O que esperar agora, Mundo?

Adriana da Costa Fernandes

Quem assistiu o discurso de posse do novo Presidente Americano e se preocupa com o Meio Ambiente e o futuro do Planeta, no mínimo, se assustou ou se indignou com o que ouviu.

Já foi mais do que provado acadêmica e tecnicamente que o uso de combustíveis fósseis e, em especial, do chamado “fracking”, do inglês fratura ou estimulação hidráulica, consubstanciam alguns dos maiores fatores de aquecimento global.

Para quem não sabe exatamente o que significa o termo fracking, se trata de um procedimento utilizado na produção de energia geotérmica que aumenta a recuperação de fluídos quentes posteriormente utilizados na produção de calor ou eletricidade. Injeta-se, em alta pressão, uma mistura de água, propante (areia ou outros materiais) e diversos produtos químicos para permitir a ampliação de fraturas e fissuras no substrato rochoso, onde se encontram o gás natural e o petróleo, permitindo, assim, sua expulsão para a superfície. Em 2010, a estimativa era de que essa técnica era utilizada em 60% dos poços de extração.

Ainda que os defensores do fracking argumentem enfaticamente sobre os benefícios de aspectos econômicos, uma vez que a técnica permite o acesso a áreas antes não acessíveis, grande parte do Mundo, realmente preocupada com o futuro ambiental, sinaliza que sua utilização apresenta fortes impactos ambientais, como desmatamento, degradação, poluição de recursos hídricos, consumo de água elevado, chuva ácidas, poluição sonora, a citada contaminação da superfície por meio dos produtos químicos utilizados, abalos sísmicos e impactos à saúde. Um dos grandes problemas identificados é a poluição do ar, apta a gerar problemas neurológicos, doenças respiratórias e câncer em animais selvagens, da mesma forma, causando efeitos relativos ao preocupante aquecimento global e ao efeito estufa.

Países como o Reino Unido, África do Sul, Alemanha, França, Eslovênia e Bulgária já proibiram ou estabeleceram moratória à sua adoção. A União Europeia adotou uma recomendação visando a observação de princípios mínimos para o uso do fraturamento hidráulico de alto volume. Organizações Não-Governamentais, como o Greenpeace, vêm apelando fortemente a Países como a Hungria, para que igualmente suspendam seu uso e apoiem as energias renováveis.

No polêmico discurso de posse, o Governo Americano indicou que reforçará a utilização do fracking como uma das formas de fortalecer o ambiente econômico interno. Desconsiderando o movimento que todo o resto do Mundo tem adotado em prol do uso de energias limpas. Cumpre acompanhar cautelosamente o que virá.

Será essencial monitorar como a Organização das Nações Unidas – ONU, por meio de seus fóruns específicos, reagirá e como as relações internacionais se reescreverão.

No que diz respeito às emissões de gases de efeito estufa, o ano de 2024 foi dotado de altos e baixos.

A China vem ampliando suas conexões, investindo em diversos Países da África e da América Latina, bem como o Peru, especialmente em Infraestrutura. O País lançou, conjuntamente com o Programa Para o Meio Ambiente da ONU (PNUMA), o Fundo de Biodiversidade de Kunming, com o objetivo de apoiar projetos de conservação em todo o Globo e o Marco de Biodiversidade Global Kunming-Montreal, a fim de reverter a perda da natureza. Adicionalmente, mais de três dúzias de pequenos Estados insulares em desenvolvimento se reuniram para elaborar um plano de estímulo sustentável e combate às mudanças climáticas. O Planeta Terra claramente se une e os Estados Unidos recuam.

Diversas decisões judiciais recentes estabeleceram precedentes internacionais determinando que os Governos possuem obrigação legal de lidar com as mudanças de clima. Apenas em 2023, o número destas decisões dobrou em relação ao período de 2017 a 2022. Em sintonia, os líderes mundiais adotaram o Pacto para o Futuro, considerado um acordo internacional inovador criado para estabelecer as bases de uma ordem global justa, sustentável e pacífica. No Acordo, inclusive, está enfatizada a necessidade de abandonar os combustíveis fósseis, reduzir a poluição plástica e química, protegendo a biodiversidade. Em linha totalmente oposta ao que pretende o novo Governo Americano.

Vem sendo adotadas diversas iniciativas entre os Países, até mesmo no inerente aos Centros de Servidores de Inteligência Artificial – IA e a produção de lixo eletrônico tóxico, considerados vorazes consumidores de água e eletricidade. Da mesma forma, buscando eliminar vazamentos de metano, um dos gases causadores do efeito estufa.

Sobre os efeitos negativos mais significativos identificados ao longo de 2024, foi mapeado que quase metade das espécies migratórias listadas em um importante tratado estão em declínio, sendo que uma em cada cinco se encontra ameaçada de extinção, especialmente em face da perda de seu habitat essencial por indução humana. Foram testemunhadas secas devastadoras e enchentes recordes. Além disto, o lixo municipal deverá aumentar em torno de dois terços até 2050.

Diante disto tudo, os Estados Unidos, por sua vez, parecem estar retrocedendo de olhos abertos e passando a considerar apenas o seu contexto interno, se fechando ao resto do Mundo. Os primeiros atos refletem isso e chocam. A saída imediata do Acordo de Paris, acabar diretamente com investimentos e o mercado de energia eólica e verde e, dentre outros pontos controversos, a eliminação de qualquer limite necessário à Liberdade de Expressão.

Será fundamental que o Mundo, então, avalie com calma, mas sem demora, como reagir à postura “Vamos Perfurar, bebê, vamos perfurar”. Palavras não são atos. E será essencial adotar o monitoramento estrito de cada novo passo americano, identificando o que for construído sobre fake News e o que não, além da adoção do suporte coletivo aos impactos a diversos Países.

O caminho mais certo para a adequada resposta é que cada ser individual passe a adotar mudanças fundamentais sobre sua forma de interação com o universo natural e sobre sua vinculação efetiva com as redes sociais. Isto impactará Governos em todo o Mundo.

A hora é essa. Repensar. Rever. Melhor agir.


Adriana da Costa Fernandes. Advogada com atuação em 3 eixos: Direito Público; Infraestrutura e Tecnologia (em especial Telecom, TI, Digital, Energia Elétrica e Ferrovias) e Cível Estratégico (foco em Consumidor e Contratos). Mestranda em Direito Constitucional pela UNINTER PR sob a tutela da Profa. Dra. Estefânia Barboza e com tese sobre PRAGMATISMO CONSTISTUCIONAL HUMANISTA na Era Digital, unindo Direito Constitucional, Digital, Filosofia e Ciência Política. Pesquisadora vinculada ao NEC CEUB DF sob a mentoria da Profa. Dra. Christine Peter da Silva e ao IDP – Observatório Constitucional do Professor André Rufino do Vale. Aluna da Escola de Magistratura do Distrito Federal – ESMA DF. Pós-graduada (MBA) em Marketing pela FGV RJ, especializada em Relações Governamentais e Institucionais (RELGOV) pela CNI / Instituto Euvaldo Lodi (IEL), com Extensão em Energia Elétrica pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e detentora de diversas titulações em instituições de renome Nacional e Internacional. Consultora e Parecerista. Com experiência em empresas renomadas, de portes expressivos e atuação em mercados relevantes e agências governamentais. Atualmente com escritório próprio e atuação voltada para Tribunais Superiores, Tribunal de Contas da União e CARF.

Projeto Aperta: o open finance transfronteiriço

Leandro Oliveira Leite

O Projeto Aperta, liderado pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS)[1], é uma das mais recentes e promissoras iniciativas globais no campo do open finance[2]. Com a participação de países como Brasil, Reino Unido, Emirados Árabes Unidos e Hong Kong, o projeto busca integrar infraestruturas financeiras domésticas de diferentes jurisdições para promover o compartilhamento seguro e contínuo de dados financeiros em escala internacional.

O principal objetivo do Projeto Aperta (“aberto” em latim) é criar um ambiente que conecte diferentes ecossistemas de finanças abertas por meio de uma rede multilateral de interoperabilidade transfronteiriça. A promessa é reduzir custos e aumentar a eficiência no trade finance[3], especialmente para pequenas e médias empresas (PMEs), que frequentemente enfrentam problemas burocráticos e financeiros no comércio internacional. Com a digitalização desse setor, o projeto tem o potencial de desenvolver o crescimento econômico sustentável e fortalecer a resiliência do sistema financeiro global.

Além disso, o Projeto Aperta busca harmonizar padrões, protocolos de segurança e estruturas de confiança entre jurisdições que adotam o financiamento aberto. Atualmente, cerca de 70 países possuem regulamentações sobre finanças abertas, mas as diferenças entre essas normas muitas vezes dificultam o fluxo contínuo de dados. A fragmentação regulatória e tecnológica é uma barreira significativa para a integração global, e o Projeto Aperta se propõe a superar esses desafios, criando um sistema padronizado que facilite a comunicação entre diferentes infraestruturas financeiras.

O Banco Central do Brasil (BCB) vem desempenhando um papel estratégico no Projeto Aperta, consolidando-se como um dos líderes globais em inovação financeira. A participação do BCB nesta iniciativa reflete o compromisso do Brasil em avançar no uso de tecnologias emergentes e fomentar a conectividade entre sistemas financeiros. Como destacou Otávio Ribeiro Damaso, Diretor de Regulação do BC à época, “o Projeto Aperta é um movimento para colocar o Sistema Financeiro Nacional (SFN) na vanguarda das inovações tecnológicas mundiais“.

A experiência do Brasil com o Open Finance já é robusta, com mais de 54 milhões de assinaturas ativas e 35 milhões de clientes participantes. O envolvimento do país no Projeto Aperta expande ainda mais esse ecossistema, permitindo que os consumidores brasileiros se beneficiem de soluções financeiras globais, como maior agilidade na abertura de contas internacionais e acesso facilitado a serviços de trade finance.

A infraestrutura do Projeto Aperta baseia-se em APIs (interfaces de programação de aplicativos) para permitir o compartilhamento seguro de dados entre diferentes jurisdições. A segurança é garantida por meio de criptografia ponta a ponta e mecanismos de consentimento explícito do consumidor. O modelo de governança multilateral permite que instituições financeiras, fintechs e demais players do mercado colaborem em um ambiente seguro e confiável.

Os casos de uso iniciais incluem: a) Compartilhamento de dados de contas: facilita a abertura de contas internacionais de forma mais ágil e com menor burocracia; b) Trade finance: permite o compartilhamento de informações, como cartas de crédito e conhecimentos de embarques eletrônicos, reduzindo custos e acelerando processos em negociações internacionais.

A interoperabilidade entre diferentes jurisdições é um dos diferenciais do projeto. Por exemplo, um banco brasileiro poderá acessar dados de um cliente em Hong Kong ou nos Emirados Árabes Unidos de maneira segura e eficiente, fornecendo soluções financeiras mais personalizadas e competitivas.

O Projeto Aperta é resultado de uma colaboração entre o BIS Innovation Hub (Hong Kong), o Banco Central do Brasil, o Banco Central dos Emirados Árabes Unidos, a Autoridade de Conduta Financeira do Reino Unido, a Autoridade Monetária de Hong Kong, entre outros. A iniciativa também conta com o suporte da International Chamber of Commerce Digital Standards Initiative, que reforça os esforços para criar padrões globais de interoperabilidade no comércio internacional.

O papel das parcerias estratégicas é essencial para garantir a harmonização de regras e a padronização de tecnologias. Por meio dessas colaborações, o Projeto Aperta busca criar um ecossistema financeiro global integrado, no qual consumidores, empresas e instituições financeiras possam operar de maneira mais eficiente.

O uso de dados transfronteiriços não traz apenas oportunidades, mas também desafios éticos e de segurança. A gestão responsável dos dados é uma prioridade do projeto, que adota medidas rigorosas de governança para proteger informações sensíveis. Além disso, a transparência nos processos e o respeito ao consentimento do consumidor são elementos fundamentais para garantir a confiança no sistema.

Os avanços tecnológicos, como inteligência artificial (IA) e blockchain[4], também desempenham um papel crucial no Projeto Aperta. Essas tecnologias podem melhorar a análise de risco, a detecção de fraudes e a eficiência operacional, trazendo benefícios diretos para consumidores e empresas.

O Projeto Aperta tem implicações significativas para o mercado financeiro global e a concorrência digital. Ao reduzir barreiras burocráticas e promover a interoperabilidade, ele nivela o campo de atuação para players de diferentes portes, desde grandes bancos até fintechs emergentes. Isso incentiva a inovação e oferece aos consumidores acesso a uma gama mais ampla de produtos e serviços financeiros.

Além disso, a digitalização do trade finance pode fortalecer a posição de pequenas e médias empresas no comércio internacional, tornando-as mais competitivas e resilientes. O impacto no Brasil será particularmente positivo, considerando o potencial do país como um dos maiores exportadores globais.

O Projeto Aperta representa um marco na integração global de finanças abertas, com o potencial de transformar o comércio internacional e o sistema financeiro como um todo. A participação do Banco Central do Brasil reforça o compromisso do país em liderar a inovação tecnológica no setor financeiro, promovendo maior inclusão, eficiência e competitividade. Ao criar uma infraestrutura global de interoperabilidade, o Projeto Aperta não apenas fortalece os laços entre diferentes jurisdições, mas também estabelece um modelo de governança e colaboração que pode servir de referência para futuras iniciativas globais. Esse projeto simboliza o futuro das finanças: conectado, competitivo, inclusivo e sustentável.


[1] https://www.bis.org/about/bisih/topics/open_finance/aperta.htm

[2] Open Finance é uma iniciativa do Banco Central do Brasil, sendo um sistema que permite o compartilhamento de dados financeiros entre instituições financeiras e de pagamento. O objetivo é melhorar a oferta de produtos e serviços financeiros, além de promover a concorrência e a inovação.

[3] Trade Finance, ou financiamento do comércio, é um conjunto de ferramentas e serviços financeiros que facilitam o comércio internacional e doméstico, sendo importante para garantir que os importadores recebam os produtos e que os exportadores recebam o pagamento. Ele também ajuda a minimizar riscos como instabilidade política ou cambial e inadimplência.

[4] Blockchain é um sistema de registro digital descentralizado que armazena transações em blocos interligados. Ele é conhecido por ser a base do Bitcoin, mas pode ser usado em outras áreas, como saúde, logística e governança.


Ver outro artigo do autor que trata de Open Finance:

Open Finance e Open Data: transformando o mercado financeiro e a concorrência digital 

Outros artigos do autor:

IA no setor público: BC e outros órgãos avançam

BC no G20: O que vem sendo discutido na Trilha de Finanças?

Regulação Econômica de Preços em Infraestrutura e o Bypass

César Mattos

I. Introdução

    Os efeitos do by-pass em setores regulados de infraestrutura começaram a ser estudados a partir de modificações na teoria econômica dos preços regulados ótimos de Ramsey por empresas multi-produto. Nestas últimas, supunha-se que os vários produtos/serviços prestados por uma mesma empresa são ofertados em regime de monopólio. Assim, a questão regulatória relevante seria como o regulador deveria distribuir os preços regulados de forma eficiente entre os vários produtos/serviços deste monopólio.

    Uma firma de infraestrutura de transporte, por exemplo, que realiza vários pares origem/destino é multiproduto, considerando cada par um produto diferente. A questão aqui é como distribuir a recuperação dos custos pela regulação de preços entre os vários produtos/serviços que são estas origens/destinos. O mesmo vale para o setor de gás que usualmente têm mais de um par origem/destino. A telefonia, quando era um monopólio natural, também tinha essa questão de regulação de preços multi produto. No Brasil, a telefonia local tinha sete tipos de preços regulados e não era regida por origem/destino (mas sim habilitação, assinatura como tarifas fixas e pulso como tarifa variável), cento e vinte de longa distância com combinações de hora do dia e distância, sendo esta última tipicamente variável de origem/destino e internacional. 

    A introdução de alternativas de concorrência para esta empresa regulada que era e deixou de ser monopolista multi-produto em uma ou algumas áreas/mercados, usualmente as mais atrativas, constitui o chamado by-pass. Ou seja, um ou mais concorrentes passam a ameaçar áreas/mercados específicos do monopolista multiproduto regulado. E isso altera o formato básico deste tipo clássico de regulação de preços para considerar o desvio de quantidades da firma regulada para a firma que oferece a alternativa de competição, by-passando o antigo monopolista multi-produto. Por exemplo, suponha que existe o serviço regulado representado por uma infraestrutura de gasoduto transportando e distribuindo gás natural para os consumidores e uma alternativa de by-pass que vende Gás Natural Liquefeito (GNL) transportado por caminhão.

    A próxima seção sumaria a teoria dos preços regulados ótimos de monopolistas multi-produto sem by-pass. A terceira seção coloca o by-pass na teoria dos preços regulados ótimos de monopolistas multi-produto. A quarta seção discorre sobre o problema de implementação prática dos preços regulados em firmas multi-produto com by-pass, indicando as alternativas e seus inevitáveis trade-offs.

    II. Preços Regulados Ótimos de Ramsey/Boiteaux sem Bypass

      A análise econômica do by-pass em infraestrutura se inicia dentro dos desenvolvimentos da teoria sobre preços regulados ótimos em firmas multiproduto[1]. As economias de escala geradas por elevados custos fixos em infraestrutura indicavam claramente que os preços regulados ótimos não podiam ser iguais aos respectivos custos marginais, a regra de ouro resultado do mecanismo de mercado nos setores em concorrência perfeita e que, pelo primeiro teorema do bem-estar, gera um resultado pareto eficiente.

      De fato, elevados custos fixos geram economias de escala significativas. E assim, a regra de fazer os preços regulados de cada produto iguais aos respectivos custos marginais implica não recuperar os custos fixos, grande parte dos quais são comuns a vários “produtos”[2]. A não ser que se conte com recursos externos (do governo) para financiar os custos fixos, estes têm que ser recuperados apenas pelos preços cobrados e a referência ao custo marginal (que não incorpora custos fixos) não permite isto.

      De qualquer forma, se houvesse apenas o preço de um bem ou serviço sendo regulado, a solução seria simples. Distribui-se o custo fixo por todas as unidades vendidas e soma-se ao custo marginal. Seria uma regulação, na verdade, do preço regulado pelo custo médio (custo variável médio + custo fixo médio). Troca-se o custo marginal pelo custo médio e a regulação de preços permite a recuperação tanto de custos variáveis como fixos.

      Mas sendo uma firma regulada que oferta vários bens ou serviços (uma firma multiproduto), o uso desta regra meramente contábil de recuperação do custo fixo pela regra do preço igual ao custo médio deixa de ser desejável. A questão da regulação de preços nesta firma multiproduto é como distribuir os custos fixos entre os diversos produtos ou serviços vendidos de forma a gerar o maior bem-estar possível. Para ser mais preciso, a questão é em quanto os preços de cada bem ou serviço devem ser diferentes da regra canônica de preço igual ao respectivo custo marginal para que todo o financiamento da atividade seja coberto pelos preços (restrição do autofinanciamento), incluindo os custos fixos, gerando o maior bem-estar possível.

      A solução deste problema foi buscada na teoria da taxação ótima de Ramsey (1927)[3] que basicamente maximiza uma função de bem-estar com a restrição de que todas as despesas devem ser financiadas por impostos sobre os bens. O principal achado do autor, que virou uma grande referência teórica na teoria econômica da taxação, é que cabe tributar mais (menos) os bens de menor (maior) elasticidade-preço da demanda. Isso porque tributos maiores geram preços maiores que reduzem proporcionalmente mais as quantidades dos produtos/serviços mais elásticos. Para minimizar o efeito da queda conjunta das quantidades dos produtos tributados, chega-se à regra de tributar mais (menos) os produtos/serviços cujas quantidades reagem menos (mais) aos aumentos dos seus preços, ou seja, os menos (mais) elásticos.

      Essa mesma lógica da teoria da tributação foi utilizada para a análise dos preços regulados ótimos em uma firma multiproduto para o problema de distribuir o custo fixo entre os vários produtos/serviços. Essa é a chamada regra de Ramsey/Boiteaux[4], desenvolvida por Baumol e Bradford (1970)[5]. Uma hipótese chave para simplificar o problema pelos autores, no entanto, é que as elasticidades preços cruzadas da demanda entre os bens ou serviços vendidos sejam zero. Ou seja, todos os produtos ou serviços vendidos não são substitutos entre si nem com outros existentes no mercado.

      A quebra desta hipótese é o principal ingrediente na discussão sobre como a existência de by-pass modifica a regra de Ramsey de distribuição do custo fixo entre os produtos/serviços. É o que veremos na próxima seção.

      III. Preços Regulados Ótimos de Ramsey-Boiteaux com Bypass

      A introdução do by-pass na teoria econômica da regulação ocorre por uma extensão deste modelo para monopolistas multiproduto de Baumol e Bradford (1970) para o caso em que se admite a presença da chamada “competição intermodal” tal como proposto por Braeutigam (1979)[6]. Esta competição intermodal se refere à possibilidade de competidores em alguns dos mercados servidos pelo “monopolista multi-produto”[7] substituírem os produtos/serviços deste último, o que seria a fonte do by-pass[8].

      Em síntese, a “competição intermodal” faz com que a elasticidade-preço cruzada da demanda com produtos/serviços de outros agentes econômicos seja diferente de zero.

      O autor usa o exemplo de transporte por ferrovia que pode ser substituído ou “bypassado”, ainda que de forma imperfeita, por outros meios de transporte como rodovias, ferrovias ou aquático[9]. Um desses meios, por exemplo o ferroviário, tem economias de escala[10].

      A grande diferença aqui com o modelo de precificação Ramsey/Boiteaux puro é que as elasticidades preço cruzadas da demanda entre os produtos/serviços quando o monopolista multiproduto tem esta “competição intermodal” em alguns produtos/serviços deixa de ser zero. Nesse caso, o regulador deve escolher não só os preços dos produtos ou serviços da firma regulada como de seus substitutos, considerando as relações de substituição entre eles ou mais simplesmente as suas elasticidades preços cruzadas da demanda.

      De fato, dada a reação da demanda destes substitutos de outra empresa em função dos preços regulados da empresa regulada, há efeitos não computados nos problemas de Ramsey/Boiteaux que são considerados no modelo de Braeutigam (1979). O conjunto dos produtos/serviços alternativos do by-pass tornam a resposta da demanda da empresa multiproduto nesses produtos/serviços mais elástica do que quando não havia o by-pass. As elasticidades cruzadas entre ferrovia/rodovia, ferrovia/hidrovia, por exemplo, se tornam relevantes no cálculo dos preços regulados ótimos. Quanto mais os by-pass puderem desviar demanda da empresa regulada multiproduto, maior deverá ser o preço ótimo regulado do by-pass, evitando muito desvio de demanda para este substituto (o by-pass), erodindo a base de financiamento do custo fixo da empresa regulada.

      Note que, pelo menos teoricamente, o regulador passa a ter que regular também os preços do by-pass junto com os da empresa monopolista multiproduto. Se não o fizer, a concorrência do by-pass nos produtos/serviços em que há substitubilidade inviabilizam preços maiores que o custo marginal na empresa regulada e, portanto, tornam impossível o financiamento do seu custo fixo por meio de seus preços. Outra hipótese colocada pelo autor é o regulador, em lugar de regular diretamente os preços dos produtos/serviços do by-pass, impor taxas sobre eles de forma a induzir preços superiores na medida correta.

       Assim, mesmo sem custos fixos nos produtos/serviços do bypass, seus preços regulados ótimos serão superiores aos respectivos custos marginais, dados os seus efeitos sobre a demanda dos preços ótimos da firma multiproduto, medidos pela elasticidade-preço cruzada da demanda.

      Note-se que como não há economias de escala no by-pass, a concorrência sem regulação os levaria a fazer preços iguais aos respectivos custos marginais, ou seja, o livre funcionamento do mercado levaria a um resultado (preço =custo marginal) diferente do preço ótimo da firma regulada que é acima do custo marginal. Daí que cabe ao regulador estender a regulação de preços ao by-pass ainda que sem custos fixos a financiar. E seriam, curiosamente, preços regulados maiores do que os dados pelo livre mercado!

      Caso regular preços para mais no by-pass e não para menos como é usual seja algo desconfortável ao regulador cabe a ele avaliar se ainda faz sentido regular preços da firma regulada multiproduto ou questionar se a entrada do by-pass deve ser permitida.

      IV. Desafios da Implementação Prática da Regulação de Preços por Ramsey/Boiteaux com Bypass

      Se já há desafios teóricos relevantes, a implementação concreta da teoria dos preços ótimos do monopolista multiproduto a la Ramsey/Boiteaux proposta por Baumol e Bradford (1970) não é nada trivial, incluindo a regulação dos preços do bypass. Cabe calcular as elasticidades da demanda de cada um dos produtos/serviços, os respectivos custos marginais e o preço sombra da restrição ligada à necessidade de financiamento do custo fixo.

      Mas se esta questão de ordem prática já impõe severas dificuldades operacionais, pior ainda quando pensamos na extensão do problema de achar os preços regulados ótimos considerando a possibilidade de by-pass ou de competição intermodal na linha de Braeutigam (1979). Isso porque para achar os preços regulados ótimos adiciona-se a necessidade de calcular as elasticidades preço cruzadas dos produtos/serviços da empresa com os produtos/serviços dos concorrentes intermodais ou by-pass. Além de passar a ter que regular também os preços dos produtos/serviços destes concorrentes intermodais ou by-pass, aduzindo mais complexidade à regulação.

      Conforme este último autor isso se tornaria um “pesadelo administrativo” que “representa um enorme empreendimento regulatório” pois “a informação requerida nas várias elasticidades preço cruzadas da demanda por si só já é o suficiente para fazer a implementação do programa muito difícil”.

      Ademais, reguladores não têm o poder em geral de impor taxas sobre produtores específicos. Sendo assim, há quatro alternativas:

      1. simplesmente “proibir a livre entrada nesses mercados” para o by-pass, o que gera um custo em termos de redução da concorrência potencial na área/mercado que poderiam ser cobertos pelo bypass;
      2. prover subsídios à firma regulada de forma que esta possa reduzir seus preços na área/mercado de competição com o by-pass, o que gera gastos ao governo e, portanto, pressão fiscal;
      3. abrir mão em grande parte da regulação de preços, o que implicará permitir redução de preços nas áreas/segmentos ameaçadas pela concorrência do by-pass, compensada por incremento de preços onde tal ameaça não se verifica de forma a manter o negócio auto-sustentável. Nesse caso, no entanto, boa parte da política de expansão do serviço nas áreas subsidiadas mais pobres e distantes deve ser abandonada em favor de concorrência da empresa regulada com o by-pass nas áreas mais ricas, o que seria uma “política social às avessas”. No limite, abrir mão da regulação, até porque havendo concorrência ela se torna desnecessária quando a falha de mercado diz respeito à falta de concorrência;
      4. deixar a empresa regulada se comprometer financeiramente em uma típica “expropriação desregulatória” de agentes regulados que investiram em custos afundados em uma área de infraestrutura com objetivos de política pública. A sinalização sobre a segurança jurídica para investimento em infraestrutura no país é comprometida para o setor em questão e outros.      

      Ou seja, todas as quatro alternativas de solução do problema apresentam custos e benefícios. Caberá ao regulador avaliar quais trade-offs entre as opções será o mais agudo no caso prático de by-pass. A última, com certeza, é aquela mais destrutiva para o investimento no Brasil. Daí que a opção por uma ou um mix das três primeiras alternativas seria o mais recomendado.   


      [1] Uma firma de infraestrutura de transporte, por exemplo, que realiza vários pares origem/destino é multiproduto, considerando cada par um produto diferente. O mesmo vale para o setor de gás ou telefonia. Cada combinação origem/destino do gás pode ser definido como um produto distinto.

      [2] Em um gasoduto que transporta gás do ponto “0” às localidades 1,2,3,4 e 5 que estão em uma sequência linear, e entregando gás em todas elas compartilha fisicamente os custos fixos do mesmo gasoduto entre a origem 0 e a localidade 1. O serviço de entrega para as localidades 2 a 5 compartilha os custos fixos da origem 0 à localidade 2 e assim por diante. Já na contabilidade regulatória, em geral, considera-se que todo o custo fixo do gasoduto é compartilhado por todos as localidades.  

      [3] Ramsey, Frank P. (1927). “A Contribution to the Theory of Taxation”. The Economic Journal. 37 (145): 47–61. O autor usou para a teoria econômica da tributação, mas depois foi estendida para a teoria dos preços regulados de firmas multiproduto.

      [4] Boiteux, Marcel (January 1956). “Sur la Gestation des Monopoles Publics astreints a l’equilibre budgetaire” (PDF). Econometrica. 24 (1): 22–40. Boiteaux aplicou quase 20 anos depois, o instrumental de Ramsey utilizado na teoria econômica da tributação para a teoria econômica da precificação regulatória ótima multiproduto.

      [5] Baumol,W. e Bradford,D.: “Optimal Departures From Marginal Cost Pricing”.  The American Economic Review, Vol. 60, No. 3 (Jun., 1970).

      [6] Braeutigam,R.: Optimal Pricing with Intermodal Competition. The American Economic Review, Vol. 69, No. 1 (Mar., 1979), pp. 38-49.

      [7] Que nesse caso não será exatamente um monopolista nos produtos/serviços para os quais há substitutos, mas sim em outros.

      [8] A palavra by-pass ainda não havia sido utilizada por Braeutigam (1979).

      [9] Como coloca o autor, não são substitutos perfeitos, pois “rodovias, rios e ferrovias podem diferir quanto à velocidade de transporte, confiabilidade e outros aspectos da qualidade do serviço”. 

      [10] O autor assume, por simplificação, que os outros dois “concorrentes imperfeitos” da ferrovia não possuem economias de escala.


      César Mattos. Doutor em economia. Ex-conselheiro do CADE e Ex-secretário da SEAE. Consultor legislativo da Câmara dos Deputados.

      Você já imaginou não ter ninguém em quem confiar? STJ e a delação premiada por advogados

      Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

      Em tempos em que a mídia promove e derruba, em que as informações, falsas e verdadeiras, percorrem o mundo em segundos e em que o cuidado com atitudes e julgamentos precipitados é uma preocupação recorrente, aquele que responde a uma acusação ou a um processo carece de pessoas em quem confiar, já que um pré-julgamento, seja por quem for ou, ainda, a formação de opinião destacada da realidade pode, por vezes, influenciar e até mesmo prejudicar sua defesa e/ou julgamento. No entanto, há a figura do advogado, pessoa a quem um acusado deve contar a integralidade dos fatos relacionados à acusação ou demanda que lhe pesa, para que este encontre o melhor caminho para sua justa defesa e decisão a respeito daquilo que lhe é imputado, e em quem o acusado pode confiar, já que este profissional possui o dever de sigilo.

      O dever de sigilo está disposto no Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (“CED/OAB”) (art. 35 e 36), que determina que o advogado deve manter sigilo dos fatos que tomar conhecimento no exercício de sua profissão, sendo o sigilo considerado de ordem pública. Há a presunção de confidencialidade em todas as comunicações tidas com seu cliente, seja qual for a sua natureza, razão pela qual o advogado não é obrigado a depor, seja no âmbito judicial, administrativo ou arbitral, acerca dos fatos sobre os quais deve guardar sigilo (art. 38).

      O CED/OAB esclarece, ainda, que o sigilo profissional cederá apenas em face de circunstâncias excepcionais, que configurem justa causa, como nos casos de grave ameaça ao direito à vida e à honra ou que envolvam defesa própria (art. 37). A violação do sigilo, fora destas hipóteses, poderá resultar em sanções penais[1], disciplinares[2] (OAB) e cíveis[3] (reparação de danos materiais e morais).

      As determinações existentes no CED/OAB seguem as diretrizes ditadas pela Constituição Federal, que prevê como direitos e garantias fundamentais tanto o “acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional” (art.5º, XIV), quanto o contraditório e a ampla defesa aos litigantes e acusados em geral (art. 5º, LV). Isto porque, o acesso às informações são fundamentais para o exercício exemplar da profissão do advogado, assim como para que o acusado tenha acesso à defesa plena.

      Não obstante estas determinações legais, há quem defenda, inclusive o nosso Judiciário, a possibilidade de delação premiada por parte do advogado, em detrimento de seu cliente. Por esta razão, no início deste mês, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), julgou um habeas corpus no qual o réu de uma ação penal defendeu a ilicitude de colaboração premiada firmada por advogado anteriormente contratado por ele, por envolver fatos supostamente cobertos pelo sigilo profissional.

      Conforme o setor de notícias do STJ[4], por maioria de votos, o habeas corpus foi negado em segundo grau, mas o recurso foi provido pelo relator no STJ, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Contra a decisão monocrática, o Ministério Público Federal (MPF) interpôs agravo regimental e apontou haver indícios de que os serviços advocatícios prestados eram simulados, colocando em dúvida a relação entre advogado e cliente. 

      De acordo com o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, o entendimento firmado pela Corte é no sentido de que não é possível a delação dos fatos cobertos pelo sigilo profissional pelo advogado, já que o sigilo é premissa fundamental, tanto para o exercício pleno da defesa, quanto para a relação de confiança entre o profissional e o cliente. Foram mencionados pelo Ministro Relator, ainda, precedentes acerca da presunção da boa-fé na relação, assim como que a alegação de eventual simulação desta relação deve ser concretamente demonstrada, o que não é o caso dos autos, já que houve a efetiva atuação do advogado em relação ao réu da ação penal e a comprovação do pagamento dos honorários.

      Assim concluiu o Relator: “Não havendo provas de se tratar de mera relação simulada, prevalece a impossibilidade de o advogado delatar seu cliente, sob pena de se fragilizar o direito de defesa. Assim, deve ser considerada ilícita a colaboração premiada, na parte em que se refere ao paciente, bem como as provas dela derivadas”.

      Desta maneira, portanto, a Quinta Turma do STJ reiterou o entendimento da Corte, no sentido de que o advogado não pode firmar colaboração premiada para delatar fatos contra o seu cliente, já que este fato pode comprometer tanto o direito de defesa, quanto o sigilo profissional. A exceção ocorre apenas nos casos em que existir a simulação da relação advogado-cliente, circunstância que, segundo o colegiado, não pode ser presumida, devendo, portanto, ser provada. 

      Dentro deste contexto, você já se imaginou em um cenário no qual não há ninguém em quem confiar? Nem mesmo aquela pessoa a qual todos os fatos, muitas vezes os mais relevantes de sua vida, são contados, o seu advogado? Por sorte, ou graças ao STJ, este cenário está longe de se tornar uma realidade. 


      [1] Art. 154, Código Penal – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

      Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.   

      Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.

      [2] Art. 34, Estatuto da Ordem dos Advogados no Brasil (Lei 8906/94) – Constitui infração disciplinar:

      VII – violar, sem justa causa, sigilo profissional.

      Art. 36, Estatuto da Ordem dos Advogados no Brasil (Lei 8906/94) – A censura é aplicável nos casos de:

      I – infrações definidas nos incisos I a XVI e XXIX do art. 34.

      [3] Art. 186, Código Civil – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.   

      Art. 187, Código Civil – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

      Art. 927, Código Civil –  Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.  (Vide ADI nº 7055)    (Vide ADI nº 6792)

      Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

      [4] As informações relacionadas ao processo e ao julgamento têm como fonte o site do STJ. Isto porque, em razão de o processo tramitar em segredo de justiça, não foi possível ter acesso a informações mais detalhadas acerca da questão e dos argumentos travados pelas partes. Fonte: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/02012025-Quinta-Turma-reitera-impossibilidade-de-colaboracao-premiada-de-advogado-contra-cliente.aspx . Acesso 07.01.2025.


      Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

      Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.

      Instituições inclusivas e defesa da concorrência: conexões entre prosperidade econômica e política antitruste

      Pedro Victhor Gomes Lacerda

      Em outubro de 2024 os economistas Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson foram laureados com o prêmio Nobel de Economia, em razão dos seus estudos sobre a formação das instituições e sua relação com a prosperidade.

      Entre os estudos conduzidos pelos autores[1], destaca-se o livro “Porque as Nações Fracassam“, assinado por Daron Acemoglu e James A. Robinson. A obra, por meio de uma abordagem institucionalista histórica, busca compreender por que determinadas nações prosperam econômica e socialmente, enquanto outras falham em alcançar os mesmos resultados.

      Os autores inicialmente abordam e refutam algumas explicações tradicionais sobre a prosperidade entre as nações[2], e defendem a tese de que é o grau de inclusão das instituições políticas e econômicas que determina ou influencia significativamente o sucesso econômico e social das nações.

      Os autores distinguem as instituições entre inclusivas e extrativistas. As primeiras são instituições que promovem a ampla participação econômica e política da sociedade, criando um ambiente favorável à inovação e ao desenvolvimento sustentável. As segundas são instituições que historicamente concentram poder e recursos em uma elite restrita, limitando a participação da população nos processos decisórios, e consequentemente restringindo a capacidade de crescimento econômico e social da população.

      Um exemplo clássico trabalhado pelos autores é a Cidade de Nogales, fronteira entre Estados Unidos (Nogales, Arizona) e México (Nogales, Sonora). Do lado estadunidense da cidade, a população desfruta de melhores condições socioeconômicas, serviços de maior qualidade e um ambiente institucional favorável ao desenvolvimento de sua população.

      Do outro lado, a população vive em condições significativamente mais precárias, em situação de vulnerabilidade social e em um ambiente institucional instável que, em última análise, distancia a população da prosperidade socioeconômica. Embora as cidades compartilhem do mesmo clima, geografia e cultura, segundo Acemoglu e Robinson, as diferenças socioeconômicas podem ser explicadas pela qualidade das instituições políticas que regem os países.

      Embora apresente limitações[3], a obra, desde seu lançamento, vem sendo amplamente debatida no ambiente acadêmico e entre formuladores de políticas públicas. Não obstante a obra já tenha sido analisada sob diversas perspectivas multidisciplinares, também é possível analisá-la sob um recorte concorrencial.

      Na realidade, não é exagero afirmar que a tese central dos estudos empreendidos pelos autores possui uma profunda conexão com a política de defesa da concorrência. Isso porque instituições inclusivas só produzem efeitos quando amparadas por políticas concorrenciais que funcionam de modo eficiente.

      A política de concorrência é realizada por meio do controle de estruturas – de modo preventivo -, com o objetivo de evitar a concentração excessiva de mercado e seus efeitos adversos, e por meio do controle de condutas – de modo repressivo -, com o objetivo de combater práticas anticompetitivas como cartéis, abuso de poder econômico, entre outros.

      Um controle inadequado de estruturas por parte do sistema de defesa da concorrência de um país pode culminar na realização de fusões empresariais com concentração excessiva, muitas vezes motivados por interesses privados, e não alinhados com a correta aplicação dos princípios da defesa da concorrência. Dessas aprovações, podem surgir monopólios ou oligopólios, onde poucas empresas têm o controle absoluto dos preços, oferta e qualidade dos produtos ou serviços, prejudicando, em última análise, o consumidor final. Não obstante, a falha no controle de estruturas também pode acarretar na criação ou aumento das barreiras à entrada de novos competidores, redução na inovação, aumento dos preços e estagnação do mercado.

      Já um controle inadequado de condutas pode promover um ambiente de permissividade e complacência no qual as práticas anticompetitivas se proliferam sem consequências efetivas. Nesse cenário, o ambiente de livre competição é limitado por players que, por meio de condutas ilícitas, restringem a entrada de novos competidores, manipulam preços, limitam a inovação e consolidam cada vez mais o seu poder de mercado.

      Ou seja, a ineficiência no controle de estruturas e/ou condutas tende a criar um ambiente econômico sem concorrência e competitividade, prejudicando o desenvolvimento das atividades empresariais e, por consequência, a geração de empregos, o crescimento econômico, e sobretudo o direito à um ambiente de livre competição.

      Tais reflexões sobre o impacto da política de concorrência nas instituições, longe de serem puramente teóricas, são ilustradas pelos próprios autores no livro citado. Ao ilustrar a carreira de Bill Gates nos EUA e Carlos Slim no México – dois bilionários que fizeram suas fortunas em ambientes institucionais profundamente distintos – os autores identificam que a Microsoft, mesmo com enorme sucesso através da inovação tecnológica, sofreu limitações do FTC e do DoJ ao agir com práticas consideradas abusivas. Em 1998, a Microsoft enfrentou um processo por abuso de posição dominante pelo modo em que a empresa embutia seu navegador (Internet Explorer) no seu próprio sistema operacional (Windows), resultando em um acordo em 2001 que limitou significativamente suas práticas de mercado.

      Já Carlos Slim construiu sua fortuna através da Telmex, o monopólio estatal mexicano de telecomunicações privatizado nos anos 90.  Apesar de Slim não ter apresentado a proposta financeira mais vantajosa, seu consórcio Grupo Carso venceu o leilão. Em 1997, a Comissão Federal de Concorrência Mexicana declarou que a Telmex detinha posição dominante no mercado de telecomunicações. No entanto, nenhuma ação efetiva foi tomada para reduzir esse poder. Por meio do recurso de amparo – mecanismo jurídico originário da Constituição Mexicana de 1857 -, sempre que uma autoridade reguladora tentava intervir para reduzir o poder da Telmex, a empresa conseguia bloquear ou adiar a ação judicialmente. Em resumo, Carlos Slim possuía grande influência no ambiente político e institucional mexicano, e se valeu disso para proteger seus interesses econômicos.

      De um lado, observa-se um ambiente institucional onde as práticas abusivas são limitadas, preservando o ambiente de livre concorrência. De outro, observa-se um ambiente institucional marcado pela fragilidade e pela permeabilidade de interesses privados, que permite a consolidação do poder econômico sem contrapesos, e em última análise prejudica a livre competição e o desenvolvimento econômico.

      Não obstante, a própria criação do direito antitruste também possui profunda relação com a teoria das instituições inclusivas e extrativistas, conforme apontado pelos autores[4]. No final do século XIX e início do século XX, empresários como J.P. Morgan controlavam mais de 70% de mercados estratégicos como o aço, petróleo e ferrovias por meio de trustees, o que resultou no aumento de preços, queda da qualidade e supressão sistemática da concorrência nesses mercados. Essa concentração também permitiu a ascensão de uma elite econômica que, além de deter substancial parcela do mercado, adquiriu uma grande capacidade de influenciar politicamente os rumos dos Estados Unidos.

      Apesar da ameaça dos trustees, o sistema político americano demonstrou uma resiliência que, em última instância, resultou na aprovação de legislações antitrustes históricas, como a Sherman Act (1890), a Clayton Act (1914) e a criação da Federal Trade Commission, que formaram a espinha dorsal da defesa da concorrência, sendo replicada em maior ou menor medida em todo o mundo. Pode-se dizer, portanto, que o direito concorrencial é fruto de um processo histórico de reação das instituições inclusivas contra movimentos econômicos extrativistas que ameaçavam a livre competição.

      O caso estadunidense é emblemático, mas fenômenos semelhantes acontecem em outros países e em outros tempos. Quando grupos econômicos passam a deter uma parcela de poder excessiva, surge uma tensão que resulta em reformas legislativas e fortalecimento regulatório, como se pode observar, por exemplo, em relação à regulamentação antitruste de plataformas digitais. Nesse sentido, sugere-se a existência de uma “dialética” entre a concentração econômica potencialmente extrativista e a reação institucional inclusiva que confere um caráter cíclico ao direito da concorrência.

      No entanto, importante pontuar que a política concorrencial, embora fundamental, por si só não é suficiente para garantir um ambiente institucional de desenvolvimento e inovação. A defesa da concorrência complementa e é complementada por diferentes instituições políticas e econômicas que em conjunto podem oferecer um ambiente de desenvolvimento econômico. Em cenários de forte captura do estado por interesses privados, até mesmo as autoridades concorrenciais podem sofrer pressões externas que limitam a sua atuação. Ainda assim, um forte ambiente institucional sem uma política de defesa da concorrência adequada corre grande risco de comprometer um desenvolvimento econômico saudável.

      Em síntese, os estudos empreendidos por Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson contribuem significativamente para um melhor entendimento acerca dos fatores que influenciam a prosperidade das nações e evidenciam que o progresso de um país, em certa medida, depende da força de suas instituições, e entre elas, a defesa da concorrência.


      [1] ACEMOGLU, Daron; JOHNSON, Simon; ROBINSON, James A. The colonial origins of comparative development: An empirical investigation. American economic review, v. 91, n. 5, p. 1369-1401, 2001; ACEMOGLU, Daron; JOHNSON, Simon; ROBINSON, James A. Reversal of fortune: Geography and institutions in the making of the modern world income distribution. The Quarterly journal of economics, v. 117, n. 4, p. 1231-1294, 2002;  ACEMOGLU, Daron et al. Income and democracy. American economic review, v. 98, n. 3, p. 808-842, 2008; ACEMOGLU, D. Institutions as the Fundamental Cause of Long-Run Growth. Handbook of Economics Growth, 2005.

      [2] Como a hipótese geográfica – que sugere que fatores como o clima, geografia e recursos naturais determinam o sucesso de uma nação – e a hipótese cultural – que atribui o desenvolvimento econômico a fatores culturais como ética e valores sociais.

      [3] Nesse sentido, ver: SACHS, Jeffrey D. Government, geography, and growth: the true drivers of economic development. Foreign Affairs, v. 91, n. 5, p. 142-142, 2012; e PROL, Flávio Marques. Instituições, desenvolvimento e inclusão. Revista Direito GV, v. 9, n. 1, p. 369-377, 2013.

      [4] Ver cap. 11 do livro “Porque as nações fracassam”.


      Pedro Victhor Gomes Lacerda. Bacharel em Direito e mestre em Direito Econômico pela Universidade de Brasília (UnB). Atuou no Tribunal do CADE e atualmente é advogado com foco em direito concorrencial.

      Prescrição e sua interrupção no processo administrativo sancionador do CADE. E o MARKER? MARKER é MARCO?

      Mauro Grinberg Letícia Monteiro de Barros Luiz Felipe Drummond

      INTRODUÇÃO

      O processo administrativo sancionador sempre se vê às voltas com a questão da prescrição e, sobretudo, as causas que podem interrompe-la. Neste artigo o que se visa é a tendência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e sobretudo de sua Superintendência-Geral (SG) de considerar o marker de um acordo de leniência como ato capaz de interromper o prazo prescricional em relação aos integrantes de um suposto cartel denunciado por quem obtém o marker.

      Para efeito expositivo, esclareçamos o que é o marker. Quando existe um cartel – que, por sua vez, é a união de concorrentes para eliminação da concorrência entre eles, seja por fixação de preços, seja por diminuição de produção, seja por divisão de mercado, seja por outra forma qualquer – e um dos participantes quer aproveitar a vantagem legal e denunciar tal cartel, a primeira coisa a ser feita é a obtenção de um marker, que é o comprovante do pedido para iniciar o processo de negociação do acordo.

      Com o marker, o denunciante tem a certeza de que, por um dado período de tempo, tem a possibilidade de arregimentar elementos que possam dar sustentação à sua acusação. Este prazo é importante porque, quando a empresa inicia uma investigação interna, é bem possível que haja vazamentos que podem levar outros concorrentes a procurar a autoridade concorrencial e agir antes. Cumpre lembrar que, em matéria concorrencial, o acordo de leniência só é concedido ao primeiro a comparecer.

      A PRESCRIÇÃO

      Os direitos são prescritíveis; a prescrição é a regra e a imprescritibilidade é a exceção. Como expõe Elody Nassar, “a imprescritibilidade desponta em todas as disciplinas jurídicas como imoral e atentatória à estabilidade das relações sociais, sendo exceção à regra geral da prescritibilidade dos direitos [1]. Por sua vez, explica Humberto Theodoro Júnior que “muitos são os argumentos que a doutrina usa para justificar o instituto da prescrição. Acima de tudo, no entanto, há unanimidade quanto à inconveniência social que representa a litigiosidade perpétua em torno das relações jurídicas. Há, sem dúvida, um anseio geral de segurança no tráfico jurídico, que não seria alcançado se, por mais remota que fosse a causa de uma obrigação, pudesse sempre questionar-se sua existência, sua solução ou seu inadimplemento”[2]. Em suma, o que se busca é a paz social.

      Com efeito, a Lei de Defesa da Concorrência (LDC) (Lei 12.529/2011) estabelece, em seu art. 46, que “prescrevem em 5 (cinco) anos as ações punitivas da administração pública federal, direta e indireta, objetivando apurar infrações da ordem econômica, contados da data da prática do ilícito ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado a prática do ilícito”. De acordo com o par. 4º do mesmo artigo, quando o fato constituir crime, a prescrição é a da legislação penal.

      Pode-se apontar pelo menos três fundamentos para a prescrição, todos eles aplicáveis ao processo administrativo sancionador: (i) desincentivo à negligência do titular do direito, (ii) garantia da segurança jurídica e (iii) fechamento da possibilidade de litigiosidade perpétua, o que obviamente tende a resultar em paz social. Uma espada sobre a cabeça de alguém tem que ter prazo de validade; não pode ser eterna. Esse prazo de validade é a prescrição.

      A INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO E O MARKER

      Estabelece o par. 1º do artigo acima referido que “interrompe a prescrição qualquer ato administrativo ou judicial que tenha por objeto a apuração da infração contra a ordem econômica mencionada no caput deste artigo, bem como a notificação ou a intimação da investigada”. Aqui a grande questão é saber se o marker pode ser enquadrado na categoria de ato que tenha por objeto a apuração da infração. Embora Isto não possa ser negado aprioristicamente, é função do intérprete – e sobretudo da autoridade concorrencial – fazer a correta interpretação.

      Assim, numa primeira e isolada visão, tem-se o marker como de fato um ato administrativo que tem por objeto a apuração da infração. Todavia, a simples interpretação literal não pode subsistir ante a interpretação de acordo com os princípios gerais de direito. Conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema, para que se preserve a coerência do todo. Portanto, nunca devemos isolar o preceito nem em seu contexto (a lei em tela, o código: penal, civil, etc.) e muito menos em sua concatenação imediata”[3].

      Apenas a título de ilustração, imagine-se a situação de uma pessoa que, tendo cometido uma infração da ordem econômica e não tendo sido processada pela autoridade concorrencial, muitos anos depois se vê acossada por um processo administrativo relativo àquela infração praticada no passado para ela remoto. Aqui entra o significado da paz social: a garantia de que tal pessoa poderá seguir sua vida normalmente e sem ameaças vindas do passado remoto.

      Imagine-se, mais, que esse participante da infração, agora surpreendido, nunca precisou coletar provas de sua inocência, até porque nunca foi acusado. Aliás, deixou passar a coleta de documentos (cuja eliminação após determinado período de tempo é admitida pela lei), as possibilidades testemunhais (algumas já não poderão mais ser encontradas, outras não guardarão suas memórias com fidelidade e assim por diante) e até mesmo os objetos e/ou arquivos que poderiam ser periciados. A lei não pode ser interpretada de modo a privar alguém de todas as possibilidades de defesa; isso deve ser intuitivo para qualquer julgador, judicial ou administrativo.

      Mas será a concessão do marker um ato investigatório? A resposta é claramente negativa. Não, porque o marker apenas representa o início de uma negociação que pode, ou não, levar ao acordo de leniência. Ou, como aponta Egon Bockmann Moreira, o marker “atesta a situação jurídico-factual de que determinada pessoa poderá ser a primeira a submeter e ter aceita a sua proposta de acordo”[4]

      É um ato precário, até porque pode ser revogado, caso as informações fornecidas pelo delator não sejam aptas a comprovar a infração denunciada ou ocorra a desistência da parte interessada. Poder-se-ia partir para outras divagações, tais como saber se um marker revogado tem o condão de interromper o prazo prescricional não tem). O que a autoridade não pode evitar é o reconhecimento de que sua negligência pode levar à completude do prazo prescricional.

      A autoridade poderá argumentar que a resposta negativa à pergunta acima (o marker é ato investigatório suficiente para interromper a prescrição?), ante os necessários cuidados que a autoridade deve tomar (cuidados esses que demandam grandes esforços, sendo que grandes esforços também consomem muito tempo), pode levar a casos de prescrição em grande quantidade, com a perda dos esforços e das energias da Administração Pública. Por outro lado, não se pode considerar o prazo de cinco ou doze anos, conforme a infração, para completar uma investigação como exíguo, sobretudo ante as garantias que qualquer Representado (Réu ou acusado) deve ter.

      Há que se ter em conta que o ato que interrompe a prescrição é aquele em que a autoridade dá ciência ao acusado de que existe uma acusação e que esta acusação pode levar ou já levou à abertura de um processo. No caso do processo administrativo que corre pela SG, trata-se de notificação. Tenha-se em mente que a prova pode ser produzida no curso do processo, adicionando-se aqui um argumento a mais contra a consideração do marker como ato capaz de interromper a prescrição. O processo pode ser aberto ante a constatação de indícios (Código de Processo Penal, art. 239: “Considera-se indício a circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.

      De fato, estamos aqui diante da questão da segurança jurídica. Um ato inerentemente sigiloso, como é o caso do marker, que nenhum dos acusados tem a possibilidade de conhecer (o par. 9º do art. 86 da LDC estabelece que “considera-se sigilosa a proposta de acordo de que trata este artigo, salvo no interesse das investigações e do processo administrativo”), não pode ser fator de interrupção da prescrição, sob pena de violação do princípio da segurança jurídica. Como esclarece Humberto Ávila, “dentro do espectro da segurança jurídica também deve estar a capacidade de conhecer e de antecipar as consequências jurídicas atribuídas pelos órgãos aplicadores do Direito não apenas a atos, próprios ou de terceiros, mas igualmente a fatos que venham a ocorrer e que, direta ou indiretamente, repercutem sobre a esfera jurídica do contribuinte” [5].

      Em casos envolvendo processos dos Tribunais de Contas, o Supremo Tribunal Federal (STF) já registrou a ligação entre a garantia da prescrição e a necessidade de preservação da previsibilidade e da segurança jurídica[6]. Nessa linha, em caso recente o Ministro Nunes Marques afirmou que a interrupção da prescrição por ato inequívoco que importe apuração do fato só é válida “quando o interessado tem conhecimento de que a Administração iniciou ou praticou algum ato vocacionado a investigar eventos a ele ligados”[7]

      Assim, a SG do Cade é que poderá definir a interrupção da prescrição. Ela tem o prazo prescricional inteiro (de cinco a doze anos, conforme a infração) para decidir se abre ou não um processo. Ultrapassado esse prazo sem que o suposto infrator seja notificado da existência de acusação, esgota-se o prazo prescricional. Um ato inerentemente sigiloso, como é o marker, que nenhum dos acusados tem condições de conhecer, apesar das ameaças nas esferas jurídicas dos acusados, obviamente não pode interromper o prazo prescricional que a autoridade tem para processar os supostos infratores.

      CONCLUSÃO: A PAZ SOCIAL

      A prescrição também é essencial para a paz social, evitando a perpetuidade do direito de ação. Com efeito, o direito de ação nasce com o fato imputado pela autoridade como infracional, havendo um prazo dentro do qual a autoridade pode fazer a acusação. Esse prazo pode ser interrompido, desde que o acusado tenha conhecimento de tal interrupção. O objetivo da prescrição é, dentro da ideia da paz social, permitir que as partes sigam seus caminhos sem serem perturbadas tempos (em geral contados em anos) depois, já despreparadas para a produção da prova. Assim, resulta claro que o marker concedido pela SG do Cade a um infrator arrependido, enquanto confidencial não tem a capacidade de interromper a prescrição no que diz respeito aos demais integrantes de uma conduta dita i infracional. 


      [1] “Prescrição na Administração Pública”, Saraiva, São Paulo, 2009, pág. 9

      [2] “Prescrição e Decadência”, Gen/Forense, Rio de Janeiro, 2021, pág. 15

      [3] “Introdução ao Estudo do Direito”, Atlas, São Paulo, 2013, pág. 257)

      [4] “Markers de leniência no Cade: natureza, regras, regime jurídico e efeitos”, Economic Analysis of Law Review, Brasília, v. 2, n. 2, pág. 210/221, maio/agosto 2021

      [5] “Segurança jurídica”, Malheiros, São Paulo, 2011, pág. 145. Esclareça-se que a palavra “contribuinte” decorre do texto ter por objetivo o direito tributário mas pode perfeitamente ser substituída por Representado ou Réu ou acusado

      [6] Por exemplo, MS 37,316, AgR, 2ª Turma, sendo Relator o Ministro Gilmar Mendes, julgado em 02/09/2024, publicado em 25/09/2024

      [7] MS 38.223, AgR, 2ª Turma, sendo Relator o Ministro Nunes Marques, julgado em 09/05/2023, publicado em 26/05/2023


      Mauro Grinberg – Ex-Conselheiro do Cade, ex-Presidente e atual Conselheiro do Ibrac, Procurador da Fazenda Nacional (aposentado), advogado em Direito da Concorrência

      Letícia Monteiro de Barros – Advogada em Grinberg Cordovil Advogados, LLM pela New York University com foco em Direito da Concorrência

      Luiz Felipe Drummond – Advogado em Grinberg Cordovil Advogados, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais

      Arbitragem de Valores Mobiliários no Brasil e o Papel do Financiamento de Litígios

      Eric Moura

      A arbitragem no Brasil passou por um desenvolvimento significativo nas últimas décadas, consolidando-se como um mecanismo de resolução de disputas amplamente respeitado e eficaz. Essa transformação começou com a promulgação da Lei nº 9.307/96, em 23 de setembro de 1996, conhecida como a Lei de Arbitragem Brasileira. A legislação modernizou as práticas de arbitragem no país, alinhando-as aos padrões internacionais ao enfatizar a executabilidade de convenções e sentenças arbitrais, além de simplificar os requisitos processuais.[1]
      O Brasil reforçou ainda mais seu compromisso com a arbitragem ao aderir à Convenção de Nova York em 7 de junho de 2002, obrigando-se a reconhecer e executar sentenças arbitrais estrangeiras. Este tratado histórico tranquilizou os investidores estrangeiros sobre o compromisso do Brasil com um sistema confiável de arbitragem, consolidando sua posição na comunidade global de arbitragem.[2]
      Atualmente, o Brasil é considerado uma das jurisdições de arbitragem mais proeminentes do mundo, apoiado por um Judiciário que constantemente reforça os princípios da arbitragem. Um estudo de 2023 realizado pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem (“CBAr”) e pela Associação Brasileira de Jurimetria (“ABJ”) constatou que apenas 1,5% das sentenças arbitrais em São Paulo, o principal centro de arbitragem do país, são anuladas pelos tribunais. Essa baixa taxa de anulação destaca a postura pró-arbitragem do Judiciário.[3]
      Instituições como a Câmara Internacional de Comércio – Brasil (“ICC”), o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (“CAM-CCBC”) e a Câmara de Arbitragem do Mercado (“CAM-B3”) desempenham papéis cruciais no avanço da arbitragem no Brasil. A CAM-B3, em particular, é especializada em disputas relacionadas a valores mobiliários, devido à exigência da B3 para que empresas listadas em segmentos premium, como o Novo Mercado, resolvam conflitos exclusivamente por arbitragem.[4] Esse mecanismo obrigatório de arbitragem melhora a governança e protege os direitos dos investidores.
      Além dessas instituições, o Brasil abriga várias outras que contribuem significativamente para o ecossistema de arbitragem, incluindo a Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem de São Paulo (“CIESP/FIESP”), o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (“CBMA”), o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara Americana de Comércio para o Brasil (“AMCHAM”) e a Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial (“CAMARB”).[5]
      Cada uma dessas instituições desempenha um papel vital no arcabouço de arbitragem do Brasil, oferecendo serviços especializados, regras reconhecidas internacionalmente e infraestrutura sofisticada. Juntas, fortalecem a capacidade do Brasil de lidar com disputas complexas, aprimorando ainda mais sua reputação como uma jurisdição de arbitragem confiável.

      A combinação da legislação modernizada de arbitragem, da adesão à Convenção de Nova York e do robusto arcabouço institucional posicionou firmemente o Brasil como um líder global em arbitragem. O respeito consistente do Judiciário pela definitividade das sentenças arbitrais reforça esse status, garantindo que a arbitragem permaneça um método eficiente e confiável de resolução de disputas.

      Resolução de Disputas de Valores Mobiliários por Arbitragem no Brasil

      A CAM-B3, criada em 2001 pela B3 (antiga Bovespa), atua como um fórum crucial para a resolução de disputas relacionadas a valores mobiliários e governança corporativa no Brasil. Ela lida principalmente com casos envolvendo empresas listadas em segmentos premium de mercado, como o Novo Mercado, que exige cláusulas compromissórias nos seus estatutos. Essa arbitragem obrigatória assegura que disputas entre acionistas, gestores e empresas sejam resolvidas de forma eficiente e confidencial por árbitros especializados em direito societário e de valores mobiliários.[6]
      A importância da CAM-B3 cresceu significativamente nos últimos anos, à medida que ela passou a lidar com um volume crescente de casos envolvendo disputas complexas. Essas disputas frequentemente giram em torno de direitos de acionistas, má gestão e violações de padrões de governança corporativa, refletindo a crescente demanda por responsabilidade nos mercados de capitais do Brasil. O modelo especializado da CAM-B3 oferece uma alternativa mais rápida e confidencial ao litígio comum, reduzindo incertezas e garantindo que as soluções sejam elaboradas por especialistas familiarizados com as complexidades do direito societário e de valores mobiliários.[7]
      Nos últimos anos, a CAM-B3 teve um aumento em disputas decorrentes de controvérsias corporativas de grande visibilidade e reclamações de acionistas. Por exemplo, diversos casos trataram de conflitos relacionados a violações de deveres fiduciários, alegações de insuficiência de divulgação e disputas sobre acordos de acionistas. Esses casos destacam o papel da CAM-B3 em reforçar os padrões de governança corporativa e proteger os direitos dos investidores.

      Em 2018, a CAM-B3 deu um passo significativo ao tornar-se uma das primeiras câmaras arbitrais brasileiras a publicar um compêndio de sentenças arbitrais. Essa iniciativa aumentou a transparência e forneceu insights valiosos sobre o raciocínio por trás das decisões arbitrais, fomentando a confiança entre os participantes do mercado. Essa transparência é particularmente importante em disputas de valores mobiliários, onde a confiança dos investidores depende da previsibilidade e equidade dos mecanismos de resolução de disputas.[8]
      Combinando sua expertise, estrutura especializada e crescente volume de casos, a CAM-B3 se consolida como um pilar da arbitragem de valores mobiliários no Brasil, desempenhando um papel vital na garantia da responsabilidade, governança corporativa e proteção dos investidores nos mercados de capitais do país.

      O Papel do Financiamento de Litígios no Mercado de Arbitragem de Valores Mobiliários no Brasil

      O financiamento de litígios tem se tornado uma ferramenta transformadora no mercado de arbitragem de valores mobiliários no Brasil, ajudando a superar barreiras financeiras que muitas vezes impedem acionistas minoritários e pequenos investidores de buscar suas reivindicações. Os procedimentos arbitrais em instituições como a CAM-B3 são essenciais para a resolução de disputas de governança corporativa, mas seus altos custos, incluindo honorários advocatícios, despesas de árbitros e taxas administrativas, frequentemente se apresentam como obstáculos.[9]
      Provedores de financiamento de litígios, como a Omni Bridgeway, oferecem soluções ao cobrir esses custos, permitindo que os demandantes busquem reivindicações legítimas sem riscos financeiros. Este modelo é particularmente valioso em disputas de valores mobiliários envolvendo violações de deveres fiduciários, má gestão ou divulgações inadequadas. Os financiadores assumem o ônus financeiro em troca de uma parte da recuperação eventual, nivelando o campo de jogo para investidores em disputas com grandes corporações.[10]
      Ao preencher a lacuna financeira, o financiamento de litígios melhora o acesso à arbitragem e reforça a responsabilidade corporativa. Esse modelo de financiamento também está alinhado aos objetivos mais amplos do mercado de capitais brasileiro, promovendo transparência e fomentando a confiança dos investidores.

      À medida que o financiamento de litígios se torna mais prevalente, espera-se que ele impulsione uma maior participação na arbitragem, fortalecendo o mercado de valores mobiliários no Brasil e posicionando o país como líder global em recuperações para investidores.


      [1] www.cms.law/en/int/expert-guides/cms-expert-guide-to-international-arbitration/brazil

      [2] www.newyorkconvention.org/contracting-states

      [3] www.dailyjus.com/world/2024/08/2023-arbitration-year-in-review-brazil

      [4] https://www.camaradomercado.com.br/pt-br/faq.html

      [5] www.globalarbitrationreview.com/insight/know-how/commercial-arbitration/report/brazil

      [6] www.camaradomercado.com.br/en-US/sobre-a-camara.html

      [7] www.b3.com.br/en_us/

      [8] www.b3.com.br/pt_br/noticias/camara-de-arbitragem-do-mercado.htm

      [9] https://aria.law.columbia.edu/overview-of-securities-arbitration-in-brazil-challenges-and-developments/

      [10] www.omnibridgeway.com/litigation-funding/dispute-funding/investor-recoveries


      Eric Moura. LLM in Global Business Law pela Columbia Law School. Consultor na Omni Bridgeway. E-mail: emoura@omnibridgeway.com


      OSR: é desaconselhável ter no Brasil um regulador dos reguladores

      Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt

      Instituições importam para o desenvolvimento das nações. Essa frase consubstancia a mensagem central das pesquisas dos ganhadores do Prêmio Nobel em Economia em 2024: Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson. As Agências Reguladoras, em particular, fazem parte deste grupo de organizações, que, dentre outras funções, resguardam os interesses difusos da sociedade em uma economia de mercado, evitando que os preços dos monopólios naturais sejam abusivos e fomentando que os investimentos ocorram, ao dar previsibilidade jurídica de longo prazo.

      Em outubro de 2024, contudo, em decorrência de um apagão ocorrido em São Paulo (devido a uma tempestade), não só o governo acirrou sua crítica à autonomia das Agências Reguladoras, como usou tal fato para argumentar sobre a necessidade de criar um regulador dos reguladores, ou melhor, um Órgão de Supervisão Regulatória (OSR). A Lei Geral das Agências Reguladoras (Lei 13.848/19) teria que ser alterada e seria um provável retrocesso institucional.

      Antes de adentrar nas razões para a provável marcha ré, vale lembrar que primeiras Agências foram criadas nos anos 90, impulsionadas pelas privatizações, como instituições de Estado (não de governo), para disciplinar e supervisionar o comportamento das empresas, que deixavam de ser monopólios públicos em seus mercados relevantes. O CADE (órgão antitruste), neste mesmo ensejo, foi reformulado pela Lei 8.884 em 1994, passando a ter papel crucial nesta nova realidade, ao lado dessas Agências. Seus conselheiros e diretores nunca tiveram, e seguem não tendo, que obedecer a governos de plantão, mas sim a mandatos definidos em lei, pois aquelas entidades, à luz do modelo da Inglaterra principalmente, sempre tiveram autonomia técnica e administrativa.

      Poucas têm autonomia financeira, dependendo dos recursos da União, o que é um problema; e, infelizmente, a independência destas tem sido duramente criticada pelo suposto “descumprimento de ordens dadas pelo Executivo”, como se o titular de algum Ministério tivesse poderes sobre estas instituições ou como se estes órgãos fossem apêndices de algum dos Poderes. Por esta falta de entendimento acerca do papel e do formato das Agências, a AGU, em 14/10/24, no calor das eleições municipais, investigou a suposta omissão da ANEEL, baseada em denúncia do executivo, que nada concluiu. Foi ato constrangedor, especialmente pela forma. Além disso, o Decreto 12.282/24 causou espanto ao fazer uma “intervenção branca” na ANATEL pelo governo.

      O Executivo tem o poder de dar/reter recursos destas corporações e o executivo/legislativo, de nomear e sabatinar seus conselheiros/diretores. Isso não seria problemático, se não houve ocorrido uma politização nas nomeações; um descaso sobre a importância destes institutos em uma economia livre, onde há falhas de mercado; um desapreço pela técnica; e um loteamento dos cargos por critérios não republicanos. A percepção é que as indicações passaram a ocorrer por troca de favores político-partidários[1]. Tanto é que há inúmeras vagas em aberto e existem posições preenchidas por pessoas com questionável notório saber sobre regulação/concorrência, possivelmente protegendo interesses privados. Das 11 Agências federais, 9 cargos estão desocupados e 8 ficarão até 2025. Impedidas de cumprir suas atribuições em sua plenitude, desprovidas de recursos financeiro e de pessoal, e com uma explícita captura (política e setorial), é difícil julgar a razão de má performance de algumas Agências. Como, assim, é possível solucionar falhas regulatórias mirando a técnica, se o problema está, sobretudo, na governança, isto é, na escolha de profissionais nem sempre comprometidos em lutar pelo bem-público?

      No dia 23/10/24[2], a Controladoria-Geral da União (CGU) concluiu que houve falhas metodológicas por parte das 11 Agências Federais e de outros 29 órgãos da União, uma vez que as avaliações foram feitas de forma ad hoc e sem uma definição prévia de critérios objetivos. Por isso, a AGU ofereceu interessantes sugestões[3] em várias vertentes, como no âmbito da Análise de Impacto Regulatório e do Sandbox Regulatório, este último criado em 2019, pela Lei da Liberdade Econômica[4], e regulamentado pela LC182/2021[5]. Estes aconselhamentos, sem intervenção, são sempre bem-vindos, diga-se de passagem, e devem seguir sendo feitos.

      Antes e durante deste cenário de críticas às Agências, surgiram os Decretos 11.738/2023[6] e 12.150/2024[7]. O primeiro redesenha o Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (Pro-RegII) de 2007 (Pro-RegI, Decreto 6.062), e, o segundo, institui o Regula Melhor. Ambos focam na diminuição do custo Brasil, no aumento da competitividade das empresas por meio de melhorias regulatórias, na ampliação da transparência do processo decisório, na harmonização de metodologias, na padronização de conceitos e critérios e na redução de assimetrias na adoção de boas práticas entre agentes reguladores. O comitê gestor para promover tais aperfeiçoamentos é composto por: MDIC (que o preside), MPO, MGI, AGU e CGU.

      É incorreto relacionar a boa intenção dos Decretos acima com a criação de um OSR com viés político, que tenha a possibilidade de demitir seus diretores, caso suas decisões fiquem em desacordo com os “ditames estabelecidos pelo governo”[8]. Atualmente, a perda de mandato de um conselheiro/diretor ocorre por renúncia, condenação judicial ou processo administrativo disciplinar, e essa regra não deveria ser alterada.

      Para mostrar alinhamento da proposta da criação do OSR brasileiro com as boas práticas internacionais, foram dados exemplos como o Office of Information and Regulatory Affairs (EUA), o Treasury Board (Canadá), o UK’s Regulatory Policy Committee (Inglaterra) e a Better Regulation (Comissão Europeia)[9]. Ocorre que estas organizações não têm prerrogativa sobre a governança das agências, mas sobre a elaboração de critérios técnicos, como propõe os mencionados Decretos. Estes órgãos promovem a melhoria da qualidade regulatória na administração pública. Por serem entidades de Estado e não de governo, a missão desses é disseminar as boas práticas e assegurar que as metodologias mais modernas sejam implementadas[10].

      A possível criação de um OSR no Brasil poderia – com elevada probabilidade – ficar em desacordo com estes benchmarks, se a alteração legislativa permitir que ele possa punir dirigentes de Agências. Muito provavelmente as funções de orientar, aconselhar, coordenar e recomendar de um OSR – hoje feitas pelo TCU – ficariam à margem da verdadeira razão de sua criação, que seria a de limitar, cercear e contestar os julgamentos de seus dirigentes, e, no limite, demiti-los.

      É fato que há problemas de desempenho em algumas agências reguladoras[11], como atrasos em análises que impactam investimentos privados, falta de visão acerca de conceitos básicos concorrenciais e paralisia em proposições legislativas (em que novas leis precisariam ser substituídas por antigas, para não frear o desenvolvimento de certos mercados). A solução, contudo, não passa por torná-las “instituições de governo”, em vez de Estado. Se fosse assim, por que não estender as “necessárias avaliações de desempenho” para outros agentes públicos, como ministros e desembargadores? Porque não cabe. Do mesmo modo que é inapropriado um Ministro dizer que “as agências têm que respeitar o formulador de política pública”[12], se a palavra “respeitar” tem na verdade a conotação de “obedecer”.

      De fato, o Brasil não está bem do ponto de vista da governança regulatória[13], segundo a OCDE[14], o que desfavorece o ambiente de negócios, os investimentos e, logo, o crescimento econômico. O Índice de Qualidade Regulatória, da CNI[15], apesar de ter sido elaborado em 2014, é atual, traz questionamentos, informações, conceitos e recomendações. Neste sentido, é consenso que as Agências e o CADE precisam fundamentar tecnicamente suas decisões, de forma metódica. Suas eventuais falhas, todavia, não podem ser corrigidas com a interferência do governo na sua governança. Capacitar seus membros, dar responsabilidades condizentes com suas condições de trabalho, modernizar suas metodologias de análise, nomear conselheiros/diretores com base em seus currículos, seguir com os prazos dos mandatos não coincidentes com o do Presidente da República, evitar vacâncias de seus dirigentes e dar autonomia financeira são algumas das boas práticas que o Brasil precisa observar para ter “instituições inclusivas e não extrativas”.

      Apesar da OCDE recomendar um OSR para seus membros[16], além da falta de orçamento federal, a probabilidade desta nova burocracia vir a ter caráter político, e não técnico, é muito elevada. Essas são as razões para desaconselhar um OSR brasileiro, conquanto urja a melhora institucional das Agências, seja do ponto de vista de pessoal, seja financeiro ou seja de capacitação, que podem ser supridos sem um regulador dos reguladores. Há que seguir aprimorando o modus operandi destes órgãos, mas preservando sua autonomia. Afinal, as instituições importam para o desenvolvimento das nações.


      [1] https://www.infomoney.com.br/politica/governo-e-congresso-travam-disputa-por-vagas-em-agencias-reguladoras-diz-jornal/

      [2] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2024/10/23/agencias-falham-em-novo-ambiente-diz-cgu.ghtml

      [3] https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2024/09/cgu-publica-auditoria-sobre-uso-de-ferramentas-regulatorias-em-40-orgaos-federais

      [4] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13874.htm

      [5] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp182.htm

      [6] https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2023/outubro/com-pro-reg-renovado-governo-reforca-transparencia-e-eficiencia-regulatoria

      [7] https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/reg/governanca-regulatoria/EBook_RegulaMelhor_A411.pdf

      [8] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/10/governo-estuda-trocar-diretores-de-agencias-reguladoras-por-desempenho.shtml

      [9] https://www.google.com/search?client=safari&rls=en&q=file-20230605123738-scpr-andrea-apresentacao-fiesp-01.pdf&ie=UTF-8&oe=UTF-8https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2020/642835/EPRS_STU(2020)642835_EN.pdf

      [10] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/mulheres-na-regulacao/orgao-de-supervisao-regulatoria-no-brasil-e-possivel

      [11] https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/4110/1/Franciele%20Cristina%20Medrado%20Dematté.pdf

      [12] https://www.infomoney.com.br/politica/agencias-reguladoras-tem-de-respeitar-formulador-de-politicas-publicas-diz-ministro/

      [13] https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/12307/1/Cap6_Governanca_regulatoria.pdf

      [14] https://www.oecd-ilibrary.org/governance/oecd-reviews-of-regulatory-reform-brazil-2008_9789264042940-en

      [15] https://static.portaldaindustria.com.br/media/filer_public/c0/84/c084dca5-3340-4136-8cf0-ef276bdc8301/qualidade_regulatoria__como_o_brasil_pode_fazer_melhor.pdf

      [16] https://www.gov.br/casacivil/pt-br/conteudo-de-regulacao/regulacao/documentos/biblioteca-nacional/2012/recomendacoes-do-conselho-sobre-politica-regulatoria-e-governanca

      Fonte: Conjuntura Econômica – Dezembro 2024

      Obs. O artigo foi originalmente publicado pela Revista Conjuntura Econômica da Fundação Getúlio Vargas. O artigo foi republicado na WebAdvocacy com a autorização expressa da autora.


      Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt tem mestrado e doutorado em ciências econômicas pela Escola de Pós Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas (EPGE/FGV/RJ). Atualmente é Presidente da MSGas, empresa de distribuição de Gás Natural do MS.

      Um novo paradigma para o mercado de crédito de carbono

      Kemil Raje Jarude

      Contexto

      Velho como o fogo, mercados surgem estimulados pela existência e impulsionamento de uma determinada demanda. E demandas são oriundas de necessidades humanas, sejam elas fisiológicas ou determinadas por circunstâncias morais. É fácil perceber que comer é necessidade básica do ser humano, mas o que comer varia de acordo com o contexto em que o indivíduo se insere. Mover-se também é uma necessidade facilmente perceptível, mas como o indivíduo se transporta é que varia de acordo com o contexto e com as possibilidades disponíveis.

      Algo semelhante é o que se vislumbra acerca do debate ambiental. Preservar uma área de floresta pode ser importante por um dado motivo para uma determinada etnia indígena, no contexto da sua preservação da forma como a própria natureza a criou. Já para ingleses e franceses da era pré-industrial, preservar a natureza poderia significar a construção de um jardim. E sabemos como jardins ingleses e franceses são completamente distintos. O que há em comum neles é a interferência humana.

      Tudo isso para dizer que a necessidade de preservar o meio ambiente se torna uma necessidade básica na medida em que a sua destruição leva a consequências que ameaçam a nossa segurança. Se, por muitos séculos, destruir era sinônimo de progresso e possibilidade de controle humano sobre ambiente em prol de suas necessidades, as atuais mudanças climáticas têm levado a reflexão de que a escala de intervenção humana sobre a natureza nos trouxe a tal ponto que nos tornamos perigo para si próprios.

      Portanto, se, antes, a nossa inócua busca por controle da natureza era sinônimo de destruição, hoje, essa busca só se mostra viável por meio da preservação. Assim, se antes comer carne todos os dias respondia a uma necessidade por alimentação; hoje, o vegetarianismo e o veganismo têm se tornado uma alternativa para que se congregue alimentação e preservação. Se, antes, usar combustíveis fósseis atendia a uma demanda básica por transporte; hoje, usar biocombustíveis surge como caminho para conciliar transporte e preservação do meio ambiente.

      Ou seja, aos poucos e conforme as catástrofes ambientais passam não só a matar aquela pessoa de um local distante, mas também um amigo, um familiar ou alguém mais próximo, as condicionantes que colmatam as nossas necessidades são direcionadas centripetamente para alternativas que levem em conta mecanismos de produção que preservem ou destruam o meio ambiente em escala inferior aos modelos com os quais as gerações anteriores bem como atual foram acostumadas.

      Preservação ambiental: uma indústria nascente

      A construção de uma resposta ao desafio das mudanças climáticas, intensificadas pelo modelo econômico industrial e pós-industrial, passa, ao meu modo de ver, pela própria indústria e pelos mecanismos de mercado da economia capitalista. Mas, não apenas isso, o desenvolvimento de uma solução viável e perene precisa incluir a atuação do Estado em sua equação.

      A demanda existente por novas formas de produção ambientalmente sustentáveis precisará criar incentivos para que a demanda ainda preponderante por produtos do antigo modelo se desloque para os produtos do novo modelo. Ademais, vê-se como necessário a emergência de novos entrantes que possam ampliar a oferta nesse novo modelo de mercado.

      Ora, se discutimos o surgimento de produtos substitutos que sejam capazes de absorver uma demanda a tal ponto que tenhamos uma redução da distância entre receita marginal e custo marginal, então é preciso que se sinalize aos possíveis agentes de mercado com possibilidade de se tornarem entrantes que o seu risco será pelo menos igual ou menor do que o risco de quem opera nisso que estamos a chamar de antigo modelo de mercado.

      Nesse cenário, nada de novo sob o sol. A figura do Estado, agente de mercado cuja receita tende a ser a mais previsível e estável, precisa se valer dessas características para criar diferenciações temporárias no sentido de reduzir o risco daqueles agentes que almejem ofertar os produtos substitutos.

      Dentro de um quadro teórico, pode-se fazer uma aproximação desse debate às contribuições acadêmicas de Mariana Mazzucato, sobretudo reunidas em sua obra “O Estado Empreendedor”[1]. Nesse sentido, a autora acredita que o Estado teria não apenas o papel de corrigir falhas de mercado, mas também seria responsável pela criação de mercados.

      Embora a autora acredite que o Estado devesse ter participação mais significativa na participação dos resultados privados que contam com o patrocínio estatal, é preciso que se tenha em mente que as externalidades positivas decorrentes da viabilização na criação de produtos com características tecnológicas ou vantagens de preço que levam a uma mudança no modo de produção, incluindo efeitos sustentáveis, já seria bastante significativo em vista do alto custo que as catástrofes climáticas vêm trazendo a economia mundial[2].

      Nesse mesmo sentido, poder-se-ia retomar as ideias de Michael Porter acerca dos ciclos de vida da indústria quando observa que os altos custos de entrada e os riscos associados quando se trata de indústrias nascentes requerem apoio institucional bem como investimento significativo[3].

      Assim, seria possível observar que mudanças necessárias em nosso modelo industrial estão menos associadas a inovações típica de uma competição de mercado, como poderia ser ilustrada pelo Iphone no mercado de celulares ou da Netflix no mercado cinematográfico, e mais próximas de uma indução exigida pelo agravamento de um contexto de catástrofes e mudanças climáticas severas ameaçadoras da segurança humana.

      A criação de um mercado de créditos de carbono

      Dentro do contexto de mudanças climáticas, a emissão dos denominados Gases de Efeito Estufa tem representado a causa principal dos problemas ambientais que vivemos. Com isso, a solução poderia ser considerada simples: fazer com que a quantidade excessiva de carbono na atmosfera retorne para o solo por processos naturais.

      O grande problema é que todo nosso modo de vida depende de processos industriais que emitem em quantidade muito maior do que aquilo que a natureza é capaz de reabsorver. Não bastasse isso, o desmatamento e a poluição dos oceanos reduzem ainda mais a taxa de reabsorção.

      O Acordo de Paris, integrado ao nosso ordenamento pelo Decreto nº 9.073/2017, deu avanço à implementação do mercado de crédito de carbono internacionalmente, ideia essa que era aventada desde a década de 1960, tendo maior impulso a partir da COP 3, com a criação do Protocolo de Kyoto por meio do Mercado de Desenvolvimento Limpo. Em novembro de 2024, foi finalmente aprovado no Congresso o Projeto de Lei que visa estabelecer o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE).

      Nesse sentido, a criação de um mercado de carbono busca incentivar estados e empresas financiarem suas iniciativas de redução de emissão e aumento de absorção por meio do estabelecimento de limites de emissão. Dessa forma, quem se viabiliza de forma a emitir menos CO2, pode vender esse “excedente” aos países e empresas que emitiram para além desse limite. Da mesma forma, quem pode criar condições de reabsorção pode vender essa “compensação” para quem emite além do limite.

      Dessa forma, tem-se a formação duas espécies de mercado de crédito de carbono: mercado regulado e o mercado voluntário, conforme explicado no parágrafo anterior. O mercado regulado trata das metas de redução dentro do conceito de Contribuição Nacionalmente Determinada (Nationally Determined Contribution em inglês), no qual as empresas têm metas de redução e as diferenças de redução podem ser negociadas, ou seja, quem emitiu abaixo da meta pode vender essa diferença, em relação à meta, para quem emitiu acima da meta. Já o mercado voluntário trata de ações, promovidas por diferentes agentes de mercado, para a reabsorção de carbono da atmosfera. Essa redução pode ser negociada com agentes que tenham emitido acima de suas metas de modo que estas cumpram o seu objetivo de redução. Assim, os mercados regulados e voluntário atuam em simbiose, para usar uma qualificação da biologia.

      Da perspectiva concorrencial, o mercado relevante na sua dimensão produto parece ter mais facilidade para ser classificado como gás carbônico atmosférico, ou o seu equivalente, uma vez que o mercado de carbono aborda outros gases, mas sempre equivalentes ao CO2. A discussão que apresentaria maiores debates poderia ocorrer em relação ao mercado relevante na dimensão geográfica. Se por um lado, o Acordo de Paris foi assinado por 195 países, o que, em tese, permitiria a negociação de créditos de forma amplamente global, sabe-se também que, por outro lado, cada país deverá promover regulações internas que viabilizem tais trocas de forma mais detalhada e fazendo com que autoridades de concorrência possam avaliar limitações quanto a extensão geográfica desse mercado relevante.

      De toda forma, o artigo 6º do Acordo baliza 2 situações de transação envolvendo créditos de carbono. O item 6.2 viabiliza a transação diretamente entre países, enquanto o item 6.4 permite a troca entre países e empresas por meio de um mecanismo internacional.

      O item 6.2 é o chamado Internationally Transferrable Mitigation Outcomes (ITMOs) e é o mecanismo de acordo bilateral que permite que países troquem créditos de carbono. Os países podem comprar créditos de carbono na modalidade ITMOs de um outro país que tenha reduzido emissões para além da sua NDC, desde que o acordo cumpra os requisitos estabelecidos no artigo 6.2. Cada país é responsável pela elaboração das suas próprias políticas e pela execução das suas próprias transações, permitindo flexibilidade ao utilizar critérios próprios, requisitos de qualidade e salvaguardas.

      Na COP 27, Gana foi o primeiro país a autorizar a exportação de créditos de carbono utilizando ITMO para a Suíça[4]. Em maio de 2024, Gana e Suécia estabeleceram um acordo bilateral para o intercâmbio de créditos de carbono via ITMO[5]. Nesse caso, a Suécia, por exemplo, está viabilizando a instalação de painéis solares em telhados residenciais em Gana. A medida tem o potencial de reduzir em 165 mil toneladas de CO2 até 2030[6].

      Ainda no âmbito da COP 27, Suíça e Vanuatu estabeleceram um acordo ITMO para a produção de energia elétrica por meio de placas fotovoltaicas[7].

      Além disso, na COP 28, Cingapura e Papua Nova Guiné estabeleceram um acordo para o desenvolvimento e troca de créditos de carbono sob o mesmo mecanismo[8]. Isso tudo apenas para ilustrar, pois há diversos outros acordos em desenvolvimento, como o item 6.2 do Acordo de Paris já é uma realidade em termos de novos acordos bilaterais com foco na redução das emissões de CO2 no planeta.

      O item 6.4 do acordo cria um mecanismo global de crédito de carbono e foi denominado Paris Agreement Crediting Mechanism (PACM). O mecanismo é conduzido por um órgão de supervisão, que aprova metodologias, registra projetos e gerência os créditos emitidos. Esse órgão é composto por 2 membros de cada uma das regiões da ONU mais um representante de um país menos desenvolvido bem como de um país insular em desenvolvimento. Nesse contexto, o crédito de carbono ganha a denominação de Article 6.4 Emission Reductions Units (A6.4ERs). A ideia é que países e empresas possam submeter projetos e metodologias de redução de emissão de CO2 ao órgão de supervisão e, caso aceitos, possam terem contabilizadas tais reduções para suas metas, além da possibilidade de negociação de eventuais excedentes de captura de CO2 transformados em créditos de carbono.  

      Durante a COP 29, dois documentos foram estabelecidos e que permitirão um melhor desenvolvimento do PACM, (i) o padrão sobre requisitos de metodologia, que cria requisitos para o desenvolvimento e avaliação de projetos no âmbito do Mecanismo de Crédito do Acordo de Paris; e (ii) o padrão sobre atividades que envolvem remoções, que cria requisitos para projetos que removem gases de efeito estufa da atmosfera[9].

      Outro ponto que vale a pena incluir nesse panorama trata acerca dos conceitos de Share of Proceeds (SOP) e do Overall Mitigation of Global Emissions (OMGE), que são dois mecanismos importantes incorporados no Artigo 6.4 do Acordo de Paris, cujo foco é promoção da justiça climática e das melhorias globais na mitigação das mudanças climáticas.

      A Share of Proceeds (SOP) é uma contribuição gerada a partir das atividades e créditos de carbono gerados no contexto da PACM com o intuito de financiar a mitigação das mudanças climáticas. A SOP estabelece que uma parte dos recursos provenientes dessas atividades deve ser usada para despesas administrativas e adaptação.

      A contribuição da SOP é mensurada em 5% do volume de créditos de carbonos criados somado a um adicional de 3%, pago de forma monetária, pela geração de crédito submetida PACM. Esse somatório na forma de créditos de carbono e de recursos financeiro são revertidos para o Fundo de Adaptação. O repasse desse montante é de responsabilidade do país que hospeda o projeto de geração de créditos.

      O Overall Mitigation of Global Emissions (OMGE) é um mecanismo de desconto do montante de créditos de carbono quando da sua emissão ou transferência, devendo ser concedido para o órgão de supervisão como forma de contribuir para uma redução global de emissões de carbono para além das compensações entre países e empresas.  

      Ambos o SOP e o OMGE estão ainda em debate acerca do detalhamento da sua configuração. Os dois mecanismos são obrigatórios no âmbito do PACM, mas opcionais no contexto do ITMOs. Esse fato levanta o debate de que os países poderiam preferir mover suas ações de geração de créditos de carbono por meio do ITMOs em detrimento do PACM, fazendo com que possa haver um esforço menor para em torno da redução de emissões de gases de efeito estufa. Para os críticos, seria importante que os mecanismos SOP e OMGE se tornem obrigatórios nos acordos de ITMOs firmados com base no item 6.2 do Acordo de Paris[10].  

      Tanto com relação ao item 6.2 quanto ao item 6.4, ainda há questionamentos sobretudo acerca dos parâmetros de registro dos créditos de carbono. Esse é um ponto central para que tais mercados possam adquirir confiança das partes interessadas (stakeholders). Alguns países, como os Estados Unidos, têm se colocado contra a proposta de um registro único internacional de modo que tenham restritas as possibilidades de estabelecerem critérios próprios de registro. Já países menos desenvolvidos são a favor de um registro internacional unificado, por conta do custo que teriam caso tivessem que desenvolver processos próprios de registro. Por fim, no âmbito da COP 29, chegou-se ao acordo de que o registro não será determinante para indicar a qualidade do crédito gerado ou para endossar um emissor como forma de fazer esse tema avançar com algum consenso.

      Esse é um ponto crucial para o desenvolvimento do mercado de créditos de carbono, pois impactará no grau de confiança necessário para que as partes interessadas sejam incentivadas a realizarem trocas nesse mercado. Confiança, aliás é um elemento central na determinação da capacidade de engajamento dos agentes face às instituições. Acemoglu, recentemente laureado como um dos Prêmio Nobel de Economia, investigou como a confiança de cortes paquistanesas era negativamente impactada por conta das “evidências de fraqueza, inefetividade e corrupção” que acabavam por carrear a um afastamento da busca da população por instituições estatais[11]. Assim, o debate em torno da regulamentação do item 6.4 do Acordo de Paris precisa caminhar na direção de regras que permitam transparência nas relações de troca, plenas de condições de acesso aos agentes bem como minimize ao máximo as possibilidades de comportamento amoral por parte desses participantes.

      Nesse contexto, na COP 29 houve avanços. 13 países lideraram a iniciativa de publicarem seus Relatórios Bienais de Transparência (BTR), cuja publicação será obrigatória para todos os países signatários do Acordo de Paris até o final de 2024[12]. Esses relatórios compõe o chamado Enhanced Transparency Framework (ETF). Os países desenvolvidos contêm a obrigação de publicar os seus inventários de gases de efeito estufa bem como se submeter a Avaliação e Revisão Internacional (International Assessment and Review – IAR), composta por uma revisão técnica de cada BTR dos países desenvolvidos além de uma avaliação multilateral quantos aos objetivos desses países frente às suas metas. Já os países em desenvolvimento passam pela denominada Análise e Consultoria Internacional (International Consultation and Analysis – ICA), que consiste em uma avaliação do BTR por um time de especialistas além do compartilhamento de visões pelo Órgão Subsidiário de Implementação na forma de oficinas.

      Outro ponto importante em relação a transparência no mercado de crédito de carbono é a atuação da iniciativa #Together4Transparency, que promove o diálogo entre partes interessadas tanto dos signatários do acordo de pais quanto de instituições não signatárias. 

      Caminhando para o fim, a permissão ao Órgão de Supervisão para o estabelecimento de metodologias e critérios para os projetos a serem apresentados sob o item 6.4 do Acordo de Paris[13] permitirá o avanço na formação de oferta de créditos, de modo que a demanda gerada pelos crescentes desastres climáticos possa ser atendida. Além disso, é preciso citar o avanço quanto ao desenvolvimento de parâmetros em termos de direitos humanos, sobretudo quanto a prevenção de violações na implementação de projetos de geração de créditos de carbono. Foi possível verificar ainda o avanço quanto a implementação do item 6.8 do acordo, por meio do qual se estabelece medidas não mercadológicas em que países podem designar projetos ou áreas de atenção para o recebimento de apoio de outros países quanto a redução de emissões ou remoção de gases de efeito estufa.

      Importante observar que a criação dessa nascente indústria do mercado de carbono passa necessariamente por uma atuação estatal, em que as dimensões nacionais tomam protagonismo, não apenas no estabelecimento de regras que viabilizem as interações de mercado, mas também na destinação de seus orçamentos públicos para a geração do que se denomina créditos de carbono. Essa é uma transformação de paradigmas, onde a irrefreada liberdade econômica encontra o seu próprio limite na reação da natureza e se exige um comportamento cooperativo onde se costuma imperar a competição. Mesmo com tais transformações, ainda é possível vislumbrar possibilidades de incentivo econômico para um modelo produtivo dentro do que se convenciona chamar de regras de mercado. Contudo, tais regras parecem se afastar em certa medida da ideia de axiomas econômicos, aproximando-se da ideia de uma ética jurídica.


      [1] MAZZUCATO, Mariana. O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público x setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.

      [2] Cf. BENNETT, Paige. Climate change is costing the world $16 million per hour: study. Disponível em: https://www.weforum.org/stories/2023/10/climate-loss-and-damage-cost-16-million-per-hour/. Acesso em 12/11/2024.

      [3] Porter, M. E. (1980). Competitive Strategy: Techniques for Analyzing Industries and Competitors. The Free Press.

      [4] Cf. Republic of Ghana. Ghana’s framework on international carbon markets and non-market approaches. Disponível em: https://cmo.epa.gov.gh/wp-content/uploads/2022/12/Ghana-Carbon-Market-Framework-For-Public-Release_15122022.pdf. Acesso em 28/11/2024.

      [5] Cf. Republic of Ghana and Kingdom of Sweden. Bilateral Agreement for Engagement in Cooperative Approaches Involving Internationally Transferred Mitigation Outcomes Disponível em: https://www.energimyndigheten.se/globalassets/webb-en/cooperation/international-climate-cooperation/bilateral-framework-agreement-article-6.2-between-sweden-and-ghana.pdf Acesso em 28/11/2024.

      [6] Cf. Swedish Energy Agency. Sweden finances project in Ghana to accelerate the energy transition. Disponível em: https://www.energimyndigheten.se/en/news/2023/sweden-finances-project-in-ghana-to-accelerate-the-energy-transition/ Acesso em 28/11/2024.

      [7] Republic of Vanuatu. Department of Energy. Vanuatu’s first carbon credit market signed. Disponível em: https://doe.gov.vu/index.php/news-events/news/163-vanuatu-s-first-carbon-credit-market-signed Acesso em 28/11/2024

      [8] Cf. Ministry of Trade and Industry of Singapore.Singapore signs first Implementation Agreement with Papua New Guinea to collaborate on carbon credits under Article 6 of the Paris Agreement. Disponível em: https://www.mti.gov.sg/Newsroom/Press-Releases/2023/12/Singapore-signs-first-Implementation-Agreement-with-Papua-New-Guinea. Acesso em 28/11/2024.

      [9] Cf. United Nations Framework Convention on Climate Change. Key Standards for UN Carbon Market Finalized Ahead of COP29. Disponível em: https://unfccc.int/news/key-standards-for-un-carbon-market-finalized-ahead-of-cop29 Acesso em 29/11/2024.

      [10] Cf. Least Developed Countries Group on Climate Change. Submission to the SBSTA Chair by the Kingdom of Bhutan on behalf of the Least Developed Countries Group. Disponível em: https://www4.unfccc.int/sites/SubmissionsStaging/Documents/202104211416—Financing%20for%20adaptation%20Share%20of%20Proceeds%20(Article%206.2%20and%20Article%206.4).pdf Acesso em 29/11/2024.

      [11] ACEMOGLU et al. Trust in State and Nonstate Actors: Evidence from Dispute Resolution in Pakistan. Journal of Political Economy, 2020, vol. 128, no. 8. Disponível em: https://economics.mit.edu/sites/default/files/publications/Trust%20in%20State%20and%20Non-State%20Actors%20-%20Evidence%20fro.pdf Acesso em 29/11/2024.

      [12] Cf. United Nations Framework Convention on Climate Change. First Biennial Transparency Reports. Disponível em: https://unfccc.int/first-biennial-transparency-reports Acesso em 29/11/2024.

      [13] Cf. United Nations Framework Convention on Climate Change. 14th meeting of the Article 6.4 Supervisory Body (SBM 014). Disponível em: https://unfccc.int/event/Supervisory-Body-14 Acesso em 29/11/2024.

      As Agências Reguladoras Independentes, de Novo!

      Marcelo Guaranys[1]

      César Mattos[2]

      1. O Problema da Independência, de Novo

      Recentemente, autoridades do Poder Executivo apresentaram fortes críticas às agências reguladoras. Para essas autoridades, o fato de as diretorias atuais das agências terem sido indicadas pelo governo passado, inclusive no Banco Central, seria um indicador de que a independência dessas diretorias seria inapropriada. Foi defendido até mesmo que os mandatos nas agências deveriam coincidir com os do presidente da república. Medidas estariam sendo estudadas.

      Editorial do Estadão de 23/10/2024 refutou de forma veemente e acertada estas críticas, apontando que a principal motivação para elas seria “interferir politicamente nas agências para que estas atuem conforme os interesses do governo”. Lembra que o primeiro governo do atual presidente já em seu primeiro ano (2003) chegou a instituir Grupo de Trabalho para avaliar os mesmos queixumes: quem roubou o meu queijo e como retorná-lo?

      À época, a primeira grande surpresa do governo foi o reajuste da tarifa de assinatura nas telecomunicações de 2003. A Anatel havia autorizado um reajuste conforme a regra de price cap definida no contrato de concessão dada pelo reajuste do IGP-DI menos o fator X pré-definido desde a privatização da Telebras em 1998. A constatação de que o governo de plantão não tinha qualquer papel na definição dos reajustes de preços do setor simplesmente chocou o novo governo[3].

      O Poder Executivo, portanto, enviou o Projeto de Lei nº 3.307/2004 que tinha como linha geral reduzir a independência das agências em relação ao Poder Executivo[4].

      Uma década e meia mais tarde ocorre a promulgação da chamada Lei das agências reguladoras, Lei 13.848/19, resultado de um Projeto de Lei do Senador Eunício Oliveira (PL 52/13) de 2013[5], relatado pela então Senadora Simone Tebet no Senado, amplamente debatido nas duas casas do Congresso, tendo contado com o apoio dos Governos Temer e Bolsonaro. Entendemos que o resultado final dessa Lei de 2019 está em linha com os princípios da boa regulação[6].

      A Lei 13.848/19 tem como princípio garantir a autonomia das agências reguladoras, mas, ao mesmo tempo, aumentar os requisitos e vedações para a escolha dos dirigentes, e exigir maior transparência e accountability das decisões. A autonomia, especialmente decisória e financeira, está garantida no art. 3º e , garante no art. 42, que procede a várias alterações da Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000. Em particular, eliminou a hipótese de recondução dos diretores, evitando que estes fossem ficando mais “flexíveis” para com as demandas do Poder Executivo à medida que fosse chegando mais próximo do final de seu primeiro mandato. A vedação à recondução[7] junto à desvinculação da agência em relação ao respectivo Ministério para solicitar orçamento, concurso e viagens, dentre outros, constantes dos parágrafos do art. 3º, criaram  também poderosas blindagens a favor da independência dos diretores.

      Conforme ainda o novo art. 5º da Lei 9.986/2020, todos dirigentes serão indicados pelo presidente da república e sabatinados pelo Senado, havendo exigência de “reputação ilibada e de notório conhecimento no campo de sua especialidade”, o que, em tese, já deveria ser suficiente para garantir quadros técnicos[8]. No entanto, com a percepção de que nem sempre o Presidente cumpria e nem sempre o Senado cobrava, optou-se por introduzir requerimentos mais objetivos nos incisos I e II do art. 5º da Lei 9.986/2000

      O novo art. 8º da Lei 9.986/00, por sua vez, tornou não indicáveis para a diretoria das agências, dentre outros, Ministros de Estado, dirigentes de partido político, titulares de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação e cargo em sindicatos, o que visa a estabelecer uma separação mais acentuada da direção das agências com a política.  

      Alguns destes requerimentos foram voltados para impedir Ministros de Estado, dirigentes de partido político, titulares de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação e cargo em sindicatos para a Diretoria, estabelecendo uma separação mais acentuada da direção das agências em relação à política[9].  

      Os novos requisitos e vedações adotados na nova Lei das Agências foram baseados naqueles que haviam sido aprovados pouco tempo antes na Lei das Empresas Estatais (Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016), justamente com a intenção de melhorar a governança dessas organizações.

      O objetivo deste artigo é repisar por que a independência é importante para as agências reguladoras e, não por outra razão, constitui modelo utilizado em vários outros países.

      1. Independência do Governo

      Vejamos inicialmente o caso dos setores de infraestrutura, que contam com agências como Aneel para energia elétrica ou Antaq para portos. Em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, houve uma história comum de empresas estatais que foram privatizadas. No entanto, em vários desses setores as empresas privatizadas, se não eram monopólios, tinham elevado poder de mercado. Como estatais, em tese, o governo “segurava” os reajustes. Como empresas privadas, a regulação dos reajustes seria a forma de o governo evitar o exercício daquele poder de mercado. 

      De outro lado, uma capacidade ilimitada de o governo regular reajustes de tarifas comprometeria um dos principais objetivos da privatização: a retomada do investimento eficiente em infraestrutura, elemento urgente em um contexto de escassez de recursos públicos. Quem investiria contando que o governo não faria o mesmo que fez com suas próprias estatais, represando os reajustes com objetivos eleitoreiros?

      De fato, os investidores privados para serem atraídos contam com todas as promessas de bom tratamento e todos os cuidados do governo. Afinal, o governo precisa de uma “dança do acasalamento” convincente para viabilizar os investimentos requeridos.

      No entanto, após os investimentos realizados, os incentivos de curto prazo dos governos, especialmente os eleitorais, vão se tornando mais relevantes. Governos são muito sensíveis a eleitores e estes, na hora do voto, são sensíveis às suas condições de vida naquele momento, o que é influenciado pelas tarifas dos vários serviços de infraestrutura.

      E os investidores sabem disso. As juras de amor eterno do governo no momento do aporte dos investimentos ex-ante estão longe de ser suficientes para conter essa “atração fatal” ex-post da contenção artificial e oportunista/eleitoral de preços chave da economia. Inclusive, considerando que a cada quatro anos “muda o amante” e as promessas terão que ser cumpridas por outro(s) governo (s) que pode ser bem menos apaixonado que o primeiro.

      Daí que as ditas “juras de amor” devem ser substituídas por regras mais seguras, contratos que tenham garantia de enforcement pelo Judiciário e, principalmente, por agências reguladoras independentes!

      A ideia desse arcabouço que vai além do cheap talk momentâneo dos governos nada mais é que prover um “compromisso crível” ex-ante dos governos de que suas promessas não serão em vão e que o investimento não será expropriado[10].

      E este compromisso crível deve ser tanto para evitar prejuízos como lucros extraordinários ex-post. Como destacado pela OCDE (2016)[11]um regulador independente pode resistir a pressões tanto para reduzir como para aumentar preços às expensas da recuperação dos custos, manutenção de longo prazo e qualidade do serviço no setor regulado”.

      Mas, o que têm os investimentos em infraestrutura de tão especial para requererem este cuidado todo? Estes investimentos são de longo prazo, passando por vários governos, e afundados, quer dizer, demoram a ter retorno e não podem ser desmobilizados de onde e como estão sendo empregados. Por exemplo, fará sentido o investidor de redes de transmissão de energia elétrica ou de um terminal portuário, desmontar toda a infraestrutura construída, em função de comportamento oportunista do Estado reduzindo tarifas além do combinado, e levar para outro lugar? Com certeza, não fará qualquer sentido.

      O propósito principal da independência é isolar ao máximo possível a regulação da tentação dos comportamentos oportunistas dos governos em relação aos setores regulados. Spiller e Tommasi (2008)[12] enfatizam as possibilidades de expropriação de investimentos na regulação dos setores de infraestrutura: “O problema maior da regulação dos serviços de infraestrutura, sejam públicos ou privados….. é como o oportunismo governamental, entendido como os incentivos que os políticos têm para expropriar –uma vez que os investimentos já foram realizados- as “quase-rendas” –seja sob propriedade privada ou pública, de forma a adquirir apoio político….o consumo massivo (o conjunto de consumidores se aproxima muito do conjunto de eleitores), as economias de escala e investimentos em custos afundados proveem ao governo a oportunidade para se comportar oportunisticamente vis a vis a firma investidora.”.

      Decker (2015)[13] coloca este problema específico dos investimentos em infraestrutura em termos da questão mais geral da “inconsistência temporal das políticas públicas”: “O estabelecimento de um regulador independente é visto como um compromisso do governo em restringir a interferência futura nos serviços públicos, particularmente em termos da futura expropriação de direitos de propriedade”…sendo “uma variante do problema mais geral de inconsistência temporal da política pública”. E o papel das agências reguladoras seria nada mais nada menos que “oferecer um amortecedor (buffer) contra tal inconsistência temporal e também contra a flutuação nas preferências dos governos presente e futuros”.

      Essa relação entre falta de compromisso crível, inconsistência temporal e incerteza política foi explicitamente realçada pela OCDE (2016). Em particular, destaca que “um mandato do regulador de longo prazo (além do ciclo eleitoral, por exemplo) pode ajudar a resolver os problemas de inconsistência temporal e flutuações ligadas aos ciclos políticos e de negócios”.

      As agências reguladoras independentes, portanto, seriam uma forma de “amarrar as mãos do governo” em sua capacidade de expropriação dos investimentos, o que, ao reduzir incertezas, aumentaria a segurança dos investidores, incrementando sua propensão a investir. Em síntese, o diretor da agência não pode ser demitido pelo Presidente da República de forma discricionária, mas apenas nas formas previstas no art. 9º da Lei 9.986/00[14], o que constitui uma das formas de fazer esta “amarração”.  

      Este ponto é frontalmente oposto às críticas apontadas no início deste artigo de que os mandatos das diretorias das agências deveriam coincidir com os do presidente da república.

      Cabe lembrar, neste aspecto, que a Lei 13.848/19 estabeleceu expressamente um número de quatro diretores e um presidente com mandatos não coincidentes (novo art. 4º da Lei 9.986/00) de cincos anos (novo art. 6º da Lei 9.986/00), plenamente em linha com o prescrito pela OCDE e frontalmente contrário à proposta apresentada pelas autoridades.

      Mas não são apenas tarifas o alvo potencial de comportamentos oportunistas dos governos. Qualquer item dos contratos regulatórios que implique ganhos para uma agenda populista do governo, mas que implique redução de receitas e/ou aumento de custos dos investidores também pode constituir expropriação regulatória. Por exemplo, investimentos não previstos originalmente ou de qualidade do serviço completamente divorciada da realidade também podem constituir ações oportunistas. E a independência dos reguladores é fundamental para contê-las.

      1. Independência de Ofertantes e Demandantes

      A independência, no entanto, não é apenas em relação ao governo, mas também dos dois lados principais do setor regulado, quem oferta e quem demanda o bem ou serviço. Conforme a OCDE (2016) “é igualmente importante que os reguladores não se tornem presas de influência indevidas da indústria regulada ou serem capturadas por interesses estreitos que poderiam ser expressados pelas associações de consumidores”.

      Em relação à diminuição da possibilidade de captura pelo setor, o art. 8º da Lei 9.986/2020 definiu  vedação a “pessoa que tenha participação, direta ou indireta, em empresa ou entidade que atue no setor sujeito à regulação exercida pela agência reguladora em que atuaria, ou que tenha matéria ou ato submetido à apreciação dessa agência reguladora” e a “membro de conselho ou de diretoria de associação, regional ou nacional, representativa de interesses patronais ou trabalhistas ligados às atividades reguladas pela respectiva agência”. Assim, evita-se que indivíduos com interesses diretamente regulados pela agência venham a compor o seu colegiado.

      1. Limites da Independência

      Obviamente que não se pode garantir indicações de Diretores que sejam tão afastados assim da lógica de curto prazo da política ou mesmo simplesmente incompetentes. 

      Nesse contexto, a independência formal pode estar bem aquém do desejado. Correa, Pereira, Mueller e Melo (2006)[15] mostraram que, em 13 agências no Brasil houve interferência no processo decisório das agências e que “atributos formais nem sempre se transferiam para uma governança efetiva”. Batista (2011)[16], por exemplo, mostra que com dados da primeira década do século podia-se constatar que “as preferências do presidente de fato impactam no grau de interferência nas agências reguladoras”. Vieira, Gomes e Filho (2019)[17] encontram no Brasil “maior resistência às mudanças nos setores de energia: menor independência formal das agências reguladoras e presença mais ativa das autoridades políticas no campo normativo desses setores”. Sampaio (2021) argumenta que as culturas normativa e política pré-existentes no Brasil comprometem a independência das agências reguladoras[18].

      Com vistas a reduzir interferências indevidas pelo Executivo e pelo Senado no processo de indicação dos dirigentes da Agência, foi aprovado no texto final do Congresso da Lei nº 13.848/19 uma comissão de seleção que seria indicada pelo Presidente da República e definiria uma lista tríplice dentre a qual um nome seria indicado para o Senado. A intenção desse artigo era minimizar o grau de pessoalidade que a indicação de dirigente tem apresentado na interação entre Executivo e Senado, mas, infelizmente, acabou vetado pelo Presidente[19].

      De qualquer forma, como destaca a OCDE (2016), “a independência não significa que os reguladores serão “anônimos…silenciosos e totalmente acima do sistema”, sendo “inevitável e desejável que os reguladores interajam com os ministros que em última análise são os responsáveis por desenvolver as políticas para o setor regulado, e com o parlamento, que vai aprovar as políticas e frequentemente avaliar sua implementação”. Prossegue afirmando que “a independência não significa que os reguladores trabalharão em um vácuo, sem checagens apropriadas em seu trabalho ou desconectados das decisões do Poder Executivo”[20]. Nem a Lei 13.848/19 e nem a experiência recente parecem indicar hipótese de insulamento excessivo das agências reguladoras brasileiras do resto do Estado.  

      A OCDE (2016) aponta ser possível, entretanto, que existam áreas cinzentas nos papéis dos ministérios e agências reguladoras. Daí que “deixar claro e transparente as fronteiras de atuação sobre quem faz o quê e para quais instituições as agências devem prestar contas” é algo importante. Não parece também haver um tipo de problema como este de divisão de competências com as agências reguladoras brasileiras.

      De fato, o problema apontado pelos críticos pode ser o de quem estar lá ser ou não próximo ao governo. Se for isso, parece ser um indicador muito relevante de que, na realidade, as agências brasileiras estão cumprindo seu papel, pelo menos no que diz respeito à distância mínima desejável do Poder Executivo.

      O que sugere que a blindagem promovida pela Lei 13.848/19 está funcionando a pleno vapor e que nenhuma alteração legislativa nas regras de independência das agências é requerida nesse sentido. 


      [1] Economista, Advogado e Mestre em Direito Público.

      [2] Doutor e Mestre em Economia.

      [3] Ver Mattos,C.C..A.: Telecomunicações: Reajuste e Contrato. Conjuntura Econômica – FGV/RJ – Novembro de 2003, Vol. 57 nº 11.

      [4] Ver Mattos, C.C.A. e Mueller, B.: Regulando o Regulador: A Proposta do Governo e a Anatel. Revista de economia contemporânea. v.10 n.3 Rio de Janeiro set./dez. 2006. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-98482006000300003&lng=pt&tlng=pt

      [5] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/111048

      [6] Ver, dentre outros, o OECD: RECOMMENDATION OF THE COUNCIL ON REGULATORY POLICY AND GOVERNANCE, 2012 em https://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/49990817.pdf  e OECD WORKING PARTY ON REGULATORY MANAGEMENT AND REFORM DESIGNING INDEPENDENT AND ACCOUNTABLE REGULATORY AUTHORITIES FOR HIGH QUALITY REGULATION Proceedings of an Expert Meeting in London, United Kingdom, 10-11 January 2005. http://www.oecd.org/regreform/regulatory-policy/35028836.pdf, OECD: The Governance of Regulators Creating a Culture of Independence Practical Guidance Against Undue Influence. http://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/Culture-of-Independence-Eng-web.pdf, Best Practice Principles for Regulatory Policy “The Governance of Regulators”. 2014. https://www.oecd-ilibrary.org/governance/the-governance-of-regulators_9789264209015-en.

      [7] “Art. 6º O mandato dos membros do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada das agências reguladoras será de 5 (cinco) anos, vedada a recondução, ressalvada a hipótese do § 7º do art. 5º.

      [8]Art. 5º  O Presidente, Diretor-Presidente ou Diretor-Geral (CD I) e os demais membros do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada (CD II) serão brasileiros, indicados pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea “f” do inciso III do art. 52 da Constituição Federal, entre cidadãos de reputação ilibada e de notório conhecimento no campo de sua especialidade, devendo ser atendidos 1 (um) dos requisitos das alíneas “a”, “b” e “c” do inciso I e, cumulativamente, o inciso II: (continua na próxima nota de rodapé)

      [9] Art. 8º-A. É vedada a indicação para o Conselho Diretor ou a Diretoria Colegiada:

      I – de Ministro de Estado, Secretário de Estado, Secretário Municipal, dirigente estatutário de partido político e titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados dos cargos;

      II – de pessoa que tenha atuado, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;

      III – de pessoa que exerça cargo em organização sindical;

      IV – de pessoa que tenha participação, direta ou indireta, em empresa ou entidade que atue no setor sujeito à regulação exercida pela agência reguladora em que atuaria, ou que tenha matéria ou ato submetido à apreciação dessa agência reguladora;

      V – de pessoa que se enquadre nas hipóteses de inelegibilidade previstas no inciso I do caput do art. 1º da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990;

      VI –  (VETADO);

      VII – de membro de conselho ou de diretoria de associação, regional ou nacional, representativa de interesses patronais ou trabalhistas ligados às atividades reguladas pela respectiva agência.

      Parágrafo único. A vedação prevista no inciso I do caput estende-se também aos parentes consanguíneos ou afins até o terceiro grau das pessoas nele mencionadas.”

      [10] Ver Tiryaki, G.F: A independência das agências reguladoras e o investimento privado no setor de energia de países em desenvolvimento. Economia Aplicada. 16(4). Dezembro 2012) que mostrou que a independência formal em agências de 87 países em desenvolvimento estimulou o investimento privado no setor de energia elétrica.

      [11] OCDE: Being an Independent Regulator. The Governance of Regulators, OECD Publishing, Paris. http://dx.doi.org/10.1787/9789264255401-en

      [12] The Institutional Foundations of Public Policy in Argentina: A Transactions Cost Approach. Pablo T. Spiller and Mariano Tommasi. New York and Cambridge: Cambridge University Press. In – Policymaking in Latin America: How Politics Shapes Policies. Edited by Ernesto Stein and Mariano Tommasi. Washington, DC: IDB and David Rockefeller Center for Latin American Studies, Harvard University, 2008.

      [13] Modern Economic Regulation: An Introduction to Theory and Practice. Cambridge University Press, 2015. 

      [14] “Art. 9º  O membro do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada somente perderá o mandato:

      I – em caso de renúncia;

      II – em caso de condenação judicial transitada em julgado ou de condenação em processo administrativo disciplinar;

      III – por infringência de quaisquer das vedações previstas no art. 8º-B desta Lei.

      [15] Correa, P. ;Pereira, C; Mueller,B. e Melo, M. : Regulatory Governance in Infrastructure Industries Assessment and Measurement of Brazilian Regulators. IDB and The World Bank. 2006.

      [16] Batista, M.: Mensurando a independência das agências regulatórias brasileiras. Planejamento e Políticas Públicas, nº 36 Jan/Jun 2011.

      [17] Vieira, J,N.; Gomes. R.C. e Filho, E.R.G.: “Avaliação da independência das agências reguladoras dos setores de energia elétrica, telecomunicações e petróleo no Brasil”. Revista de Serviço Público Brasília 70 (4). Out/Dez 2019.

      [18] Sampaio, P.S.: A Independência Real das Agências Reguladoras no Brasil”. International Journal of Science and Society, 2021.

      [19] MENSAGEM Nº 266, DE 25 DE JUNHO DE 2019:

      “(…)

      §§ 1º ao 4º e § 6º do art. 5º da Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, alterados pelo art. 42 do projeto de lei

      “§ 1º A escolha, pelo Presidente da República, de Conselheiros, Diretores, Presidentes, Diretores-Presidentes e Diretores-Gerais de agências reguladoras, a serem submetidos à aprovação do Senado Federal, será precedida de processo público de pré-seleção de lista tríplice a ser formulada em até 120 (cento  e vinte) dias antes  da vacância do cargo decorrente de término de mandato, ou em até 60 (sessenta) dias depois da vacância do cargo nos demais casos, por comissão de seleção, cuja composição e procedimento serão estabelecidos em regulamento.

      § 2º O processo de pré-seleção será amplamente divulgado em todas as suas fases e será baseado em análise de currículo do candidato interessado que atender a chamamento público e em entrevista com o candidato pré-selecionado.

      § 3º O Presidente da República fará a indicação prevista no caput em até 60 (sessenta) dias após o recebimento da lista tríplice referida no § 1º.

      § 4º Caso a comissão de seleção não formule a lista tríplice nos prazos previstos no § 1º, o Presidente da República poderá indicar, em até 60 (sessenta) dias, pessoa que cumpra os requisitos indicados no caput.”

      “§ 6º Caso o Senado Federal rejeite o nome indicado, o Presidente da República fará nova indicação em até 60 (sessenta) dias, independentemente da formulação da lista tríplice prevista no § 1º.”

      [20] Conforme destacado de forma irônica pela OCDE (2016) “os reguladores NÃO são (ou NÃO deveriam ser) “Homens de Preto”, que não devem “aparecer de forma alguma. Sua imagem é inteiramente trabalhada para não deixar nenhuma memória duradoura em qualquer um que os encontre. […] Anonimato é o seu nome. O silêncio sua língua nativa. Você não é mais parte do sistema. Você está acima do sistema. Além dele.” Do filme  “The Men in Black” (United States, 1997).