Sobre construções, desmontes e oportunidades: o ataque do governo Trump às agências reguladoras e o papel que cabe ao Brasil

Lucia Helena Salgado

Nas últimas semanas, poucos temas são mais comentados do que a condução errática e irracional das políticas públicas estadunidenses. Desse debate sobressai uma constatação comum, a inviabilidade de construção de cenários diante da radical incerteza gerada por políticas sem fundamentação econômica que as sustente. Ver os Estados Unidos minarem os próprios fundamentos da hegemonia que vinham exercendo há 80 anos tem colocado o mundo em um estado misto de perplexidade e receio diante das possíveis consequências geopolíticas.

No Brasil, as reflexões sobre possíveis impactos do repentino abandono das crenças que sustentaram o processo mais recente de globalização – livre comércio, livre fluxo de capitais, divisão internacional do trabalho visando redução de custos, harmonização de legislações entre jurisdições, menor intervenção do governo na economia – tem se centrado nos impactos das medidas tarifarias tomadas pelo governo Trump.

Com isso, pouca atenção tem se voltado para o processo de desmonte da engenharia institucional nos primeiros anos do século XX no governo Ted Roosevelt, engenharia esta consolidada nos anos 30, no governo Franklin Roosevelt: trata-se da compatibilização de interesses públicos e privados mediante o desenho de agências reguladoras. Foi um desenho institucional totalmente inovador, um aparato executor de políticas regulatórias, criado no Legislativo, formado por corpo técnico estável, corpo decisório também técnico e formado por indicações políticas equilibradas entre os partidos Democrata e Republicano e lideradas por indicados pelo Executivo, sendo todo o corpo decisório submetido nas indicações à apreciação do Legislativo, a quem periódica e rotineiramente lhe cabe prestar contas. Ainda, decisões regulatórias – e aqui inclui-se também as decisões antitruste, de natureza regulatória, lato sensu – são contestáveis diante do Poder Judiciário e decisões finais sobre questões controversas cabem às Cortes de Apelação ou, em última instância, à Suprema Corte.

Assim, a engenharia institucional que deu origem às agências reguladoras, como mecanismos para compatibilizar os interesses privados da atividade econômica com o interesse da sociedade, fundou-se nos mesmos pilares dos pesos e contrapesos entre os poderes da República tal como desenhada pelos Federalistas, a partir dos ensinamentos de Montesquieu, que alertou em seu “O Espirito das Leis” de que a separação e contraposição de poderes era a chave para afastar-se o risco da tirania resultante da concentração de poder. Determinados a instituir um aparato de Estado infenso a regimes que guardassem semelhança ao superado domínio monárquico inglês, os Federalistas desenharam a República sobre os pilares de poderes que se contrabalançam sustentando o Estado de Direito, de modo a jamais sufocarem a sociedade.

Este desenho compõe o Ethos estadunidense e confere, com as regras do Estado de Direito, consistência e legitimidade à democracia naquele país, foi replicado por toda a América e adotado pelo Brasil desde a sua 1ª República. Com exceção do período do Estado Novo varguista, o desenho de República amparado sobre os pesos e contrapesos de três poderes, vigorou até mesmo durante os 21 anos de ditadura militar, em que a formalidade da coexistência dos Três Poderes encobria o esvaziamento de competências do Legislativo e do Judiciário.

 Assim como na constituição da 1ª República, nos anos 1990 o Brasil procurou modelar seu aparato estatal a partir da experiência estadunidense. Em linha com as diretrizes apontadas por Washington e disposto a integrar-se à dinâmica do processo de globalização, novamente espelhamos internamente o desenho institucional das agências reguladoras dos Estados Unidos – acompanhando o movimento de privatização, não discriminação do capital estrangeiro e concessão de serviços públicos, em substituição ao modelo de intervenção direta do Estado na economia.

 Ao longo das ultimas duas décadas, o modelo vem sendo aperfeiçoado no Brasil e robustecido por iniciativas como o programa de melhoria regulatória e capacitação técnica (ProReg), a incorporação dos instrumentos de análise de impacto regulatório (AIR), resultado regulatório (ARR), agenda regulatória, os esforços de racionalização e simplificação regulatória e, mais recentemente, a introdução do instrumento de regulação experimental (sandbox regulatório), seguindo as diretrizes mais atualizadas de gestão e avaliação regulatória.

Enquanto isso, o atual governo dos Estados Unidos resolve desmontar o modelo de agências que, lembremos, assenta-se sobre um cuidadoso tripé de contraposição de poderes. Decreto (Ordem Executiva 14215)[1] publicado em fevereiro deste ano foi, agora em abril, enviado a todas as agências reguladoras, todas desenhadas como comissões, incluindo, portanto, a FTC (Comissão Federal de Comércio) que faz valer, juntamente com a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça, a legislação antitruste, que todas devem agora subordinar-se à órgão da Casa Branca, o OIRA, assim como já o fazem desde o governo Reagan os departamentos que compõe o aparato do Poder Executivo. O OIRA (Escritório de Informação e Avaliação Regulatória) foi criado nos anos 1980 com a missão de rever, com base em análise de economicidade (custo-benefício) propostas regulatórias de departamentos do Executivo, antes de enviadas ao Congresso. Mantida por todos os governos seguintes e aperfeiçoada com a experiência, aplicava-se obrigatoriamente apenas aos órgãos do Poder Executivo, sendo tão somente recomendações às agências reguladoras, posto que essas são subordinadas ao Legislativo. O novo decreto estabelece que qualquer decisão das agências deve seguir estritamente as instruções advindas da Casa Branca, além de serem obrigadas a criar um cargo de diretor regulatório, que devera se reportar diretamente ao OIRA.

Acrescente-se a esse evento a inédita demissão de dois comissários da FTC, indicados pelo Partido Democrata e no curso de seus mandatos (como no Brasil, esses comissários só poderiam ser afastados por justa causa associada ao descumprimento de suas funções ou ao cometimento de crimes). Não obstante o fato de que as demissões estão sendo contestadas na Suprema Corte pelos comissários, são mais do que claros os sinais de que a administração Trump não reconhece a limitação mútua entre os poderes que fundamenta o Estado de Direito.

Esse quadro, se consolidado, aponta para o ocaso da liderança estadunidense também no campo do desenho institucional, deixando um vácuo que, com perspicácia e consistência, pode ser ocupado pelo Brasil, que vem demonstrando ao mundo o quão consistente é seu compromisso com o Estado de Direito amparado no desenho de pesos e contrapesos dos Três Poderes. Ademais, o pais tem investido esforços, também de forma consistente no fortalecimento do desenho de agências, que tem resistido às turbulências da vida politica, como é exemplo a promulgação da Lei Geral das Agências, que conforma o modelo de governança formado por decisões técnicas apoiadas em transparência, prestação de contas e responsabilização

Fica aqui o recado: o atual quadro de anomia estadunidense abre espaço para que o Brasil assuma liderança também no campo do desenho institucional, apresentando seu compromisso com a boa governança na condução de politicas regulatórias como modelo para outras jurisdições, sobretudo no Sul Global

Tomara que essa oportunidade não se deixe passar.


[1] [1]https://public-inspection.federalregister.gov/2025-03063.pdf


Lucia Helena Salgado. Professora Títular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.


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O bem-estar que nos prometemos

Adriana da Costa Fernandes

A vida humana evolui de forma cíclica. Entre avanços e recuos, o mundo e o homem seguem construindo, aprimorando e destruindo para, então, reconstruir em diferentes bases.

Era um tempo de ainda maiores desigualdades do que as tantas testemunhadas nos dias atuais. No pós-segunda guerra mundial, em meados do século XX, impactada pelos efeitos do capitalismo industrial iniciado no século XIX, a cidadania foi ampliada com ênfase em proteção social. Pela primeira vez, os Estados passaram a exercer a soberania por meio de uma integração social considerada mais estável.

Surgia o Estado de Bem-Estar Social, o Welfare State, imediatamente consagrado em Democracias mais consolidadas, como o Reino Unido e a Escandinávia, e introjetado, em diferentes graus, em outros Estados.

A Carta do Atlântico (1941) influencionou muitas sociedades, defendendo o compromisso transnacional de melhoria dos direitos trabalhistas, através do desenvolvimento econômico e da proteção coletiva e individualizada. Esta carta e o Relatório Beveridge estavam intimamente ligados. O último, visando a aplicação prática da Carta e definindo a seguridade social como parâmetro de segurança do indivíduo.

Ainda que o aparecimento do Estado de Bem-Estar Social não tenha significado o fim efetivo de todos os conflitos nas relações entre governos e sociedades, o contexto mudou. O catalizador foi, sem dúvida, a desvinculação da cidadania e da obtenção de direitos e deveres, da guerra, gerando, assim, maior pacificação das sociedades.

Era o começo do reconhecimento dos direitos sociais e de seu enraizamento nas culturas políticas internacionais. O Princípio da Inclusão fora considerado fundamental para a integração da chamada sociedade mundial.

Divisões sociais apareceram e novos sujeitos coletivos passaram a representar as classes. Grupos de Interesse, dotados de posição de influência, começaram a interagir diretamente com o Estado por meio de negociações coletivas. O mundo começava a adquirir uma conformação mais próxima da atual.

A partir de 1945, os orçamentos de proteção social começaram a superar os gastos militares e o mundo parecia estar entrando em uma rota democrática finalmente consistente e madura. No período de 1950 a 1970, testemunhou-se o aumento das matrículas escolares de 60 (sessenta) para 84% (oitenta e quatro por cento) globalmente e, na África, de 27 (vinte e sete) para 54% (cinquenta e quatro por cento). Nos anos 80, em muitos países, com a redemocratização e o término dos regimes ditatoriais, a mobilização política relativa à proteção social foi intensificada. Mesmo assim, antagonicamente, em vários Estados, os gastos sociais regrediram e as estruturas foram precarizadas.

Se, ao parar no meio de uma linha do tempo, o olhar se deslocasse para trás, para o que ficou e para frente, direcionado ao futuro que vem lá, altamente afetado por severas questões climáticas e pelo crescimento exponencial da tecnlogia, não há como não se antever um novo complexo ciclo humano despontando.

Em tempos atuais, o mundo voltou a se dividir, a vivenciar a intensificação de conflitos e a afirmar posicionamentos dicotômicos, populistas e negacionistas acerca de temas considerados técnica e academicamente inquestionáveis. Do que parece estar se enfrentando agora é justamente da repactuação do Estado de Bem-Estar Social, sob critérios mais avançados. É inquestionável, por exemplo, a necessária integração dos avanços tecnológicos e de ações eficazes de mitigação climática aos direitos humanos e sociais globais.

Do que se debate agora é da ecologização dos direitos sociais e da transmutação dos Estados de Bem-Estar Social para o Eco-Social.

Trata-se, portanto, do surgimento de um direito global, um tanto mais uníssono e integrativo, representativo e preocupado com critérios como o Princípio da Justiça Intergeracional. Além de apto a enfrentar, até mesmo, o esperado incremento do volume de refugiados, em especial, provenientes de áreas costeiras. Sobre isto, a expectativa é de que o impacto se verifique sobre aproximadamente 745 (setecentos e quarenta e cinco) milhões de pessoas em todo o mundo.

Espera-se, então, que seja definida, em breve, uma eficiente transversalidade das políticas ambientais globais, afetas às decisões colegiadas de organismos internacionais, sem dúvida, mas de forma um tanto vinculativas. Aptas, até mesmo, a prever sanções, em caso de descumprimento, em seara comercial e econômica internacional.

Assim, as questões que pairam no ar e na mente dos que estudam e se preocupam são:

– Onde o homem se perdeu nesta jornada?

– O que realmente gerou a profunda mudança de paradigma entre um tempo de intensa preocupação com os direitos sociais, humanos e coletivos para esse tempo de profundo individualismo e egocentrismo?

– Por quê e o quê não foi possível aprender?

– Até onde irá o homem nessa toada, até que curva de sua estrada?

Mas, acima de tudo:

– Onde, afinal, foi parar a promessa que nos fizemos sobre a crença em um Estado de Bem-Estar Social enquanto ponto de partida de uma estrada rumo ao mais alto?


Adriana da Costa Fernandes. Advogada com expertise em Direito Público e em Direito Privado, com foco especial em Regulatório, Administrativo, Conatitucional e Ambiental, mas igualmente em Cível Estratégico, Consumidor e RELGOV, tendo atuado em mercados e segmentos relevantes, em grandes empresas, nacionais e multinacional, em associação setorial, em agências reguladoras, em escritórios AA e consultoria. Mestranda em Direito Constitucional, Pós-graduanda em Direito Civil, com MBA em Marketing, Especializações em Energia Elétrica, RELGOV, Processo Civil e Fundamentos da Arbitragem, além de contar com várias Certificações em instituições de renome em Legal, Finanças, Marketing, Business, Gestão e Liderança e Bioética.


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Leia o artigo sobre defesa comercial e bem-estar:

Os instrumentos de políticas comerciais, sua importância para emprego, renda, bem-estar social e econômico, além da manutenção do livre comércio justo.

Leia mais também:

O Impacto do Autocontrole e da Educação Financeira no Bem-Estar Econômico.

A Falácia da Gastança Excessiva: a real crise fiscal e o desmonte dos serviços públicos

Marco Aurélio Bittencourt

Desmascarado o mito do déficit da Previdência Social (Aqui), foco agora na narrativa da “gastança excessiva” do governo; um pretexto para justificar o aprofundamento do arrocho fiscal e o desmonte dos serviços públicos, tendo como alvo o povo brasileiro – esse coitado, desamparado e lascado. Quem liga para isso?  A realidade, contudo, revela um quadro muito mais complexo e preocupante, onde a verdadeira causa do desequilíbrio orçamentário reside nos exorbitantes juros da dívida pública; um fardo que sufoca o Estado e drena recursos cruciais para o bem-estar da população ano a ano.

A raiz do problema reside nos juros da dívida pública, um montante significativo que consome uma parcela considerável do orçamento federal de forma persistente e recorrente. Essa sangria financeira obriga o governo a realizar cortes sistemáticos nos gastos fiscais, em um ciclo vicioso que se repete a cada período, agravando a precarização dos serviços públicos e comprometendo o futuro do país. A volatilidade dos pagamentos dos juros da dívida impõe um ajuste constante e doloroso, com consequências nefastas para áreas como saúde, educação e infraestrutura  (Aqui).  

Os cortes atingem os investimentos, condenando hospitais, escolas e, na área dos investimentos já feitos, o desgaste forçado dos equipamentos públicos, impondo-lhes a obsolescência pela falta de recursos básicos para sua manutenção e a notória ausência de novos hospitais. A deterioração da saúde pública é emblemática: a falta de investimentos em novas unidades, equipamentos e pessoal resultam em filas intermináveis, falta de leitos e precariedade no atendimento, afetando principalmente os mais humildes que sequer cogitam em planos privados de saúde. A população mais vulnerável paga um preço alto por essa política de austeridade. E quando pode contar com a participação privada, estabelecem preços de remuneração aos serviços por vezes irreais. As Santas Casas sobrevivem com grande dificuldade e poucos estados mostram vontade de atualizar os preços dessas entidades filantrópicas valorosas, arcando em seus orçamentos com essa política como fez o governador de São Paulo.

A cantilena da “gastança excessiva” serve como cortina de fumaça para esconder a verdadeira natureza do problema: a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida em detrimento aos investimentos sociais. Maldita Lei de Responsabilidade Fiscal que mantém o status quo dos bancos e rentistas e dos servidores públicos. Existem outros pontos de extração de recursos públicos consagrados no orçamento, como o auxílio a empresas privadas em subsídios e isenções tributárias significativos. A mídia e alguns setores da política, alinhados com os interesses do mercado financeiro, propagam essa narrativa para justificar o aprofundamento do arrocho fiscal e a retirada de direitos da população, porque o alvo é a previdência. Incrível que num governo que, em passado virtuoso, implementou regras de ajuste do salário-mínimo que não gerou desemprego e nem outro tipo de problema, mas, agora, cedeu.

A insistência em culpar os gastos sociais pela crise fiscal revela uma profunda desconexão com a realidade e um desprezo silencioso pelos direitos da população. O corte de investimentos em áreas essenciais como saúde e infraestrutura não apenas compromete o bem-estar da população, mas também hipoteca o futuro do país, impedindo o desenvolvimento social e econômico. A mudança na regra salarial um tiro no peito dos aposentados CLT que os deixarão agonizando por um tempo longo.

A verdadeira face da austeridade é a precarização dos serviços públicos, o aumento da desigualdade social e o aprofundamento da crise. A população, já castigada pela pandemia e pela recessão econômica, é novamente chamada a arcar com o peso de uma política fiscal que beneficia os detentores da dívida pública e o círculo empresarial que se valem de subsídios e isenções tributárias significativos em detrimento do bem-estar social.

A crítica à “gastança excessiva” ignora o fato de que o Estado brasileiro, historicamente, investe pouco em comparação com outros países de desenvolvimento semelhante. A carga tributária, elevada em comparação com outros países, não se traduz em serviços públicos de qualidade, evidenciando a ineficiência do modelo fiscal e a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida.

A defesa da austeridade fiscal, sem considerar a necessidade de reforma tributária e do sistema financeiro, revela uma visão limitada e prejudicial ao país. A concentração de renda e riqueza, as isenções fiscais e a enorme dependência das multinacionais em seus projetos de inovação são problemas estruturais que precisam ser enfrentados para garantir a justiça fiscal e o financiamento adequado dos serviços públicos. A triste realidade (que vale para a maioria dos países) da precarização do mercado de trabalho, tendo em vista a mudança estrutural significativa na geração de emprego, com o item serviço e comércio abarcando cerca de 70% da mão de obra, nos leva a uma redução salarial sistemática nesse segmento de baixa produtividade. Difícil uma política pública que gere oportunidades nesse ramo de produção, em que pese nossa vocação óbvia para o turismo.

A mídia e os formadores de opinião, em vez de propagar a falácia da “gastança excessiva”, deveriam pautar o debate público sobre a necessidade de reforma tributária e do sistema financeiro, para garantir a justiça fiscal e o financiamento adequado dos serviços públicos. É preciso romper com a lógica que beneficia os detentores da dívida pública em detrimento do bem-estar social.

A população não pode mais ser enganada pela narrativa da “gastança excessiva”. É preciso denunciar a verdadeira natureza da crise fiscal e exigir uma política econômica que priorize o bem-estar social, a justiça fiscal e o desenvolvimento sustentável. A luta pela defesa dos serviços públicos e pela justiça social é uma luta de todos nós. Eu ainda estou aqui!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br 

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Marco Aurélio Bittencourt

Leia outro artigo do Prof. Marco Aurélio Bittencourt relacionado ao tema ao tema fiscal:

O mito do déficit previdenciário no Brasil: uma análise necessária

Leia também o artigo sobre sustentabilidade fiscal do Luiz Guilherme Schymura

Tanto pela sustentabilidade fiscal quanto por razões cíclicas, chegou o momento da consolidação no Brasil

Veja o modelo de custos de serviços públicos elaborado pelo governo federal:

Políticas Públicas de Incentivo ao Hidrogênio de Baixo Carbono – A Regulação do Rehidro e PHBC

 Katia Rocha e Nelson Siffert

Em 13/03/2025, ocorreu em Brasília/DF, o Workshop “Diretrizes Principais da Regulamentação do Hidrogênio de Baixo Carbono pós Leis no 14.948 e 14.990”. Estiveram presentes representantes do Ministério de Minas e Energia; Casa Civil; Ministério da Fazenda; MDIC; ANP, entre outros.

No evento, foi apresentado a devolutiva para o setor, face às 1.436 contribuições presentes na Tomada de Subsídios aberta pelo Ministério da Fazenda  – MF, relativa à regulação do Rehidro[1] e do PHBC[2]. Foram ressaltados os avanços obtidos nos últimos meses, em especial com a promulgação das Leis 14.948 e 14.990, de 2024, relativas ao Marco Legal do Hidrogênio de Baixo Carbono e ao Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (PHBC). Entre os próximos passos a serem realizados, destacou-se a publicação do decreto que visa regular as mencionadas leis, fase esta essencial para a efetividade da política pública.

Desde a criação do PNH2, em 2022, foi destacado entre as realizações, além das leis relativas à regulação do setor, a criação do Sistema Brasileiro de Certificação do Hidrogênio de Baixo Carbono (SBCH2), instituído pelo Marco Legal de Hidrogênio de Baixo Carbono, que define o H2BC como toda molécula de H2 cujas emissões sejam menores que 7 kg de CO2eq/kg de H2BC.

Mostrou-se também que o Plano Trienal (2023/2025), com as respectivas 65 ações propostas, apresenta uma estratégia clara para o Brasil na nascente indústria do hidrogênio de baixo carbono (H2BC), com marcos temporais bem definidos.

Para o período 2025/2026 o objetivo é dar início a implantação de projetos-piloto ou demonstração, em diferentes regiões do Brasil. Para o ano de 2030, busca-se alcançar uma posição de destaque no mercado internacional em termos de competitividade na produção de H2BC, com projetos de maior escala, operando de forma comercial. Para o ano de 2035, almeja-se um quadro onde esteja consolidado hubs de H2BC em determinadas regiões do país, com maior vocação competitiva no adensamento das cadeias de valor e capacidade exportadora.

São elencadas três prioridades na agenda do H2BC:

  1. consolidar o marco legal e regulatório, garantido os avanços obtidos nos últimos meses, estabelecendo, no decreto a ser publicado, as diretrizes que irão reger os incentivos proporcionados pelo Rehidro e PHBC;
  2. promover investimentos em PD&I, com foco na redução dos custos de produção do H2BC, de modo a mobilizar os centros de pesquisa e capacitação de recursos humanos (deste 2020 os investimentos nesta área cresceram sete vezes);
  3. ampliar as fontes de financiamento, atraindo recursos concessionais internacionais, a exemplo do Fundo Clima. Há também uma oportunidade de captação de recursos, no montante de US$ 250 milhões, relativo a chamada de projetos de descarbonização em segmentos industriais, onde o governo brasileiro busca se qualificar.  A Plataforma BIP, gerenciada pelo BNDES, é outra iniciativa neste sentido, elencando um portfólio de projetos em desenvolvimento.

Em relação aos pedidos de conexão à rede básica de transmissão relativo aos projetos de hidrogênio eletrolítico, decorrentes de iniciativas de projetos e H2BC, observou-se um crescimento acentuado das demandas nos últimos anos, chegando a um montante de 50 GW.  Deste total, selecionou-se um subconjunto de 4 GW a fim de se promover estudos relativos aos investimentos necessários, assim como sua geolocalização, com previsão de conclusão dos estudos até o final do ano pela EPE.

Ainda que não tenha sido apresentada a minuta do decreto em elaboração sobre o Rehidro e PHBC, nem tampouco uma lista das suas principais diretrizes, é possível inferir que alguns aspectos já estão definidos. Entre eles destaca-se:

  1. Está claro que, visando atender aos preceitos da Lei 14.990, serão adotados leilões como mecanismo competitivo na concessão dos créditos fiscais, que somam o montante de R$ 18,3 bilhões, a serem concedidos no período entre 2028/2032. Provavelmente, serão leilões do tipo A-3 ou A-4, com um intervalo temporal plurianual até o início da produção, por parte dos projetos apoiados, e início da comercialização do H2BC.  Não será tampouco um único leilão para concessão de toda a subvenção prevista no PHBC. É mais provável uma série de leilões, cujas diretrizes principais estarão definidas e customizadas no edital de cada leilão. O decreto, a ser em breve publicado. tende a ser mais geral, abrindo possibilidade para que, por meio dos editais, o foco de cada leilão venha sofrer ajustes ao longo do tempo. Por exemplo, no primeiro leilão, pode-se ter como foco a comercialização do H2BC de projetos voltados para segmentos industriais do mercado interno. Em um segundo momento, direcionar o apoio para projetos de maior escala, direcionados para mercados externos;
  2. Os projetos que visam exportações de H2BC poderão, uma vez localizados em ZPE’s, acumular os incentivos previstos para estas áreas, com os incentivos proporcionados pelo Rehidro e pelo PHBC. Inclusive os projetos que vierem a ser apoiados pelo PD&I da Aneel poderão acumular incentivos;
  3. Os segmentos industriais que se destacam, em um primeiro momento, são a cadeia de valor da siderurgia, refino, fertilizantes, cimento, químico e transporte pesado

Por fim, cabe destacar que a estratégia brasileira na nascente indústria do hidrogênio de baixo carbono, nas palavras do Secretário do MME, é dual, isto é, vale-se tanto das oportunidades proporcionadas pela neoindustrialização, como do potencial do mercado interno e seu adensamento industrial. Iniciativas autóctones, que trazem uma visão endógena, com base nos recursos internos, poderão atuar como alavancas para ganhar escala, adensar a cadeia de valor, permitindo maior competitividade no mercado externo. Não existe antagonismos entre o foco no mercado interno e externo, ao contrário, são vetores complementares e sinérgicos. A abertura para diferentes rotas tecnológicas, amplia as possibilidades de protagonismo de um maior número de stakeholders, inclusive na dimensão regional.

Os sinais para a nascente indústria do H2BC, no Brasil, são promissores: foi reafirmado, por mais de uma vez, que os compromissos com a agenda do H2BC não estão à mercê das intempéries da geopolítica internacional. Ao contrário, é o momento de o Brasil galgar vantagens competitivas, despontando à médio prazo como um país ainda mais relevante e líder mundial em energias renováveis, dispondo de produtos industriais em diversos segmentos como siderurgia, fertilizantes e mineração, com baixas emissões de GEE.

Mas, conforme lembrado no evento por especialistas da Agência Internacional de Energia (IEA), as três maiores prioridades na economia do H2BC são: i) demanda; ii) demanda e iii) demanda. Não se afastar desta preocupação, promover mecanismos competitivos, com alta transparência, evitar que agentes venham capturar privilégios e gerar barreiras, como no caso das conexões, são diretrizes importantes que favorecem o ambiente de negócios e a maturação dos projetos, atraindo investidores e financiadores.

Uma preocupação, todavia, permanece: foi mencionado que apenas por alteração na Lei seria possível estender o prazo de utilização dos incentivos previstos pelo o PHBC para além do período 2028/2032. A restrição apresentada na Lei 14.990, não quanto o montante de recursos de créditos fiscais, que são bastante expressivos, nem quanto ao seu prazo de concessão, entre 2028/2032, mas quanto à sua utilização financeira em apenas cinco anos, poderá restringir o período de incentivo para os contratos e compra e venda de H2BC.

Melhor seria se o uso do crédito fiscal pudesse se dar por um prazo mais longo, por exemplo, 2028/2038, sem aumentar o montante da subvenção. Neste caso haveria, maior incentivo para estabelecer contratos de longo prazo de H2BC, viabilizando que os projetos fossem estruturados financeiramente com base na modelagem do tipo project finance. É preciso estruturar projetos com fluxo de caixa estáveis e previsíveis, gerando recebíveis de longo prazo.

Os dois instrumentos regulatórios apresentados no Webinar, o PHBC e Rehidro, com foco no custo de capital dos projetos, reduzindo o Capex, aliando ao PHBC, com expressivos incentivos para reduzir o Opex dos projetos, abrem perspectivas da agenda do H2BC apresentar avanços expressivos nos próximos anos. Representam um norte estratégico bem definido.

Em que pese a conjuntura internacional apresentar um quadro de desafios à agenda de descarbonização, os formuladores da política pública no Brasil, ao contrário, corretamente, entendem o cenário atual como oportunidade para se reafirmar os compromissos brasileiros com redução do GEE e combate às mudanças climáticas, potencializando desenvolvimento econômico, acordos de cooperação e toda uma cadeia de valor para uma nova industrialização. O representante do MF não deixou dúvidas quanto a esta diretriz. É alvissareiro constatar que o Brasil tenha encontrado seu caminho, em termos de regulação e incentivos das políticas públicas, na nascente indústria do H2BC.


[1] O Regime Especial de Incentivos para a Produção de Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (Rehidro) é um programa de incentivos fiscais no qual, uma vez que a empresa é enquadrada, são suspensas as cobranças do COFINS, PIS/PASEP e variantes de importações, incidentes sobre a aquisição de bens e serviços. Comprovada a realização dos investimentos, a alíquota aplicável passa a ser zero. É possível que os benefícios fiscais das ZPE’s e do REIDI sejam acumulados. Os projetos enquadrados no Rehidro tornam-se elegíveis para emissão de debêntures incentivadas. Benefícios do Rehidro incidem sobre o Capex.

[2] O Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (PHBC) é uma política de créditos fiscais, que soma R$ 18,3 bilhões, a serem aplicados no período 2028/2032. Contempla critérios de elegibilidade baseados na intensidade de descarbonização, com foco em setores industriais estratégicos. Os benefícios do PHBC incidem sobre o Opex.


Katia Rocha. Técnica de Planejamento e Pesquisa IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br. É colunista da WebAdvocacy (página).

Nelson Siffert – Diretor ICT – Resel e Bolsista PNPD do IPEA. E-mail: nfsfooo@gmail.com


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Lei nº 14948, de agosto de 2024

60 anos da Autoridade Monetária Brasileira

Leandro Oliveira Leite

Em 2025, o Banco Central do Brasil (BCB) completou seis décadas de atuação como autoridade monetária, cambial e regulatória do país. Desde sua fundação, em 1965[1], o BCB tem desempenhado um papel fundamental na estabilidade econômica brasileira, construindo credibilidade e se reinventando ao longo do tempo para acompanhar os avanços tecnológicos e as melhores práticas internacionais.

A celebração dessa trajetória, com a presença de ex-presidentes da autarquia, foi mais do que um momento de reconhecimento institucional – um olhar pelo retrovisor – sendo também uma reafirmação do papel proativo que o BCB tem assumido em nível internacional. A instituição não apenas se alinha com boas práticas globais, como também lidera inovações regulatórias e tecnológicas, com uma postura firme, estratégica e vanguardista.

O Banco consolidou-se como uma das instituições públicas mais inovadoras do Brasil. Um dos pontos mais destacados na cerimônia de seus 60 anos foi justamente a capacidade da autarquia de se manter na fronteira do conhecimento e da tecnologia, contribuindo não só para o progresso interno, mas também influenciando a agenda global de estabilidade e inovação financeira.

Após a implementação do Plano Real, que representou um divisor de águas no combate à hiperinflação, o Banco Central passou a ser liderado por presidentes que impulsionaram sua modernização institucional e a concorrência no sistema financeiro. Gustavo Loyola, que presidiu o BCB entre 1995 e 1997, teve papel relevante na transição entre os governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, reforçando o compromisso com a estabilidade de preços e a política monetária mais previsível, além de contribuir para a consolidação dos pilares do Plano Real. Seu sucessor, Gustavo Franco, além de ser um dos idealizadores do Plano Real, implementou medidas de saneamento do sistema financeiro nacional, como os programas PROER e PROES, fundamentais para enfrentar fragilidades bancárias remanescentes do período inflacionário.

Na sequência, Armínio Fraga (1999–2003) assumiu o comando do BCB em um contexto de forte volatilidade cambial e crise de confiança nos mercados emergentes. Sua gestão foi marcada pela introdução do regime de metas para a inflação, que se tornou um dos principais marcos da política monetária brasileira, e por uma atuação decisiva na estabilização macroeconômica durante um período crítico, com políticas ancoradas em transparência e previsibilidade.

Henrique Meirelles (2003–2011) conduziu o Banco durante um dos mais longos períodos de estabilidade macroeconômica do país, com foco na autonomia operacional da instituição. Sob sua liderança, o BCB ganhou musculatura para atuar de forma independente, contribuindo de forma decisiva para o controle da inflação e a solidez bancária. Durante a crise financeira global de 2008, o Banco Central teve papel central na adoção de medidas que garantiram a resiliência do sistema financeiro brasileiro frente à turbulência internacional.

Ilan Goldfajn (2016–2019) trouxe uma nova agenda institucional com a iniciativa BC+, voltada à inclusão, à competitividade, à transparência e à educação financeira. Sua gestão deu início a importantes projetos de transformação digital no sistema financeiro, como o Open Banking e o desenvolvimento do Pix, iniciativas que visavam aumentar a eficiência e a concorrência no setor.

Roberto Campos Neto (2019–2024) deu continuidade e profundidade a essas transformações. Sob sua liderança, o Banco Central acelerou a digitalização dos serviços financeiros com a consolidação do Pix[2] e a implementação do Open Finance, ampliando a inclusão financeira no país. Outro marco foi a aprovação da lei que conferiu autonomia formal ao Banco Central, blindando a política monetária de influências políticas de curto prazo e fortalecendo a credibilidade institucional.

Essas lideranças, cada uma a seu modo, modernizaram a autoridade monetária brasileira, posicionando o país entre as economias que combinam estabilidade macroeconômica com inovação e competição no mercado financeiro. Em 2024, Gabriel Galípolo assumiu a presidência da instituição com o desafio de, junto ao corpo técnico altamente qualificado do Banco Central, dar continuidade ao processo de modernização, incentivo à concorrência e promoção de inovação financeira.

Durante as comemorações dos 60 anos, foi enfatizado o papel do Banco em adotar referências internacionais como benchmarks. Ainda mais relevante, no entanto, foi o reconhecimento de que, diante da ausência de padrões consolidados, o Brasil tem assumido a dianteira, oferecendo soluções inovadoras e se tornando referência global. Essa postura rompe com a lógica segundo a qual países em desenvolvimento devem apenas seguir diretrizes externas. Ao contrário, o BCB vem se consolidando como um laboratório vivo de políticas públicas e inovações financeiras com impacto internacional.

Nos discursos transmitidos pelo canal oficial da instituição no YouTube[3], destacou-se que o Banco busca constantemente as melhores práticas globais, mas, quando elas não existem, lidera com responsabilidade e visão estratégica. Inovação e regulação, longe de serem antagônicas, são vistas como complementares e essenciais para uma autoridade que busca estabilidade sem abrir mão do futuro. O alinhamento às diretrizes do BIS, do FMI e de outras entidades internacionais permanece como base, mas o protagonismo do BCB em propor soluções inéditas tem chamado atenção de todo o mundo.

Exemplos não faltam. O Pix, sistema de pagamentos instantâneos desenvolvido e gerido pelo Banco Central, tornou-se uma das maiores histórias de sucesso de inovação financeira mundial, algo comparável apenas ao sistema UPI[4] da Índia. Em poucos anos, o Pix superou o uso de dinheiro e cartões, tornando-se o principal meio de pagamento no país. A revista The Economist[5] destacou seu impacto transformador, especialmente por seu caráter público, gratuito e universal.

Outras iniciativas de vanguarda incluem o LIFT (Laboratório de Inovações Financeiras e Tecnológicas)[6], o Sandbox Regulatório[7] – que permite testar inovações em ambientes controlados – e o Open Finance[8], que garante aos consumidores o poder sobre seus dados e estimula uma nova dinâmica de competição entre instituições financeiras.

Mais recentemente, o desenvolvimento do Drex[9], a versão digital do real, inseriu o Brasil nas discussões globais sobre moedas digitais emitidas por bancos centrais (CBDCs). Com um diferencial importante, o BCB não apenas replica modelos internacionais, mas busca soluções adaptadas à realidade e às necessidades brasileiras, com foco em segurança, eficiência e inclusão.

A autonomia formal conquistada com a Lei Complementar nº 179/2021[10] foi um divisor de águas. Os mandatos fixos e não coincidentes com o do Chefe do Executivo conferem estabilidade institucional, afastando pressões de curto prazo e reforçando a previsibilidade das decisões de política monetária[11]. Essa autonomia fortalece a ancoragem das expectativas de inflação e contribui para a redução das taxas de juros estruturais no médio e longo prazo.

Importante frisar que autonomia não significa isolamento. Pelo contrário, ela exige mais transparência, responsabilidade e diálogo com a sociedade. Os instrumentos de governança, como o regime de metas de inflação, os relatórios periódicos (Relatório de Inflação, Atas do Copom) e a prestação de contas ao Congresso Nacional são pilares dessa nova era de independência com accountability.

O conjunto de iniciativas lideradas pelo Banco Central reforça seu compromisso com a modernização da economia brasileira, com a inclusão financeira e com a estabilidade do sistema financeiro. Paralelamente, a autarquia atua de forma decisiva em áreas como educação financeira, sustentabilidade (ESG[12]), inovação regulatória e fomento à livre concorrência – contribuindo, assim, para um desenvolvimento mais equilibrado e sustentável do país.

A postura estratégica adotada pelo BCB ao longo dessas seis décadas reflete não apenas um alinhamento com as melhores práticas internacionais, mas também um protagonismo genuíno na definição de novas rotas para temas ainda em construção no cenário global.


[1] O Banco Central do Brasil é uma autarquia federal autônoma integrante do Sistema Financeiro Nacional sem vinculação a Ministério. Foi criado em 31 de dezembro de 1964 pela Lei nº 4 595 e iniciou suas atividades em março de 1965, tendo em vista que a Lei nº 4 595 entrou em vigor 90 dias após sua publicação.

[2] Pix: Sistema de pagamentos instantâneos lançado em 2020, que rapidamente se tornou o meio de pagamento mais utilizado no Brasil, superando o uso de dinheiro e cartões. Sua eficiência e gratuidade para pessoas físicas chamaram a atenção de autoridades monetárias de todo o mundo.

[3] Sessão vespertina do evento “Parte da nossa história”: https://www.youtube.com/live/oVvJiWQXrlM

[4] O Unified Payments Interface (UPI) é o sistema de pagamento instantâneo da Índia, semelhante ao Pix do Brasil.

[5] https://www.economist.com/the-americas/2025/04/03/brazils-government-run-payments-system-has-become-dominant

[6] LIFT (Laboratório de Inovações Financeiras e Tecnológicas): Espaço colaborativo criado para fomentar o desenvolvimento de soluções financeiras tecnológicas em parceria com o setor privado.

[7] Sandbox Regulatório: Ambiente controlado de testes que permite a empresas desenvolverem modelos de negócio inovadores, sob supervisão regulatória, com riscos mitigados.

[8] Open Finance (inicialmente Open Banking): Projeto que amplia o controle do cidadão sobre seus dados bancários, promovendo mais competição, inovação e inclusão financeira.

[9] Drex: A moeda digital do Banco Central (CBDC), ainda em fase de testes, representa a evolução da política monetária e financeira em um contexto de digitalização crescente da economia.

[10] A Lei Complementar nº 179, de 24 de fevereiro de 2021, define os objetivos do Banco Central do Brasil (BC) e estabelece a sua autonomia. A lei também regula a nomeação e exoneração dos dirigentes do BC. 

[11] BCs de vários países já têm autonomia (fonte CNN): https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/bcs-de-varios-paises-ja-tem-autonomia/

[12] ESG é a sigla em inglês para “Environmental, Social and Governance”, que significa “Ambiental, Social e Governança” em português. É um conjunto de práticas e critérios que avaliam a sustentabilidade, responsabilidade social e gestão.


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


Leia outros artigos do colunista Leandro Oliveira Leite sobre a Autoridade Monetária do Brasil

Instituições financeiras e sustentabilidade: os novos padrões de relatórios. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Leandro Oliveira Leite. 24 de fevereiro de 2025. 

Projeto Aperta: o open finance transfronteiriço. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Leandro Oliveira Leite. 20 de janeiro de 2025.

IA no setor público: BC e outros órgãos avançam. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Leandro Oliveira Leite. 29 de outubro de 2024.

Prioridades regulatórias do Banco Central em 2024. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Leandro Oliveira Leite. 29 de maio de 2024.

Saiba mais sobre a história da Autoridade Monetária do Brasil

História

A regulação experimental e a esfera municipal: um déficit no Guia de Sandbox AGU-SCPR/MDIC

Nathan de Oliveira Salani Athaide

1. Contexto e Importância do Guia Referencial da AGU

Em 21 de novembro de 2024, foi lançado o Guia Referencial de Sandbox Regulatório (Guia de Sandbox AGU-SCPR/MDIC), que define diretrizes para a criação de ambientes regulatórios experimentais no âmbito da administração pública.

O Guia Referencial é um marco na modernização da política regulatória no Brasil, oferecendo uma base para que Estados e Municípios assumam um papel protagonista no estímulo ao empreendedorismo e à tecnologia. Ao adotar essas práticas, os governos locais não apenas fomentam o crescimento econômico, mas também criam condições para que a sociedade como um todo desfrute dos benefícios da inovação. O resultado é um Brasil mais competitivo, inclusivo e preparado para os desafios do futuro.

O documento foi desenvolvido pelo Laboratório de Inovação da Advocacia-Geral da União (Labori/AGU), em colaboração com a Secretaria de Competitividade e Política Regulatória do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (SCPR/MDIC). Seu objetivo é facilitar a implementação de sandboxes regulatórios no Brasil, garantindo segurança jurídica para testar inovações regulatórias com a participação de agentes regulados, com base em procedimentos e entendimentos padronizados.

Ademais, o Guia se fundamenta em experiências federativas (municipais, estaduais e federais) e se apresenta como um instrumento orientador para ações inovadoras. Ele permite adaptações a cenários emergentes, decorrentes dos novos desafios regulatórios, ao mesmo tempo em que busca ser flexível e aplicável a diferentes contextos e localidades para o uso de sandboxes regulatórios no país.Para atingir seus objetivos de facilitar a implantação e o funcionamento de sandboxes regulatórios, o Guia foi estruturado com base em três linhas de ação principais:

i) A realização de uma análise exploratória de experiências nacionais relacionadas à regulamentação e/ou implementação de sandboxes regulatórios, a maioria conduzida pela Administração Pública em seus níveis federal, estadual e municipal;

ii) A incorporação das contribuições obtidas por meio da Tomada de Subsídios 01/2024 – Sandbox Regulatório, promovida pelo Laboratório de Inovação da Advocacia-Geral da União (Labori), entre 25 de junho e 24 de julho de 2024. Essa consulta, realizada pela Plataforma Participa Mais Brasil na ferramenta Opine Aqui, teve como objetivo assegurar a participação de partes interessadas e da sociedade, recebendo 13 valiosas contribuições que foram revisadas e integradas ao documento;

iii) A identificação e a análise de pareceres jurídicos elaborados no contexto das experiências nacionais mapeadas, destacando as principais recomendações emitidas por consultorias jurídicas e procuradorias federais especializadas da AGU, vinculadas a instituições da Administração Pública Federal, tanto direta quanto indireta.

Dessa forma, o Guia Referencial vai além de uma simples orientação técnica, servindo como uma ferramenta estratégica para que os diversos níveis de governo ajustem suas iniciativas às dinâmicas de um mundo em constante mudança. A ideia de estabelecer ambientes regulatórios experimentais, como o sandbox, reforça o papel do Brasil no contexto internacional e promove o avanço de uma cultura de inovação em todas as partes do território nacional.

2. Definição de Sandbox Regulatório

Sandbox, traduzido literalmente, significa “caixa de areia” e faz alusão ao espaço de recreação infantil onde as crianças brincam de forma segura e isolada, sob a supervisão dos adultos. De maneira similar, no contexto da informática, o termo é usado para descrever um ambiente controlado e separado, projetado para a execução experimental de novos códigos, garantindo que o sistema operacional ou outros programas não sejam impactados.

Já no âmbito da legislação brasileira, a Lei Complementar n° 182/2021, que criou o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador, foi responsável pela introdução do conceito de “sandbox regulatório”, definido como um ambiente regulatório experimental[1]. Segundo o artigo 2º, inciso II, da referida lei, trata-se de um “conjunto de condições especiais simplificadas” que permite às pessoas jurídicas participantes obter uma autorização temporária de órgãos ou entidades competentes na regulamentação setorial.

Essa autorização visa ao desenvolvimento de modelos de negócios inovadores e à experimentação de técnicas e tecnologias ainda em teste, desde que sejam respeitados critérios e limites previamente estabelecidos pelo regulador, com um processo de aprovação simplificado. Assim, por meio da regulação sandbox, é possível solucionar problemas regulatórios sem a necessidade de instrumentos como Análise de Impacto Regulatório (AIR), Avaliação de Resultado Regulatório (ARR), entre outros.

Portanto, o Sandbox Regulatório é um cenário em que o órgão regulador permite que alguma empresa opere com regras diferentes das demais, por um período de tempo determinado, possibilitando o teste de alguma inovação sem o risco de incidir penalidades, por meio do afastamento temporário das normas regulatórias.

Em vista disso, o Guia de Sandbox ora analisado pretende orientar a implementação de sandboxes regulatórios por instituições nacionais, apontando recomendações importantes para cada uma das etapas desse processo e garantindo a sua segurança jurídica no estímulo à inovação junto a reguladores e regulados.

3. Competências Regulatórias e Regulação Experimental

As competências regulatórias da autoridade implementadora do sandbox foram abordadas pelo Guia, tendo em vista que à autoridade reguladora devem ser atribuídas competências públicas para formalizar o sandbox, cujo desempenho exige a edição de atos imperativos e unilaterais, com conteúdo de observância obrigatória para regulados. Nesse contexto, o documento recomenda avaliar se a autoridade reguladora proponente possui competência para abordar o desafio ou a oportunidade pretendida por meio do sandbox, além de verificar se outros setores poderiam ser impactados pela iniciativa[2]. Assim, é imprescindível analisar se a autoridade reguladora tem competência para emitir o ato normativo que formaliza o sandbox, considerando possíveis atribuições concorrentes e a existência de intersetorialidade no projeto.[3].

Quanto à previsão normativa dessa competência, há o permissivo legal para adoção do sandbox regulatório, que se fundamenta no art. 11 do Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador (Lei Complementar nº182/2021). Nesse sentido, o caput do dispositivo dispõe que órgãos e entidades da administração pública responsáveis pela regulamentação setorial poderão implementar os sandboxes regulatórios[4]. Esses órgãos podem (i) suspender, temporariamente, a aplicação de normas sob sua competência para permitir a experimentação regulatória; e (ii) regulamentar critérios, alcance e duração das flexibilizações normativas aplicadas no sandbox (LC nº182/2021, art.11, §3º, I, II e III).

Dessa forma, diante de uma lacuna regulatória ou da necessidade de adaptar normas para viabilizar a experimentação de uma inovação, o uso do sandbox regulatório torna-se uma solução adequada para realizar testes experimentais em um setor regulado. Isso se deve ao fato de que, frequentemente, as normas vigentes podem ser inadequadas ou insuficientes para acomodar o modelo inovador, gerando obstáculos à sua implementação. No que se refere às flexibilizações normativas promovidas pelo sandbox, caso estas envolvam normas infralegais, como resoluções ou instruções normativas, elas devem ser administradas dentro dos limites da competência do regulador responsável ou do conjunto de reguladores envolvidos no processo.

Ante o exposto, ao tratar da autorização legal, a Lei Complementar nº 182/2021 previu a possibilidade de órgãos e entidades da administração pública com competência de regulamentação setorial possam, individualmente ou em colaboração, afastar temporariamente a incidência de normas sob sua competência. Por consequência, a entidade promotora da regulação experimental deverá detalhar, por meio de legislação específica ou regulamentação complementar, os procedimentos, os critérios de seleção e as condições para participação, observando sempre a legalidade e a segurança jurídica dos participantes e da sociedade.

4. O papel das competências municipais no sandbox: uma questão desconsiderada pelo Guia da AGU.

Quanto aos instrumentos disponíveis ao Município para instituir o sandbox regulatório, o Guia se limita a pontuar que, nas esferas estadual e municipal, a experiência mostrou uma preferência pela utilização de Leis e/ou Decretos para a regulamentação dos ambientes regulatórios experimentais.

Sem dúvida, o documento apresentou um tratamento abrangente acerca das competências regulatórias para a implementação de sandboxes. Contudo, um ponto essencial foi negligenciado: a questão das competências específicas do Poder Executivo municipal. Este é o aspecto de maior relevância prática e requer detalhamentos, pois trata diretamente da aplicação e viabilidade do instrumento no âmbito local, onde a atuação regulatória frequentemente se manifesta de forma mais direta e imediata e, por consequência, exige a regulamentação do sandbox.

Há uma ampla diversidade de formas pelas quais um sandbox regulatório pode ser institucionalizado nos municípios. Por exemplo, a criação de um ambiente experimental pode ser viabilizada por meio de um decreto municipal[5], limitado às competências exclusivas do Poder Executivo, permitindo agilidade e simplicidade no processo de implementação. Por outro lado, também é possível optar por um projeto de lei (PL) que trata de uma atividade econômica específica, estabelecendo uma flexibilização normativa temporária de maior alcance e respaldada pelo Legislativo[6].

Essas opções, no entanto, dependem de variáveis, como o contexto político, a composição do Executivo e do Legislativo municipais, bem como o grau de disposição política para inovar. Nesse cenário, o alinhamento entre essas instâncias e a escolha do instrumento normativo adequado são determinantes para o sucesso da implementação, mas tais nuances não foram devidamente exploradas no documento.

A ausência dessa discussão no documento pode representar uma lacuna significativa, especialmente considerando a heterogeneidade dos municípios brasileiros em termos de capacidade administrativa, contexto político e prioridades econômicas. Portanto, recomenda-se que o Guia seja revisitado para incluir orientações claras e práticas voltadas à realidade do Poder Executivo municipal, abordando as diferentes possibilidades de regulamentação e os critérios para escolha do modelo mais apropriado em cada contexto.

5. Conclusão

Portanto, o Guia Referencial de Sandbox Regulatório apresenta-se como uma ferramenta estratégica para orientar a criação de ambientes regulatórios experimentais no Brasil, fornecendo parâmetros que abrangem desde a definição e os fundamentos legais até a análise de competências regulatórias.

Ao longo do texto do Guia, são destacados os esforços para consolidar contribuições, promover segurança jurídica e alinhar práticas regulatórias às inovações tecnológicas, reforçando o papel do país no cenário global. Além disso, a análise das competências regulatórias dos entes públicos enfatizou a importância de instrumentos normativos claros para viabilizar a experimentação, sobretudo frente às lacunas e inadequações normativas que muitas vezes impedem a adoção de modelos inovadores.

Não obstante, um aspecto de importância prática concentra-se nas competências específicas do Poder Executivo municipal, tópico que poderá demandar a inclusão de aprofundamento futuro no Guia. Isso porque, no âmbito municipal, a regulamentação do sandbox pode ser realizada por meio de decretos, valorizados por sua rapidez, ou por projetos de lei, que proporcionam um escopo normativo mais amplo. Por consequência, a definição do instrumento mais apropriado deve levar em conta as características particulares de cada município, incluindo sua capacidade administrativa, prioridades econômicas e cenário político.

Assim, é essencial que futuras revisões do Guia incluam diretrizes claras e adaptadas às realidades municipais, garantindo que o sandbox regulatório possa ser efetivamente implementado em todas as esferas de governo.


[1] Entende-se por ambiente regulatório o que estipula o art 2º, II, da Lei Complementar nº 182 de 01 de junho de 2021:

Art. 2º Para os efeitos desta Lei Complementar, considera-se:

[…] II – ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório): conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado. (Brasil, 2021).

[2] Caso se configure alguma dessas situações, o Guia propõe a realização de ações de coordenação para promover coerência e convergência regulatória, o que tende a ser cada vez mais comum devido à complexidade crescente das inovações e, principalmente, à convergência tecnológica que geralmente envolve mais de um setor.

[3] Nesse último caso, deve-se apontar, se for o caso, a necessidade de início do diálogo intersetorial, mediante consulta às demais entidades e órgãos envolvidos na pluralidade de setores regulados. Tal constatação poderá demandar, inclusive, a instituição de estrutura de governança conjunta, o que poderá ser recomendado no opinativo, se for o caso.

[4] No exercício dessa competência, poderá haver a necessidade de colaboração entre as autoridades reguladoras caso os projetos selecionados ou os temas priorizados afetem mais de um setor regulado. 

[5]  Nesse sentido, o Rio regulamentou o sandbox regulatório a partir do Decreto Municipal nº 50.697/2022, que já tem servido de modelo para outros municípios. A inovação aberta no município só foi possível a partir da estruturação, em norma infralegal, de uma governança pública adequada à iniciativa.

[6]  A título de exemplificação, a Lei Municipal 16344/2024 (Lei do Sandbox Regulatório de Curitiba) fixa uma política pública para o teste de produtos e serviços inovadores – cujas regras, até então, estavam definidas em um decreto municipal. O projeto que deu origem à legislação tramitou na Câmara Municipal entre dezembro de 2020 e maio de 2024. A referida lei prevê autorizações temporárias de operação por até dois anos, desde que a atividade se enquadre como negócio inovador.


Nathan de Oliveira Salani Athaide. Graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP). Atualmente, é estagiário no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Intercambista pela 44ª edição do Programa de Intercâmbio do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (PinCade). Pesquisador bolsista PIBIC/CNPq na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Possui experiências acadêmicas e profissionais nas áreas de defesa da concorrência, regulação e contratações públicas.


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Nathan de Oliveira Salani Athaide

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As pessoas físicas e o processo no CADE

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Não é de hoje que o tema “pessoas físicas” implica em discussões no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e entre os advogados. Muito já se discutiu sobre a abrangência da Lei de Defesa da Concorrência (LDC)[1], e se ela autorizaria a instauração de processo administrativo, investigação e condenação apenas dos administradores das empresas investigadas ou, como é a prática, se toda pessoa física a ela relacionada, e supostamente com participação nos fatos investigados, deveria ser processada pela autarquia[2].

Atualmente, a discussão que vem novamente à tona envolve a efetividade da inclusão das pessoas físicas no processo, dadas as dificuldades encontradas pelo CADE para a notificação destas pessoas, em especial aquelas residentes no exterior, assim como o tempo despendido para a realização efetiva de todas as diligências necessárias para o reconhecimento de uma notificação válida[3] dos representados de um processo, além da instrução envolvendo muitas pessoas e a produção das provas por elas requeridas.

A notificação válida é um ato processual indispensável para o pleno exercício do direito ao contraditório e ampla defesa, razão pela qual, evidentemente, os requisitos de validade deste ato não podem ser abreviados pela autoridade, que, geralmente, pode levar anos para finalizar a fase processual de notificação dos representados.

Diante deste cenário, em julgamento[4] realizado pelo Tribunal do CADE no dia 12.02.2025, ao proferir o seu voto em um processo originado[5] do conhecido processo que julgou o cartel dos Cimentos[6], o Conselheiro Relator Carlos Jacques Vieira Gomes fez ressalvas acerca da utilidade de persecução administrativa das pessoas físicas participantes de um cartel. De acordo com o Conselheiro, há a necessidade de uma maior reflexão acerca dos custos envolvidos na persecução de pessoas físicas e seus potenciais ganhos, incluindo-se, e principalmente, o poder dissuasório da autoridade concorrencial.

Isto porque, e de acordo com seu voto, diversos obstáculos para essa persecução são conhecidos pelos operadores da área e pela autoridade, tais como,  (i) a dificuldade encontrada para a notificação das pessoas físicas, principalmente as residentes no exterior, que enseja, muitas vezes em desmembramentos destes processos com o intuito de reduzir a demora na análise e julgamento da questão posta em juízo; (ii) a efetividade da notificação feita pelo edital, já que, geralmente, os processos seguem à revelia com relação aos representados estrangeiros notificados por esta via; (iii) discussões acerca da prescrição intercorrente e se os atos originários se aproveitam nos processos desmembrados para fins de interrupção da prescrição (“tema muito mais complexo do que se parece”); (iv) distorções do devido enforcement concorrencial, em razão do lapso temporal existente entre a conduta e o julgamento, que “não pode ser tomado com naturalidade por uma autoridade que preze pelo enforcement de suas decisões e busque sinalizar segurança jurídica para o mercado”.

Neste sentido, o Conselheiro convida a refletir se os esforços empreendidos na investigação e condenação de pessoas físicas envolvidas em cartel realmente fazem sentido ou se “seria algo que deveria ser deixado para a esfera penal – notadamente com maior poder dissuasório”, destacando já ter a doutrina levantado esta ideia. Reforça, ao final, ser a conduta de cartel a mais grave no ordenamento concorrencial, mas destaca que este fato não significa que o CADE deve ser o único órgão responsável pela investigação e punição da conduta, podendo, talvez, existir outras formas de enforcement mais eficientes e com maior poder dissuasório.

Muito embora a reflexão provocada pelo ilustre Conselheiro seja válida, outros aspectos devem ser considerados, o que, podemos antecipar, implica em nossa discordância de seu entendimento. Em primeiro lugar, e o Conselheiro não nega, a Lei de Defesa da Concorrência é clara no sentido de que o CADE tem legitimidade, e a obrigação, de incluir, na sua investigação, as pessoas físicas participantes da conduta, fato indiscutível. Desta forma, para que a autarquia assim deixasse de agir, e visando a segurança jurídica[7], necessária seria uma reforma da LDC, na medida em que, embora outras esferas estejam autorizadas a realizar a persecução em face das mesmas pessoas, como a penal, por exemplo, a própria jurisprudência do CADE e dos demais tribunais são pacíficas no sentido da independência das esferas administrativas, cível e penal, e que a condenação em cada uma delas não configura bis in idem.

Caso alterada a LDC, para o fim de permitir à autoridade concorrencial representar apenas contra as pessoas jurídicas participantes de um cartel, ficaria a responsabilidade, pelo enforcement, da autoridade penal. Ora, ainda que se altere também a lei penal, para dar mais ferramentas e elementos de investigação às autoridades por isso responsáveis, resta o fato de que o crime de cartel é punido com penas de 2 a 5 anos. Considerando-se que os indivíduos responsáveis, a princípio, devem ser primários e de bons antecedentes, suas penas poderão ser substituídas por ações sociais e equivalentes. Além do que se pode, sempre, negociar um acordo de não persecução penal (ANPP), evitando-se o risco de uma ação. Esse é o efeito dissuasório que se espera?

Os processos no CADE, com a eficiência, respeito e notoriedade que  o Órgão adquiriu ao longo dos anos, afetam imediatamente a imagem das pessoas, bem como a parte mais sensível do seu corpo: o bolso. Alterar a lei para, talvez, não permitir às empresas que paguem as multas de seus indivíduos, pode ser um passo interessante nesse sentido da dissuasão. Ser mais discricionário para incluir pessoas físicas em um processo, é outro passo, aumentando a exigência de um padrão probatório mínimo para justificá-lo. Usar o instrumento da conveniência e da oportunidade para não incluir pessoas físicas residentes no exterior. Tudo isso, aliás, o CADE já vem fazendo, desde o voto do seu Presidente Alexandre Cordeiro, no PA PA 08700.007776/2016-41, em 17.04.2024, quando ressaltou que diante dos obstáculos “na comprovação cabal de cartéis, cabe à autoridade angariar todas as evidências disponíveis, sejam provas diretas ou indiretas (circunstanciais) do conluio. Deve ser identificada a suficiência do conjunto probatório para uma decisão de não arquivamento, de forma a condenar apenas representados, cuja participação no ilícito seja inequívoca[8][9]

Desta forma, entendemos que o poder dissuasório do CADE, em relação às pessoas físicas, existe e não deve ser desprezado. O processo penal, nos moldes em que está hoje, não deverá cumprir o mesmo papel.

Já no que concerne às dificuldades encontradas com a notificação das pessoas físicas, nosso entendimento está em harmonia com o do ilustre Conselheiro, principalmente no que se refere ao tempo despendido para a realização de todos os atos necessários para a validade do ato, assim como com relação à efetividade da notificação do representado estrangeiro. Neste ponto, inclusive, sempre surgem algumas questões: é possível afirmar que, efetivamente, a relação jurídica processual é estabelecida entre a Administração Pública (CADE) e o investigado que reside no exterior, quando a sua notificação é realizada via edital, cuja publicação é realizada em âmbito nacional? Desta forma, é possível afirmar a observância plena, pela autoridade, dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa com relação a estes representados que, certamente, sequer têm ciência acerca da investigação, julgamento e, não poucas vezes, de suas condenações? Desde o nosso ponto de vista, a resposta para esses questionamentos é negativa.

Neste sentido, tem-se que, e como dito, seria necessário, e dentro da discricionariedade que lhe é permitida, uma análise mais aprofundada pela autoridade antitruste acerca da conveniência da instauração do processo administrativo em face de pessoas estrangeiras, de modo, inclusive, a não deixar de lado a observância de princípios constitucionais basilares, como o são os do contraditório e ampla defesa.

Muito há de se discutir e refletir sobre essa questão e, assim como as discussões acerca da prescrição intercorrente e se os atos originários se aproveitam nos processos desmembrados para fins de interrupção da prescrição, esse será um tema muito mais complexo do que parece, a ser discutido e solucionado pelo CADE.


[1] Lei 12.529/2011.

[2] A jurisprudência majoritária assente no sentido de que toda e qualquer pessoa física, supostamente com participação nos fatos, poderá ser inserida na investigação ou processo administrativo. Entendimento contrário, poderá ser verificado no voto do Conselheiro Sérgio Ravagnani, em 16.11.2020, acompanhado pelas Conselheiras Lenisa Prado e Paula Farani, no PA 08700.000066/2016-90.

[3] Seção III – Da Ciência e dos Prazos Processuais, do Regimento Interno do CADE. (Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/regimento-interno/Regimento-interno-Cade-versao-14-04-2023.pdf ). Acesso 24.03.2025.

[4] 242ª Sessão Ordinária de Julgamento

[5]PA 08700.003528/2016-21 (Restrito nº 08700.008679/2014-03). Representante CADE ex officio. Representados Fernando Manuel Vilas Boas Ribeiro da Costa, João Pedro Neto de Avelar Ghira e José Abel Pinheiro Caldas de Oliveira. Conselheiro Relator Carlos Jacques Vieira Gomes. Voto Versão de Acesso Público. Data 17.02.2025.

[6] Processo Originário (PA nº 08012.011142/206-79)

[7] Diz-se visando à segurança jurídica porque a LDC concede ao CADE discricionariedade, de modo que fica a critério da autarquia propor ações em face apenas de pessoas físicas ou, em havendo indícios da conduta, também em face de pessoas físicas.

[8] PA 08700.007776/2016-41. Representante: CADE ex officio. Representado: Andrade Gutierrez Engenharia S.A. e outros. Voto-vista Presidente Alexandre Cordeiro, acompanhado pelos Conselheiros José Levi, Gustavo Augusto e Victor Fernandes. Julgamento 17.04.2024.

[9] Ainda neste sentido, o Presidente do CADE ressaltou em seu voto “… é imprescindível que sejam apresentadas provas suficientemente fortes e robustas da existência do cartel e, não menos importante, que tais provas impliquem, para além da dúvida razoável, o envolvimento individualizado dos investigados” (PA 08700.010323/2012-78 (R 08700.000756/2015-68). Representante Cade ex officio. Representado: Behr Brasil Ltda. e outros. Data 26.11.2021)


Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


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Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Leia outros artigos dos autores a respeito do CADE

Conduta Unilateral – Influência e Promoção de Conduta Comercial Uniforme. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Pedro Zanotta. 17 de setembro de 2024.

A Independência Relativa de Instâncias. Possibilidade de condenação pelo CADE, ainda que haja absolvição pelas esferas civil e penal. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Pedro Zanotta. 18 de março de 2024.

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CADE

Desincorporação de imóveis do capital social – inconstitucionalidade da cobrança do ITBI

Herval Forny

Em outro artigo[1], foi tratado a respeito da inconstitucionalidade na integralização de imóveis ao capital social de uma empresa. No presente artigo, aborda-se a questão de sua desincorporação, ou seja, a saída do imóvel previamente integralizado ao capital social. Mediante a redução do capital social.

Como se faz? O que precisa ser observado nesta desincorporação.

TÍTULO TRANSLATIVO:

Na integralização, o título translativo utilizado para essa integralização será o contrato social, nos termos do art. 64, da LRP[2]. Para a desincorporação, entretanto, o título hábil será uma escritura pública de desincorporação.

“A certidão dos atos de constituição e de alteração de empresários individuais e de sociedades mercantis, fornecida pelas juntas comerciais em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou para o aumento do capital. “ (gn)

O primeiro ponto a ser mitigado, diz respeito ao título utilizado para a integralização. Pois, o art. 108, do CC, dispõe: “

Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.”.

A finalidade inspirativa do artigo 108, do CC está lastreada na preservação da segurança jurídica a viabilizar a utilização dos serviços notariais no tráfego jurídico imobiliário com a estruturação do negócio jurídico.

Inclusive, a tendência amadurecida nas discussões das alterações do Código Civil entende pela não flexibilização do dispositivo.

Neste sentido, prevalece o art. 64, da LRP ou o art. 108, do CC?

Para as sociedades empresárias, parece não haver dúvida quanto à prevalência do art. 64, mencionado. Seja pela própria ressalva do art. 108, do CC, seja pelo fator temporal. Uma vez que este artigo é anterior à redação do art. 64, da LRP.

Com relação às sociedades simples, não registradas nas Juntas Comerciais e sim nos cartórios de Registro de Pessoas Jurídicas – RCPJ, para estes o título translativo deve ser a escritura pública, salvo se o valor da transação for valor inferior a 30 (trinta) salários mínimos. [3]

De acordo com a exegese do art. 1.150, do CC, c/c art. 108, do mesmo diploma legal.

Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária.

DA COBRANÇA DO ITBI:

Ultrapassada a fase relativa ao título hábil para a desincorporação, passa-se agora à análise se incide ou não o ITBI (Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis), na desincorporação.

Da mesma forma que o artigo produzido sobre a inconstitucionalidade da cobrança do ITBI, na integralização, mencionado neste artigo[4]. Precisamos analisar a questão da (in)constitucionalidade das normas envolvidas.

As normas municipais utilizam como pressuposto de legalidade para a redação de suas leis, o contido no parágrafo único, do art. 36 e no art. 37, ambos do CTN (Código Tributário Nacional). Norma recepcionada com o status de lei complementar.

 Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o impôsto não incide sôbre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:

        I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;

        II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.

        Parágrafo único. O impôsto não incide sôbre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I dêste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.

        Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

O inciso I, do parágrafo 2º, do art. 156, da CF/88, por sua vez, estabelece que

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil; (gn)

HARADA (2016)[5] defende que o parágrafo único, do art. 36, do CTN não foi recepcionado pela atual Constituição.

Como é sabido, a lei complementar é competente apenas para regular a imunidade prevista na CF, não podendo ampliá-la nem restringi-la. Em sua interpretação literal, a regra do parágrafo único do art. 36 do CTN não tem apoio no texto constitucional.g.n)

Entretanto, aquele parágrafo único não deve ser interpretado isoladamente, porém de forma conjugada com o inciso I do § 2o do art. 156 da CF, que contempla a hipótese de extinção da pessoa jurídica que o CTN não prevê:

Ora, desincorporação de bens dados em conferência mediante redução de capital configura dissolução parcial da pessoa jurídica.

Portanto, o texto do parágrafo único do art. 36 do CTN acha-se recepcionado pelo inciso I do § 2o do art. 156 da CF.

Não há dúvida que o CTN, como um todo, foi recepcionado pela atual Constituição. Entretanto, da mesma forma que o artigo sobre a inconstitucionalidade defendia a não recepção dos artigos 35 e 37, do CTN. Pelos mesmos motivos expendidos naquele artigo, defende-se que o art. 37, não foi recepcionado.

A Constituição é expressa com relação à hipótese de exclusão da não incidência relativa à extinção da pessoa jurídica. E o fato sobre análise, diz respeito à desincorporação do imóvel com redução de capital, continuando a pessoa jurídica com o capital reduzido da importância relativa ao imóvel desincorporado. Em outras palavras, a empresa não foi extinta, houve uma redução do valor de seu capital social.

O CTN, por sua vez, dispõe que o imposto não incide se a transmissão da pessoa jurídica ocorrer ao sócio alienante que integralizou o imóvel, salvo se a pessoa jurídica adquirente tiver a atividade preponderante de transações imobiliárias, descritas no art. 37, do aludido diploma legal.

Para HARADA[6], quem não tem atividade preponderante é o sócio:

Por fim, o adquirente, no caso, o sócio que se retira da sociedade recebendo em pagamento de suas cotas o imóvel com que integralizou o capital subscrito, não deve ter como atividade preponderante a compra e venda de bens imóveis ou de direitos reais sobre imóveis, nem locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

Uma simples análise comparativa permite identificar que a nova Carta Magna escolheu não fazer esta restrição. Apenas condiciona à análise da preponderância de transações imobiliárias os casos de extinção da pessoa jurídica e não à redução de capital.

Não pode uma lei com hierarquia inferior (infraconstitucional) impor restrições inexistentes na norma constitucional.

Em suma, o título hábil para a integralização do imóvel para empresas mercantis será o contrato social. Enquanto que para empresas simples, será a escritura pública, para imóveis com valor superior a 30 (trinta) salários mínimos. Abaixo deste valor, poderá ser por instrumento particular.

Para a desincorporação, o instrumento adequado, seja qual for o tipo de empresa, será a escritura pública de desincorporação, em razão da inexistência de previsão legal na LRP.

A cobrança do ITBI é inconstitucional, em razão das leis municipais afrontarem o disposto na Constituição e que os fundamentos legais utilizados pelos municípios, localizados no CTN, não foram recepcionados pela nova Carta.

DO VALOR DA DESINCORPORAÇÃO:

Por qual valor o bem deve ser desincorporado e para qual pessoa física este bem deve ser desincorporado?

Em primeiro lugar, para que seja possível a não incidência do ITBI na desincorporação – inobstante a tese sustentada da não recepção do art. 37, do CTN, e consequentemente da inconstitucionalidade das leis municipais editadas com fundamento neste artigo – o imóvel deverá retornar ao sócio que o integralizou, conforme prescreve o § único, do art. 36, do CTN, como podemos observar:

O impôsto não incide sôbre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I dêste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.

Em segundo lugar, qual o valor a ser utilizado nesta desincorporação?

Não se trata aqui da liquidação da cota de determinada pessoa, com o pagamento através do imóvel. Neste sentido, não se aplica o art. 1.031, do CC, o qual prescreve que a cota será liquidada pelo valor patrimonial, verificado em balanço especialmente levantado.

Trata-se aqui da redução de capital, com a desincorporação de um imóvel. Neste diapasão, o art. 22, da lei 9.249/65 dispõe que o bem desincorporado poderá ser avaliado pelo valor da integralização ou pelo valor de mercado.

Caso a desincorporação seja realizada pelo valor de mercado, a diferença positiva entre este valor e o valor integralizado caracterizará ganho de capital, sujeitando ao pagamento do Imposto de Renda sobre o Ganho de Capital (IRGCap).

Em suma, o documento hábil para a integralização de imóveis de empresas mercantis, registradas nas Juntas Comerciais deve ser o contrato social. Enquanto que para as empresas simples, registradas no RCPJ, deve ser a escritura pública.

Para a desincorporação, o documento hábil deverá ser, em qualquer caso, a escritura pública.

Com relação à cobrança do ITBI na desincorporação do imóvel, defende-se a imunidade tributária, seja porque a Constituição se refere à extinção da pessoa jurídica e o objeto em tela é a redução do capital, com a continuidade da empresa. Seja porque, defende-se que o art. 37, do CTN não foi recepcionado, sendo a sua referência ao parágrafo único, do art. 36, do mesmo diploma legal prejudicado.

Por fim, com relação ao valor da desincorporação, este poderá ser pelo valor da integralização, sem a ocorrência do fato gerador do IRGCap; ou pelo valor do mercado, sujeitando-se ao citado imposto.


[1] FORNY, Herval M. A Inconstitucionalidade da Cobrança do ITBI na Integralização de Imóveis ao Capital Social: Uma Análise Crítica à Luz da Constituição Federal de 1988, do Código Tributário Nacional e das Decisões dos Tribunais Superiores. WebAdvocacy. Disponível em: https://webadvocacy.com.br/2025/03/19/a-inconstitucionalidade-itbi/. Acesso em: 28 mar. 2025.

[2] Lei 8.934 – Lei do Registro Público

[3] VIEIRA, Viviane Souza. Integralização ou desincorporação de bens imóveis por instrumento público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1635, 23 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10787 . Acesso em: 28 mar. 2025.

[4] FORNY, Herval M. A Inconstitucionalidade da Cobrança do ITBI na Integralização de Imóveis ao Capital Social: Uma Análise Crítica à Luz da Constituição Federal de 1988, do Código Tributário Nacional e das Decisões dos Tribunais Superiores. WebAdvocacy. Disponível em: https://webadvocacy.com.br/2025/03/19/a-inconstitucionalidade-itbi/. Acesso em: 28 mar. 2025.

[5] HARADA Kiyoshi. ITBI e desincorporação resultante de redução de capital. Harada Advogados. Disponível em: https://haradaadvogados.com.br/itbi-e-desincorporacao-resultante-de-reducao-de-capital/ . Acesso em: 28 mar. 2025.

[6] HARADA Kiyoshi. ITBI e Desincorporação Resultante de Redução de Capital. Jusbrasil. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/itbi-e-desincorporacao-resultante-de-reducao-de-capital/701835582 . Acesso em: 28 mar. 2025.


Herval Forny

Bacharel em Economia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Advogado graduado pela UERJ. Especialista em Direito Penal e Processual Penal, pela UNESA. Especialista em Direito Imobiliário, pela UCAM. Especialista em Direito Notarial e Registral, pela UCAM. Professor Visitante da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na disciplina eletiva de advocacia defensiva. Participante e integrante do Projeto de Implementação de Holding Familiar/Planejamento Patrimonial Familiar, na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, inserido no Programa de Trabalho do Professor Lorenzo Martins Pompilio da Hora, do Departamento de direito Civil. Período 2023-2028. Membro da Comissão de Planejamento Patrimonial OAB/RJ, subseção Barra da Tijuca.

Certificação Internacional em Gerenciamento de Projetos – PMP


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Imunidade tributária do ITBI sobre imóveis integralizados ao capital social de empresas: análise da sua aplicabilidade e limitações

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Nuances de cinza

Adriana da Costa Fernandes

Especiais professores, inspiração em fases marcantes da vida. Não raro, faróis na jornada ainda nebulosa à frente. Nos ensinam raras lições como algo absolutamente corriqueiro, onde nos encontramos imersos. Aptos a interagir e, da mesma forma, aprender conosco.

José Maria Dias da Cruz, um dos meus especiais professores. Singular mestre das artes carioca conhecido por sua essência visionária, imensa sensibilidade e capacidade cromatista. Marcou minha trajetória a partir do ano de 2004.

Em seu livro “A Cor e o Cinza” reinterpreta conceitos plásticos de Leonardo da Vinci sobre desenho e pintura, registrando, ainda, como alguns pintores do século XVII criaram novas formas de representação para as passagens entre luz. Nuances de cor. Na obra, ensina sobre a complexidade das estruturas cromáticas na obra de Poussin e aborda o legado de Delacroix, Mondrian, Matisse, Klee e Helio Oiticica, Van Eyck e Duchamp, dentre outros.

Entre direito e arte desatento quem acreditar ser pequena a vinculação de ambos. Apenas pelo aspecto prático das áreas, trabalhar as emoções e o pensamento se configura tarefa absolutamente complexa, seja na arte, seja no direito.

Em carta de Cézanne a Pissarro, restou manifestada a clareza mental de que a luz não existe para o pintor, ensejando substituição por outra coisa. Surgiu o conceito do cinza sempiterno. Importante na criação, quando o artista mistura o cinza, em diferentes proporções, à palheta de cores, atribuindo unicidade ao conjunto.

Quando o jurista escolhe a linguagem adequada para representação da estratégia definida, cria. Vira artista ao expressar o que acredita, ao menos naquele momento. Ao imprimir no contexto o que se propõe a defender e a comunicar ao mundo acerca do que carrega em si, reflexo de sua trajetória e testemunho de sua experiência. Ao defender posicionamentos, crenças de vida e, tantas vezes, nuances do universo democrático, da pluralidade e da diversidade dos homens. Neste momento, o jurista pinta. O jurista faz arte.

Em um texto de 2012, Zé Maria, como conhecido, alertou que “o homem está cada vez mais perdendo uma percepção mais profunda das cores e dos coloridos”. Nesta época, o mundo sequer vivia ainda sob a atual dúplice égide separatista onde, não raro, muitos sequer bem compreendem o que é ser, de fato, democrático. Alguns homens vêm caminhando pela vida vestidos da mesma cor integralmente, seja ela qual for. Ignorando o arco-íris que abraça o mundo e o viver.

O direito brasileiro vem confrontando aspectos prementes sobre a crise do ensino jurídico e, em tempos digitais onde IA aparece como o grande artista em exposição, sobre a simplificação da linguagem, necessária até para a aproximação com a matemática, essência da tecnologia.

Afinal suavização ou simplificação? O que significa uma coisa ou outra? Nuances do comportamento. Uns defendem, outros firmemente não concordam. Em lados aparentemente opostos, titãs, grandes professores e mestres, em educada contraposição. Na plateia, observando pensamentos tão absorventes e brilhantes, nós, antigos Advogados instados à reescrita, ao lado dos novos, buscando luz acerca do caminho a seguir. Rumo ao encontro de um tom de cinza que possa unificar a nova realidade que chega.

O direito sempre foi tela com muitas cores, em diferentes tons, em abordagem e compreensão, seja doutrinária ou jurisdicionalmente. O amor pelo debate faz parte da essência da área. Em muitas mentes hoje, reflexões sobre como compor diferenças em tempos radicais.

Nesse mesmo tempo cotidiano, o de intensificação da crise climática e de elevação dos níveis dos oceanos a rápido passo, o direito começa a abandonar a ilha apta a submergir e o isolamento. A preparar a mudança definitiva para o continente, onde começa a interagir cada vez mais com outras áreas como a própria tecnologia, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a economia, a administração, a bioética e tantas outras.

Para trás ficou o latim, mas jamais poderá ficar a literatura. Chegaram simplificadores de tarefas repetitivas, permitindo maior tempo para pensar e aprofundar, junto com a adoção de procedimentos e técnicas há tanto utilizadas pelas outras ciências.

Ao contrário do que se imagina, a chegada de novas etapas desse novo tempo, ensejando ampliação do conhecimento e o fortalecimento da curiosidade de seguir aprendendo, tenderá a gerar um profissional jurídico cada vez mais multifacetado.

Profissionais de outras áreas começam a ser incorporados pelo direito. Há de chegar a hora em que o jurista entenderá que deverá seguir a mesma rota, buscando natural incorporação em novas áreas ou criando-as. Hoje dentro do silo, ainda reina a expectativa de que tantos saibam de tudo, quando o mundo que chega, produzindo tanta informação a ser digerida e gerida, exigirá maior especialização e o desenvolvimento primordial da capacidade de lidar com problemas mais complexos. A união de esforços e expertises haverá de se tornar, então, necessidade. Regramentos possivelmente serão revistos.

A clareza de como lidar com todo esse cenário vem da própria força da arte legal, de suas nuances mais sutilizadas unidas pelo cinza sempiterno de conhecimentos chave com o direito constitucional, especificidades do processo civil, do direito administrativo e regulatório, do novo direito civil e consumerista, dentre outros.

A suposição de que o direito adentra um campo de realismo digital parece postura extrema. É essencial entender que o uso de ferramentas digitais no direito requer a utilização indissociável da capacidade crítica do homem, ao menos até que venhamos a nos confrontar com os próximos capítulos desta história e até que o machine learning esteja aprimorado.

Ao contrário do que já se imagina, IA, ainda que representando ruptura e incontestável disrupção, ainda erra, ainda apresenta lacunas, ainda mistura critérios em pesquisas, ainda apresenta relevantes diferenças entre as versões gratuita e premium, portanto, ainda não se configurando como plenamente democrática. A atenção humana há de se manter ainda mais ativa contribuindo com esse desenvolvimento.

Do que aqui se aborda não é abstração, mas alerta.

Nessa etapa venturosa e desbravadora, onde são reassentados novos parâmetros simultâneos, a questão primordial não parece ser a defesa frontal ou não da inevitável suavização da linguagem antiga, mas do fomento da leitura, do foco na manutenção da qualidade do que se escreve e da absorção natural da abordagem de outras concepções na rotina jurídica. Novas nuances descobertas.


Adriana da Costa Fernandes. Advogada com atuação em 3 eixos: Direito Público; Infraestrutura e Tecnologia (em especial Telecom, TI, Digital, Energia Elétrica e Ferrovias) e Cível Estratégico (foco em Consumidor e Contratos). Mestranda em Direito Constitucional pela UNINTER PR sob a tutela da Profa. Dra. Estefânia Barboza e com tese sobre PRAGMATISMO CONSTISTUCIONAL HUMANISTA na Era Digital, unindo Direito Constitucional, Digital, Filosofia e Ciência Política. Pesquisadora vinculada ao NEC CEUB DF sob a mentoria da Profa. Dra. Christine Peter da Silva e ao IDP – Observatório Constitucional do Professor André Rufino do Vale. Aluna da Escola de Magistratura do Distrito Federal – ESMA DF. Pós-graduada (MBA) em Marketing pela FGV RJ, especializada em Relações Governamentais e Institucionais (RELGOV) pela CNI / Instituto Euvaldo Lodi (IEL), com Extensão em Energia Elétrica pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e detentora de diversas titulações em instituições de renome Nacional e Internacional. Consultora e Parecerista. Com experiência em empresas renomadas, de portes expressivos e atuação em mercados relevantes e agências governamentais. Atualmente com escritório próprio e atuação voltada para Tribunais Superiores, Tribunal de Contas da União e CARF.


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Adriana da Costa Fernandes

Esporte e concorrência internacional

Mauro Grinberg e Beatriz Cravo

Em 2013, foi publicado, no nº 23 da Revista do Ibrac, artigo dos autores, denominado “Defesa da Concorrência e Esporte Profissional”. Tratou-se de uma abordagem pioneira que procurou demonstrar como o esporte profissional precisa de enquadramento no direito da concorrência, dada a sua caracterização clara como atividade econômica. De lá para cá houve grande evolução do tema, inclusive com a criação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), sendo que hoje é evidente a caracterização do esporte profissional como atividade econômica, o que de resto tem sido reconhecido em vários foros concorrenciais.

Naquele artigo, os autores escreveram que “o problema que aqui surge é o controle múltiplo de clubes que disputam a mesmas competições. É sabido, por exemplo, que determinadas empresas detêm direitos federativos de determinados atletas. Há aí outra forma de controle”. Ou seja, clubes concorrentes em determinadas competições podem ter controladores[1] comuns, o que pode falsear a concorrência entre eles.

Até aquele momento os autores tratavam o esporte profissional, do ponto de vista geográfico. como um mercado relevante puramente nacional. Deve ser aqui lembrado que o mercado relevante é aquele em que se trata a concorrência, definida em termos materiais (ou de produto) e geográficos, havendo autores que tratam também da vertente temporal. Todavia, os mercados dos diversos esportes profissionais evoluíram muito e ganharam contornos mais complexos, de forma que seu escopo geográfico não deve mais ser considerado, dependendo do contexto, como limitado aos territórios nacionais.

Tome-se o caso específico – visto aqui como exemplo que pode ser levado ao raciocínio por absurdo – de um fato que frequentou o noticiário esportivo recente, que foi a transferência de um jogador do Botafogo, do Rio de Janeiro, para o francês Lyon. Ambos os times são controlados pela Eagle Football Holdings LLC, por sua vez controlada pelo Sr. John Textor, que se tornou notório na imprensa esportiva brasileira. Sua empresa controla também o RWD Molenbeek (da Bélgica) e parcialmente (46%) o Crystal Palace (da Inglaterra).

Todos esses times jogam nas divisões principais de seus países e assim podem potencialmente participar de campeonatos internacionais (no caso do Botafogo, isso ocorreu em 2024), enfrentando-se. Isso significa que os times são concorrentes no mercado que pode ser definido, novamente na dependência do contexto, como o “mercado internacional do futebol profissional”.

Nesse contexto, a controladora tem o poder de transferir jogadores de um time para outro, cruzando fronteiras nacionais e privilegiando o time de seu maior interesse. E mais, ao fazê-lo, tais ações podem desafetar a concorrência nos campeonatos nacionais que esses times disputam. Afinal, um time que tinha um jogador e, portanto, posição vantajosa em um determinado campeonato, pode ser prejudicado ao ter esse jogador transferido para outro time. Da mesma forma, um time pode ser indevidamente favorecido ao receber jogadores estratégicos que nenhum time conseguiria reunir em circunstâncias normais. Levando-se em conta que se trata de atividade econômica, há clara consequência concorrencial. Esta pode consistir, ao ser privilegiado um campeonato nacional em relação ao outro, bem como de um time em relação a outro, na manipulação de resultados e no favorecimento de determinados times.

Nada há contra a transferência de jogadores, desde que tais transferências sejam feitas mediante o pagamento de direitos federativos justos, aplicando-se, onde válida, a regra do fairplay financeiro. Entretanto, se tais transferências ocorrerem sem as devidas compensações financeiras e numa escala mais quantitativa, uma determinada política de transferências pode influenciar distintos campeonatos, tirando a necessária competitividade.

O caso recente, acima aludido, que ocorreu por um valor considerado extremamente baixo, chamou a atenção para o problema no nível internacional. Houve reclamação de outros times franceses pois, segundo eles, a transferência violaria a regra do chamado fairplay financeiro, pela qual basicamente os times têm limitações para os seus gastos.

A imprensa, porém, não focalizou o aspecto concorrencial, que pode se tornar importante se tal prática se generalizar neste e em outros grupos controladores de times em países distintos. É bem verdade que não existe uma autoridade concorrencial supranacional mas os direitos concorrenciais dos países podem ser afetados.

Ou, hipoteticamente, uma empresa controladora de um time competitivo em um campeonato mais rico passa a controlar também um time que atua em um campeonato menos rico com o único propósito de “criar” talentos, transferindo-os, quando “criados” e profissionalizados, para o time do campeonato mais rico.  Ou seja, o time criado passa a ser mero preparador de atletas para o time criador, de tal sorte que o time criado exerça uma concorrência apenas teórica.

Dir-se-á que o controlador pagou pelos direitos federativos desses atletas, o que, em tese, justificaria sua colocação em qualquer dos times controlados, como se fosse um único time “multinacional” com ramos distintos em países diferentes. Mas não é esta a realidade dos campeonatos que são, em princípio, nacionais (no caso brasileiro também estaduais e ocasionalmente regionais), embora os que se encontram mais acima nas tabelas participem de campeonatos internacionais regionais (exemplo: Taça Libertadores).

Os autores têm a noção clara que ainda não se criou o costume generalizado de transferências de jogadores dentro dos mesmos grupos econômicos que controlam times de futebol, havendo casos ainda isolados. Mas as condições existem para essa prática e os exemplos ainda incipientes podem se multiplicar, até porque os grupos econômicos estão em fase de consolidação. Com efeito, o mesmo noticiário esportivo já emitiu sinais de que a empresa controladora do Botafogo estaria mais interessada no time francês Lyon, embora tenham na sequência ocorrido investimento também no Botafogo.

Ora, a manipulação artificial dos capitais piora a concorrência em um campeonato e melhora a concorrência em outro. Se levarmos em conta que o esporte profissional – no caso o futebol – é uma atividade econômica, há nítida perda de concorrência em um campeonato e ganho de concorrência em outro. Além disso, com interesses nas apostas esportivas (por meio das chamadas bets) cada vez maior, também as possibilidades de fraudes podem aumentar.

Vale aqui uma observação a respeito do art. 4º da Lei 14.193/2021, que criou a SAF: “O acionista controlador da Sociedade Anônima do Futebol, individual ou integrante de acordo de controle, não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra Sociedade Anônima do Futebol”. O objetivo da lei é claro: preservar a competitividade e com isso a concorrência econômica. Se a autoridade concorrencial brasileira for chamada a decidir sobre o tema aqui tratado, e se o mercado relevante for considerado em dimensão global, poderá levar em consideração o princípio de que uma empresa que controle times de países distintos viola este artigo.

Os autores entendem que não é prematuro passar a considerar estes fatos no direito concorrencial, já que os casos tendem a se multiplicar. Esta pode, aliás, ser uma das consequências da criação da SAF.


[1] São múltiplas as formas de controle, não necessariamente societário, podendo ser, por exemplo, por meio de patrocínio.


Mauro Grinberg – Graduado pela Fadusp, Mestre em Direito pela UFPe, foi Conselheiro do Cade, Presidente do Ibrac e Professor de Direito Comercial, sendo membro de diversas entidades, entre as quais o Ibrac (do qual é Conselheiro), o IASP e a Cecore. É advogado na área de Direito Concorrencial

Beatriz Cravo – Graduada pela  PUC/SP, Mestre em Direito Internacional Econômico pela Sorbonne Pantheon Paris1, especialista em Direito Econômico e Regulatório pela FGV/SP. É advogada na área de Direito Concorrencial


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Mauro Grinberg

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