Eduardo Molan Gaban

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), durante seus quase 2 anos de vigência, já vem sendo matéria de diversos casos que tramitam pelo Poder Judiciário. Este, por sua vez, assume um papel relevante no sentido de direcionar a interpretação e aplicação desta recente lei.

Como é natural para as legislações recém-criadas/vigentes, é a experimentação em casos concretos que possibilita que sejam delineados os papéis dos atores envolvidos, os limites de sua aplicação e a fundamentação necessária para tanto.

Nesse sentido, podemos observar uma interessante decisão recente que nos ensina várias lições em alguns pontos cruciais da LGPD[1]: (i) a exclusão de empresas de pesquisa do conceito de instituição de pesquisa previsto na lei, por possuírem caráter lucrativo; (ii) a existência de violação da LGPD nas pesquisas de campo realizadas com dados sem o consentimento do titular; (iii) a aplicação concreta da responsabilidade solidária do operador.

Na aludida decisão, foi confirmada a condenação da Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda. e da WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. pela realização de pesquisa de mercado contendo informações pessoais e dados sensíveis sem o consentimento dos titulares.

Segundo o Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal, autor da ação, este foi surpreendido com diversas indagações dos sindicalizados acerca de uma pesquisa de mercado enviada por mensagem de texto e correio eletrônico. Diante de tais indagações, a entidade procurou esclarecer que não contratou qualquer empresa para realização da pesquisa ou forneceu acesso ao banco de dados interno do sindicato, e que conhece o caráter sigiloso das informações pessoais dos sindicalizados, tendo ocorrido o acesso sem sua anuência ou seu conhecimento.

Em resposta às acusações, a WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. relatou que a parceira Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda. deu início a pesquisa de sondagem de mercado com o objetivo de implementar campanha eleitoral para a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal no triênio 2021-2024, conforme informações disponíveis no sítio eletrônico do sindicato. Afirmou, ainda, que utilizou de banco de dados próprio, construído de forma lícita a partir de realização de outros trabalhos na área de pesquisa e de realização de campanhas eleitorais.

A Antennas Business Insights Serviços Administrativos Ltda., por fim, apresentou o argumento de que foi contratada pela WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. com a finalidade de realizar a pesquisa de sondagem de mercado para as eleições no triênio 2021-2024 e que não houve utilização dolosa das informações constantes no referido banco de dados. Destacou que a responsabilidade deve recair exclusivamente sobre WHD Pesquisa e Estratégia Ltda., que a contratou, conduziu o processo e forneceu o banco de dados.

Após análise de todas as alegações, o Tribunal pontuou que a WHD Pesquisa e Estratégia Ltda. não se insere no conceito previsto no art. 7º, inc. IV, da Lei n. 13.709/2018[2], que disciplina a regularidade da obtenção dos dados, uma vez que possui finalidade lucrativa e seu foco é comercial.

Da mesma forma, concluiu o Tribunal que, diante da falta de consentimento do titular para o tratamento de seus dados pessoais, fica caracterizado o seu uso irregular, conforme a LGPD. E neste ponto, o Relator reiterou em seu voto a condenação solidária de ambas as empresas, atuantes como agentes de tratamento de dados, com fundamento no artigo 42, § 1º, I e II, da LGPD.

Como pontuou o voto condutor do Relator, “O controlador deve demonstrar finalidade legítima a justificar o tratamento dos dados já existentes, visto que a disponibilização de dados pessoais pode causar lesão irreparável à intimidade e ao sigilo da vida privada dos envolvidos. O fundamento, no caso, para a utilização dos referidos dados está na implementação de proposta comercial para campanha eleitoral a se contrapor ao direito à privacidade e à inviolabilidade da intimidade dos filiados que tiveram seus dados manipulados”.

Ao final, assinalou a possibilidade de direito de regresso oportunamente, afirmando que “O agente de tratamento de dados poderá pleitear o ressarcimento de sua condenação em ação regressiva quando demonstrar que não realizou o tratamento de dados pessoais em questão ou se realizou, não houve violação à legislação regente, ou ainda, se demonstrar que a lesão decorre de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro”.

Trata-se um importante julgamento para balizar os limites da responsabilização solidária do operador do dado, bem como para traçar uma definição mais linear sobre as hipóteses de legitimidade do tratamento do dado previstas na lei.

Agora, esse tipo de tema, bem como tantos outros temas que ainda serão melhor sedimentados com a prática, passarão a ser uniformizados de maneira mais precisa pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), na qualidade de autarquia de natureza especial.

Em 13 de junho de 2022, foi publicada a Medida Provisória nº 1.124, editada pelo Presidente da República, a qual foi a responsável pela transformação da ANPD em uma autarquia de natureza especial[3]. Até então, a natureza jurídica da ANPD era de “órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República”.

Referida modificação já estava prevista na redação anterior do artigo 55-A, § 1º, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)[4], que dispunha sobre a natureza transitória da natureza jurídica da ANPD como órgão da presidência.

A Medida Provisória prevê, ainda, a necessidade de modificação da Estrutura Regimental da ANPD para que se adeque à sua nova característica de autarquia de natureza especial. Porém, até que seja alterada, a MP dispõe que a Estrutura Regimental atual permanece vigente e aplicável.

Na prática, a ANPD não mais se subordina hierarquicamente à Presidência, e ganha maior grau de autonomia técnica e decisória, assumindo personalidade jurídica equivalente às das agências reguladoras, como a Anvisa, a Anatel e a Aneel[5]. A Autoridade, a partir de agora, atuará de forma descentralizada nas suas atividades de controle e fiscalização, com autonomia inclusive financeira.

Além disso, com a nova Medida Provisória nº 1.124, é ampliada a capacidade processual do Órgão perante o Poder Judiciário na defesa do direito à proteção dos dados pessoais, direito esse elevado ao patamar constitucional (Emenda Constitucional nº 115/2022[6]).

Isso porque, antes da referida Medida Provisória, a ANPD não se qualificava como uma pessoa jurídica de direito público interno, pois era um órgão da administração pública federal integrante da Presidência da República, fora do rol das pessoas jurídicas de direito público interno do artigo 41 do Código Civil. Além disso, detinha apenas um órgão de assessoramento jurídico próprio.

Agora, qualificada como uma autarquia, a ANPD ganha a qualidade de pessoa jurídica de direito público interno (artigo 41, IV, do Código Civil) e uma Procuradoria especializada, assim como ocorre com outras autarquias, como é o caso do CADE.

O efeito concreto dessas mudanças é a ampliação de sua capacidade processual para promover ações judiciais em matéria de proteção de dados, como medidas cautelares (p. ex.,busca e apreensão e suspensão de atividades de tratamento de dados pessoais), execuções e pedidos de cumprimento de suas sanções administrativas contra as pessoas punidas em seus processos sancionadores.

A ANPD, como autarquia de natureza especial, terá maior independência em relação ao Poder Executivo, e expertise para fixar outras interpretações em matéria de proteção de dados, seja em seus julgamentos de processos administrativos sancionadores ou até mesmo em sua atuação perante o Poder Judiciário.

A mencionada Medida Provisória ainda deve ser aprovada pelo Congresso Nacional para que haja sua conversão em lei. Até lá, todas essas inovações trazidas pela Medida Provisória, com inquestionáveis ganhos à proteção de dados pessoais, continuarão em vigor.


[1] Apelação Cível nº 0709580-09.2021.8.07.0001, julgada pela 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.

[2] Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:

IV – para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais;

[3]  Art. 1º. Fica a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD transformada em autarquia de natureza especial, mantidas a estrutura organizacional e as competências e observados os demais dispositivos da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018.

[4] Art 55-A. Fica criada, sem aumento de despesa, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República.

§ 1º. A natureza jurídica da ANPD é transitória e poderá ser transformada pelo Poder Executivo em entidade da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada à Presidência da República.

[5] As agências reguladoras são previstas na Plataforma do Governo, cujo acesso é disponível em https://www.gov.br/ouvidorias/pt-br/cidadao/lista-de-ouvidorias/agencias_reguladoras.

[6] Nesse sentido, veja-se: https://webadvocacy.com.br/2022/03/17/protecao-e-tratamento-de-dados-pessoais-como-direito-fundamental-pec-17-2019-e-a-defesa-do-consumidor/

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *