Atos de Concentração na Argentina – algo a aprender?

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

A troca de conhecimentos, experiências e modelos jurídicos, entre os países, é uma prática muito rica, já que nos ensina e traz ideias para melhorar pontos que, por vezes, são pedras no caminho em nossa legislação, que impedem o bom andamento, dificultam o prosseguimento ou a rápida evolução de procedimentos. É o direito comparado em sua essência!

Neste sentido, muito se fala acerca das evoluções trazidas pela Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC) no âmbito da submissão e análise de atos de concentração, e não se nega o quanto evoluímos, mas será que não há mais nada que ainda possamos melhorar? Sabe-se que a submissão de operações à autoridade antitruste é importante, dado o impacto que podem trazer aos mercados dos mais diversos setores de nossa economia.

No entanto, será que a submissão automática de todas as operações, quando do atingimento dos valores de faturamento exigidos, nos termos do artigo 88, da LDC e da Portaria Interministerial 994/2012 (PI 994) é, em todas as hipóteses, de fato, necessária? Considerando que os valores[1] da PI 994 estão sem atualização desde o ano de 2012, eles estão aptos a filtrar as operações que devem, de fato, passar pelo crivo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)? Os valores não deveriam ser, periodicamente, atualizados? Levando-se em conta a obrigatoriedade da submissão das operações, seriam as taxas cobradas pelo órgão justas?

Considerando esses questionamentos, buscamos o Direito Comparado e, com base na Lei de Defesa da Concorrência Argentina (Ley 27442/2018[2]), tem-se que referido diploma traz alguns dispositivos que poderiam inspirar algumas alterações em nossa LDC.

Inicialmente, destaca-se que não há taxas para a submissão de atos de concentração junto à autoridade antitruste argentina. Ademais, uma operação só deve ser submetida[3] a esta autoridade quando o volume de negócios[4] total, do conjunto de empresas afetadas,[5] superar, no país, a soma equivalente a, aproximadamente, US$ 102,000,000[6]. Para efeitos da determinação desse volume de negócios, o Tribunal de Defesa da Concorrência informará, anualmente, o valor em moeda corrente que se aplicará durante o ano correspondente.

Isto quer dizer, a própria legislação prevê a forma de atualização do valor de corte das operações, sem a necessidade de novas portarias ou regulamentações, que demandam tempo para seus trâmites, adotando o Tribunal, desta forma, sempre os valores atualizados. Tal fato difere, em muito, do Brasil, na medida em que os valores aplicados pelo CADE foram atualizados em 2012, não sofrendo qualquer alteração desde então, o que, certamente, implicou na submissão de uma série de operações que, a princípio, não necessitariam de análise pelo órgão, se os valores estivessem atualizados, assim como não haveria o recolhimento da respectiva taxa para a submissão destas operações.

A lei argentina traz, também, exceções à submissão obrigatória das operações, ainda que o valor acima disposto seja atingido. São elas[7]:

(a) aquisições de empresas das quais o comprador já possuía mais de 50% das ações, sempre que este fato não implicar na alteração da natureza do controle;

(b) as aquisições de bônus de subscrição, debentures, ações sem direito de voto ou títulos de dívida da empresa;

(c) as aquisições de uma única empresa por parte de uma única empresa estrangeira que não possua anteriormente ativos (excluindo aqueles para fins residenciais) ou ações de outras empresas na Argentina e cujas exportações para a Argentina não tenham sido significativas, habituais e frequentes durante os últimos trinta e seis meses;

(d) aquisições de empresas que não tenham registrado atividade no país no último ano, salvo se as atividades principais da empresa-alvo e da empresa adquirente coincidirem;

(e) as operações de concentração econômica que requerem notificação, em razão de atingirem o montante correspondente ao volume de negócios, quando o valor da operação e o valor dos ativos situados na República Argentina que serão absorvidos, adquiridos, transferidos ou controlados não excederem, cada um deles, respectivamente, o equivalente a cerca de US$ 20,400,000, salvo se no período de doze meses anteriores tenham sido realizadas operações que, em conjunto, excedam esse montante, ou o equivalente a cerca de US$ 61,000,000, desde que em ambos os casos se trate do mesmo mercado.

Isto quer dizer, a lei argentina prevê, como exceções, operações que apresentam menor potencial de risco ao mercado, ainda que o critério do valor de volume de negócios seja atingido, evitando, desta forma, que o excesso de formalidade prejudique a boa movimentação dos mercados e a evolução de procedimentos necessários para o desenvolvimento da economia.

Dentro deste contexto, verificamos que, em determinados pontos, a lei argentina está um passo à frente da brasileira, podendo nos servir de inspiração, já que prevê a gratuidade de seus procedimentos, a forma de atualização anual dos valores e, principalmente, as exceções para casos de menor impacto, mantendo-se, desta forma, sob o controle da autoridade antitruste apenas as operações que podem, de alguma maneira, ter efeitos no mercado. Há de se destacar, por fim, que a própria lei traz o resguardo para a autoridade, na medida em que possibilita diminuir eventual efeito negativo destas exceções, a qualquer tempo[8], diante da previsão de requerimento, pela autoridade, de notificação de um ato de concentração que não seria notificável[9].

Desta forma, trazemos à reflexão alguns aspectos trazidos pela Lei de Defesa da Concorrência argentina, no âmbito dos atos de concentração, para incentivar a discussão se não deveriam ser aqui aproveitados, dando, assim, maior efetividade e celeridade ao controle realizado pela autoridade brasileira.


[1]Art. 1o Para os efeitos da submissão obrigatória de atos de concentração a análise do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, conforme previsto no art. 88 da Lei 12.529 de 30 de novembro de 2011, os valores mínimos de faturamento bruto anual ou volume de negócios no país passam a ser de:

I – R$ 750.000.000,00 (setecentos e cinqüenta milhões de reais) para a hipótese prevista no inciso I do art. 88, da Lei 12.529, de 2011; e

II – R$ 75.000.000,00 (setenta e cinco milhões de reais) para a hipótese prevista no inciso II do art. 88, da Lei 12.529 de 2011.”

[2] Disponível em: https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/ley-27442-310241/texto Acesso 06.05.2025.

[3] Para efeitos de curiosidade, o controle exercido pela autoridade argentina é posterior à operação, assim como o era na Lei 8.884/84. Neste aspecto, entendemos que a lei 12.529/2011 é mais avançada.

[4] Art. 9º “(…) A los efectos de la presente ley se entiende por volumen de negocios total los importes resultantes de la venta de productos, de la prestación de servicios realizados, y los subsidios directos percibidos por las empresas afectadas durante el último ejercicio que correspondan a sus actividades ordinarias, previa deducción de los descuentos sobre ventas, así como del impuesto sobre el valor agregado y de otros impuestos directamente relacionados con el volumen de negocios.”

[5] Art. 9º “(…) Las empresas afectadas a efectos del cálculo del volumen de negocios serán las siguientes:

  1. La empresa objeto de cambio de control;
  2. Las empresas en las que dicha empresa en cuestión disponga, directa o indirectamente:

1. De más de la mitad del capital o del capital circulante.

2. Del poder de ejercer más de la mitad de los derechos de voto.

3. Del poder de designar más de la mitad de los miembros del consejo de vigilancia o de administración o de los órganos que representen legalmente a la empresa, o

4. Del derecho a dirigir las actividades de la empresa.

c) Las empresas que toman el control de la empresa en cuestión, objeto de cambio de control y prevista en el inciso a);

d) Aquellas empresas en las que la empresa que toma el control de la empresa en cuestión, objeto del inciso c) anterior, disponga de los derechos o facultades enumerados en el inciso b);

e) Aquellas empresas en las que una empresa de las contempladas en el inciso d) anterior disponga de los derechos o facultades enumerados en el inciso b);

f) Las empresas en las que varias empresas de las contempladas en los incisos d) y e) dispongan conjuntamente de los derechos o facultades enumerados en el inciso b).”

[6] Valores de acordo com Resolución 21/2025 emitida pela Secretaría de Industria y Comercio del Ministerio de Economía.

[7] “Art. 11.- Se encuentran exentas de la notificación obligatoria prevista en el artículo 9° de la presente ley, las siguientes operaciones:
a) Las adquisiciones de empresas de las cuales el comprador ya poseía más del cincuenta por ciento (50%) de las acciones, siempre que ello no implique un cambio en la naturaleza del control;

b) Las adquisiciones de bonos, debentures, acciones sin derecho a voto o títulos de deuda de empresas;
c) Las adquisiciones de una única empresa por parte de una única empresa extranjera que no posea previamente activos (excluyendo aquellos con fines residenciales) o acciones de otras empresas en la Argentina y cuyas exportaciones hacia la Argentina no hubieran sido significativas, habituales y frecuentes durante los últimos treinta y seis meses;

d) Adquisiciones de empresas que no hayan registrado actividad en el país en el último año, salvo que las actividades principales de la empresa objeto y de la empresa adquirente fueran coincidentes;

e) Las operaciones de concentración económica previstas en el artículo 7° que requieren notificación de acuerdo a lo previsto en el artículo 9°, cuando el monto de la operación y el valor de los activos situados en la República Argentina que se absorban, adquieran, transfieran o se controlen no superen, cada uno de ellos, respectivamente, la suma equivalente a veinte millones (20.000.000) de unidades móviles, salvo que en el plazo de doce (12) meses anteriores se hubieran efectuado operaciones que en conjunto superen dicho importe, o el de la suma equivalente a sesenta millones (60.000.000) de unidades móviles en los últimos treinta y seis (36) meses, siempre que en ambos casos se trate del mismo mercado. A los efectos de la determinación de los montos indicados precedentemente, el Tribunal de Defensa de la Competencia informará anualmente dichos montos en moneda de curso legal que se aplicará durante el correspondiente año. A tal fin, el Tribunal de Defensa de la Competencia considerará el valor de la unidad móvil vigente al último día hábil del año anterior.”

[8] Neste sentido, entendemos que a inexistência de prazo para esta exigência do órgão é prejudicial, e pode trazer insegurança jurídica. Neste aspecto, entendemos que a nossa lei é mais avançada.

[9] Art. 10. “(…) El Tribunal de Defensa de la Competencia dispondrá el procedimiento por el cual determinará de oficio o ante denuncia si un acto que no fue notificado encuadra en la obligación de notificar dispuesta bajo este capítulo de la ley”.


Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


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A falsa culpa da globalização: desvendando a complexa relação entre comércio, inovação, desemprego e desigualdade

Marco Aurélio Bittencourt

A globalização, intensificada nas últimas décadas, transformou o mapa econômico mundial e tem sido frequentemente apontada como uma das principais causas do crescente desemprego e da alarmante concentração de renda observada em diversas nações. A narrativa comum sugere uma lógica aparentemente irrefutável: a intensificação da especialização produtiva em escala planetária inevitavelmente leva à realocação de empregos, com alguns países perdendo postos de trabalho em detrimento daqueles com vantagens comparativas. Essa dinâmica, argumenta-se, impulsiona a desigualdade, pois apenas uma parcela da população, altamente qualificada e inserida nos setores de ponta, colhe os frutos dessa nova ordem econômica.

Contudo, essa narrativa, embora contenha elementos de verdade, simplifica uma realidade complexa e, em última análise, desvia o foco de outros mecanismos subjacentes a esses problemas. É inegável que a globalização exerce pressão sobre os mercados de trabalho, expondo-os a uma competição acirrada. A busca incessante por eficiência e menores custos de produção pode levar à convergência dos preços de bens e serviços, o que impacta a rentabilidade de empresas em países com custos mais elevados. Os consumidores, em geral, se beneficiam dessa queda de preços, desfrutando de maior poder de compra.

A inovação, motor essencial do crescimento econômico na era globalizada, também desempenha um papel ambivalente. Embora crie novas oportunidades e impulsione a produtividade, sua natureza disruptiva frequentemente leva à obsolescência de profissões e à necessidade de requalificação em larga escala. Em um mercado idealmente competitivo, os ganhos extraordinários da inovação tendem a se diluir à medida que novas empresas adotam as tecnologias e os preços se ajustam à pressão da concorrência. No entanto, em muitos setores, a competição não é perfeita, e os ganhos da inovação podem se concentrar em poucas empresas e indivíduos, contribuindo para a desigualdade e para a crescente disparidade entre a renda do capital e a renda do trabalho.

A complexidade da experiência chinesa e a necessidade de regulação adaptada

A experiência da China oferece um caso complexo e revelador. Contrariando a tendência de perda generalizada de empregos frequentemente associada à globalização, o gigante asiático demonstra uma resiliência de algum valor em seu mercado de trabalho. Embora a questão da concentração de renda na China exija uma análise cuidadosa e diferenciada, considerando as particularidades do seu sistema político e econômico, o fenômeno do desemprego em larga escala parece ter sido mitigado de alguma forma.

A razão para essa aparente contradição reside, em grande parte, na atuação multifacetada do governo chinês. Reconhecendo os potenciais impactos negativos da globalização e da rápida modernização sobre o emprego, o Estado implementou uma série de mecanismos de intervenção e regulação do mercado de trabalho. Embora tais intervenções não sejam isentas de críticas – a imposição de certas condições para empresas, por exemplo, pode gerar ineficiências e distorções –, elas demonstram uma preocupação ativa em amortecer os choques da transformação econômica sobre a população trabalhadora e, em outra vertente, amortecer a inabilidade tecnológica dos que vêm do campo. A regulação chinesa, com suas particularidades (como o uso de políticas industriais seletivas e investimentos massivos em infraestrutura), revela uma estratégia deliberada de priorizar a estabilidade do emprego, mesmo que isso comprometa a eficiência em alguns casos e levante questões sobre a sustentabilidade de longo prazo. É importante notar, no entanto, que essa abordagem tem seus custos, podendo enfrentar desafios crescentes à medida que a China busca transitar para um modelo de crescimento mais baseado na inovação.

Essa abordagem, por mais imperfeita que seja, lança luz sobre a complexidade da questão e a necessidade de estratégias adaptadas a cada contexto, o que contrasta com a omissão ou a timidez de estratégias semelhantes em outras economias, especialmente em algumas nações da Europa e, em certa medida, nos Estados Unidos. O aumento exponencial da produtividade impulsionado pela inovação e pela adoção de tecnologias avançadas invariavelmente leva a uma redução da demanda por mão de obra nos setores modernizados, e talvez explique o encurtamento do setor industrial em sua participação no PIB algures e alhures. A ausência de políticas ativas para gerenciar essa transição pode ter como consequência o deslocamento de trabalhadores para setores menos produtivos, como serviços e comércio, onde a crescente oferta de mão de obra exerce uma pressão descendente sobre os salários e contribui para a precarização do trabalho. É crucial reconhecer que essa transição não é automática nem sempre bem-sucedida, e pode levar a um aumento da desigualdade.

A urgência de uma regulação inteligente e dinâmica no setor sofisticado

A regulação econômica, em sua essência, volta-se para a correção de falhas de mercado, com foco primordial em monopólios e oligopólios. No tocante aos monopólios, a intervenção estatal busca alinhar a precificação da empresa dominante a níveis socialmente ótimos. Duas estratégias principais emergem:

  1. Preço igual ao custo marginal: Idealmente, o Estado poderia fixar o preço do monopolista em seu custo marginal, refletindo o verdadeiro custo de produção da última unidade. Para garantir a sustentabilidade da empresa, dado que o custo marginal pode ser inferior ao custo médio total, mecanismos de compensação do custo fixo não recuperado seriam necessários, como subsídios direcionados. Essa abordagem maximiza a eficiência alocativa, mas demanda cuidadosa gestão e financiamento.
  2. Preço igual ao custo médio: Uma alternativa pragmática consiste em estabelecer o preço no nível do custo médio da empresa. Embora não alcance a mesma eficiência alocativa do preço igual ao custo marginal, essa estratégia assegura a viabilidade econômica do monopolista sem a necessidade de subsídios contínuos, cobrindo todos os custos de produção, incluindo o custo fixo, e permitindo um lucro normal.

No âmbito dos oligopólios, a regulação concentra-se na prevenção de coalizões e acordos anticompetitivos que prejudiquem consumidores e fornecedores. O objetivo é fomentar a competição, mesmo em mercados concentrados, através da fiscalização e punição de práticas como formação de cartéis, manipulação de preços e divisão de mercados.

É crucial ressaltar que ambas as formas de regulação devem ser permeáveis à possibilidade de ingresso de novas empresas e ao potencial de inovações disruptivas. A ameaça de nova concorrência e a emergência de tecnologias inovadoras atuam como importantes mecanismos de disciplina de mercado, limitando o poder das empresas estabelecidas e impulsionando a eficiência e a inovação. Uma regulação excessivamente rígida pode inadvertidamente barrar esses desenvolvimentos benéficos.

Mas agora, com a globalização e seus efeitos deletérios sobre o emprego, o enfoque se amplia. O problema, entretanto, não reside exclusivamente na globalização ou na inovação em si, mas sim na falta de estratégias e mecanismos de regulação adequados e dinâmicos para lidar com seus efeitos colaterais, particularmente no que concerne ao mercado de trabalho de alta tecnologia e inovação. A crença de que o mercado, por si só, será capaz de absorver os trabalhadores deslocados e gerar novas oportunidades semelhantes às que esses trabalhadores deslocados desfrutavam em ritmo suficiente se mostra cada vez mais frágil diante da velocidade e da magnitude das transformações tecnológicas e o aumento do contingente sem referência de trabalho e emprego.

A questão crucial que se coloca é: que tipo de regulação se faz necessária nesse setor sofisticado? A resposta não reside em um retorno a modelos protecionistas ultrapassados, mas sim na criação de um conjunto de mecanismos inteligentes e adaptáveis que conciliem a busca por inovação e eficiência com a proteção e a reinserção dos trabalhadores, buscando um equilíbrio complexo. A regulação deve ser vista não como um obstáculo à inovação, mas como um instrumento para garantir que seus benefícios concentrados se aliem, de alguma forma eficiente, aos danos causados aos trabalhadores.

O exemplo hipotético da introdução de transporte sem motorista pelo Uber ilustra o desafio. Uma transição abrupta que levasse à perda de emprego de milhares de motoristas teria graves consequências sociais e econômicas. Uma proposta, por exemplo, seria a de que os antigos motoristas se tornassem os proprietários dos veículos autônomos. O que essa proposta revela é que, buscando restringir a apropriação desmedida dos ganhos da inovação por parte dos idealizadores da plataforma e redistribuir esses benefícios àqueles que foram diretamente impactados pela mudança tecnológica, pode ter efeitos fundamentais na dinâmica da inovação. O ganho da inovação não estaria sendo dirigido a quem investiu nessa inovação, direta ou indiretamente. Portanto, a estratégia não atende ao requisito de eficiência, no sentido de que se está impondo uma restrição que fatalmente poderá aumentar custos para a empresa UBER e desincentivar futuros investimentos em inovação. É fundamental considerar cuidadosamente os incentivos à inovação e evitar medidas que possam sufocá-la, buscando, por exemplo, mecanismos de compensação que permitam às empresas recuperar seus investimentos em inovação.

Um outro exemplo seria a de adoção de um sistema de incentivo compulsório à poupança e participação dos trabalhadores nos ganhos da inovação. A proposta de um fundo de participação acionária, com garantias de recompra em casos de deslocamento tecnológico, é particularmente interessante, mas sua implementação requer um design cuidadoso para evitar distorções no mercado financeiro e garantir a viabilidade das empresas. Nesse contexto, a regulação pode assumir diversas outras formas, como as seguintes:

  • Uma delas seria a imposição de um período de transição gradual para a adoção de tecnologias disruptivas, permitindo que os trabalhadores se requalifiquem e se adaptem às novas demandas do mercado. Mas de novo, tem o inconveniente de não ser eficiente, pois pode atrasar a adoção de tecnologias que aumentam a produtividade e a competitividade. Para mitigar esse problema, a regulação poderia ser acompanhada de incentivos à inovação e de políticas de mercado de trabalho ativas que facilitem a requalificação dos trabalhadores.
  • Outra possibilidade seria a criação de fundos de apoio à transição profissional, financiados pelas empresas que se beneficiam da automação, para oferecer suporte financeiro e programas de treinamento aos trabalhadores deslocados. A proposta teria que ter atrativo a ser fornecido pela empresa, de tal forma a atrair os trabalhadores, como benefícios fiscais para as empresas que contribuem para os fundos, e programas de treinamento de alta qualidade e com certificação reconhecida pelo mercado para os trabalhadores. A gestão dos fundos poderia ser feita de forma tripartite, com a participação de representantes das empresas, dos trabalhadores e do governo, para garantir a transparência e a eficiência.
  • A ideia de “duplicação da fábrica” ou “fatiamento empresarial” também merece exploração, com o objetivo de gerar mais oportunidades de emprego e diluir o poder econômico em setores com alta concentração de mercado. Mas essa seria uma decisão exclusiva da empresa que estaria afeta às condições beneficiadoras do governo, como incentivos fiscais e subsídios para a criação de novas unidades de negócio. No entanto, é importante considerar os possíveis efeitos negativos dessa medida, como a perda de economias de escala e a redução da eficiência, e buscar formas de mitigá-los.

Pelo resumo acima, nota-se claramente que o caminho da regulação não é trivial e está carregado de possibilidades de jogar as empresas num mar de ineficiências. Esse é o desafio da regulação.

Rumo a um novo contrato social na era da inovação inclusiva

Em última análise, o desafio não é frear o progresso tecnológico ou renegar os benefícios da globalização. O verdadeiro imperativo é construir um novo contrato social que reconheça os impactos disruptivos da inovação e da competição global e estabeleça mecanismos para mitigar seus efeitos negativos sobre o emprego e a distribuição de renda, promovendo uma inovação verdadeiramente inclusiva. Isso exige uma mudança de paradigma na forma como pensamos a regulação econômica. Em vez de uma visão puramente liberal, que confia cegamente na autorregulação do mercado, é necessário adotar uma abordagem mais proativa, estratégica e adaptativa, que envolva o diálogo entre governos, empresas, trabalhadores em ação conjunta com seus sindicatos e a sociedade civil na busca de soluções inovadoras e sustentáveis. A regulação deve ser vista como um processo de aprendizado contínuo, que se ajusta às novas realidades tecnológicas e econômicas, incorporando princípios de flexibilidade, transparência e responsabilidade.

A experiência da China, com suas imperfeições e controvérsias, oferece um ponto de partida para essa reflexão, demonstrando que a intervenção estatal, mesmo que de forma não ortodoxa, pode desempenhar um papel importante na promoção do emprego e na redução da desigualdade em um contexto de rápida transformação econômica. No entanto, é crucial aprender com os sucessos e fracassos da experiência chinesa, buscando modelos de regulação que sejam mais eficientes, transparentes e democráticos.

O debate sobre o futuro do trabalho na era da inteligência artificial e da automação avançada está apenas começando. A forma como as sociedades responderão a esses desafios definirá o futuro da distribuição de riqueza, da coesão social e da própria democracia. Ignorar a necessidade de uma regulação inteligente, adaptada aos novos tempos e orientada para a inclusão seria um erro com consequências potencialmente devastadoras. A análise simplista que atribui toda a culpa à globalização não pode nos cegar para a verdadeira responsabilidade: a de construir um futuro em que a inovação sirva ao bem-estar de todos, e não apenas de uma parcela privilegiada da população, com efeitos deletérios sobre a classe média. A pobreza é o limite da classe média!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


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O veneno sendo ministrado como remédio – A insana saga do setor de infraestrutura para sobreviver no país

José Américo Azevedo

Este espaço da prestigiosa plataforma está disponibilizado para falar sobre Direito e Economia. Dentro deste contexto, o desenvolvimento econômico e a pauta legislativa se inserem perfeitamente.

Pois bem, falemos sobre infraestrutura, propostas legislativas e o necessário crescimento que há décadas, talvez séculos, promete que o Brasil esteja fadado a ser o “país do futuro”.

Um futuro que nunca chega e que diversas gerações vêm e vão, sem que a prometida e alvissareira expectativa se cumpra!

Não obstante os inúmeros desacertos políticos e governamentais, encontramos, ainda, excrescências, sob forma de projetos de lei, apresentados pelos legítimos representantes do povo brasileiro, que enterram qualquer possibilidade de se criar uma agenda positiva para pavimentar o caminho para esse tão sonhado – e tão distante – projeto de futuro.

Transvazada esta digressão, encaminhemos para o tema que ora nos é apresentado!

Em 20.12.2023, ilustríssimo deputado (em minúsculas) Pedro Uczai, do PT de Santa Catarina, apresentou o projeto de lei nº 6.130/23, que “[d]ispõe sobre a suspensão da licença de empresas que atuam no setor de construção civil, em caso de descumprimento de execuções judiciais e risco flagrante de falta de saúde financeira”.

Lendo a biografia do nobilíssimo deputado (em minúsculas), vê-se que sua profissão é de professor universitário, graduado em Estudos Sociais, Filosofia e Teologia e Mestre em História do Brasil, além, evidentemente, de político profissional. Como deputado federal, votou contra a admissibilidade do pedido de impeachment da presidente Dilma Roussef. Já durante o Governo Michel Temer, votou a contra a PEC do Teto dos Gastos Públicos. Em abril de 2017 foi contrário à Reforma Trabalhista. Em agosto de 2017 votou a favor do processo em que se pedia abertura de investigação do presidente Michel Temer.[1]

Percebe-se o viés ideológico oblíquo do cidadão, além da total falta de familiaridade com o setor da infraestrutura. Mas deixemos o sublimíssimo parlamentar (em minúsculas) de lado, para discutirmos o que realmente importa para o país.

O SINICON – Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada, estima que o estoque de capital em infraestrutura (ou seja, o valor total da infraestrutura existente) em comparação com o Produto Interno Bruto (PIB) está em 35,5% no país. No entanto, Entre 2022 e 2024, o investimento ao ano ficou abaixo de 1,9% do PIB. [2]

Há que se pensar e, evidentemente, avaliar que essa desproporção gera impactos absolutamente deletérios para a economia brasileira, uma vez que nossa economia está profundamente lastreada em exportação de comodities que dependem, essencialmente, de logística e infraestrutura de transportes, necessitando da ampliação de investimentos em todos os modais, quais sejam, rodoviário, ferroviário, hidroviário, portuário e aeroviário.

No que diz respeito ao aspecto social que, ao que parece, foi o foco da proposta do autor do projeto, a mesma situação se apresenta. O Estado não cumpre as regras estabelecidas em contrato, atrasando pagamentos, não conseguindo resolver, dentre outras, as questões de licenças ambientais ou de desapropriações, de sua absoluta responsabilidade, fazendo com que o setor privado tenha que financiar o Governo, colocando o trabalho antecipadamente, à espera de um recebimento que não sabe se vai chegar. Basta dizer que o orçamento federal para 2025 somente foi aprovado no final do mês de março deste ano (quando deveria estar sancionado desde o ano passado), e ainda não disponibilizado operacionalmente, gerando total instabilidade para todos aqueles que prestam serviços ao Governo.

Contextualizado este panorama, podemos voltar ao nosso malfadado projeto de lei. O artigo 2º estabelece que:

Fica estabelecida a suspensão da licença de funcionamento de empresas, empresas de pequeno porte (EPPs), microempresas (MEs) e Microempreendedores Individuais (MEIs) que atuam no setor de construção civil, quando houver o descumprimento de execuções judiciais e for constatado o risco flagrante de falta de saúde financeira para atuação no referido setor.

O projeto, como fica claro, tem como objetivo asfixiar exatamente as empresas que precisam do auxílio do Governo. São empresas que possuem poucos funcionários, que sustentam suas famílias e, portanto, dependem delas, e que geram milhões e milhões de empregos neste país.

É como um “nó de gólgota” para os pequenos empreendedores brasileiros que, buscando prosperar e trazer desenvolvimento, serão crucificados pelos soldados, se não romanos, pelo menos legislativos, aqui nessas terras do Ocidente.

Um dos requisitos para a suspensão da licença está definido como a apresentação de “risco flagrante de falta de saúde financeira para atuação no referido setor” e, de forma totalmente subjetiva específica o tal “risco flagrante” como “a situação em que a empresa de que trata esta Lei apresente indícios concretos de insolvência, tais como a falta de capacidade de pagamento de obrigações, acúmulo de dívidas em execução e demais elementos que demonstrem a inviabilidade financeira”.

Ora, na maioria das vezes, a falta de capacidade de pagamento de obrigações e o acúmulo de dívidas em execução, além dos (como definir?) demais elementos que demonstrem a inviabilidade financeira, são decorrentes exatamente da inadimplência estatal em relação aos contratos firmados entre privados e a Administração Pública, resultante de imensos atrasos nos pagamentos das prestações de serviço. Ou seja, o causador do dano é exatamente o algoz que irá dizimar o empreendedor.

O art. 8º do PL, consuma o arremesso da pá de cal nas empresas quando estabelece que “[d]urante a suspensão da licença, a empresa não poderá realizar novos serviços, obras ou prestações contratadas”. É dizer, caso receba essa penalização, a empresa deve providenciar um plano de contingências para o definitivo encerramento de suas atividades.

É o mesmo que dizer a um doente que chega a um hospital que não vai ser ministrado qualquer medicamento, uma vez que corre algum risco de morrer. O remédio seria exatamente o auxílio governamental para arrancar a empresa da situação espinhosa que está atravessando, proporcionando recursos – e serviços – para que ela possa sobreviver e voltar de forma saudável ao mercado.

Em que pese a intenção do Projeto, já existem instrumentos eficazes para lidar com a inadimplência e insolvência empresarial, como a Lei de Falências, a Lei de Execução Fiscal e o Código de Processo Civil. Não há, portanto, necessidade de penalizar, ainda mais, um setor que, historicamente, é o primeiro a sofrer os efeitos de qualquer recessão econômica, mas, no entanto, é o primeiro a mostrar vitalidade quando existe uma recuperação da economia, ajudando, de forma extremamente direta, o restabelecimento da estabilidade do país.

Em sua justificação, o autor do Projeto afirma:

Embora as vigentes regras de direito e processo civil e de defesa do consumidor contenham mecanismos judiciais e sanções administrativas para assegurar o cumprimento das obrigações contratuais assumidas pelos fornecedores no âmbito dos negócios jurídicos celebrados no mercado de consumo, um setor, em especial, parece seguir à margem dessa regulação.

Trata-se do segmento de construção civil, ambiente em que a reiterada desobediência aos princípios essenciais do pacta sunt servanda (obrigatoriedade dos contratos), da efetiva reparação dos danos causados ao consumidor e da efetividade da prestação jurisdicional demonstram a necessidade de concepção de novos remédios jurídicos, mais rigorosos, para garantir a proteção dos interesses dos consumidores.

Com a devida vênia, não poderia estar um representante do povo mais equivocado e tendencioso. O setor de infraestrutura, considerando a construção civil e a infraestrutura pesada é, com certeza, um dos que mais sofrem com fiscalizações, perseguição por órgãos de controle internos e externos, além de medidas judiciais que penalizam constantemente o segmento.

É digno de pena para o país que um Projeto como esse caminhe pelo Parlamento, de maneira irresponsável e desarrazoada. Somente o bom senso dos deputados e senadores poderá corrigir esta absurda distorção que está sendo, inconsequentemente, proposta.

Só com respeito e proteção a um setor tão relevante para o desenvolvimento do país é que poderemos, voltando ao início para encerrar, esperar que o Brasil chegue à efetiva condição de “país do futuro”.


[1] https://pedrouczai.com.br/biografia/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Uczai
Consultados em 05.05.2025

[2] https://www.sinicon.org.br/blog/?falta-de-investimento-deixa-infraestrutura-brasileira-em-estado-critico#:~:text=A%20pesquisa%20mostra%20que%20o,35%2C5%25%20no%20Pa%C3%ADs.
Consultado em 05.05.2025


José Américo Azevedo. Engenheiro Civil pela Universidade de Uberaba e Advogado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa IDP, em Brasília. Consultor independente e ex-colaborador na Defensoria Pública do Distrito Federal. Colunista na plataforma WebAdvocacy. Atualmente presta consultoria para o Instituto Unidos Brasil. Experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, licitações, contratos e concessões públicas atuando por empresas privadas e pelo Governo. Ex-membro de Comissões de Licitações. Relações institucionais e governamentais. Credenciado como perito técnico judicial junto ao TRF 1 Região. Membro da Comissão de Infraestrutura da OAB/DF.


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A coisa certa

Adriana da Costa Fernandes

Acontecimentos nacionais têm causado profunda reflexão e consternação acerca de conceitos que, até algum tempo, eram considerados rebatidos, basilares e inadiáveis socialmente. Ética, moral, justiça, liberdade, verdade, bem-estar. Em dias atuais, pontos de profundo debate e causadores de desânimo e desesperança. Ao fim, uma miríade de entendimentos tantas vezes antagônicos. 

E a dúvida que paira no ar:

Até onde chega, afinal, o limite de cada individualidade sobre cada tópico?

Como se configura e se mantém cada olhar diante dessas verdades?

Qual a razão efetiva de comportamentos tão díspares?

Avaliando esses aspectos pelo contexto das várias Teorias de Justiça, se entende: seja pela ótica libertária ou utilitarista, pelo olhar de Mills; seja pela defesa de Kant, Rawls ou de Dworkin, a premissa essencial é não prejudicar ao outro em prol do que se acredita ou razão do que se luta.

Ainda que se considerando que o conceito de justiça começa pelo de liberdade de escolha e que algumas teorias enfatizam o respeito aos direitos fundamentais, mesmo que, entretanto, outras não defendem isso exatamente, sem dúvida, o ponto comum das teses significa respeitar os direitos individuais. 

Se o que se busca é o respeito ao próprio desejo, como, então, não respeitar o outro como fim em si mesmo? Como não considerar suas escolhas. Premissas de Kant.

Não há como se dissociar um do outro, o eu e do você, o ele do outro. Nós juntos. Uma vez que é esta conjugação plural que forma a coletividade. 

Do que importa, tantas vezes é tão mais “do como” as escolhas são realizadas do que a escolha em si. Do motivo, da razão, da premissa virtuosa. Por exemplo, se mediante consentimento comprometido, se eivado de excessiva pressão, se dotada de absoluto egoísmo ou, até, por necessidade financeira. Os contextos mudam diante do móvel e do intrínseco. Amenizam ou agravam o quadro final.

A ganância, porém, não segue a mesma regra. Diz respeito a hábito enraizado, mais do que apenas algo adquirido e escolhido. Inerente à essência do ser. Não resta dúvida, portanto, que alguns temas como dinheiro e poder não deveriam ser jamais capazes de constranger, desconsiderar ou transformar. Ao menos em uma sociedade ideal.

Ainda que questionamentos surjam sobre até que ponto algumas escolhas são realmente livres, ainda assim, virtudes, conceitos e bens essenciais não deveriam ser influenciados, garantindo maior segurança jurídica e bem-estar social. 

O que tantas vezes guia as decisões difíceis que o homem enfrenta e que envolvem conceitos colidentes é uma atenta e aprimorada reflexão, bem como sua consequente decisão moral, invariavelmente lastreada em incertezas. 

“Mas, e se?”

Este é justamente “o” momento em que o homem é guiado a, mesmo que direta ou indiretamente, rever as crenças que carrega arraigadas em si e os conceitos ditos supostamente rebatidos, compreendidos e introjetados pela experiência pessoal e pelos ensinamentos aprendidos. Todos enfrentam em algum ponto, esse dilema diante de algo.

O homem vive constantemente à mercê de impactos e forças externas que o moldam mais lenta ou rapidamente, a depender de seu próprio interesse. Em movimento de evolução em espiral, tendente a provocar a revisão das opiniões e a mudança do ser, do pensar, do agir e do entorno. Efeito dominó. Constante desafio dialógico íntimo que pode se exteriorizar ou não.

Afinal, o que se fez e o que se faz com o que foi aprendido? E por que o mal assume o comando? Como cada um vem contribuindo para a construção de uma melhor sociedade? Quem se importa realmente com o que vem à frente?

Lamentavelmente a habitual percepção da corrupção enquanto lugar comum significa tão somente “empurrar a sujeira de uma casa tão antiga para debaixo do tapete”. Uma hora o ar tenderá a se tornar irrespirável, em uma apenas singela interpretação.

Não se envolver e não questionar acordos firmados e não refletir sobre comportamentos abusivos significa plantar profundamente sementes de desterro e desalento a serem colhidas por gerações futuras. Como pontua Michael Sandels, a reflexão moral não é somente uma busca individual, mas coletiva.

O valor moral de cada ação propriamente, seja qual for, não consiste tão somente em suas consequências, mas, em primeiro plano, na intenção de sua realização, novamente dialogando com Kant. Segundo ele, inclusive, a opção e o agir representam não exatamente escolher o meio para se atingir determinado fim, mas escolher o fim em si mesmo.  De forma analógica, pois, há de ser deixar de ser rochedo e escolher ser o próprio mar.

Do que se observa, entretanto, de uma sociedade ainda em amadurecimento é que os tantos dilemas enfrentados devem passar a ser confrontados não somente pelas leis físicas, morais e impostas, mas de acordo com as regras íntimas que determinamos a nós mesmos e sua ressonância social.

As lições e teorias de justiça são extensas, alguns concordam, outros nem tanto. Nem todos entendem. Faz parte. A questão preponderante sempre será, assim, o entendimento do quando e do quanto a sociedade estará pronta a alcançar um próximo estágio.

De toda sorte, o mote principal: o que para cada um individualmente significa, em essência, fazer a coisa certa?


Adriana da Costa Fernandes. Advogada com expertise em Direito Público e em Direito Privado, com foco especial em Regulatório, Administrativo, Conatitucional e Ambiental, mas igualmente em Cível Estratégico, Consumidor e RELGOV, tendo atuado em mercados e segmentos relevantes, em grandes empresas, nacionais e multinacional, em associação setorial, em agências reguladoras, em escritórios AA e consultoria. Mestranda em Direito Constitucional, Pós-graduanda em Direito Civil, com MBA em Marketing, Especializações em Energia Elétrica, RELGOV, Processo Civil e Fundamentos da Arbitragem, além de contar com várias Certificações em instituições de renome em Legal, Finanças, Marketing, Business, Gestão e Liderança e Bioética.


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Adriana da Costa Fernandes

Saiba mais sobre Kant

Kant

Estátua de cera representando Immanuel Kant em Kalingrado, antiga Königsberg, cidade prussiana onde o filósofo nasceu.

Estátua de cera representando Immanuel Kant em Kalingrado, antiga Königsberg, cidad

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Arte e Nossa Realidade

Marco Aurélio Bittencourt

O debate sobre o papel das artes na nossa cultura possui uma dinâmica complexa e interdependente. Podemos nos perguntar se a cultura molda as expressões artísticas ou se são as artes que ativamente influenciam a configuração cultural. Acredito que ambas as direções causais são válidas; tanto a arte   registrando o presente, quanto sinalizando tendências futuras de nossa sociedade. Contudo, a tapeçaria cultural se torna ainda mais intrincada pela natureza multifacetada da arte, que se desdobra em diversas manifestações como a pintura, a literatura, o cinema, a música, o teatro e muitas outras formas de expressão cultural. Cada uma dessas vertentes pode exercer essa influência bidirecional ou atuar em apenas um sentido em diferentes momentos históricos, ou até mesmo em ambos simultaneamente. Gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre o cinema brasileiro, não como um especialista, mas como um observador que se intenciona atento.

Minha memória do cinema brasileiro me leva à época da Companhia Vera Cruz, um período significativo para a nossa cinematografia. De fato, a ambição de criar uma “Hollywood brasileira” se evaporou, ficando na memória filmes como o Cangaceiro e Sinhá Moça nos primórdios dos anos de 1950. O primeiro dirigido por Lima Barreto e o segundo por Tom Payne (consultas ao google informam os detalhes).

Apesar da constante presença de filmes estrangeiros, o cinema nacional experimentou seu impulso criativo a partir da década de 1930. Foi nesse período de 1930/40 que surgiu uma produtora, a Cinédia, que iniciou a produção de filmes que dariam origem a um gênero característico: as chanchadas. Essas produções alcançaram grande popularidade nas décadas de 1940 e 1950, perdendo gradualmente sua força nos anos 1960.

As chanchadas eram filmes que exploravam temas da cultura popular, com destaque para o Carnaval, e apresentavam narrativas que combinavam elementos dramáticos e humorísticos, frequentemente incluindo números musicais. Nesse contexto, emergiu uma figura que se tornaria um ícone da cultura brasileira: Carmen Miranda, que participou de filmes como “Alô, Alô, Brasil” e “Alô, Alô, Carnaval”.

A Companhia Vera Cruz foi uma tentativa frustrada de superar a concorrência internacional, apartada da nossa cultura. Embora a Cinédia tenha sido a pioneira e dominante por muitos anos, a Companhia Vera Cruz surgiu em um contexto diferente, com a ambição de alcançar um patamar de produção mais sofisticado e com reconhecimento internacional, inspirada no modelo de Hollywood. Enquanto a Cinédia focava em um cinema mais popular e comercial, com as chanchadas como carro-chefe, a Vera Cruz buscava uma produção com maior investimento e apelo artístico, embora tenha encontrado dificuldades em se sustentar financeiramente. Um artista solitário também teve papel importante em nossa cinematografia: O “caipira” Mazzaropi dirigiu seu primeiro filme, “Chofer de Praça”, em 1958. A característica básica dos filmes de Mazzaropi era registrar a visão da realidade brasileira a partir de um olhar de uma pessoa humilde, ele próprio numa versão jeca engraçada. Continuou o mesmo até falecer em 1981.

A partir do final da década de 1950, consolidou-se no país uma corrente cinematográfica que se tornou uma das mais relevantes da nossa história: o Cinema Novo. Essa corrente era marcada por um forte engajamento político e direcionava críticas ao panorama do cinema brasileiro da época, que sofria uma considerável influência do cinema norte-americano. Ademais, as produções do Cinema Novo buscavam expor a realidade da pobreza enfrentada pela população brasileira, questionando os entraves sociais, como a desigualdade e a marginalização da sociedade, dirigida principalmente aos descendentes da escravidão não amparados pela sociedade em geral. Pelo contrário; reforçavam em pequenos atos que lhes pareciam normais constantemente sua marginalização – estão aí o quarto de empregada, o elevador social e tantos outros arranjos a mostrar a nítida segregação. As obras desse movimento também se alinhavam com ideias que defendiam os interesses da classe trabalhadora, e a veemente denúncia da situação do país realizada por essa corrente que ficou conhecida como a “estética da fome”.

Assim, houve uma transição da chanchada para o Cinema Novo. A chanchada, com sua abordagem mais voltada para o entretenimento do público e menos focada em uma crítica direta da realidade, cedeu espaço para uma perspectiva mais analítica e engajada. Diretores importantes começaram a se destacar no cenário nacional, como Nelson Pereira dos Santos, cujo filme “Rio 40 graus” apontava para os problemas sociais brasileiros. Esse lançamento ocorreu em 1955, após o filme ter sido retido pela censura.

Naquela época, o jovem crítico de cinema baiano Glauber Rocha demonstrou interesse pelo trabalho de Nelson e se mudou para o Rio de Janeiro com o objetivo de trabalhar com ele. Glauber efetivamente se tornou assistente de direção de Nelson em seu filme seguinte, “Rio, Zona Norte” (1957), que narra a história do sambista Espírito da Luz, interpretado por Grande Otelo, inspirado na vida de Zé Kéti, que também compôs a trilha sonora. Em reconhecimento, Nelson realizou a montagem de “Barravento” (1962), o primeiro longa-metragem de Glauber. “Rio, 40 Graus” e “Rio, Zona Norte” são considerados filmes fundamentais para o Cinema Novo, e Nelson, tendo dirigido ambos e participado da estreia de Glauber, rapidamente se tornou uma figura paterna para os cineastas do movimento. Tivemos ainda grandes nomes nessa linha do cinema novo: Ruy Guerra com Os Fuzis (1964) – que retrata a seca e a violência no Nordeste e Leon Hirszman com São Bernardo (1972) – Adaptação da obra de Graciliano Ramos.

No meio do caminho do cinema novo Anselmo Duarte manteve o ritmo cinematográfico da Vera Cruz e nos brindou com o seu premiadíssimo filme o Pagador de Promessa em 1962 – ganhou a Palma de Ouro em Cannes. De certo, a maior promoção do cinema brasileiro.

Nessa trajetória do cinema novo surgiram nomes que não se engajavam diretamente a uma corrente política, como Roberto Farias que dirigiu o filme o Assalto ao Trem Pagador em 1963. A produção de “O Assalto ao Trem Pagador” foi realizada pela Herbert Richers Produções Cinematográficas. Herbert Richers que teve um papel de destaque na indústria cinematográfica brasileira, responsável por inúmeras produções, pela dublagem de filmes estrangeiros no Brasil e pelo conhecido canal 100 que nos brindava com imagens belíssimas do nosso futebol antes das exibições dos filmes. Vale citar ainda uma recordação viva de um filme chamado “O Rei Pelé”, lançado em 1962. Este filme, dirigido por Carlos Hugo Christensen, da vida de Pelé naquele momento era uma produção que misturava elementos de dramatização e documentário, reconstruindo a trajetória de Pelé até aquele ponto da sua carreira, com o próprio Pelé participando e interpretando a si mesmo em algumas cenas.

Vieram outros nessa mesma linha: Arnaldo Jabor com Toda Nudez Será Castigada (1973) – Uma adaptação da obra Nelson Rodrigues, Bruno Barreto com Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976) – Uma adaptação de uma obra Jorge Amado e Hector Babenco com Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980) – Um olhar sobre a violência e a infância marginalizada.

A influência do Cinema Novo se estendeu para documentários e teledramaturgia, notavelmente através das adaptações de Dias Gomes das obras de Jorge Amado. No cinema, a influência de autores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Mário de Andrade direcionou uma abordagem mais metafórica da realidade brasileira. Surgiram novos diretores, como Tizuka Yamasaki, que participou da produção do curta “Fala, Brasília” (1966). Contudo, um destaque importante foi o documentário de Glauber Rocha sobre a ascensão do clã Sarney ao governo do Maranhão, retratando um coronelismo arcaico sob uma roupagem ditatorial (Maranhão 1966). Joaquim Pedro de Andrade é uma referência importante pelo trabalho cinematográfico de Macunaíma. Podemos também citar Cacá Diegues, José Padilha, Meirelles e Walter Salles como nomes relevantes dessa trajetória.

Mas o que esses cineastas buscavam expressar? A trajetória do Cinema Novo apontava para a nossa realidade mais crua e vislumbrava um futuro que, de certa forma, olhava para o passado. Muitas vezes, a mudança parecia residir apenas na nova forma de apresentar os problemas, resultando em uma certa estagnação temporal de nossa realidade. Posteriormente, surgiram diretores que abordaram a ordem e a desordem dos valores morais e éticos, com um esforço para reorientar o comportamento social em direção a um mínimo de ética. Contudo, novamente pareceu haver uma certa paralisia no tempo. Observo o passado se repetindo no presente e no futuro, e filmes como “Central do Brasil”, “Bye bye Brasil”, “Tropa de Elite”, “Cidade de Deus” e “O Mecanismo” representam o estágio atual da nossa cinematografia, uma arte talvez excessivamente presa ao presente que repete em seu futuro o passado que nos acorrenta.

Atualmente, dispomos de outro meio para apreciar filmes de qualidade: as plataformas de streaming. Essa facilidade de conexão com outras culturas nos proporciona novas perspectivas sobre temas antigos. Ao analisar produções de outros países através do streaming, como o filme tailandês “Como Ganhar Milhões Antes que a Vovó Morra” e a minissérie turca “Enciclopédia de Istambul”, emerge um paralelo que lança luz sobre o nosso próprio estágio cultural. Essa comparação sugere que, sob a lente do cinema, o Brasil se assemelha mais à Tailândia em termos da priorização de questões éticas, indicando um possível estágio de desenvolvimento cultural relativamente similar, embora com a ressalva de que a Tailândia possa apresentar um quadro cultural mais coeso em certos aspectos. Em contraste, a Turquia parece exibir, através de sua produção, um estágio de desenvolvimento cultural mais avançado, com valores aparentemente mais consolidados e a busca de uma postura de integração em um mundo plural com todos os riscos que uma sociedade moderna oferece pelas escolhas individuais. A percepção de um quadro urbanístico na Tailândia que ecoa similaridades com o Brasil e um cenário em Istambul mais próximo ao europeu reforça essa leitura de diferentes estágios de desenvolvimento cultural refletidos em suas produções audiovisuais e, por extensão, em suas sociedades. Para mim, sob a perspectiva cinematográfica, claramente nos encontramos em um estágio civilizatório mais próximo ao da Tailândia, onde as questões éticas ainda são prioritárias, sugerindo um certo distanciamento de um patamar de desenvolvimento cultural mais ‘maduro’, como o da Turquia. Não é atoa que a Tailandia mostra um quadro urbanístico semelhante ao Brasil e Istambul ao Europeu. É o que penso, ao observar como nosso cinema, e por extensão nossa cultura, nos posicionam em relação a outros países, sugerindo um caminho a percorrer em nosso desenvolvimento cultural, mesmo reconhecendo as complexidades e nuances dessa comparação. Em última análise, o cinema, como forma de arte, não apenas reflete a realidade, mas também atua como um termômetro cultural, indicando nosso estágio presente e, por inferência, as possíveis trajetórias futuras de nossa sociedade. Fiz minhas escolhas para que alcancemos o estágio civilizatório europeu.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br 


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O complexo mundo da concorrência no mercado de crédito

Cristina Ribas Vargas

Não resta dúvida de que o crédito concedido às atividades de consumo e investimento têm papel fundamental para dinamizar o crescimento econômico. O embate entre Estado e mercado pelo gerenciamento do recurso creditício não é recente, mas tem se tornado mais evidenciado nas pautas de demandas ao congresso nacional. A introdução da inovação nas novas formas de prestação de serviços implementadas por novas instituições no mercado financeiro não retratam apenas um movimento de ampliação da concorrência na prestação dos serviços, mas também revela novas demandas e uma pressão sobre uso do crédito direcionado.

Dentre os pontos apresentados pelos que defendem uma redução do crédito direcionado está o argumento de que uma redução no crédito direcionado possibilitaria um aumento do produto e da produtividade, assim como, a redução de desigualdades e maior inclusão financeira. Tal argumento está amparado na crítica ao fato de que as taxas de juros dos empréstimos direcionados em geral são menores do que as do crédito livre, por serem custeadas por segmentos mais produtivos da sociedade. Além disso, argumentam que a distribuição desses recursos está longe de ser homogênea, ou distribuído igualitariamente. Por tais razões, sob tal visão, as intervenções com base no uso do crédito direcionado geram ineficiências, tonando os programas baseados nesse tipo de crédito injustificável.

Neste sentido, por exemplo, em texto de discussão o Bacen (2018) cita um estudo que indica que o BNDS seleciona firmas com alta capacidade de pagamento, tanto quanto ocorre no sistema bancário privado, com o agravante de que haveria indícios de favorecimento a firmas com conexões políticas, o que poderia ser observado a partir dos valores concedidos por tais firmas em campanhas eleitorais. Ainda, estima-se que em torno de 70% do crédito concedido seria subsidiado pelo FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e por emissão de títulos de dívida do Tesouro Nacional, acirrando o debate sobre quem paga a conta.

É salutar e democrático questionar os fins para os quais esse crédito é direcionado, quais os resultados alcançados, e como se dá a distribuição final dos rendimentos, mas não o fato em si de taxas de juros menores serem oferecidas para alavancagem do crescimento econômico. O sistema bancário é pró-cíclico, o que significa que nos momentos de expansão econômica, os bancos fornecem crédito, realimentando o crescimento. No entanto, na fase descendente do ciclo econômico, eles aumentam a preferência pela liquidez, reduzindo o volume de crédito ofertado, aprofundando a crise. Ao longo da história mesmo instituições multilaterais como o FMI e o Banco Mundial tiveram sua capacidade de atuação no combate às crises enfraquecidas, tendo sido questionado o objetivo principal pelo qual foram criadas. Além disso, é preciso considerar os ganhos de produtividade do mercado bancário dadas as condições vigentes disponíveis de crédito livre, a fim de averiguar-se os ganhos reais de produtividade no segmento de mercado.

Conforme descreve Van Dormael (1978), os banqueiros de Wall Street não economizaram esforços em criticar e tentar obstaculizar o nascimento das instituições criadas a partir da convenção de Bretton Woods, temendo que o controle dos governos, além de outras medidas reguladoras do New Deal restringissem seu poder sobre as finanças nacionais.

As disputas em torno da definição da direção do BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento) começaram antes mesmo de seu nascimento, e suas ações foram ajustadas para estar em consonância com a política externa dos EUA para a América Latina. Embora o BIRD tenha sido foi concebido com o objetivo de promover a reconstrução e o desenvolvimento de países, na prática sempre foi operado por banqueiros de Wall Street. Assim, desde as origens da organização do sistema financeiro no pós-guerra o sistema bancário privado busca ter sob sua gestão os recursos destinados ao crédito direcionado.

Atualmente cada país tem regras específicas para o funcionamento do sistema financeiro, e não existe uma receita única para cada tipo de país. As experiências dos sistemas financeiros são múltiplas e diversas. Contudo, países em desenvolvimento necessitam de regulação ou intervenção em algum grau do Estado. Atualmente seria inconcebível pensar o desenvolvimento econômico sem repensar o futuro do sistema financeiro.

Podemos ainda acrescentar como os pensamentos de Keynes e Schumpeter se aproximam quando destacam a importância do processo inovativo para a mudança tecnológica. Mas além disso, Keynes também destacava que só é possível o empresário realizar os investimentos necessários para a mudança rumo ao desenvolvimento com o apoio do sistema bancário. Os investimento, em Keynes, explicam-se pelo princípio da demanda efetiva, e, em Schumpeter, o investimento relaciona-se com a inovação. O fato é que tanto os investimentos direcionados para as aquisições de bens de capital quanto aqueles dirigidos às inovações estão sujeitos à incerteza.

Assim, tanto as decisões de investimento como as de inovar encontram-se sob a incerteza não probabilística, vale dizer, em um mundo não ergódico. Existem diferentes tipos de inovação relacionados a diferentes graus de incerteza. Nesse sentido, o investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) está mais associado à incerteza de alto grau, pois se trata de um ativo cujos investimentos em formação de conhecimento são caros, e em geral de longo prazo de maturação. Assim, o investimento em P&D tem custos de financiamento frequentemente mais elevados do que outras formas de investimentos, inclusive o capital fixo. Logo, as firmas intensivas em P&D, que compõe um sistema nacional de inovação, dependem de um sistema financeiro que seja capaz de contemplar as necessidades de financiamento, e que estejam em consonância com a estratégia de desenvolvimento nacional.

Na perspectiva pós-keynesiana, os bancos são movidos pelo processo de concorrência bancária e pela busca de maiores lucros, aumentando sua escala de operação, alavancagem e/ou elevando o spread bancário. (Minsky, 1986). Na fase expansiva do crescimento econômico da economia, o sistema bancário expande o volume de crédito e, no descenso do ciclo, o volume de crédito é reduzido. Nesse sentido, a fragilidade financeira é um processo endógeno, que se relaciona à própria instabilidade econômica. Os bancos trabalham com uma escala de liquidez segundo a qual quanto menor o grau de liquidez, maior deverá ser a compensação proporcionada pela taxa de retorno. Contudo, a atuação do Estado sobre a incerteza não probabilística é determinante para a continuidade do processo de crescimento, uma vez que o aumento da incerteza na economia aumenta a preferência pela liquidez, reduzindo o volume de crédito. Este, por sua vez, é ampliado quando as expectativas em relação às taxas de juros, de câmbio e às perspectivas de crescimento econômico são otimistas.

A busca pela absorção do crédito direcionado não revela aumento do grau de concorrência e eficiência, senão o caminho mais fácil para ampliar o volume de operações sem assumir os riscos inerentes à incerteza que é inerente ao processo de desenvolvimento econômico.

As inovações financeiras têm possibilitado o aumento do volume de crédito, sem a necessidade de poupança ou depósitos à vista, alterando a forma como o mercado pode ofertar crédito livre sob condições de incerteza. Muitas experiências de microcrédito voltadas para o público empreendedor que não encontrava recurso disponível em grandes bancos vingaram por meio de pequenas instituições, ONG’s ou instituições focadas na melhoria tecnológica dos serviços. Contudo, o Brasil ainda se encontra em fase de amadurecimento da estrutura legal do funcionamento do mercado bancário. Neste sentido, não há dúvidas da necessidade da instância regulatória em engendrar o desenvolvimento do sistema.

Recentemente o Bacen abriu consulta pública para a definição de novas regras envolvendo os nomes das instituições financeiras, a fim de identificar aquelas que realmente oferecem serviços característicos de bancos. Distinguir os nomes com bank ou banco, que operam sistema de crédito, dos demais prestadores de serviços, que apenas oferecem canais de pagamentos. A medida pode parecer simples, mas pode significar o começo de uma nova visão sobre como a regulação do sistema bancário pode auxiliar no processo de desenvolvimento nacional, sem necessariamente precisar reduzir o volume do crédito direcionado.

Referências

BACEN, 2018. Texto para discussão 490 Disponível em https://www.bcb.gov.br/htms/public/microcredito/democrat.pdf p.9

VAN DORMAEL, Armand. Bretton Woods: Birth of a Monetary. Palgrave MacMillan: 1978

PAULA, L. F. Sistema Financeiro, bancos e financiamento da economia: uma abordagem keynesiana. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2014.


Cristina Ribas Vargas. Doutora em economia do desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Economia do Desenvolvimento pela PUC/RS e Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.   Atuou como professora substituta na UFRGS e professora adjunta em instituições de ensino privado. É economista da Administração Pública Federal desde 2005, e atualmente está atuando na CGAA2 do Cade.

endereço linkedin: http://linkedin.com/in/cristina-vargas-5921195a


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Cristina Ribas Vargas

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Vargas e o orçamento: ditadura eficiente ou boas regras de gestão pública?

Marco Aurélio Bittencourt

A avaliação da Era Vargas nos coloca ainda hoje diante de vários paradoxos. Um deles nos coloca diante de uma questão central: a eficiência na gestão orçamentária seria um atributo exclusivo de regimes autoritários, ou o resultado da aplicação de boas regras de gestão pública, replicáveis em diferentes sistemas políticos? Para refletir sobre isso, consideremos a seguinte afirmação (expressa no livro Orçamento Público, Viana A., 1950):

Em todas as fases do processo orçamentário, é de justiça observar que o Sr. GETULIO VARGAS, pessoalmente, determinava a observância rigorosa de todos os preceitos regulamentares da boa administração financeira, jamais proferindo qualquer decisão sem a devida fundamentação legal preparada pelos órgãos especializados. Nesse particular, nenhum órgão interessado na realização de uma despesa obtinha, no regime ditatorial, despacho definitivo do Presidente antes da audiência dos demais órgãos incumbidos de zelar pela legalidade, necessidade e oportunidade do ato solicitado……É curioso e mesmo paradoxal constatar que toda a longa , esclarecida e contínua ação dos parlamentos imperiais e republicanos jamais conseguiu assegurar ao sistema orçamentário brasileiro a veracidade, integridade e eficiência que lhe imprimiu o regime ditatorial de GETÚLIO VARGAS, a partir de 1939. Reunindo de fato e de direito os mais vastos poderes da República, o Presidente VARGAS sempre procurou, no campo financeiro, o justo limite para exercê-los. A vertigem da glória de proporcionar ao país grandes empreendimentos … não perturbou o Presidente GETÚLIO VARGAS, que através da copiosa documentação de seus atos administrativos, demonstrou ser possível conciliar os impulsos criadores com a observância dos princípios fundamentais que regem as finanças públicas nas democracias. Essa atitude de severidade, respeito e interesse pelas instituições orçamentárias – de que posso dar testemunho, em virtude de colaboração técnica prestada ao seu Governo, durante seis anos consecutivos …. – merece ser compreendida por quantos o combatem e o admiram.” (Viana, A., Págs. 35 e 36, 1950.)

É comum que ditaduras políticas se manifestem também como econômicas, aparelhando o Estado para privilegiar grupos de interesse por meio de mecanismos orçamentários ou extraorçamentários. Nesse contexto, o testemunho de Viana (1950) sugere que a observância rigorosa de preceitos regulamentares pode, ao menos em parte, mitigar a influência de interesses escusos, impondo uma disciplina que nem sempre encontra espaço nos arranjos mais flexíveis da democracia.

O texto retrata a gestão Vargas como um caso singular na história da administração pública brasileira, onde a eficiência e a probidade teriam florescido sob um regime autoritário, contrastando com as supostas ineficiências dos parlamentos. Contudo, é crucial questionar se essa eficiência é inerente à ditadura ou se reflete a adoção de práticas administrativas sólidas.

Afinal, a aplicação de regras e procedimentos, embora importante, nunca é totalmente neutra. As relações de poder e as ideologias dominantes permeiam a interpretação e a execução dos atos administrativos. Além disso, o contexto da modernização do Estado brasileiro na década de 1930 pode ter influenciado a percepção da “eficiência” da gestão varguista, que pode ter se beneficiado da centralização do poder e da capacidade de implementar decisões de forma rápida e sem oposição. No entanto, o autor contrapõe a essa visão o fato de que Getúlio Vargas documentou todos os seus atos administrativos, o que indicaria uma preocupação em registrar documentalmente que seguia os princípios orçamentários e financeiros consagrados.

Portanto, a pergunta sobre Vargas e o orçamento nos convida a um debate mais aprofundado: a eficiência administrativa é privilégio da ditadura, ou resultado de boas regras de gestão que podem e devem ser aplicadas em qualquer sistema político? Longe de apresentar uma resposta definitiva, este artigo busca estimular a reflexão crítica sobre a complexa herança de Vargas e os desafios da administração pública no Brasil. Todavia, a inferência conclusiva me parece óbvia: uma democracia fortalecida teria que seguir à risca o comportamento presidencial como Gestor (na verdade sua única atribuição de realce) a semelhança de Getúlio Vargas que tanto a exerceu no Estado Novo, bem como na sua Gestão Presidencial que resultou em seu suicídio. Foi-se uma vida e ficou o exemplo da moralidade pública. Talvez, essa tenha sido a maior preocupação dos seus algozes. E digo NÃO aos clichês!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br.


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Marco Aurélio Bittencourt

Saiba mais sobre Getúlio Vargas:

Getúlio Dornelles Vargas

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Sobre construções, desmontes e oportunidades: o ataque do governo Trump às agências reguladoras e o papel que cabe ao Brasil

Lucia Helena Salgado

Nas últimas semanas, poucos temas são mais comentados do que a condução errática e irracional das políticas públicas estadunidenses. Desse debate sobressai uma constatação comum, a inviabilidade de construção de cenários diante da radical incerteza gerada por políticas sem fundamentação econômica que as sustente. Ver os Estados Unidos minarem os próprios fundamentos da hegemonia que vinham exercendo há 80 anos tem colocado o mundo em um estado misto de perplexidade e receio diante das possíveis consequências geopolíticas.

No Brasil, as reflexões sobre possíveis impactos do repentino abandono das crenças que sustentaram o processo mais recente de globalização – livre comércio, livre fluxo de capitais, divisão internacional do trabalho visando redução de custos, harmonização de legislações entre jurisdições, menor intervenção do governo na economia – tem se centrado nos impactos das medidas tarifarias tomadas pelo governo Trump.

Com isso, pouca atenção tem se voltado para o processo de desmonte da engenharia institucional nos primeiros anos do século XX no governo Ted Roosevelt, engenharia esta consolidada nos anos 30, no governo Franklin Roosevelt: trata-se da compatibilização de interesses públicos e privados mediante o desenho de agências reguladoras. Foi um desenho institucional totalmente inovador, um aparato executor de políticas regulatórias, criado no Legislativo, formado por corpo técnico estável, corpo decisório também técnico e formado por indicações políticas equilibradas entre os partidos Democrata e Republicano e lideradas por indicados pelo Executivo, sendo todo o corpo decisório submetido nas indicações à apreciação do Legislativo, a quem periódica e rotineiramente lhe cabe prestar contas. Ainda, decisões regulatórias – e aqui inclui-se também as decisões antitruste, de natureza regulatória, lato sensu – são contestáveis diante do Poder Judiciário e decisões finais sobre questões controversas cabem às Cortes de Apelação ou, em última instância, à Suprema Corte.

Assim, a engenharia institucional que deu origem às agências reguladoras, como mecanismos para compatibilizar os interesses privados da atividade econômica com o interesse da sociedade, fundou-se nos mesmos pilares dos pesos e contrapesos entre os poderes da República tal como desenhada pelos Federalistas, a partir dos ensinamentos de Montesquieu, que alertou em seu “O Espirito das Leis” de que a separação e contraposição de poderes era a chave para afastar-se o risco da tirania resultante da concentração de poder. Determinados a instituir um aparato de Estado infenso a regimes que guardassem semelhança ao superado domínio monárquico inglês, os Federalistas desenharam a República sobre os pilares de poderes que se contrabalançam sustentando o Estado de Direito, de modo a jamais sufocarem a sociedade.

Este desenho compõe o Ethos estadunidense e confere, com as regras do Estado de Direito, consistência e legitimidade à democracia naquele país, foi replicado por toda a América e adotado pelo Brasil desde a sua 1ª República. Com exceção do período do Estado Novo varguista, o desenho de República amparado sobre os pesos e contrapesos de três poderes, vigorou até mesmo durante os 21 anos de ditadura militar, em que a formalidade da coexistência dos Três Poderes encobria o esvaziamento de competências do Legislativo e do Judiciário.

 Assim como na constituição da 1ª República, nos anos 1990 o Brasil procurou modelar seu aparato estatal a partir da experiência estadunidense. Em linha com as diretrizes apontadas por Washington e disposto a integrar-se à dinâmica do processo de globalização, novamente espelhamos internamente o desenho institucional das agências reguladoras dos Estados Unidos – acompanhando o movimento de privatização, não discriminação do capital estrangeiro e concessão de serviços públicos, em substituição ao modelo de intervenção direta do Estado na economia.

 Ao longo das ultimas duas décadas, o modelo vem sendo aperfeiçoado no Brasil e robustecido por iniciativas como o programa de melhoria regulatória e capacitação técnica (ProReg), a incorporação dos instrumentos de análise de impacto regulatório (AIR), resultado regulatório (ARR), agenda regulatória, os esforços de racionalização e simplificação regulatória e, mais recentemente, a introdução do instrumento de regulação experimental (sandbox regulatório), seguindo as diretrizes mais atualizadas de gestão e avaliação regulatória.

Enquanto isso, o atual governo dos Estados Unidos resolve desmontar o modelo de agências que, lembremos, assenta-se sobre um cuidadoso tripé de contraposição de poderes. Decreto (Ordem Executiva 14215)[1] publicado em fevereiro deste ano foi, agora em abril, enviado a todas as agências reguladoras, todas desenhadas como comissões, incluindo, portanto, a FTC (Comissão Federal de Comércio) que faz valer, juntamente com a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça, a legislação antitruste, que todas devem agora subordinar-se à órgão da Casa Branca, o OIRA, assim como já o fazem desde o governo Reagan os departamentos que compõe o aparato do Poder Executivo. O OIRA (Escritório de Informação e Avaliação Regulatória) foi criado nos anos 1980 com a missão de rever, com base em análise de economicidade (custo-benefício) propostas regulatórias de departamentos do Executivo, antes de enviadas ao Congresso. Mantida por todos os governos seguintes e aperfeiçoada com a experiência, aplicava-se obrigatoriamente apenas aos órgãos do Poder Executivo, sendo tão somente recomendações às agências reguladoras, posto que essas são subordinadas ao Legislativo. O novo decreto estabelece que qualquer decisão das agências deve seguir estritamente as instruções advindas da Casa Branca, além de serem obrigadas a criar um cargo de diretor regulatório, que devera se reportar diretamente ao OIRA.

Acrescente-se a esse evento a inédita demissão de dois comissários da FTC, indicados pelo Partido Democrata e no curso de seus mandatos (como no Brasil, esses comissários só poderiam ser afastados por justa causa associada ao descumprimento de suas funções ou ao cometimento de crimes). Não obstante o fato de que as demissões estão sendo contestadas na Suprema Corte pelos comissários, são mais do que claros os sinais de que a administração Trump não reconhece a limitação mútua entre os poderes que fundamenta o Estado de Direito.

Esse quadro, se consolidado, aponta para o ocaso da liderança estadunidense também no campo do desenho institucional, deixando um vácuo que, com perspicácia e consistência, pode ser ocupado pelo Brasil, que vem demonstrando ao mundo o quão consistente é seu compromisso com o Estado de Direito amparado no desenho de pesos e contrapesos dos Três Poderes. Ademais, o pais tem investido esforços, também de forma consistente no fortalecimento do desenho de agências, que tem resistido às turbulências da vida politica, como é exemplo a promulgação da Lei Geral das Agências, que conforma o modelo de governança formado por decisões técnicas apoiadas em transparência, prestação de contas e responsabilização

Fica aqui o recado: o atual quadro de anomia estadunidense abre espaço para que o Brasil assuma liderança também no campo do desenho institucional, apresentando seu compromisso com a boa governança na condução de politicas regulatórias como modelo para outras jurisdições, sobretudo no Sul Global

Tomara que essa oportunidade não se deixe passar.


[1] [1]https://public-inspection.federalregister.gov/2025-03063.pdf


Lucia Helena Salgado. Professora Títular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.


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O bem-estar que nos prometemos

Adriana da Costa Fernandes

A vida humana evolui de forma cíclica. Entre avanços e recuos, o mundo e o homem seguem construindo, aprimorando e destruindo para, então, reconstruir em diferentes bases.

Era um tempo de ainda maiores desigualdades do que as tantas testemunhadas nos dias atuais. No pós-segunda guerra mundial, em meados do século XX, impactada pelos efeitos do capitalismo industrial iniciado no século XIX, a cidadania foi ampliada com ênfase em proteção social. Pela primeira vez, os Estados passaram a exercer a soberania por meio de uma integração social considerada mais estável.

Surgia o Estado de Bem-Estar Social, o Welfare State, imediatamente consagrado em Democracias mais consolidadas, como o Reino Unido e a Escandinávia, e introjetado, em diferentes graus, em outros Estados.

A Carta do Atlântico (1941) influencionou muitas sociedades, defendendo o compromisso transnacional de melhoria dos direitos trabalhistas, através do desenvolvimento econômico e da proteção coletiva e individualizada. Esta carta e o Relatório Beveridge estavam intimamente ligados. O último, visando a aplicação prática da Carta e definindo a seguridade social como parâmetro de segurança do indivíduo.

Ainda que o aparecimento do Estado de Bem-Estar Social não tenha significado o fim efetivo de todos os conflitos nas relações entre governos e sociedades, o contexto mudou. O catalizador foi, sem dúvida, a desvinculação da cidadania e da obtenção de direitos e deveres, da guerra, gerando, assim, maior pacificação das sociedades.

Era o começo do reconhecimento dos direitos sociais e de seu enraizamento nas culturas políticas internacionais. O Princípio da Inclusão fora considerado fundamental para a integração da chamada sociedade mundial.

Divisões sociais apareceram e novos sujeitos coletivos passaram a representar as classes. Grupos de Interesse, dotados de posição de influência, começaram a interagir diretamente com o Estado por meio de negociações coletivas. O mundo começava a adquirir uma conformação mais próxima da atual.

A partir de 1945, os orçamentos de proteção social começaram a superar os gastos militares e o mundo parecia estar entrando em uma rota democrática finalmente consistente e madura. No período de 1950 a 1970, testemunhou-se o aumento das matrículas escolares de 60 (sessenta) para 84% (oitenta e quatro por cento) globalmente e, na África, de 27 (vinte e sete) para 54% (cinquenta e quatro por cento). Nos anos 80, em muitos países, com a redemocratização e o término dos regimes ditatoriais, a mobilização política relativa à proteção social foi intensificada. Mesmo assim, antagonicamente, em vários Estados, os gastos sociais regrediram e as estruturas foram precarizadas.

Se, ao parar no meio de uma linha do tempo, o olhar se deslocasse para trás, para o que ficou e para frente, direcionado ao futuro que vem lá, altamente afetado por severas questões climáticas e pelo crescimento exponencial da tecnlogia, não há como não se antever um novo complexo ciclo humano despontando.

Em tempos atuais, o mundo voltou a se dividir, a vivenciar a intensificação de conflitos e a afirmar posicionamentos dicotômicos, populistas e negacionistas acerca de temas considerados técnica e academicamente inquestionáveis. Do que parece estar se enfrentando agora é justamente da repactuação do Estado de Bem-Estar Social, sob critérios mais avançados. É inquestionável, por exemplo, a necessária integração dos avanços tecnológicos e de ações eficazes de mitigação climática aos direitos humanos e sociais globais.

Do que se debate agora é da ecologização dos direitos sociais e da transmutação dos Estados de Bem-Estar Social para o Eco-Social.

Trata-se, portanto, do surgimento de um direito global, um tanto mais uníssono e integrativo, representativo e preocupado com critérios como o Princípio da Justiça Intergeracional. Além de apto a enfrentar, até mesmo, o esperado incremento do volume de refugiados, em especial, provenientes de áreas costeiras. Sobre isto, a expectativa é de que o impacto se verifique sobre aproximadamente 745 (setecentos e quarenta e cinco) milhões de pessoas em todo o mundo.

Espera-se, então, que seja definida, em breve, uma eficiente transversalidade das políticas ambientais globais, afetas às decisões colegiadas de organismos internacionais, sem dúvida, mas de forma um tanto vinculativas. Aptas, até mesmo, a prever sanções, em caso de descumprimento, em seara comercial e econômica internacional.

Assim, as questões que pairam no ar e na mente dos que estudam e se preocupam são:

– Onde o homem se perdeu nesta jornada?

– O que realmente gerou a profunda mudança de paradigma entre um tempo de intensa preocupação com os direitos sociais, humanos e coletivos para esse tempo de profundo individualismo e egocentrismo?

– Por quê e o quê não foi possível aprender?

– Até onde irá o homem nessa toada, até que curva de sua estrada?

Mas, acima de tudo:

– Onde, afinal, foi parar a promessa que nos fizemos sobre a crença em um Estado de Bem-Estar Social enquanto ponto de partida de uma estrada rumo ao mais alto?


Adriana da Costa Fernandes. Advogada com expertise em Direito Público e em Direito Privado, com foco especial em Regulatório, Administrativo, Conatitucional e Ambiental, mas igualmente em Cível Estratégico, Consumidor e RELGOV, tendo atuado em mercados e segmentos relevantes, em grandes empresas, nacionais e multinacional, em associação setorial, em agências reguladoras, em escritórios AA e consultoria. Mestranda em Direito Constitucional, Pós-graduanda em Direito Civil, com MBA em Marketing, Especializações em Energia Elétrica, RELGOV, Processo Civil e Fundamentos da Arbitragem, além de contar com várias Certificações em instituições de renome em Legal, Finanças, Marketing, Business, Gestão e Liderança e Bioética.


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Adriana da Costa Fernandes

Leia o artigo sobre defesa comercial e bem-estar:

Os instrumentos de políticas comerciais, sua importância para emprego, renda, bem-estar social e econômico, além da manutenção do livre comércio justo.

Leia mais também:

O Impacto do Autocontrole e da Educação Financeira no Bem-Estar Econômico.

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A Falácia da Gastança Excessiva: a real crise fiscal e o desmonte dos serviços públicos

Marco Aurélio Bittencourt

Desmascarado o mito do déficit da Previdência Social (Aqui), foco agora na narrativa da “gastança excessiva” do governo; um pretexto para justificar o aprofundamento do arrocho fiscal e o desmonte dos serviços públicos, tendo como alvo o povo brasileiro – esse coitado, desamparado e lascado. Quem liga para isso?  A realidade, contudo, revela um quadro muito mais complexo e preocupante, onde a verdadeira causa do desequilíbrio orçamentário reside nos exorbitantes juros da dívida pública; um fardo que sufoca o Estado e drena recursos cruciais para o bem-estar da população ano a ano.

A raiz do problema reside nos juros da dívida pública, um montante significativo que consome uma parcela considerável do orçamento federal de forma persistente e recorrente. Essa sangria financeira obriga o governo a realizar cortes sistemáticos nos gastos fiscais, em um ciclo vicioso que se repete a cada período, agravando a precarização dos serviços públicos e comprometendo o futuro do país. A volatilidade dos pagamentos dos juros da dívida impõe um ajuste constante e doloroso, com consequências nefastas para áreas como saúde, educação e infraestrutura  (Aqui).  

Os cortes atingem os investimentos, condenando hospitais, escolas e, na área dos investimentos já feitos, o desgaste forçado dos equipamentos públicos, impondo-lhes a obsolescência pela falta de recursos básicos para sua manutenção e a notória ausência de novos hospitais. A deterioração da saúde pública é emblemática: a falta de investimentos em novas unidades, equipamentos e pessoal resultam em filas intermináveis, falta de leitos e precariedade no atendimento, afetando principalmente os mais humildes que sequer cogitam em planos privados de saúde. A população mais vulnerável paga um preço alto por essa política de austeridade. E quando pode contar com a participação privada, estabelecem preços de remuneração aos serviços por vezes irreais. As Santas Casas sobrevivem com grande dificuldade e poucos estados mostram vontade de atualizar os preços dessas entidades filantrópicas valorosas, arcando em seus orçamentos com essa política como fez o governador de São Paulo.

A cantilena da “gastança excessiva” serve como cortina de fumaça para esconder a verdadeira natureza do problema: a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida em detrimento aos investimentos sociais. Maldita Lei de Responsabilidade Fiscal que mantém o status quo dos bancos e rentistas e dos servidores públicos. Existem outros pontos de extração de recursos públicos consagrados no orçamento, como o auxílio a empresas privadas em subsídios e isenções tributárias significativos. A mídia e alguns setores da política, alinhados com os interesses do mercado financeiro, propagam essa narrativa para justificar o aprofundamento do arrocho fiscal e a retirada de direitos da população, porque o alvo é a previdência. Incrível que num governo que, em passado virtuoso, implementou regras de ajuste do salário-mínimo que não gerou desemprego e nem outro tipo de problema, mas, agora, cedeu.

A insistência em culpar os gastos sociais pela crise fiscal revela uma profunda desconexão com a realidade e um desprezo silencioso pelos direitos da população. O corte de investimentos em áreas essenciais como saúde e infraestrutura não apenas compromete o bem-estar da população, mas também hipoteca o futuro do país, impedindo o desenvolvimento social e econômico. A mudança na regra salarial um tiro no peito dos aposentados CLT que os deixarão agonizando por um tempo longo.

A verdadeira face da austeridade é a precarização dos serviços públicos, o aumento da desigualdade social e o aprofundamento da crise. A população, já castigada pela pandemia e pela recessão econômica, é novamente chamada a arcar com o peso de uma política fiscal que beneficia os detentores da dívida pública e o círculo empresarial que se valem de subsídios e isenções tributárias significativos em detrimento do bem-estar social.

A crítica à “gastança excessiva” ignora o fato de que o Estado brasileiro, historicamente, investe pouco em comparação com outros países de desenvolvimento semelhante. A carga tributária, elevada em comparação com outros países, não se traduz em serviços públicos de qualidade, evidenciando a ineficiência do modelo fiscal e a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida.

A defesa da austeridade fiscal, sem considerar a necessidade de reforma tributária e do sistema financeiro, revela uma visão limitada e prejudicial ao país. A concentração de renda e riqueza, as isenções fiscais e a enorme dependência das multinacionais em seus projetos de inovação são problemas estruturais que precisam ser enfrentados para garantir a justiça fiscal e o financiamento adequado dos serviços públicos. A triste realidade (que vale para a maioria dos países) da precarização do mercado de trabalho, tendo em vista a mudança estrutural significativa na geração de emprego, com o item serviço e comércio abarcando cerca de 70% da mão de obra, nos leva a uma redução salarial sistemática nesse segmento de baixa produtividade. Difícil uma política pública que gere oportunidades nesse ramo de produção, em que pese nossa vocação óbvia para o turismo.

A mídia e os formadores de opinião, em vez de propagar a falácia da “gastança excessiva”, deveriam pautar o debate público sobre a necessidade de reforma tributária e do sistema financeiro, para garantir a justiça fiscal e o financiamento adequado dos serviços públicos. É preciso romper com a lógica que beneficia os detentores da dívida pública em detrimento do bem-estar social.

A população não pode mais ser enganada pela narrativa da “gastança excessiva”. É preciso denunciar a verdadeira natureza da crise fiscal e exigir uma política econômica que priorize o bem-estar social, a justiça fiscal e o desenvolvimento sustentável. A luta pela defesa dos serviços públicos e pela justiça social é uma luta de todos nós. Eu ainda estou aqui!


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb. Email: 0171969@etfbsb.edu.br 

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Marco Aurélio Bittencourt

Leia outro artigo do Prof. Marco Aurélio Bittencourt relacionado ao tema ao tema fiscal:

O mito do déficit previdenciário no Brasil: uma análise necessária

Leia também o artigo sobre sustentabilidade fiscal do Luiz Guilherme Schymura

Tanto pela sustentabilidade fiscal quanto por razões cíclicas, chegou o momento da consolidação no Brasil

Veja o modelo de custos de serviços públicos elaborado pelo governo federal:

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