Artigos de opinião

Evidências para uma Agenda Econômica Positiva e os Malefícios das Intervenções nas Agências Reguladoras

Katia Rocha

Há cerca de 5 anos foi publicada a Lei 13.848/19, que instituiu o novo Marco Legal das Agências Reguladoras no Brasil, com a atualização de regras de gestão, organização, processo decisório e controle social, trazendo diversos aperfeiçoamentos em direção à uma maior segurança jurídica, transparência e governança das instituições. As diretrizes avançaram no sentido de reforçar a autonomia institucional e financeira das autarquias, com previsão dos mecanismos de independência técnica e institucional necessária. Uma agenda estrutural positiva e relevante para todos: sociedade, agentes públicos e investidores privados.

No entanto, na arena política ainda presenciamos a persistência de certa dicotomia no tocante à independência técnica das agências, em diversas frentes. Para citar apenas alguns exemplos recentes, a Emenda 54/2023 que previa criação de “conselhos” que retiravam poder e autonomia das agências reguladoras, as tentativas de “retrocessos e mudanças” acerca do Marco Legal de Saneamento, o PDL 94/2022 cuja finalidade era “impossibilitar homologações” da Aneel no tocante a reajustes tarifários, o PDL 365/2022 revogando todo trabalho técnico da Aneel sobre “sinal locacional”, e mais, recentemente, a controvérsia sobre o Ofício 368/2024 do MME sobre “intervenção na Aneel”.

Nesse sentido, é pertinente argumentar e destacar os dados, estimativas e recomendações de políticas públicas de diversos think tanks (FMI, OCDE. etc) em prol do desenvolvimento de um robusto arcabouço regulatório e de governança. Há inúmeras evidências a favor da agenda de Pilar Regulatório e Governança para tratar a política regulatória, gestão e governo como um todo, com foco nas melhores práticas internacionais, abrangendo o fortalecimento das agências reguladoras, com autonomia, independência decisória, administrativa e financeira de forma a perseguir maturidade regulatória, transparência e segurança jurídica, baseadas em pilares técnicos.

Como principal referência deste artigo, destaco o recente relatório anual do FMI da economia Brasileira (Brazil: 2024 Article IV Consultation) publicado mês passado, que dentre diversas sugestões de políticas e reformas estruturais, apresenta em seu Anexo 2, um modelo econométrico que estima os determinantes do fluxo de Investimento Externo Direto (IED) para os emergentes e para o Brasil.

O modelo do tipo painel efeito fixo (push x pull), agrega dados de 28 economias emergentes entre 1990-2023, e conclui que as características estruturais do país, dentre as quais faz-se menção à qualidade regulatória e governança institucional, desempenharam papel significativo e relevante na atração de IED para os emergentes, incluindo Brasil, sendo, atualmente, seu principal driver (Figura 1 abaixo).

O relatório corrobora que as características institucionais dos países (como abertura comercial e conta de capital, qualidade regulatória e governança) potencializaram maior fluxo de IED, com efeitos superiores às variáveis comuns globais, como aversão ao risco global, liquidez internacional, ou variáveis de fundamentos cíclicas, como diferenciais de crescimento e inflação. Fato é que o Pilar Regulatório e as características institucionais de Governança aumentaram a preferência de estrangeiros por investimentos no Brasil, principalmente após a crise financeira global de 2008[1]. O fluxo de IED no Brasil passou de uma média de 1.3% do PIB antes de 2009, para cerca de 2.7% do PIB entre 2010-2023, com os setores de energia, incluindo as renováveis, recebendo fluxos substanciais, vindos, principalmente, da Europa e América do Norte. Como proporção de market share o Brasil recebeu uma média de cerca de 40% dos fluxos anuais de IED para a América Latina e cerca de 9% considerando todas as economias em desenvolvimento.

O relatório também relaciona a agenda regulatória positiva aos dividendos de crescimento e à sustentabilidade fiscal. Avançar nas reformas estruturais relacionadas à abertura comercial, regulação e governança tem potencial de aumentar o crescimento do país em cerca de 1% do PIB ao ano[2], conforme a ilustra a Figura abaixo.

Essa dinâmica virtuosa não é nova. Diversos estudos[3], há tempos, demonstram a relação positiva entre as características institucionais dos países e seu nível de crescimento e renda per capita. Melhores níveis de governança (qualidade regulatória, aparato legal, efetividade do governo, controle de corrupção) está associada a um maior desenvolvimento econômico e social.

Dessa forma, o Pilar Regulatório é cada vez mais visto como complementar de fato às políticas macroeconômicas e fiscais. Uma agenda institucional positiva dialoga e promove os objetivos de sustentabilidade fiscal, ao potencializar uma diminuição nos indicadores do endividamento público, proporcionando um menor risco país e, por conseguinte, menores juros.

O empenho para melhorar o ambiente de negócio, diminuir o custo país e aumentar a produtividade é extenso e contínuo. Os embates persistentes às entidades reguladoras vão na contramão de toda agenda positiva de Estado, e acabam por prejudicar os esforços já empregados seja com o novo arcabouço fiscal, seja com a reforma tributária de consumo (VAT) e sua regulamentação, ou ainda, para com as futuras reformas estruturais, como a reforma tributária de renda, administrativa, previdenciária, etc.

Sigo acreditando que dados, evidências e comparação por pares são extremamente úteis em manter as conquistas obtidas, e, seguir caminhando em direção à agenda positiva para o desenvolvimento econômico e social do país.  


[1] Resultado semelhante considerando o arcabouço regulatório como driver do volume de investimentos privados em infraestrutura (PPI) (Capex e outorgas) e o números de projetos de PPI para 18 economias emergentes entre 2000-2018 é apresentado no Texto de Discussão Ipea 2584 (2022).

[2] Estimativas semelhantes ao relatório OECD Economic Surveys: Brazil (2023)

[3]Ver Acemoglu et al. (2004), Acemoglu et al. (2010).


Katia Rocha é Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 1997.

Doutora em Engenharia Industrial/Finanças, Mestre e Graduada em Engenharia Industrial e Elétrica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora no Departamento de Engenharia Industrial (2002-2013).

Autora e revisora em diversos periódicos acadêmicos – Energy Policy, Journal of Fixed Income, Emerging Markets Review, Forest Policy and Economics, Pesquisa e Planejamento Econômico, Revista Brasileira de Finanças, Revista Brasileira de Economia, Economia Aplicada e Estudos Econômicos.

Atua no Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação de Políticas públicas nas áreas de Investimentos em Infraestrutura , Economia da Regulação, Financiamento da Infraestrutura (Investidores Institucionais e Mercado de Capitais), Finanças Internacionais, Determinantes de Risco Soberano, IED e Fluxos de Capital para Economias Emergentes.


Impeachment de Ministro: o jogo deve ser jogado!

José Américo Azevedo

O artigo que ora se apresenta, não irá agradar grande parcela dos gregos, nem, tampouco, grande parte dos troianos. Ainda assim, vale o risco.

As opiniões e posicionamentos devem ser apresentados para permitir reflexões e, por que não?, colocar a “cara a tapa” para as bem vindas críticas que, seguramente, nascerão. O posicionamento centralizado (não confundir com centrão…), está em desuso atualmente. A polarização reina, dificultando discussões mais amenas.

Então, vamos ao tema!

O cerne da questão é o modelo adotado pela Constituição Federal para escolha, manutenção e até impedimento dos ministros dos tribunais superiores, focando, em especial, no Excelso Pretório, Supremo Tribunal Federal.

Sem desnecessários didatismos, vale lembrar que a composição das Constituições brasileiras – excetuando-se a de 1824, que previa um Poder Moderador, exercido pelo Imperador –, segue a lógica montesquiana da divisão tripartite de Poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

O necessário equilíbrio, para que não haja despotismos, vem dos freios e contrapesos (check and balance na anglicana tradição da common law). Esse é o diferencial! Não existe, em relação aos procedimentos de Estado, nenhuma ação em que não haja a fiscalização – pelo menos, em tese – de um Poder em relação aos outros!

Avancemos!

A indicação de um ministro do STF (Poder Judiciário) é realizada pelo Presidente da República (Poder Executivo), sendo submetida ao referendum do Senado Federal (Poder Legislativo). É dizer, todos os Poderes participam da escolha de um ministro do Supremo, e de todos os Tribunais Superiores. Dessa forma, a priori, todos os Poderes foram unânimes ao aceitarem determinado cidadão para determinada função. Altamente democrático.

Então, qual é a discussão?

O ponto nevrálgico é a prática de comportamentos questionáveis, por algum dos Poderes, sem a intenção de demonizar qualquer deles. A eventual falta de procedimentos republicanos, caso haja, não significa a necessidade de alteração na Constituição, para corrigir erros momentâneos e circunstanciais.

Faz-se necessário um pacto político, em que forças antagônicas estabeleçam um compromisso em relação ao país, de forma a afastar a polarização, estabelecendo um ambiente minimamente factível de salutar convivência. Nesse momento de histeria coletiva, parece difícil imaginar algo neste sentido. Seria o “mundo de Alice” se transformando em realidade. Porém, o reverso da medalha pode custar caro ao país. E isso deve ser olhado pelos cidadãos, pessoas que querem a verdadeira construção de um ambiente mais saudável.

Abstraindo-se da divagação de um “mundo melhor”, o fato é que temos um ordenamento constitucional e legal extremamente robusto, e, que se quisermos o caminho do Estado Democrático de Direito, devemos segui-lo.

O inciso II do artigo 52 da Constituição Federal define que compete privativamente ao Senado Federal, processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade. Este dispositivo encontra-se secundado pelos artigos 39 e 39-A da Lei 1.079/1950, que foi recepcionada pela atual Carta Magna, e define quais são os crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Não obstante, deve-se cumprir todo o rito formal para uma decisão de impedimento de um ministro, sendo inadmissível uma decisão que se amolde a uma espécie de tribunal de exceção. Assim, faz-se necessária a apresentação da denúncia, seguida pela formação, pelo Senado Federal, de uma comissão especial que apresentará, em até 10 dias, um parecer para a apreciação do plenário da Casa.

Caso a decisão seja pela continuidade do procedimento, abre-se a constitucional garantia de contraditório e ampla defesa para o denunciado, voltando o processo, após esta etapa, para a comissão especial e, novamente, para o plenário.

Julgada procedente a denúncia, e após comunicados o STF, o Presidente da República, o denunciante e o denunciado, fica este suspenso até o julgamento final que ocorrerá no Senado com a presença dos ministros do Supremo.

Somente então, com a votação nominal e a aprovação de 2/3 dos senadores é que ocorrerá o impeachment do denunciado.

Há que se observar que o processo, embora possa parecer deveras moroso, tem como objetivo a garantia da lei e da ordem, além de permitir a possibilidade sagrada de defesa do acusado. É por isso que, entre outros motivos, nossa Constituição preconiza, em seu primeiro artigo que “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”.

Caso respeitada a Carta da República, não existirão ministros de tribunais, diretores e presidentes de autarquias, ministros do Tribunal de Contas da União, presidente e diretores do Banco Central, Procurador Geral da República, embaixadores, e mais uma gama de autoridades, inaptas ao exercício de suas funções, pelo simples fato de que, para a assunção aos seus cargos, devem passar pelo crivo de outro Poder. Caso haja responsabilidade nessas aprovações, o risco de existirem incompetentes atuando tende a diminuir exponencialmente.

Além disso, na remota possibilidade de se cometer um erro de escolha – imaginando-se um processo transparente e legítimo –, estão previstos mecanismos de correção, até o terminativo impedimento da autoridade, conforme descrito alhures.

Por mais que atualmente esteja aflorada a sanha persecutória dos mais radicais, deve se ter como baliza que o país não pode ficar à mercê de posições e comportamentos extremados, necessitando que a parcimônia e a temperança norteiem os rumos da nação.

Nesta linha, resta a reflexão acerca da necessidade de respeito às instituições e ao ordenamento jurídico vigente ou, com a devida contextualização – inclusive e especialmente histórica –, a evolução dos dispositivos legais, não bastando somente alvoroçados gritos de guerra que conturbam a pacificação social e prejudicam inexoravelmente nossa Democracia!


José Américo Azevedo. Engenheiro Civil pela Universidade de Uberaba e Advogado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa IDP, em Brasília. Consultor independente e ex colaborador na Defensoria Pública do Distrito Federal. Colunista na plataforma WebAdvocacy. Atualmente presta consultoria para o Instituto Unidos Brasil. Experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, licitações, contratos e concessões públicas atuando por empresas privadas e pelo Governo. Ex-membro de Comissões de Licitações. Relações institucionais e governamentais. Credenciado como perito técnico judicial junto ao TRF 1 Região. Membro da Comissão de Infraestrutura da OAB/DF.


BC no G20: O que vem sendo discutido na Trilha de Finanças?

Leandro Oliveira Leite

O Banco Central do Brasil (BC) tem desempenhado um papel liderança nas discussões da Trilha de Finanças do G20[1], especialmente durante as reuniões realizadas no Rio de Janeiro entre 22 e 26 de julho de 2024[2]. Sob a presidência do Brasil no G20, o BC tem sido um ator importante na condução de debates sobre temas essenciais para o futuro econômico global, como mudanças climáticas, sustentabilidade, inclusão financeira e inovações no sistema financeiro.

A Trilha de Finanças, uma das principais vertentes do G20, concentra-se em assuntos macroeconômicos estratégicos, sendo liderada pelos ministros das Finanças e presidentes dos Bancos Centrais dos países-membros. A coordenação dessa trilha está sob a responsabilidade da Secretária de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda.

Um dos principais focos das discussões na Trilha de Finanças tem sido a sustentabilidade e os riscos climáticos. A presidência brasileira do G20, que adotou o lema “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”, colocou esses temas no topo da agenda, reconhecendo a urgência de enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas.

O BC tem enfatizado a importância de se considerar os impactos econômicos e sociais dos eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes. Além disso, o BC destaca a necessidade de investimentos significativos na transição energética, apesar dos custos adicionais que essa mudança pode acarretar. Esse enfoque reflete a crescente pressão global para integrar questões ambientais e de sustentabilidade nas políticas econômicas e financeiras.

No que diz respeito à mudança climática, a Força-Tarefa para Mobilização Global contra a Mudança do Clima está sendo estabelecida pela presidência brasileira do G20, com reuniões inaugurais ao longo de 2024. Concebida para promover o diálogo entre governos, instituições financeiras e organismos internacionais, a força-tarefa visa alinhar as políticas macroeconômicas e financeiras globais com os objetivos da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e do Acordo de Paris. Essa iniciativa integra um esforço maior de garantir que as ações climáticas estejam no centro das estratégias econômicas e financeiras globais.

Essa força-tarefa terá também a importante missão de consolidar os resultados dos grupos de trabalho e articular respostas coordenadas entre a Trilha de Sherpas[3] e a Trilha de Finanças do G20, reforçando o compromisso dos países-membros em restaurar a confiança na capacidade internacional de enfrentar a emergência climática. Será promovido um painel com economistas notáveis para examinar as plataformas nacionais de transformação ecológica e os arcabouços existentes de políticas públicas, apresentando recomendações que possam guiar os esforços globais nesta área.

Os debates organizados pela força-tarefa buscarão facilitar a troca de experiências entre os países-membros e identificar pontos de convergência na formulação e implementação de planos voltados para a transformação econômica e a sustentabilidade. Um ponto central será o alinhamento do setor financeiro às metas de longo prazo do Acordo de Paris, com a participação de governos, bancos centrais, reguladores financeiros, bancos comerciais e de desenvolvimento, instituições financeiras internacionais, investidores institucionais e outros atores do mercado financeiro. O objetivo é delinear estratégias colaborativas, que incluam abordagens regulatórias e compromissos voluntários, para acelerar a mobilização de recursos destinados ao desenvolvimento sustentável e ao combate às mudanças climáticas.

As reuniões da Trilha de Finanças estão programadas para acontecer em várias cidades brasileiras ao longo de 2024, incluindo Brasília e São Paulo, refletindo o compromisso do Brasil em sediar discussões de alto nível que impactam o sistema financeiro global. A culminação dessas discussões ocorrerá na Cúpula de Líderes do G20, marcada para novembro de 2024, no Rio de Janeiro, onde os avanços das iniciativas discutidas durante o ano serão apresentados, e novos rumos para a governança financeira global serão traçados.

Os demais grupos técnicos da Trilha de Finanças também desempenham papéis essenciais nas discussões. O grupo de Arquitetura Financeira Internacional, por exemplo, criado após a crise financeira global de 2008/2009, tem como foco a promoção de uma arquitetura financeira global mais estável e resiliente. Já o grupo de Economia Global monitora os riscos e incertezas que impactam o cenário econômico mundial, enquanto o grupo de Inclusão Financeira busca melhorar o acesso e a qualidade dos serviços financeiros formais em todo o mundo. Outros grupos discutem temas como Tributação Internacional, infraestrutura e inovação no sistema financeiro.

Essa articulação reflete o papel do BC na construção de um ambiente financeiro mais robusto e resiliente, capaz de lidar com os desafios impostos pelas mudanças climáticas, ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento sustentável. Com isso, o BC contribui para moldar as discussões globais e para garantir que as decisões tomadas no G20 estejam alinhadas com a necessidade de uma economia mais verde e inclusiva.

A atuação do BC no contexto do G20 demonstra um compromisso claro com a incorporação de questões ambientais nas diretrizes financeiras globais. Ao liderar essas discussões, o BC promove uma abordagem que considera os impactos econômicos das mudanças climáticas e busca formas de mitigar esses riscos, contribuindo para um futuro mais sustentável.

As discussões sobre sustentabilidade e mudanças climáticas, lideradas pelo BC no G20, têm implicações diretas para o mercado financeiro. A crescente ênfase em fatores ambientais, sociais e de governança (ESG) está moldando o futuro das finanças globais. Com o BC desempenhando um papel de liderança nessas discussões, o Brasil se posiciona como um líder na integração de práticas sustentáveis no sistema financeiro.

As possíveis mudanças regulatórias decorrentes dessas discussões podem impactar significativamente os mercados. Empresas que se adaptarem às novas exigências terão vantagens competitivas, enquanto aquelas que não se ajustarem poderão enfrentar desafios. Além disso, o foco do BC em práticas sustentáveis pode atrair mais investimentos estrangeiros, especialmente aqueles direcionados a projetos que promovem a transição para uma economia de baixo carbono.

Outro tema central abordado na Trilha de Finanças foi a inclusão financeira. O BC tem destacado que, para ser efetiva, a inclusão financeira deve ir além da simples abertura de contas bancárias. A qualidade da inclusão, que envolve o bem-estar financeiro dos indivíduos, é uma prioridade. Para isso, o BC tem investido em iniciativas de educação financeira e em programas que monitoram e medem os resultados das políticas de inclusão financeira.

Por meio do Programa Aprender Valor, por exemplo, o BC busca melhorar a educação financeira nas escolas, ajudando a formar uma população mais consciente financeiramente. Esse foco em educação financeira é visto como essencial para promover uma maior estabilidade econômica a longo prazo, já que indivíduos mais bem informados tendem a tomar decisões financeiras mais sólidas.

As inovações no sistema financeiro também foram um tópico de destaque nas discussões do G20. O BC está promovendo reformas estruturais importantes por meio de iniciativas como o Pix, o Open Finance[4] e o desenvolvimento da Drex, a moeda digital brasileira. Essas inovações visam aumentar a eficiência, a inclusão e a transparência no sistema financeiro do Brasil, posicionando o país como um líder em inovação financeira global.

Entretanto, desafios como a harmonização de regras internacionais e a governança dos sistemas de pagamento ainda precisam ser enfrentados. O G20 tem um papel fundamental na promoção de condições de concorrência equitativas e na criação de um conjunto mínimo de regras para os pagamentos transfronteiriços, essenciais para a integração dos sistemas de pagamento globais.

O Banco Central do Brasil, através de sua atuação nas discussões da Trilha de Finanças do G20, tem demonstrado um forte compromisso com a sustentabilidade, a inclusão financeira e a inovação. Ao liderar essas discussões, o BC reforça a importância desses temas no cenário global, ao mesmo tempo em que prepara o mercado financeiro brasileiro para um futuro mais sustentável e competitivo. As discussões continuarão até a Cúpula de Líderes do G20 em novembro de 2024, no Rio de Janeiro, onde os avanços alcançados ao longo do ano serão consolidados e novas direções serão definidas para o futuro da governança financeira global.


[1] https://mkt.comunicacao.bcb.gov.br/campaigns/xo592qsy7tb3c/track-url/cw44517kp7c2c/43fb59f8cdebbca0d9b96740ec845fb1912b76a0

[2] https://mkt.comunicacao.bcb.gov.br/campaigns/xo592qsy7tb3c/track-url/cw44517kp7c2c/2de8b85f5c46171afa950abf63859e1bdb34d4c7

[3] A trilha de Sherpas (comandada pelo Itamaraty, trata de temas como emprego, educação e saúde) tem uma atuação política, reunião dos emissários pessoais dos líderes do G20. Já a trilha de finanças trata de assuntos macroeconômicos e é liderada pelos ministros das finanças e presidentes dos bancos centrais dos países-membros.

[4] O Open Finance, ou sistema financeiro aberto, é a possibilidade de clientes de produtos e serviços financeiros permitirem o compartilhamento de suas informações entre diferentes instituições autorizadas pelo Banco Central e a movimentação de suas contas bancárias a partir de diferentes plataformas e não apenas pelo aplicativo ou site do banco, de forma segura, ágil e conveniente. https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/openfinance


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


Simplificação da linguagem como medida de maior acesso à justiça

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Quando falamos em acesso à justiça, qual a primeira coisa que nos vem à mente? Sem dúvida, ver resguardados os nossos direitos, por intermédio do Poder Judiciário, seja arcando com os custos ou de forma gratuita? Ter a disponibilização de um advogado para nosso auxílio pelo Estado, de forma gratuita? Ter um órgão que, independentemente de outras esferas, analisa o nosso pleito de forma imparcial?

Sem dúvida que, ter garantidos todos estes pontos, significa verdadeiro acesso à justiça. No entanto, quando presente em uma audiência ou, ainda, diante de uma decisão proferida pelo judiciário ou órgãos administrativos especializados, a dificuldade na compreensão do que ali está sendo discutido ou decidido, te faz, de fato, sentir que essa acessibilidade existe? Ou ainda, quando auxiliado por um advogado, a linguagem por ele utilizada é, no todo, clara e acessível?

Vivemos em um país no qual o idioma oficial é o português. No entanto, a utilização de um palavreado técnico e excessivamente rebuscado pelos operadores do direito, popularmente conhecido como “juridiquês”, que inclui, inclusive, diversos termos em latim, prejudica o acesso à justiça, na medida em que é de difícil compreensão por aqueles que não atuam na área jurídica. Há de se dizer que determinados textos chegam a ser incompreensíveis, o que nos faz recordar da primeira vez que abrimos um livro de direito na faculdade, na qual entramos preparados e instruídos para as lições que seriam aprendidas, mas, ainda assim, nada do que ali estava escrito parecia fazer o menor sentido.

Neste cenário, diversos desses termos são utilizados, dificultando sobremaneira a interpretação e compreensão dos textos jurídicos, tais como a petição inicial é chamada de exordial; a denúncia virou exordial increpatória; a apresentação de um recurso, diz-se interposição; a repetição de uma situação jurídica, bis in idem; para apenas argumentar, utiliza-se ad argumentandum tantum; para normas que se aplicam a situações passadas, diz-se ter efeito ex tunc; para INSS[1], autarquia ancilar; a partir do início, diz-se  ab initio; para com todos, em relação a todos, de caráter geral, erga omnes, dentre outros. Assim, pergunta-se, qual a utilidade desta linguagem que restringe o acesso à justiça e cuja compreensão fica restrita apenas aos operadores do direito? Como afirmar, diante desta situação que o acesso à justiça é não só reconhecido, mas, de fato, disponibilizado à todos os cidadãos?

O Professor José Barcelos de Souza, em seu artigo “Linguagem jurídica[2], traz dois exemplos que ilustram esta dificuldade, encontrada pelas pessoas leigas de compreender a linguagem rebuscada:

“Vou citar dois casos curiosos. Um ocorrido nos Estados Unidos, que li no interessante livro The art of cross-examinatoin (A arte de inquirir testemunhas).

Querendo perguntar à testemunha onde ela morava, o advogado lhe indagou: Where do you reside? A testemunha não entendia, e o advogado repetia, elevava a voz, escandia as sílabas, caprichava no “reside”, e nada. Então o oficial de justiça soprou-lhe aos ouvidos: “Pergunte assim, Where do you live?”. Não deu outra. A testemunha respondeu prontamente: moro na rua tal, número tal.

O outro fato – a mim contado por testemunha ocular da história – aconteceu aqui mesmo em Minas Gerais, protagonizado por bom advogado, que se tornou depois desembargador.

Desejando que a testemunha informasse se o tiro foi dado durante a luta da vítima com o réu, o advogado perguntou assim: “O tiro foi antes, no meio ou depois da refrega?”. A testemunha engolia em seco, mostrava-se inibida, ficou vermelha, mas não respondia. Indagada se entendera a pergunta, e instada (opa!) a responder, explicou: “Não foi antes nem depois; foi entre a refrega e o umbigo”. Uma gargalhada geral ecoou no salão.

O pior foi que a sessão teve de ser encerrada antes de terminar o julgamento. Porque, tudo já acalmado, quando menos se esperava, quando parecia que tudo corria normalmente, alguém iniciava uma risadinha, que acabava contagiando todo o auditório.”

Necessário se faz que o conhecimento do dia a dia dos processos, assim como das respectivas decisões, seja levado para além destes profissionais especializados, tornando a comunicação com a sociedade mais abrangente. Neste sentido, diversas medidas têm sido adotadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de que seja adotada uma linguagem mais simples, direta e compreensível na produção das decisões judiciais e na comunicação geral do Judiciário, e dos advogados, tornando a justiça, então, mais acessível à toda população.

Uma destas medidas, foi o lançamento, pelo CNJ e STF, em dezembro de 2023, com base nos princípios constitucionais e nos instrumentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, as Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça da Pessoas em Condição de Vulnerabilidade e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes), do Pacto Nacional pela Linguagem Simples do Judiciário.

De acordo com o Presidente do CNJ e STF, Ministro Luís Roberto Barroso, “[C] com muita frequência, não somos compreendidos. Boa parte das críticas ao Judiciário decorre da incompreensão sobre o que estamos decidindo. A linguagem codificada, a linguagem hermética e inacessível, acaba sendo um instrumento de poder, um instrumento de exclusão das pessoas que não possuem aquele conhecimento e, portanto, não podem participar do debate” e completou “[E] e quase tudo que decidimos pode ser explicado em uma linguagem simples, que as pessoas consigam entender. Ainda que para discordar, mas para discordar daquilo que entenderem”[3].

Ainda de acordo com Barroso, a linguagem simples na Justiça está relacionada ao fortalecimento da democracia, já que promove a igualdade de acesso à informação e à participação de todos os indivíduos no sistema jurídico, devendo ser um compromisso a ser assumido por todos os magistrados[4]. Ressalte-se que, considerando que a linguagem simples pressupõe a acessibilidade, a Pacto dispõe também sobre outras formas de aprimoramento da inclusão, como o uso, sempre que possível, da Língua Brasileira de Sinais (Libras), da audiodescrição, dentre outras medidas.

De acordo com o Pacto, a atuação dos tribunais é articulada por meio de cinco eixos[5] [6] [7], abaixo especificados. De modo a estimular a utilização da linguagem simples pelos tribunais, o CNJ instituiu o Selo da Linguagem Simples, que será concedido anualmente, sempre em outubro, mês em que se comemora o Dia Internacional da Linguagem Simples (no dia 13).

  • Primeiro: diz respeito ao uso da linguagem simples e direta nos documentos judiciais, deixando de lado expressões técnicas desnecessárias, assim como à criação de manuais e guias com objetivo de orientar a população sobre o significado de expressões técnicas indispensáveis nos textos jurídicos;
  • Segundo: incentiva a utilização de versões resumidas de votos nas sessões de julgamento, maior brevidade de pronunciamento em eventos do Judiciário e a criação de protocolos para eventos, que evitem formalidades excessivas;
  • Terceiro: formação (inicial e continuada) dos magistrados (as) e servidores (as) no sentido de utilizar a linguagem simples, assim como promoção de campanhas de amplo alcance visando a conscientização aceca da importância do acesso à justiça;
  • Quarto: incentivo no desenvolvimento de plataformas com interfaces intuitivas e informações claras, assim como a utilização de recursos de áudio, vídeos explicativos e traduções para facilitar a compreensão dos documentos e informações do Judiciário.
  • Quinto: promoção de articulação interinstitucional e social por meio de diversas ações, como criação de uma rede de defesa dos direitos de acesso à Justiça com comunicação simples e clara; compartilhamento de boas práticas e recursos de linguagem simples; criação de programas de treinamento conjunto de servidores para a promoção de comunicação acessível e direta; e estabelecimento de parcerias com universidades, veículos de comunicação ou influenciadores digitais para cooperação técnica e desenvolvimento de protocolos de simplificação da linguagem.

No mesmo sentido que o CNJ e o STF, e antes mesmo do lançamento do Pacto, medidas de acessibilidade foram adotadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[8], tais como, (i) em 2020, sessões do STJ passaram a ser transmitidas pelo Youtube, com tradução simultânea dos julgamentos para Libras e, atualmente, há a possibilidade de habilitação de legendas; (ii) em 2021, criação do balcão virtual, aperfeiçoado em 2023 com a adoção de recursos de linguagem acessível à pessoas com deficiência; (iii) em 2022, criação do Glossário STJ, que explica, de forma rápida e simples, o significado de expressões jurídicas utilizadas nos textos do noticiário. De acordo com o titular da Secretaria Judiciária do STJ, Augusto Gentil, no que concerne ao balcão virtual “a iniciativa representa dignidade para os usuários com deficiência, que passam a poder usufruir do serviço público e buscar informações sobre o próprio processo com independência e autonomia“. No mesmo sentido, entendemos que compreender aquilo que está ocorrendo no processo, ou, ainda, o que está sendo dito ou escrito, também é uma maneira de garantir a dignidade à população como um todo.

Desta maneira, a linguagem simples deverá estar em todos os documentos, comunicados e decisões proferidas pelo judiciário. Estas medidas, ao nosso ver, devem servir de norte para a simplificação da linguagem utilizada, também, em outras esferas, como a administrativa, na qual há autarquias especializadas, cujo uso da linguagem técnica, por vezes, afasta a compreensão por pessoas leigas, assim como por todos os operadores do direito.

As medidas para simplificação da linguagem, são fatores de empoderamento e inclusão social, reduzem as desigualdades, garantem igualdade de oportunidades, já que eliminam políticas e costumes que confrontam com estes objetivos. Além disso, o entendimento da tramitação do processo, gera a crença e a aproximação da população em relação ao Judiciário, fortalecendo a instituição. No mais, ainda, a compreensão das decisões, tanto judiciais, quanto administrativas, garante sua maior efetividade, na medida em que entendendo aquilo que foi decidido e a sua extensão, mais fácil será para a pessoa cumprir o comando nela emanado, ou discordar dele. Como cumprir ou obedecer, ou ainda, questionar aquilo que não se compreende?

Há de se considerar, que cada ciência possui sua própria terminologia, de modo a dar aos seus enunciados maior precisão e certeza. No entanto, este propósito pode também ser alcançado, com maior amplitude, optando-se por palavras de mais fácil compreensão, zelando, sempre, pelos seus significados, e mantendo-se, desta forma, seu caráter de instrumento de comunicação.

Bibliografia:

CNJ. Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. Disponível em:

https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf. Acesso 02.08.2024.

CNJ. Portaria Nº 351 de 04/12/2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5378#:~:text=I%20%E2%80%93%20simplifica%C3%A7%C3%A3o%20da%20linguagem%20nos,t%C3%A9cnicas%20indispens%C3%A1veis%20nos%20textos%20jur%C3%ADdicos. Acesso 02.08.2024.

SOUZA, José Barcelos de. Linguagem jurídica. Disponível em:

https://www.migalhas.com.br/depeso/12908/linguagem-juridica. Acesso em 02.08.2024.

STF. Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em:

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade. Acesso em 02.08.2024.

STJ. Notícias STJ: STJ na luta contra o juridiquês e por uma comunicação mais eficiente com a sociedade. Publicado 24.03.2024. Disponível em:

 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/24032024-STJ-na-luta-contra-o-juridiques-e-por-uma-comunicacao-mais-eficiente-com-a-sociedade.aspx. Acesso 02.08.2024.


[1] Instituto Nacional do Seguro Social.

[2] SOUZA, José Barcelos de. Linguagem jurídica. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/12908/linguagem-juridica . Acesso em 02.08.2024.

[3] In Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade . Acesso em 02.08.2024.

[4] “Todos os tribunais envolvidos assumem o compromisso de, sem negligenciar a boa técnica jurídica, estimular as juízas e os juízes e setores técnicos a: a. eliminar termos excessivamente formais e dispensáveis à compreensão do conteúdo a ser transmitido; b. adotar linguagem direta e concisa nos documentos, comunicados públicos, despachos, decisões, sentenças, votos e acórdãos; c. explicar, sempre que possível, o impacto da decisão ou do julgamento na vida de cada pessoa e da sociedade brasileira; d. utilizar versão resumida dos votos nas sessões de julgamento, sem prejuízo da juntada de versão ampliada nos processos judiciais; e. fomentar pronunciamentos objetivos e breves nos eventos organizados pelo Poder Judiciário; f. reformular protocolos de eventos, dispensando, sempre que possível, formalidades excessivas; g. utilizar linguagem acessível à pessoa com deficiência (Libras, audiodescrição e outras) e respeitosa à dignidade de toda a sociedade.” – In Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, pág. 4. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf . Acesso 02.08.2024.

[5] In Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade . Acesso em 02.08.2024.

[6] CNJ. Portaria Nº 351 de 04/12/2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5378#:~:text=I%20%E2%80%93%20simplifica%C3%A7%C3%A3o%20da%20linguagem%20nos,t%C3%A9cnicas%20indispens%C3%A1veis%20nos%20textos%20jur%C3%ADdicos. Acesso 02.08.2024.

[7] CNJ. Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, pág. 5 a 8. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf . Acesso 02.08.2024.

[8] In Notícias STJ: STJ na luta contra o juridiquês e por uma comunicação mais eficiente com a sociedade. Publicado 24.03.2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/24032024-STJ-na-luta-contra-o-juridiques-e-por-uma-comunicacao-mais-eficiente-com-a-sociedade.aspx . Acesso 02.08.2024.


Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Um conselho ao Conselho Federal de Medicina

Vanessa Vilela Berbel

Depois de sua desastrosa atuação durante a pandemia do Covid-19, o Conselho Federal de Medicina (CFM) investe, agora, nas pautas conservadoras, causando desconforto inclusive entre os membros da classe representada.

A Comissão Parlamentar de Inquérito do Covid-19 afirmou que a postura do CFM quanto à época era “temerária, criminosa e antiética”. Durante o período pandêmico, o CFM atuou para afastar qualquer condenação ética a médicos e médicas que prescreveram cloroquina e hidroxicloroquina, atuando inclusive para legitimar a prática, como se viu do Parecer nº 04/2020, no qual o Conselho estabeleceu critérios e condições para a prescrição dos medicamentos em pacientes com diagnóstico confirmado da doença. Essas atitudes, no mínimo irresponsáveis, levaram ao pedido de indiciamento do então presidente da entidade, Mauro Luiz de Britto Ribeiro.

Incansável em levar adiante sua pauta ideológica, o Conselho Federal de Medicina também colocou em sua página na internet uma enquete para aferir a opinião de médicos sobre a vacinação contra a Covid-19 em crianças, valendo-se de um relatório que pareceu mais desenhado para lançar dúvidas sobre a imunização e estimular a recusa paterna, do que para a coleta de opinião.

Não creio que a atuação do Conselho Federal de Medicina quanto aos direitos das mulheres nos últimos anos possa ter adjetivação menos severa do que a conferida pela CPI da Covid.

A desastrosa atuação do órgão nos últimos eventos vem gerando polêmica diária nos noticiários e suas investidas conservadoras não parecem recuar, fato que  o tornou um dos principais atores na “guerra santa” travada pelo chamado conservadorismo de extrema direita contra a garantia e proteção das liberdades femininas.

Vale ressaltar que o Conselho não é um sindicato, mas sim uma autarquia federal que tem como papel regular a aplicação do Código de Ética Médica e os registros de medicina. Ele tem uma natureza híbrida. É, ao mesmo tempo, uma entidade que zela por interesses de classe e uma autarquia com poderes normativos.

Contudo, em sua atividade regulatória, o CFM não tem como missão preservar a autonomia irrestrita do médico, mas sim balizá-la pela ciência e as boas práticas. Essa é a função da entidade: criar as molduras nas quais deve se inserir a autonomia profissional, forjadas na cientificidade e não na polarização política e ideológica.

A isenção ideológica que se deve ter na pauta regulatória não se evidencia em algumas das atividades  recentes do CFM, cuja expressiva parcela de membros é filiada a partidos políticos, conforme levantamento realizado em 08 de fevereiro de 2021 por Leonardo Martins, do Intercept[1].

Dos membros analisados pelo Intercept, 10 continuam ativos no Conselho e são filiados a partidos políticos majoritariamente de direita ou centro-direita, como PSL, DEM, Solidariedade, Podemos e Novo. Dentre os membros filiados a partidos políticos ainda ativos no CFM, tem-se:

Donizetti Dimer Giamberardino Filho – conselheiro federal pelo estado do Paraná e 1º vice-presidente – PV

Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti – conselheiro federal pelo estado de Alagoas e 3º vice-presidente – PSL

José Hiran da Silva Gallo – conselheiro federal pelo estado de Rondônia e tesoureiro – MDB

Salomão Rodrigues Filho – conselheiro federal pelo estado de Goiás e 2º tesoureiro – DEM

Florentino de Araújo Cardoso Filho – conselheiro federal pelo estado do Ceará – NOVO

Maria Teresa Renó Gonçalves – conselheira federal pelo estado do Amapá – Democracia Cristã

Júlio Cesar Vieira Braga – conselheiro federal pelo estado da Bahia  – NOVO

Jeancarlo Fernandes Cavalcante – conselheiro federal pelo estado do Rio Grande do Norte – Solidariedade

Ricardo Scandian de Melo – conselheiro federal pelo estado de Sergipe – NOVO

Estevam Rivello Alves – conselheiro federal pelo estado do Tocatins – Podemos

Atualmente, dos 28 Conselheiros do CFM, apenas 08 são mulheres, ou seja, menos de 30%. Aparentemente, nenhum negro, nenhum representante trans ou membro da comunidade LGBTQIA+. O grupo que hoje titulariza as cadeiras da entidade é majoritariamente branco e hétero, pertencente a uma classe econômica privilegiada.

Sem falar, ainda, de membros notoriamente polêmicos, como o ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente, tido como integrante da ala ideológica do governo de Jair Bolsonaro, que acumulava o cargo de conselheiro do CFM e de secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde.

Não à toa, foi ele, Raphael, o relator da Resolução do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, o Cremerj, de número 296/2019, que obrigava a notificação dos estupros atendidos por médicos aos órgãos policiais, dificultando o acesso de mulher que optam por não denunciar a agressão naquele momento. Vale lembrar que denunciar um estupro não é tão simples quanto parece; em muitos casos a vítima não possui condições de abrigamento, não conta com serviços públicos ou rede de apoio para que possa estar segura de eventuais investidas do agressor, muitas vezes seu pai, irmão ou membro familiar.

A posição ideológica de membros do Conselho filiados a partidos políticos ou declaradamente alinhados à pauta conservadora, acena como explicação plausível para algumas das posições retrógradas adotadas pela entidade no último biênio. Relembro alguns dos episódios mais marcantes de 2023-2024.

Em novembro de 2023, o CFM realizou o Simpósio “Violência Obstétrica”, no auditório das sua sede em Belo Horizonte, durante o qual, dentre outras questões polêmicas, condenou o uso termo por entender que, nas palavras do coordenador Victor Hugo, “estigmatiza procedimentos operatórios, discriminando a obstetrícia praticada por médicos”.

Na mesma linha, a coordenadora jurídica do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG), Vanessa Lima Andrade, afirmou que a expressão “violência obstétrica” é inadequada pois criminaliza o ato obstétrico, o que se contrapõe ao princípio jurídico da presunção de inocência. As falas, travestidas da discussão de nomenclatura, objetivam,  em verdade, reforçar a a postura histórica do CFM sobre o tema, que equipara a violência obstétrica à violência contra o obstetra. Em síntese, a mulher-paciente, de vítima, se torna a agressora.

Não se trata de negar o saber do profissional da medicina para prescrever o correto tratamento e método a ser empregado no parto. O que se questiona aqui é a postura do CFM de  usar o tema da violência obstétrica de forma enviesada, como um mote para a defesa irrestrita da autonomia do médico e, até, para o endosso de outras pautas conservadoras.

O tema da violência obstétrica já havia sido empregado pelo CFM de forma enviesada para a defesa do chamado “estatuto do embrião humano” em 2018, quando da edição do Parecer CFM nº 32/2018, referente ao Processo-consulta CFM nº 22/2018, no qual o órgão respondeu a uma consulta originária do CRM-DF sobre a suposta “proliferação” de leis sobre “violência obstétrica”.

Sobre o tema, Sérgio Rego, médico e pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) fez minuciosa analise do Parecer em artigo publicado em 28/12/2018 no site da Fiocruz. Longe do objetivo de discutir a atenção à parturiente, o documento surpreendeu, nas palavras de Rego, pelo “descompasso entre o que está sendo defendido neste Parecer e o que esperamos de uma instituição tão relevante como é o CFM, que se supõe esteja em sintonia com o seu tempo e as necessidades sociais representadas pelas mudanças contemporâneas”.[2]

Em 2024, novas polêmicas envolvem o CFM e os direitos das mulheres. Em abril, o CFM emitiu uma resolução que veta o uso de assistolia fetal em abortos resultantes de estupro após a 22ª semana de gravidez. A medida foi alvo de uma ação do PSOL no Supremo Tribunal Federal e foi suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes.

Há  pouco mais de um mês, o CFM volta a se envolver em polêmicas. Desta vez, José Hiran da Silva Gallo, presidente do Conselho de Federal de Medicina (CFM), após encontro com o Ministro Alexandre de Moraes, na saída do Supremo Tribunal Federal falou a jornalistas: “O procedimento da assistolia fetal é cruel para o feto. Nós viemos explicar para ele [Moraes] como é essa técnica. Essa técnica é feticídio”.

José Hiran já havia se envolvido em polêmica ao afirmar que a “autonomia da mulher” deve ser limitada quando se fala em aborto legal após a 22ª semana. “A autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós, de proteger”, foram as palavras do Presidente do CFM, como relembrou matéria da CartaCapital.[3]

O médico Arruda Bastos, coordenador da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), critica a série de posições do presidente do CFM, protagonizando a oposição ao conservadorismo que ele denominou de “resgate do Conselho”.

Trazemos esse tema para relembrar os leituras da indispensável atenção à eleição dos Conselheiros do CFM, que acontecerá em agosto e terá a capacidade de renovar, por meio da eleição, seus quadros. É fundamental que o órgão reflita a diversidade cultural e ideológica da sociedade brasileira, formada por pessoas que vão muito além das classes sociais atualmente representadas.

Contudo, com as barreiras de entrada ainda existentes para que um jovem ou uma jovem negra ou trans possa ter acesso aos cursos de medicina deste país, aparentemente a ausência de alinhamento do Conselho com as políticas públicas necessárias à melhoria da saúde e direitos das mulheres e meninas parece  ser uma realidade que perdurará.


[1] Leonardo Martins. https://www.intercept.com.br/2021/02/08/raphael-camara-secretario-de-pazuello-e-elo-entre-bolsonarismo-e-cfm/

[2] Rego, Sérgio. Violência obstétrica, 28/12/2018. In: https://agencia.fiocruz.br/violencia-obstetrica

[3] Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-podemos-aceitar-a-resposta-de-medicos-progressistas-ao-presidente-do-cfm/.


Vanessa Vilela Berbel. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (2006), mestrado em Filosofia Teoria Geral Direito pela Universidade de São Paulo (2012) e doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2018). Atualmente é professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, disciplina de Direito Civil. Atuou, durante os anos de 2022 a 2024, como servidora na Procuradoria Federal Especializada do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), colaborando com o enfrentamento às infrações à ordem econômica e com a proteção da defesa da concorrência. Coordenou, em nível nacional, a política pública de enfrentamento à violência contra a mulher, Ligue 180, ocupando cargo nível DAS 1.04 (2020 a 2022). Ex-professora adjunta do Instituto Federal do Paraná, Faculdade de Direito – Campus Palmas, tendo sido aprovada em primeiro lugar no concurso de provas e títulos. Possui experiência como advogada em escritório de expressão nacional e internacional. Autora de artigos, capítulos de livro e palestras. Suas pesquisas abordam os temas: desenvolvimento econômico, regulação, gênero e concorrência.


A Urgente Necessidade de Regulamentação da Lei 14.758/2023: Garantindo a Efetividade na Prevenção e Controle do Câncer

Andrey Vilas Boas de Freitas

Introdução

A Lei 14.758, publicada em 20 de dezembro de 2023, institui a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Câncer. Com um período de “vacatio legis” de 180 dias, esperava-se que a regulamentação da lei ocorresse até junho de 2024. No entanto, já se passaram 223 dias e ainda não há regulamentação efetiva por parte do Ministério da Saúde. Esse atraso compromete a implementação das políticas previstas e a garantia de atendimento adequado aos pacientes oncológicos no Brasil. Este artigo destaca os principais pontos da Lei 14.758 que necessitam de imediata regulamentação e a importância de flexibilidade na adaptação das normativas conforme as realidades locais.

  1. Da definição de critérios e procedimentos para otimizar a navegação dos pacientes

A “navegação do paciente” refere-se a um sistema de acompanhamento personalizado para pacientes com doenças complexas, como o câncer, com o objetivo de facilitar o acesso ao diagnóstico, tratamento e cuidados contínuos. O conceito foi desenvolvido para ajudar os pacientes a superarem as barreiras que dificultam a obtenção de cuidados médicos adequados e oportunos. Envolve a coordenação entre diferentes profissionais e serviços de saúde para garantir que o paciente receba cuidados contínuos e integrados. Isso pode incluir a organização de consultas com especialistas, a coordenação de tratamentos em diferentes locais e a comunicação entre os diferentes membros da equipe de saúde.

A regulamentação deve definir os critérios de seleção e capacitação dos navegadores de saúde[1], suas atribuições e responsabilidades, incluindo o acompanhamento do paciente desde o diagnóstico até o término do tratamento, além dos mecanismos de monitoramento e avaliação do programa para garantir sua eficiência e eficácia.

A ideia é de que os navegadores ajudem os pacientes a superarem barreiras que podem incluir dificuldades financeiras, problemas de transporte, falta de informação sobre a doença e o tratamento, barreiras linguísticas e culturais e obstáculos administrativos. Nesse sentido, sua ação envolve o fornecimento de informações sobre a doença, opções de tratamento e recursos de apoio disponíveis, ajudando os pacientes a tomarem decisões informadas sobre seu cuidado. Também cabe aos navegadores a oferta de suporte emocional e prático para ajudar os pacientes a lidarem com o impacto da doença.

Além disso, é papel dos navegadores o monitoramento do progresso do paciente ao longo do tratamento e a avaliação da eficácia do plano de cuidados, de modo a permitir a realização de ajustes conforme necessário. Essa atividade está centrada, portanto, na coleta de dados para identificar áreas de melhoria e garantir que o paciente esteja recebendo o melhor atendimento possível.

A navegação do paciente é uma abordagem essencial para melhorar a qualidade e a eficiência dos cuidados de saúde para pacientes com câncer. Ao fornecer suporte personalizado, superar barreiras, coordenar cuidados e monitorar o progresso, os navegadores de saúde ajudam a garantir que os pacientes recebam o tratamento adequado de maneira oportuna e eficaz. A implementação de um programa robusto de navegação do paciente, conforme previsto pela Lei 14.758/2023, é fundamental para alcançar os objetivos da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e melhorar a qualidade de vida dos pacientes oncológicos no Brasil.

Exemplos de Navegação do Paciente em Oncologia

Diagnóstico Rápido e Tratamento Inicial

Um paciente diagnosticado com câncer de mama pode ser designado a um navegador de saúde que ajuda a agendar rapidamente consultas com oncologistas, exames de imagem e biópsias. O navegador também pode ajudar o paciente a entender os resultados dos exames e discutir opções de tratamento.

Acesso a Tratamentos Especializados

Um paciente em uma área rural pode enfrentar dificuldades para acessar tratamentos especializados. O navegador pode organizar transporte para o paciente até um centro oncológico regional, coordenar consultas com especialistas e facilitar o uso de telemedicina para consultas de acompanhamento.

Suporte durante o Tratamento

Durante a quimioterapia, o navegador pode ajudar o paciente a gerenciar os efeitos colaterais, pode fornecer informações sobre nutrição e cuidados de suporte e mesmo organizar serviços de apoio, como aconselhamento psicológico ou grupos de apoio.

Transição para Cuidados Pós-Tratamento

Após o tratamento, o navegador pode ajudar o paciente a fazer a transição para os cuidados de sobrevivência, coordenando consultas de acompanhamento, exames regulares de monitoramento e programas de reabilitação.

  • Das fontes de financiamento

A implementação efetiva da Lei 14.758/2023 depende de um financiamento robusto e sustentável. A regulamentação das fontes de financiamento é crucial para garantir que os recursos necessários estejam disponíveis e sejam utilizados de forma eficiente e equitativa. A falta de clareza e transparência sobre as fontes de financiamento pode levar a desigualdades na distribuição de recursos, comprometendo a efetividade das políticas de prevenção e controle do câncer.

A regulamentação deve definir claramente as fontes de financiamento, que podem incluir orçamento federal, estadual e municipal, além de parcerias com a iniciativa privada e organizações não-governamentais. Isso assegura que todas as partes interessadas estejam cientes de suas responsabilidades e compromissos financeiros.

A regulamentação deve ainda estabelecer critérios claros e justos para a distribuição dos recursos financeiros. Isso pode incluir a avaliação das necessidades locais, considerando fatores como a incidência de câncer, a infraestrutura de saúde existente, a disponibilidade de profissionais qualificados e a capacidade de implementação das políticas.

Por exemplo, municípios com alta incidência de câncer e infraestrutura limitada devem receber mais recursos para desenvolver suas capacidades. Em contraste, grandes centros urbanos com recursos adequados podem focar em programas de inovação e aprimoramento da qualidade dos cuidados.

Importante destacar também a necessidade de a regulamentação incluir mecanismos de monitoramento e transparência para garantir que os recursos sejam utilizados de maneira eficaz e ética. Isso pode envolver auditorias regulares, relatórios públicos sobre a alocação e uso dos recursos, e a participação da sociedade civil no monitoramento das políticas de financiamento.

Uma via interessante seria estimular parcerias com o setor privado para complementar o financiamento público, trazendo investimentos adicionais e inovações tecnológicas para o sistema de saúde. Empresas farmacêuticas, por exemplo, podem colaborar em programas de acesso expandido a medicamentos oncológicos, enquanto organizações não-governamentais podem oferecer apoio logístico e educacional.

  • Dos protocolos clínicos

A uniformização dos tratamentos oncológicos é crucial para garantir a qualidade do atendimento. A regulamentação deve definir protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas baseadas em evidências científicas e estabelecer a obrigatoriedade da adoção desses protocolos por todas as unidades de saúde, públicas e privadas.

Além de garantir a qualidade, a adoção de protocolos clínicos facilita o atendimento de pacientes que, eventualmente, precisem se deslocar para municípios diferentes daqueles nos quais iniciaram seu tratamento.

Vale lembrar também que, para garantir a qualidade do atendimento, é fundamental investir na formação continuada dos profissionais de saúde. A regulamentação deve estabelecer programas de capacitação em oncologia para médicos, enfermeiros e demais profissionais envolvidos no cuidado dos pacientes, além de promover parcerias com universidades e instituições de ensino para o desenvolvimento de cursos e treinamentos especializados.

É preciso ainda buscar a estruturação de uma rede de assistência oncológica integrada e eficiente, abrangendo a definição de centros de referência em oncologia, garantindo acesso a tratamentos especializados, e a criação de mecanismos de regulação e encaminhamento de pacientes, evitando longas filas de espera e deslocamentos desnecessários.

  • Da necessária adaptação da política à diversidade regional e local

A diversidade regional do Brasil exige que a regulamentação da Lei 14.758/2023 seja flexível o suficiente para se adaptar às diferentes realidades locais. Municípios e estados possuem diferentes níveis de infraestrutura e disponibilidade de profissionais de saúde. A regulamentação deve permitir que cada local adapte as normativas conforme suas capacidades, garantindo a implementação eficiente da política em todo o território nacional.

Estimular parcerias entre governos locais, instituições de ensino, organizações não-governamentais e a iniciativa privada pode acelerar a implementação das políticas e melhorar a qualidade do atendimento. Incentivar o uso de tecnologias, como telemedicina e sistemas de informação em saúde, é fundamental para superar barreiras geográficas e otimizar o atendimento aos pacientes oncológicos.

A diversidade do sistema de saúde brasileiro torna imperativo que a regulamentação seja adaptável às necessidades e capacidades locais. Por exemplo, em grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, a infraestrutura de saúde é mais desenvolvida, com a presença de diversos hospitais especializados em oncologia, tecnologias avançadas e uma quantidade significativa de profissionais qualificados. Nesse contexto, a implementação dos programas previstos pela lei pode ser mais rápida e abrangente.

Por outro lado, em municípios menores e regiões mais remotas, como no interior do Amazonas ou no sertão nordestino, a realidade é bem diferente. A escassez de profissionais de saúde especializados, equipamentos médicos adequados e infraestrutura hospitalar torna a implementação da política de prevenção e controle do câncer um desafio muito maior. Nesses locais, a regulamentação deve permitir adaptações, como a utilização de telemedicina para consultas e acompanhamento de pacientes, parcerias com hospitais regionais para o encaminhamento de casos mais complexos e programas de capacitação específicos para profissionais de saúde locais.

Nos casos concretos em que existem dificuldades logísticas e de infraestrutura para oferecer tratamento oncológico adequado, a regulamentação flexível permitiria a criação de um sistema de navegação que integrasse a telemedicina para consultas iniciais e de acompanhamento, além de prever a realização de mutirões de saúde periódicos com equipes médicas especializadas que se deslocariam até a região para atendimento presencial e capacitação dos profissionais locais.

Outro aspecto crítico que necessita de regulamentação é a questão da oferta desigual de medicamentos oncológicos entre os diversos estados e municípios brasileiros pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo os medicamentos que já foram incorporados há anos ao sistema público não estão disponíveis de maneira uniforme em todo o país. Essa desigualdade no fornecimento compromete significativamente o tratamento de pacientes oncológicos, criando uma disparidade no acesso a terapias essenciais.

Por exemplo, medicamentos como o trastuzumabe, usado no tratamento do câncer de mama HER2 positivo, e o imatinibe, utilizado para tratar leucemias e tumores gastrointestinais, são amplamente reconhecidos e incorporados ao SUS. Contudo, pacientes em estados do Norte e Nordeste frequentemente enfrentam dificuldades para acessar esses medicamentos, diferentemente de pacientes em estados do Sudeste e Sul, onde a disponibilidade é mais regular.

A regulamentação precisa estabelecer mecanismos para garantir a distribuição equitativa de medicamentos oncológicos em todas as regiões do país. Isso pode incluir a criação de um sistema centralizado de gestão de estoques e distribuição, que leve em consideração as necessidades específicas de cada localidade, e a implementação de políticas que assegurem o reabastecimento constante dos medicamentos essenciais, evitando interrupções no tratamento. Experiências internacionais bem-sucedidas podem servir de referência e permitir a economia de tempo e de recursos na implementação das medidas necessárias.

Conclusão

A regulamentação da Lei 14.758/2023 é urgente para garantir a efetividade da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e do Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Câncer. A definição clara das diretrizes de implementação, financiamento, protocolos clínicos, capacitação de profissionais e garantia de distribuição equitativa de medicamentos é essencial para que os pacientes oncológicos recebam o atendimento adequado e oportuno.

Além disso, a flexibilidade na regulamentação permitirá a adaptação das políticas às diferentes realidades locais, promovendo equidade no acesso aos serviços de saúde em todo o Brasil. É imperativo que o Ministério da Saúde agilize esse processo para garantir a plena implementação da lei e a melhoria da qualidade de vida dos pacientes oncológicos no País.


[1] Os navegadores de saúde, que podem ser profissionais da área médica, enfermeiros ou assistentes sociais, são designados para cada paciente para oferecer suporte contínuo. Eles ajudam a coordenar consultas, exames, tratamentos e outras necessidades do paciente ao longo do percurso de cuidado.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


Por que os juros altos são uma desgraça?

Marco Aurélio Bittencourt

Antes de tudo, é necessário definir o que são juros altos e como os juros nominais são estimados pelos agentes econômicos. Apelo para a equação de Fisher: taxa de juros nominal = taxa de juros real + inflação esperada,  . Você pode olhar essa equação da seguinte forma: você tem 100 reais hoje e sabe que pode comprar 10 pães. Aí você empresta esses 10 pães, ou se estiver no mundo nominal, a uma taxa de juros nominal, , por 5% ao período (qualquer período, mas temos que escolher um para que taxa e período sejam compatíveis. Escolho ano). Espero ganhar ½ pão ou 5 reais de juros mais o capital que investi. O que pode atrapalhar minha conta? A inflação esperada,  . Eu tenho que chutar uma . Chuto zero, porque a coisa no Brasil está preta, ou seja, não espero crescimento e assim todo mundo tem problema, inclusive os empresários que não se arriscam a aumentar o preço (o engraçado é que estamos vendo as embalagens dos produtos encolherem ou pesarem menos. Gosto do Chicabom. Hoje pago o mesmo preço, mas o picolé é a metade). Então a minha taxa de juros nominais,  coincide com a taxa de juros de real, . O que isso significa? Que posso voltar ao mercado e comprar meus dez pães e mais meio pão; o que era o que esperava. Foi o quanto quis ganhar por emprestar meus 100 reais.

Mas onde está o problema? Está na expectativa da inflação. Se o preço do pão mudar (para cima, inflação e para baixo, deflação) posso perder. Suponha que a inflação seja de 6%. Como ganhei 5 reais, tenho em caixa 105 reais. Mas vou agora comprar o pão por (1+0,06) *10= 10,6. Quantos pães agora posso comprar? Posso comprar 9,90 pães (105/10,6). O que aconteceu? Eu errei na previsão da inflação. Eu chutei que era zero, mas foi de 6%. Fiquei mais pobre, porque agora, além de retardar meu consumo, tenho uma quantidade de pães menor do que tinha antes de emprestar minha grana. Em termos de fórmulas: a minha taxa de juros nominal tem que corresponder a uma taxa de juros real mais uma expectativa de inflação. Se eu tivesse acertado, teria cobrado acertadamente  Teria um ganho bruto de (1+0,11) *100=111 e assim poderia comprar 111/10,6 = 10,47 pães. (não dá exatamente 5 pães a mais, por conta de aproximações que fiz com a fórmula).

Quais as implicações da nossa brincadeira. Primeiro, a taxa de juros real eu chutei. Vale lembrar que é uma variável não observável, mas pode ser inferida com pouca precisão, é certo. Por que pode ser aferida? Por conta da arbitragem planetária. Se alguém ganha acima do que os demais estão ganhando, há uma corrida em direção ao mercado lucrativo, fazendo com que a arbitragem produza seu efeito: os ganhos seriam iguais e assim uma taxa de juros real ficaria de fato inabalada. A razão da corrida? Chame do que você quiser. De inveja, de cobiça, seja lá o que você quiser chamar, mas a razão econômica é simples: se deixar passar a oportunidade, sou engolido pelo sistema capitalista. Então se alguém ganha acima dos demais, a turma vai ao mercado ganhador e investe aos montes até que a rentabilidade extra desapareça e a taxa de juros reais prevaleça em todos os negócios. Essa taxa de juros real pode ser mascarada por outra razão. A nossa segunda observação. Se há incerteza na economia, a taxa de juros real pode ser encoberta por esse fenômeno, de tal forma que tenho que calibrar mais minha taxa de juros nominal, supondo que as expectativas inflacionarias sejam conhecidas e dadas. Então se soma a incerteza à inflação esperada.

No caso do Brasil, nossas taxas de juros nominais são altas por conta da expectativa inflacionaria que é ajustada pelo Banco Central pelo cenário econômico no visor de sua tela prospectiva. Então, calibra-se a taxa de juros básica, na crença de que se ajustando essa taxa, as demais caminhariam em linha, com a esperança de que o deslocamento de todo o feixe de juros seja coerente com a taxa básica. Como provavelmente a calibração não está correta, a taxa de juros real da fórmula de Fisher é estimada de forma exagerada. O que faz a turma de empresários que precisam investir no seu próprio negócio? Vão comparar o que ganham investindo no seu negócio (a taxa de juros real que eles conhecem que está abaixo da que o Banco Central faz a turma crer que seja a verdadeira) com o ganho investindo no mercado financeiro. Se seu negócio é menos atrativo do que o financeiro, retardam o investimento no seu negócio. Como podem fazer isso? Usando as máquinas e os seus equipamentos por um tempo maior do que outra forma o fariam. Mas certamente seus custos vão aumentar e perderão competitividade. Como resolvem o problema? Alguém tem que ajudar essa turma tupiniquim, para não serem engolidos pela arbitragem planetária. Se ficam por muito tempo no mercado financeiro, de duas uma: ou os juros sobem mais ainda para compensar seus custos elevados ou alguma proteção explicita do governo está a postos (Estado, se a proteção é duradoura, ou seja, a proteção estaria incorporada ao modelo). A redução de custos vai ocorrer de forma exógena ao negócio – por redução salarial, modificação no câmbio, incentivo fiscal, etc. A consequência disso pode ser uma armadilha da qual não conseguimos nos libertar. Esse padrão é autofágico e em algum momento ele terá que ser corrigido e, pelo rastro histórico, continuará tudo como dantes, mas piorando para a turma do andar debaixo cada vez mais. Contudo, fácil ver a saída econômica. Só que o problema é político! Está tudo bem para os de sempre, não importa quem pague a conta.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


STF reconhece constitucionalidade da atual redação do art. 289 da Lei das S/A

Dispositivo consagra sistema híbrido de publicação: resumo em jornal físico e íntegra na internet

André Santa Cruz

Amanda Mesquita Souto

Bruno Camargo Silva

A Lei 13.818/2019 alterou a redação do art. 289 da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações – LSA), que trata das publicações das sociedades anônimas. Desde 1º de janeiro de 2022, data da entrada em vigor dessa lei, houve (i) a exclusão da publicação em Diários Oficiais e (ii) a simplificação da publicação em jornais de grande circulação (resumo na versão física e íntegra na versão eletrônica).

Essa mudança teve o objetivo de desburocratizar as publicações das sociedades anônimas, reduzindo o seu custo, mas nunca foi intenção do legislador suprimir a necessidade de publicação em jornal físico: a ideia foi simplificar tal publicação, que passou a ser resumida, mas acompanhada de outra publicação integral, esta em versão eletrônica.

Sempre defendemos que a Lei 13.818/2019 não eliminou a necessidade de publicações em jornais impressos. O que a lei criou foi um mecanismo de simplificação, redução de custos e aumento da transparência, por meio da combinação de uma publicação em meio impresso (versão resumida) com uma publicação em meio eletrônico (versão integral). Assim se garantiu, de um lado, a almejada redução de custos para as companhias e, de outro lado, a imprescindível difusão da informação para todos os interessados.

Essa interpretação foi a mesma exarada pela Presidência da República e pela Procuradoria Geral da República nos autos da ADIn 7.011, que questionava a constitucionalidade da Lei 13.818/2019.  Em que pese essa ação não ter sido julgada no mérito, visto que a Ministra relatora, Cármen Lúcia, negou seguimento à ação em razão da ilegitimidade ativa da parte autora, verificamos que não houve dúvidas, nas manifestações desses entes, sobre a publicação resumida determinada pela nova redação do art. 289 da LSA ter que ser realizada em jornal impresso.

O Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), no Manual de Registro de Sociedade Anônima (Anexo V da IN 81/2020), também consagrou essa interpretação, sempre deixando claro que, quando a LSA menciona “jornal de grande circulação”, está se referindo a um veículo impresso.

Outro argumento que reforça essa interpretação é o seguinte: quando o legislador quis realmente eliminar a necessidade de publicações de sociedades anônimas em meio físico (jornal impresso), ele o fez de maneira muito clara e direta, mas com um recorte bem específico. Referimo-nos à Lei Complementar 182/2021, conhecida como o Marco Legal das Startups, que alterou o art. 294 da LSA, possibilitando que a companhia fechada com receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões de reais) realize as publicações legais totalmente de forma eletrônica.

Por fim, no dia 4 de julho de 2024, foi publicado o acórdão do STF no julgamento da ADIn 7.194, que julgou improcedente a referida ação para declarar a constitucionalidade do art. 1º da Lei 13.818/2019, que deu a atual redação ao art. 289 da LSA.

No referido julgamento, o STF não apenas reconheceu a constitucionalidade da regra que dispensou as sociedades anônimas de publicarem atos societários e demonstrações financeiras em Diários Oficiais, mas também deixou claro que a correta interpretação da atual redação do art. 289 da LSA é a seguinte: publicação resumida em jornal de grande circulação na sua versão FÍSICA e publicação integral no portal eletrônico do mesmo jornal. A propósito, confira-se o item 2 da ementa do acórdão:

2. No intuito de se disponibilizarem as informações pertinentes às pessoas e entidades interessadas, embora dispensada a publicação em diário oficial, a norma manteve a obrigatoriedade de divulgação dos atos das sociedades anônimas em jornais de ampla circulação, tanto no formato FÍSICO, de forma resumida, quanto no formato eletrônico, na íntegra.

De acordo com o Ministro relator, Dias Toffoli, “a divulgação da íntegra dos atos societários na página da internet de jornais de grande circulação é medida que logra atingir grande número de pessoas interessadas e que se mostra acessível para o fim que se propõe. Ademais, a norma mantém a obrigatoriedade de divulgação dos atos societários na MÍDIA IMPRESSA, o que contempla a parcela da população que não costuma ou não consegue fazer uso de meios eletrônicos de acesso à informação”.

Vale ressaltar que o referido julgamento do STF se deu em sede de controle abstrato de constitucionalidade, que tem efeito vinculante e erga omnes.

Portanto, sem qualquer espaço para dúvidas, de acordo com a atual redação do art. 289 da LSA, simplificou-se a regra geral de publicidade legal das companhias brasileiras, adotando-se um sistema híbrido de publicação: resumo em jornal de grande circulação FÍSICO e, simultaneamente, íntegra no sítio eletrônico desse mesmo jornal na internet.


André Santa Cruz é advogado, sócio-fundador do escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do IESB-DF e ex-diretor do DREI.

Amanda Mesquita Souto é advogada associada no escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia, pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV e ex-diretora do DREI.

Bruno Camargo Silva é advogado, sócio da Camargo Silva Consultoria. Professor de Direito Empresarial e Processual. Jornalista. Mestrando em Direito pela Universidad Europea Del Atlántico (Espanha). Especialista em Direito Processual pela PUC-MINAS.


A relação entre taxa de juros e inadimplência na análise concorrencial

Cristina Ribas Vargas

O debate sobre os determinantes da taxa de juros continua instigando os economistas modernos. Embora no passado o debate entre Keynes e os economistas clássicos tenha sido considerado esgotado por Hicks, ao afirmar que a taxa de juros era determinada pela oferta e demanda tanto no mercado de moeda quanto no mercado de fundos emprestáveis, a discussão ainda apresentava outros enfoques a serem considerados. A discussão entre Keynes e os clássicos ia além da delimitação dos mercados no qual a taxa era determinada: se no mercado monetário para transações imediatas, ou no mercado financeiro, com vistas a ganhos excedentes futuros. Não se tratava apenas de considerar a mudança do locus de mercado em análise, isto é, se no mercado de transações monetárias imediatas intermediadas por moeda, ou no mercado de aplicações financeiras. O ponto chave da discussão era compreender como a relação entre a produtividade do capital e a propensão a poupar incidiam sobre a taxa de juros. Para os clássicos a determinação da taxa era direta, na medida em que a produtividade do capital e a propensão à poupar determinariam os níveis de investimento e poupança, estabelecendo a taxa de juros de equilíbrio. No entanto, na versão keynesiana, a determinação da taxa de juros seria estabelecida indiretamente pela produtividade do capital e pela propensão a poupar. Neste caso, seriam os níveis de renda e emprego estabelecidos a partir da produtividade do capital e propensão à poupar pré-existentes que determinariam o volume de moeda necessário para as transações econômicas.

A escola pós-keynesiana deu continuidade ao debate, e apresentou novo enfoque acerca da determinação da taxa de juros: Paul Davidson e Jan Kregel buscavam responder se elevações na propensão à poupar induziam a aumentos no nível de investimento. Os autores concluíram que, em geral, a propensão a poupar não teria influência significativa sobre a determinação da taxa de juros. Além disso, o debate ampliou a possibilidade de identificar mais de uma taxa de juros vigorando na economia, e distinguiram a taxa entre taxa de juros de longo prazo e de curto prazo. Neste caso, a influência da propensão à poupar sobre as diferentes taxas produziria resultados diversos. Considerando que a elevação da propensão a poupar poderia incentivar o aumento do nível de investimento e a consequente redução da taxa de juros no longo prazo, dada a relação indireta entre propensão à poupar e taxa de juros, cabe destacar que P. Davidson e J.Kregel argumentam que se o período de investimento for igual aquele em que ocorre o efeito multiplicador da renda, torna-se possível gerar poupança suficiente para liquidar todo empréstimo contraído para financiar o investimento inicial. A esse respeito (Oreiro, 2000:290) destaca:

“Asimakopulos defendeu a tese de que um aumento da propensão a poupar poderia estimular o investimento ao reduzir a taxa de juros de longo prazo. Isso porque um aumento da propensão a poupar facilitaria as operações de funding das dívidas de curto prazo das empresas em obrigações de longo prazo. Davidson e Kregel, por outro lado, argumentaram que as conclusões de Asimakopulos só seriam corretas em condições muito específicas e que, em geral, a propensão a poupar não teria nenhuma influência sobre a estrutura a termo das taxas de juros.”

Desta forma, o debate teórico formulado pelas escolas clássica, keynesiana e pós-keynesiana demonstraram que a determinação da taxa de juros não é tema trivial e esgotado em si mesmo. A continuidade do debate representa a oportunidade para aprofundarmos o estudo sobre a relação entre a taxa de juros e a evolução da inadimplência.

A análise concorrencial por vezes depara-se com o argumento de que não é possível reduzir a taxa de juros cobrada ao consumidor em função do elevado coeficiente de inadimplência vigente no mercado. O gráfico abaixo mostra a evolução da inadimplência para cinco modalidades de recursos de concessão de crédito: Home equity, SFH, Livre, FGTS e Comercial. A inadimplência corresponde ao percentual de operações com ao menos uma parcela vencida acima de 90 dias.

Evolução da inadimplência entre maio de 2014 e maio de 2024.

Fonte: Sistema de Informações de Créditos (SCR)/BCB.

No gráfico a seguir observamos a evolução da taxa SELIC (% a.a.) entre 2014 e 2024. É possível observar comparando os gráficos que embora exista uma tendência de queda no percentual de inadimplência entre maio/2021 e maio/2024, não se observa o mesmo movimento evolutivo no gráfico da evolução da SELIC para o mesmo período.

Evolução da taxa de juros SELIC entre maio de 2014 e maio de 2024.

Fonte: IPEADATA/BCB.

Neste caso, importa observar para a análise concorrencial, que outros fatores além da inadimplência contribuem para a determinação da taxa básica de juros, e que por si só não se pode considera-la como justificativa para restrição da concorrência entre taxas de juros praticadas no mercado por instituições financeiras. Além disso, modelos de determinação da inadimplência que considerem a evolução do efeito multiplicador da renda na determinação da taxa de juros podem ensejar um novo olhar sobre a relação de causalidade entre inadimplência e taxa de juros: enquanto o crescimento da renda facilita a quitação de financiamentos, contribui para a redução da taxa de juros e da própria inadimplência. Assim, é importante ressaltar que a inadimplência apresentada como única justificativa para tendência de rigidez à alta da taxa de juros, pode não ser argumento suficientemente forte para explicar a impossibilidade da redução dos juros praticados no mercado, a depender da conjuntura vigente.

Referências

Banco Central do Brasil – BCB, Efeito da inadimplência nas taxas de juros Estudo Especial nº 12/2018 – Divulgado originalmente como boxe do Relatório de Economia Bancária (2017) – volume 1 | nº 1

Disponível em:  https://www.bcb.gov.br/conteudo/relatorioinflacao/EstudosEspeciais/Efeito_inadimplencia_taxas_juros.pdf

OREIRO, José Luís. O Debate entre Keynes e os “Clássicos” sobre os Determinantes da Taxa de Juros: Uma Grande Perda de Tempo?, in Revista de Economia Política, vol. 20, nº 2 (78), pp. 287-311, abril-junho/2000

Disponível em https://www.scielo.br/j/rep/a/fG7jTvBP9GntNktVSF3fP8m/

Banco Central do Brasil – BCB, Estatísticas.Detalhamento gráfico, inadimplência.

Disponível em:

https://cdn-www.bcb.gov.br/estatisticas/detalhamentoGrafico/GraficoImobiliario/credito_estoque_inadimplencia_pf

IPEADATA. Taxa de juros – Selic – fixada pelo Comitê de Política Monetária (Copom).

Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx

Contratos administrativos: a ilusão do Pacta Sunt Servanda (ou como o Estado asfixia o setor privado)

José Américo Azevedo

O brocardo latino pacta sunt servanda, cuja origem remonta à Idade Média, por intermédio do Direito Canônico, pode ser compreendido, em tradução literal, como “os pactos devem ser observados” (Missouri Housing Development v. Brice, 1988), ou “os pactos devem ser respeitados” (Nike Intern. Ltd. v. Athletic Sales, Inc., 1988), ou, ainda, “os pactos devem ser obedecidos” (United States v. Verdugo-Urquidez, 1991)[1].

De toda forma, independentemente do nível de imperatividade do cumprimento do pacto, observa-se que o referido princípio é o ápice da concepção jurídica da autonomia da vontade entre as partes. Nas relações sociais onde são acordadas obrigações mútuas, o instrumento de regulação da intenção das partes é o contrato. Clovis Bevilaqua, no final do século XIX, trouxe importante lição:

Pode-se, portanto, considerar o contracto como um conciliador dos interesses collidentes, como um pacificador dos egoismos em lucta. É certamente esta a primeira e mais elevada funcção social do contracto. E, para avaliar-se de sua importancia, basta dizer que, debaixo deste poncto de vista, o contracto corresponde ao direito, substitue a lei no campo restricto do negocio por elIe regulado.[2]

Mister perceber a importância da função do contrato no trato social. Nesta perspectiva, necessário trazer à lume o conceito de relação sinalagmática. É dizer, o contrato é, em todo o tempo, uma relação bilateral ou plurilateral. E na medida em que se configura na expressão da vontade das partes, pressupõe a existência de direitos e deveres para os seus signatários, simultaneamente e de forma recíproca. Neste sentido, Giselda Hironaka apresenta:

A relação obrigacional é uma relação jurídica que existe sempre entre pessoas determinadas (duas ou mais), da qual pelo menos uma é devedora e a outra credora. Há na relação uma prestação delimitada. Outros deveres de conduta – que estão delimitados e são, de certo modo, secundários – também podem ser exigidos. O dever primário e decisivo, que dá conteúdo e significado à relação obrigacional e determina o caráter típico da mesma é a prestação determinada. A obrigação está dirigida a esta prestação determinada ao devedor, ou à prestação de ambas as partes, o que corresponde, neste caso, ao próprio sinalagma. Quando a prestação é cumprida, ter-se-á alcançado a finalidade da obrigação, restando esta, geralmente, extinta.[3]

Assim, depreende-se que, à medida em que a relação contratual é bilateral – supondo-se entre duas partes –, faz-se necessário o cumprimento obrigacional por ambos os lados. Neste ângulo, se torna inevitável mirar os contratos administrativos, nos quais, em um polo se encontra o cidadão ou a empresa, integrante da sociedade e, em outro, o Estado, tendo como agente a Administração Pública.

Nessa visada, passa-se a observar a desconformidade do poder de negociação e controle contratual entre os dois pactuantes. À Administração cabe definir as regras para a contratação pública, estabelecendo condições desde o procedimento licitatório – se o há –, até a execução do instrumento contratual, em todos os aspectos, restando à outra parte somente acatar as prescrições impostas, sob pena, em caso de recusa, de tombar alijada do processo, portanto, sem a possibilidade de prestar um serviço ao Estado.

Não há, geralmente, qualquer margem para negociação dos termos contratuais, traduzindo-se, na realidade, em contratos de adesão, onde não existe espaço para modificações ou necessários ajustes em benefício da mais adequada prestação dos serviços.

Longe de qualquer intenção polêmica, ilustra-se o enfoque apresentado.

Começa-se explanando acerca do “fato do príncipe” em contratos administrativos. A teoria do fait du prince surgiu na França, em finais do século XIX e início do século XX, pela mão da jurisprudência do Conseil d’Etat, como reconhecimento de uma prerrogativa exorbitante da Administração Pública de alterar as prestações devidas pelo contraente privado.[4]

Segundo Gabriel Brocchi, “é uma referência à notável obra de Maquiavel, ‘O Príncipe’, escrita na Itália renascentista do século XVI, em que se aborda a presença de um Estado forte, sugerindo que as atitudes do governante nos seus domínios são legítimas, para manter-se como autoridade”[5].

Pode-se observar que se apresenta latente o poderio do Governo nas relações contratuais, além de remeter a um período pouco democrático, onde a autoridade estatal era resguardada com a utilização de todos os meios disponíveis, legítimos ou não.

Carvalho Filho traz importante reflexão:

A supremacia do Estado no contrato enseja desde logo uma inevitável consequência. Se o dogma da igualdade das partes impõe a igualdade de condição dos sujeitos do contrato, bem como a inexistência de vantagens em favor de qualquer deles, a predominância estatal provoca o nascimento de uma série de prerrogativas conferidas à Administração. Estas, como é óbvio, refogem ao âmbito do direito privado, ou seja, exorbitam dos limites deste campo. Por isso, a doutrina as tem denominado de cláusulas exorbitantes ou de privilégio.

(…)

O dado fundamental que caracteriza o fato do príncipe reside na sua proveniência: origina-se sempre do próprio Estado, no exercício de atividade lícita. Esse fato oriundo da Administração Pública não se pré-ordena diretamente ao particular contratado. Ao contrário, tem cunho de generalidade, embora reflexamente incida sobre o contrato, ocasionando oneração excessiva ao particular independentemente da vontade deste.[6]

Embora lícito, significativo repisar que o fato do príncipe que “origina-se sempre do próprio Estado” ocasiona “oneração excessiva ao particular independentemente da vontade deste”, desequilibrando a relação contratual.

Outro aspecto de inteira importância é a imposição de previsões sancionatórias unilaterais, em total desacordo com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Assume-se que a única parte passível de incidir em inadimplência contratual seja o particular, sem que estejam previstas punições para as faltas cometidas pela Administração no deslinde da relação avençada.

Nesta ótica, o agente público utiliza-se da disparidade de poder da relação para submeter o contratado aos rigores máximos, em caso de alguma falta na execução do contrato, sem que sua própria responsabilidade seja aferida e apenada.

Para não navegar somente no campo das teorias e suposições, dá-se um exemplo real, abstendo-se, por óbvio, de nominar os protagonistas, vez que totalmente prescindível.

Em uma autarquia federal, foi contratada a elaboração de um projeto, consistindo nas etapas de projeto básico e projeto executivo. A empresa contratada cometeu atrasos nas entregas dos produtos para análise por parte da contratante. Esta, no entanto, incorreu, quando da avaliação do projeto entregue, em atraso relativamente de igual monta. Ocorre que o contrato ficou paralisado durante sua execução, por quase três anos, por decisão unilateral da Administração, alegando ausência de recursos orçamentários para pagamento dos serviços contratados. Durante este período a empresa continuou trabalhando, entregando a versão final do projeto básico que foi devidamente aprovado pela contratante.

No entanto, a empresa foi multada por mora, no montante de 120% do valor da etapa referente ao projeto básico – note-se, projeto este aprovado –, sem que seus recursos no processo administrativo fossem deferidos. Ou seja, a empresa prestou o serviço, apresentou o projeto que acabou aprovado e foi multada em valor 20% superior ao que deveria receber. É dizer, a empresa está pagando à contratante 120% do valor do projeto aprovado que elaborou, promovendo o enriquecimento ilícito do Estado.

Em relação à contratante, não houve, no processo de apuração de responsabilidade, qualquer menção acerca dos atrasos promovidos pela Administração – categoricamente ignorados –, remanescendo somente a punição à empresa contratada.

Resta claro que tal disparate não encontrará guarida na esfera judicial, devendo, no entanto, serem observados, no âmbito administrativo, os excessos cometidos pelos agentes públicos, para que haja uma efetiva correição, buscando a legitimidade das relações entre o público e o privado. Não obstante, estará, no caso de judicialização da contenda, se abarrotando, desnecessariamente, os escaninhos forenses por ações de responsabilidade absoluta da Administração.

Há que se enfatizar que, ao fim e ao cabo, a maior prejudicada pelas distorções nas relações decorrentes dos contratos administrativos mal geridos, é a própria sociedade, que não somente arca com os custos financeiros e temporais dessa desvantajosa gestão, como, por conseguinte, deixa de receber o objeto contratado. Indubitável o desacato à Constituição Federal que define, em seu artigo 37 que a Administração Pública deve obedecer, em suas ações, ao Princípio da Eficiência.

Diversos outros exemplos podem ser trazidos, convertendo o despretensioso artigo em um corolário de ocorrências que o tornaria assustadoramente enfadonho. O que se pretende é demonstrar a desigualdade das partes nas relações contratuais entre a Administração Pública e o ente privado.

Para minimizar os impactos deletérios deste relacionamento, faz-se necessário o incremento das fiscalizações, correições e auditorias internas e externas, além da responsabilização pessoal do agente público que incorrer em ações de caráter culposo ou doloso, prejudiciais à contratada, para que a impunidade não seja a práxis na Administração Pública.


[1] HYLAND, Richard. Pacta sunt servanda: a meditation. Virginia-USA: Virginia Law of International Law, 1994. p. 407.

[2] BEVILAQUA, Clovis. Direito das obrigações. Bahia-Brazil: Livraria Magalhães, 1896. p. 166.

[3] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A chamada causa dos contratos: relações contratuais de fato. Revista de Direito do Consumidor: vol. 93, Mai – Jun / 2014, p. 210.

[4] COSTA, Andreia Duarte da. Modificações objetivas do contrato de concessão de serviços públicos num cenário de crise. Dissertação de Mestrado. Lisboa-Portugal: Universidade de Lisboa, 2016. p. 102.

[5] BROCCHI, Gabriel Gallo. A teoria do fato do príncipe. 2020.

Disponível em:

Acesso em: 23.07.2024.

[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. O fato do príncipe nos contratos administrativos. In: Revista de Direito da Procuradoria-Geral de Justiça, Rio de Janeiro, nº 23, p.73-79, jan./jun. 1986. pp. 74, 76.


José Américo Azevedo. Engenheiro Civil pela Universidade de Uberaba e Advogado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa IDP, em Brasília. Consultor independente e ex-colaborador na Defensoria Pública do Distrito Federal. Colunista na plataforma WebAdvocacy. Atualmente presta consultoria para o Instituto Unidos Brasil. Experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, licitações, contratos e concessões públicas atuando por empresas privadas e pelo Governo. Ex-membro de Comissões de Licitações. Relações institucionais e governamentais. Credenciado como perito técnico judicial junto ao TRF 1 Região. Membro da Comissão de Infraestrutura da OAB/DF.