comprovações, justificativas, fontes e metodologias utilizadas, bem como das planilhas e documentos auxiliares utilizados na elaboração dessas informações. Isso sem falar nas traduções juramentadas para o português de todos os documentos elaborados originalmente em língua estrangeira – com exceção do inglês, francês e espanhol – em conformidade com o artigo 18 da Lei nº 12.995, de 18 de junho de 2014.

Assim, desde 18 de agosto de 2020, o procedimento de verificação in loco tem sido substituído pela SDCOM pelo envio de um único ofício, que deve ser cumprido no prazo de 10 dias, prorrogável por igual período, com vistas a validar todas as informações apresentadas por determinada empresa na investigação antidumping. Não obstante o art. 3º da Instrução Normativa estabeleça que podem ser solicitadas informações complementares adicionais àquelas solicitadas após a submissão dos questionários do produtor doméstico, exportador e importador, a SDCOM tem limitado o pedido de informações adicionais a apenas um ofício.

As partes interessadas – sobretudo os exportadores – acabam enfrentando inúmeras dificuldades para cumprir com esse único ofício. Se durante a verificação in loco a maioria dos documentos é analisada presencialmente – sobretudo as telas do sistema contábil e números – e não é solicitada a juntada de tradução juramentada dos mesmos para o português, o mesmo não ocorre quando a comprovação dos dados é realizada por ofício. Simplesmente não há tempo hábil para que que as partes obtenham as inúmeras informações solicitadas nesse ofício no exíguo prazo determinado pela SDCOM, muito menos para que sejam realizadas todas as traduções juramentadas dos documentos, de modo a atender o artigo 18 da Lei nº 12.995, de 18 de junho de 2014.

Como se não bastasse, as partes interessadas ainda se deparam com a dificuldade de apresentar todas as informações solicitadas e respectivas traduções antes do término do período probatório. Embora os artigos 7º e 8º da Instrução Normativa nº 1/2020, determinem que os prazos previstos no Decreto nº 8.058, de 2013, poderão ser suspensos, com base no art. 67 da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, de forma a garantir tempo adequado para a coleta e análise das informações necessárias às determinações da SDCOM, levando em consideração as necessidades de cada processo administrativo individualmente, bem como os princípios constitucionais da razoabilidade e da eficiência, esse não tem sido o caso.

Passados mais de dez meses da entrada em vigor da Instrução Normativa nº 1/2020, resta evidente que a metodologia introduzida por ela é ineficiente, aumentou o grau de dificuldade de comprovação das informações apresentadas nas investigações de defesa comercial para as partes interessadas e os custos das mesmas (haja vista o elevado número de documentos cuja tradução passou a ser necessária), e tornou praticamente impossível para qualquer exportador apresentar todos os dados solicitados de forma completa antes do término do período probatório.

É irrealista esperar que a realização de uma verificação in loco, tanto no exportador quanto no importador, possa ser substituída pelo simples envio de um único ofício requerendo que a empresa transformasse todo o intenso trabalho realizado por uma equipe ao longo de dias em uma resposta escrita e completamente suficiente para validação de todos os dados. Se fosse esse o caso, a realização de verificações in loco com o traslado e dedicação integral de funcionários ao longo de todos esses anos, por várias autoridades no mundo, teria sido um excesso e desperdício de recursos públicos.

Faz-se necessário repensar a condução das investigações de defesa comercial até o término da pandemia, sobretudo no que diz respeito aos prazos e procedimentos para apresentação de informações, de modo a evitar que as decisões nesses processos sejam questionadas tanto judicialmente, no Brasil, quanto no Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (“OMC”).