Marco Aurélio Bittencourt

Desatando o nó de jacarandá

Marco Aurélio Bittencourt

Muitos se perguntam qual a saída para o Brasil, tendo como certo e acertadamente que a nossa situação social, econômica e política é predatória. O pessimismo toma conta de quase todos. Mas nós, economistas, gastamos tempo e muita energia para entender a situação sob o ângulo técnico que se desdobra em diversos tipos de abordagem. Todas elas, em sua grande maioria, quer sejam economistas ou não, nos levam a um caminho só.  O x da questão é político, e é pela política que encontraremos a saída a nos libertar de todos os entraves que estancam recorrentemente o caminho duradouro para o desenvolvimento do país. Eu sou otimista, e isso facilitou meu entendimento para o rompimento das amarras. Mas antes de chegar na questão básica da luz no fim do túnel, é necessário fazer um resumo do quadro político desde 1946.

O modelo político que apontava para a inserção política do cidadão estava presente em Getúlio Vargas. Como já disse alhures, Getúlio era uma figura complexa e aqui falo apenas no contexto político do período democrático. Os dois partidos-chave para o destino do país seriam o PTB e o PSD. O primeiro, criado por iniciativa do próprio Vargas, tendo sua filha como fundadora. O PSD seria fundado por simpatizantes do Getúlio. A UDN seria a oposição sistemática às políticas de Getúlio. Apareceriam mais dois partidos que buscavam o poder federal, mas que se consolidavam principalmente na esfera estadual: O PSP (Partido Social Progressista) que tinha em Ademar de Barros seu líder natural, na tentativa de simular um padrão getulista, nos termos do baronato paulista. O outro partido importante em termos de aliança, mas pouco expressivo como era o PSP, foi o Partido Republicano, PR. Temos ainda o Partido Comunista, PCB que era importante pelo seu potencial de atrair a juventude e intelectuais. Mas, atingido de morte pelo contexto da guerra fria, acaba sendo alijado do processo político partidário e só retornaria ao cenário partidário com a Constituição de 1988. Restou como opção pseudo radical o Partido Socialista Brasileiro, mas de pouca expressão.

O Quadro político imaginado por Getúlio Vargas seria basicamente o seguinte: o PTB serviria como canal para a expressão popular, ocupando, na órbita federal, preferencialmente os cargos de deputados federais, e o PSD como canal de expressão da elite dirigente, ocupando a Presidência da República, Senado e os Governos Estaduais. No entanto, o projeto nacionalista de Getúlio sofreu ataques profundos, sendo a UDN o leme dessa opção que imaginava chegar ao poder a qualquer custo, além dos habituais traidores da causa.

A tentativa de derrubada do projeto nacionalista de Getúlio e seu grupo seria bem-sucedida, já em 1954, com provável afastamento e prisão de Getúlio. Mas, o inesperado acontece e Getúlio deu o troco à UDN com a sua autoimolação, deixando o país em situação política confusa. Seu vice-presidente, Café Filho, plantado ali pelo astuto Ademar de Barros, assume a Presidência da República e intenta um golpe com a intenção de não deixar assumir a Presidência da República e a Vice-Presidência a chapa vencedora Juscelino Kubistchek (JK) e João Goulart (Jango) – este último como vice-presidente. JK era do PSD e Jango do PTB (sob a constituição de 1946 o vice-presidente também era eleito diretamente pelo voto popular). O golpe foi frustrado pela ação do Ministro da Guerra, Marechal Henrique Lott (Lott), que fora deposto por cumprir sua obrigação constitucional de punir o coronel porta-voz do golpe que alardeou a ameaça de que os eleitos à Presidência e Vice-Presidência da República não assumiriam. Lott revidou e garantiu o retorno à normalidade democrática do país, tomando posse em seus cargos os eleitos JK e Jango.

O que esse quadro já mostra? Que o projeto nacionalista estaria sendo atacado por todos os flancos. Os partidos políticos imaginados por Varga, em cumprimento às diretrizes e projetos nacionalistas, já estavam contaminados por interesses que se assemelhavam aos mesmos do período pré-Vargas, embora a oposição liderada pelo PTB ainda produzisse efeito prático na política do dia a dia. O fato é que JK implementou projeto próprio e de característica não nacionalista, firmando pactos com o baronato industrial e empreiteiras. A indústria nacional iria a reboque das multinacionais. A Agricultura já tinha seus interesses arraigados e de pouca monta foi a mudança que já vinha sido trilhada. O destaque está na Constituição de 1946 que permitia desapropriação para fins de reforma agrária, embora não mais explicitasse o que de bom tinha na constituição de 1937 como, por exemplo, em seu Art. 148 que permitia a prática do usucapião em terras de até dez hectares. O tripe da elite estava formado. Mas a agitação política era intensa e o legado de JK no flanco interno e externo exigiam ajustes rápidos e certeiros. A eleição que sucedeu a JK trouxe a esperança com Lott e Jango; Lott candidato filiado ao PSD, galgado a chapa presidencial, com Jango pelo PTB como vice-presidente. Lott não contou nem com o apoio de parte da esquerda que não lhe depositava confiança para levar adiante as reformas de base que o PTB esboçava e menos ainda com o apoio esperado de JK. O objetivo era neutralizar Lott e para isso urdiram a candidatura Jânio Quadros (Jânio), sob aliança com a UDN. Para que tirassem a força do Marechal como candidato, insuflaram marotamente a chapa Jânio-Jango. Para ele, o Marechal, e para nosso azar, a estratégia deu certo e deixaram o vice como esperança ineficaz, na aposta da mudança de rumo com Jânio.

A estratégia do baronato parecia ter dado certo. Mas os problemas na área econômica herdados do período JK não encontraram um caminho de solução fácil. Jânio, alegando pressão de forças ocultas que não o deixavam governar, renúncia em tentativa, talvez, de voltar ao poder nos braços do povo. Não foi isso o que aconteceu e sua renúncia se consolidou. Mas deixou um defunto político para ser enterrado: seu vice, Jango. As forças ocultas que mostraram a cara tentaram impedir a posse de Jango como Presidente da República. E novamente estava ali presente o Marechal Lott que denunciava o golpe, motivando a ação de Leonel Brizola que resultou em sucesso, porém parcial. À Lott lhe custou 15 dias de cadeia.

Jango acatou o acordo costurado com Tancredo Neves, o mesmo que ficara ao lado de Getúlio até o último momento de sua autoimolação, na condição de ministro à época, se oferecendo para assumir o Ministério da Guerra para conter os golpistas. Nesse novo episódio da história política brasileira, Tancredo Neves, mesmo sem ter sido eleito governador de Minas Gerais no pleito de 1960, mas apoiado pela cúpula do PSD e contando com a simpatia de diversos políticos, foi indicado para costurar o acordo com Jango e o convenceu a aceitar um sistema parlamentarista como solução. Jango tomou posse e Tancredo Neves foi guindado ao cargo de primeiro-ministro, inaugurando o sistema parlamentarista que teve breve período de duração.

Mas o PSD que já tinha sido contaminado pela força política de JK que se distanciava do modelo nacionalista de Getúlio/Jango pouco fez para apoiar as políticas pretendidas pelo PTB já que sua bancada estava em grande parte apontando para outro lado do espectro nacionalista. A força da oposição e a decisão tardia de Jango em assumir um lado do embate político feroz o deixou enfraquecido e, quando o fez, o circo do golpe já estava armado.  Um general com tradição rebelde e fama de maluco assume a ponta militar para a derrubada do governo e já não poderíamos mais contar com a força reparadora de Lott que já teria seus passos políticos controlados, dificultado ainda pelo apoio popular da classe média ao movimento golpista, em razão das atabalhoadas políticas de Jango que acenava claramente o envolvimento de forças radicais da esquerda. Veio o golpe e o fim do modelo político arquitetado por Vargas. Muitas foram as traições. A esperança foi na aposta da eleição indireta para a escolha a presidente entre Castello Branco (sem partido), Dutra (PSD) e Juarez Távora (PDC – Partido Democrata Cristão). Dificilmente a chapa Castello Branco seria batida, dada as manobras estratégicas do núcleo duro do golpismo militar. JK agora trai o PSD original e renega a candidatura Dutra do PSD, juntamente com a quase totalidade dos eleitores (Dutra, 2 votos; Távora, 3 votos e Castello 361 votos).  Inicia-se assim, a era do regime militar com esse rebotalho de parlamentares.

Vamos chegar a era do bipartidarismo: a Arena, partido da situação óbvia e MDB, partido criado para mimetizar uma oposição. Os nacionalistas ainda existiam aos montes, mas o objetivo de toda a oposição legítima era derrubar o regime militar, misturando-se todos os oponentes com matizes ideológicas diversas num único partido; o MDB. Nesse embate, surge na legislatura de 1970 um grupo de deputados do MDB que, em seu início poderia ser contado em mais de 60 deputados, já ressabiados com as cassações individuais sem respaldo político na legislatura anterior, optaram por um trabalho de oposição legítima, porém mais coordenado. No famoso encontro do MDB em Recife em junho de 1971 já lá lançaram a proposta da constituinte. Foram boicotados por figuras da cúpula que envolvia Ulysses Guimaraes, Tancredo Neves e Thales Ramalho que se opuseram a essa tese original. Falo da turma autêntica do MDB – termo cunhado pelo jornalista Evandro Paranaguá http://youtu.be/NPdj6N82A2w .

Foram esses deputados briosos do MDB que moldaram a cara de oposição verdadeira ao regime militar que infelizmente foi apropriada por figuras como Jáder Barbalho. Cito os, segundo meu entendimento, os mais importantes desse grupo dos Autênticos do MDB (https://www.youtube.com/watch?v=JFxJKe8qKg4&t=17s): Chico Pinto, Alencar Furtado, Lysâneas Maciel, Marcos Freire e Fernando Lyra. Outros deputados foram também importantes nesse momento; até mesmo da Arena como Pedroso Horta ou outros que militavam na oposição e de alto valor cívico como Alceu Collares que, no momento decisivo para o grupo em denunciar a eleição fajuta do Geisel, roeu a corda, atendendo pressões da turma do Brizola. O fato é que esses políticos valorosos poderiam trazer novamente o sonho nacionalista de Getúlio. Muitos provaram seu valor com a sua própria cassação pelo regime militar, como os três primeiros citados do flanco dos Autênticos do MDB. Foi uma medalha no peito dessa turma; totalmente diferente do que se dá hoje em dia.

Mas o que aconteceu com esse grupo? Isso tem a ver com a estratégia do Golbery de batida em retirada dos militares do poder. Trata-se do retorno do pluripartidarismo. Com isso, os Autênticos se diluíram em distintas legendas. Para piorar, trataram os homens de valor que teriam eleição certa de permanecerem na linha de ataque de continuar sua batalha por mudanças institucionais, mas se descuidaram do comando dos partidos. O resultado foi a perseguição pelos caciques dos partidos a esses homens briosos, com a grande maioria já na legislatura de 1990 não conseguindo mais ascender politicamente. O fato é que todos os partidos têm dono e os utilizam para seu benefício. A moral, a ética e os valores básicos de um patriotismo desejável simplesmente sumiram do mapa político. Essa realidade até o cidadão comum percebe e se indigna. Mas o que fazer? Qual a mudança fundamental a ser perseguida?

A resposta é simples: mudar a regra do jogo fundamental para ferir de morte a supremacia dos caciques políticos: eleição para quaisquer cargos eletivos sem que se tenha necessariamente vinculação partidária.

Essa regra é fundamental e necessária para abrir as portas a opções legítimas de mudança.  Para se perceber a importância dessa estratégia, basta considerar a situação do ex-presidente Trump. Na eleição que o elegeu, foi ameaçado pelo grupo republicano que também lá dirige o partido de não obter a legenda para disputa nas primárias americanas. Trump retrucou: sairei como candidato independente. Claro, dada a polarização política acima e abaixo dos trópicos, muitos, em arroubos autoritários, poderiam achar esse exemplo bastante contraditório à tese da candidatura independente. O exemplo tem que servir à tese e não às ideologias ou preferências que são subjetivas.

A candidatura independente de vinculação partidária abre espaço para homens de valor almejarem a Presidência da República. Não é por outra razão que candidaturas esperadas como as de Joaquim Barbosa e Sérgio Moro não prosperaram. Homens de valor que não aceitaram a manobra dos caciques das legendas que intentavam representar. Se houvesse a possibilidade da candidatura independente, teriam colocado em corner esses partidos.

Claro que essa mudança é a luz no fim do túnel, mas trilharia o caminho da solução política rapidamente e de forma indolor. O difícil é ver deputado jovem como a Tábata Amaral se colocando frontalmente contra a candidatura independente. Evidentemente, uma solução melhor seria o parlamentarismo; tarefa mais complexa do ponto de vista político. Já a candidatura independente teria uma maior chance de aprovação parlamentar.

Feito o consertamento político, resta o econômico. Este é mais simples ainda. Basta adequar a trajetória da dívida pública e deixar o orçamento concebido pela Constituição de 1988 funcionar em seus próprios termos, livre de leis como as da responsabilidade fiscal e outras amarras castradoras. Sou otimista. Pela candidatura independente!

Um olhar especial sobre o modelo brasileiro

Marco Aurélio Bittencourt

Falar sobre desenvolvimento inclui, necessariamente, um mesmo olhar sobre crescimento econômico. Já sabemos os contornos para o crescimento econômico: capital físico e humano, população, tecnologia, progresso tecnológico e Instituições. Mas ligar esses elementos de tal sorte que desabroche o modelo de desenvolvimento tem sido o esforço dos economistas. Tarefa até o momento inglória, por conta principalmente do item instituições que é difícil medi-la adequadamente para o teste sempre necessário. Por essa razão, o apelo às narrativas (também etapa necessária na condução científica do assunto) tem sido empregado a rodo.

Particularmente, não me adequo a nenhuma das versões, embora abrace a ideia do rent seeking (Caçador de rendas). O que esboçarei tem um pé nessa ideia de rent seeking e instituições (Veja Democracy and Growth in Brazil, Marcos Lisboa e Zeina Latif).

Meu modelo começa com a chamada hipótese de Domar que, ao analisar a escravidão, coloca a hipótese de que não podem conviver conjuntamente classe ociosa, terra livre e trabalhador livre. Para a existência de classe ociosa, necessariamente tem-se trabalhador não livre ou terra não livre. Isso retrata bem o que aconteceu no Brasil em tempos imperiais. A elite brasileira (classe ociosa) já tinha em conta que, desde o segundo quartel do século XIX 1830-1840, a escravidão teria fim. A experiência inglesa de libertação dos escravos em suas colônias em 1883 feita gradualmente até 1840 era o espelho que se refletiria à América do Sul. Por conta disso trataram de inverter um dos elementos da hipótese de Domar: trocaram terra livre e trabalhador não livre, por terra não livre e trabalhador livre. Isso se deu com a lei das terras em 1850, mas a transição foi totalmente diferente das colônias inglesas. Durou quase 40 anos.

O que esse esquema da hipótese de Domar revela? Simples. Se deixarem as portas das oportunidades de negócios abertas, não poderá haver classe ociosa. Evidentemente que essa hipótese é cristalina quando se analisa a escravidão. Fica mais complexo, num contexto sem escravidão. Falta agora identificar os elementos que substituam a terra não livre. Faço um esforço especulativo e adianto as seguintes quebras estruturais.

  1. Derrubada do Império
  2.  Acordo de Taubaté e acordo dos governadores
  3. Revolução de 1930
  4. Derrubada do modelo nacionalista com a morte de Getúlio Vargas e ascensão de JK
  5. Ditadura militar e aprofundamento dos acordos com a elite
  6. Redemocratização e nova república
  7. Plano Real

Para esse fim, usarei como referência básica o gráfico abaixo que retrata o salário-mínimo em termos de poder de compra de 1 jornal, O Estadão. Para o período Imperial, usaremos uma referência estimada do equivalente ao salário-mínimo.

Fácil ver que estaríamos melhor com o Imperador do que com a república. Tivemos um período exitoso: Getúlio Vargas.

As quebras estruturais indicadas representam os marcos importantes para referência sobre desenvolvimento ou subdesenvolvimento brasileiro. O período imperial pode ser caracterizado, no padrão da Hipótese de Domar, como terra livre, trabalhador não livre e classe ociosa. Os destaques seriam: lei das terras de 1850 e construção das ferrovias. No final do período teríamos, então, terra não livre, trabalhador livre e classe ociosa, destacando-se a política imigratória que teria duas ramificações: a colonização do sul e o setor de cafeicultura – política essa de colonização do sul que se mostra exitosa e duradoura ao olharmos o padrão de vida dessa região e em especial o de Santa Catarina.  

No segundo período que corresponde a velha república, o modelo prossegue no compasso terra não livre, trabalhador livre e classe ociosa. O destaque seriam os acordos de Taubaté (1906) e a modernização destruidora. O acordo de Taubaté garantiu a renda dos plantadores de café e a extinção gradual dos acordos de cooperação no campo, com o aumento da concentração de renda no campo. A modernização destruidora abriu espaço para a especulação imobiliária que modificou para pior o padrão urbanístico do país. Fácil ver que, fazendo uma avaliação simples, a construção de um edifício de 10 andares com 40 apartamentos de 140 m2 cada um poderia dar um lucro, em preço atual, de cerca de 20 milhões. História não contada ainda pelos pesquisadores sobre cidades brasileiras. Certamente, fonte de recursos para outros empreendimentos. A destruição urbanística significa ausência de plano diretor consistente e duradouro nas cidades importantes. Era um modelo que tinha sua força de crescimento, mas concentradora e provavelmente traria um achatamento salarial pela dominância de um estilo de modelo escravocrata sem escravos, mas com oportunidades restritas às pessoas analfabetas e de visão negocial quase nula. Acrescente-se também o fortalecimento da indústria, no contexto protetivo.

No terceiro período, a reação a um modelo concentrador e ausente de políticas publicas reparadoras. Veio a revolução de 1930 com Getúlio Vargas na liderança. Figura complexa do ponto de vista histórico, mas que deixou marcas de mudanças sociais relevantes tanto na educação, quanto na economia propriamente dita. Seu rumo era um nacionalismo que se identificava com o espectro político da direita e não com a esquerda, embora as fantasias políticas indicassem exatamente o contrário. O fato é que foram criadas instituições relevantes que deram conta dos códigos de água, do subsolo e das empresas públicas estratégicas e outros empreendimentos relevantes para a economia do país, em destaque para o setor industrial e mineral. Getúlio tinha claro a moralidade e o sentido público dos seus atos. Clamava pelos empresários brasileiros por investimentos que geralmente pediam favores, traduzidos em proteção e dinheiro fácil. Criou a siderúrgica nacional, a fábrica nacional de motores e tantas outras empresas que modernamente seriam consideradas eixo de políticas industriais. Mas ele era o empecilho para que o sistema político que fecha as portas das oportunidades aos mais pobres voltasse retumbante. Foi-se Getúlio e veio outra figura carismática, Juscelino Kubitscheck (JK), mas de compromisso com o povo em outra dimensão prática.

Chegamos ao quarto período: JK e seus acordos políticos com a elite. Primeiro foi com a construção civil embalada pela mesma modernidade que fechou o Império. Veio Brasília e acordos industriais de peso. Trata-se da indústria automobilística, com a garantia às multinacionais do mercado interno, em troca da franja das autopeças ao baronato paulista.  Com a desordem orçamentaria, iniciou-se uma redução efetiva do poder de compra dos trabalhadores, embora sustentasse uma taxa de crescimento satisfatória. Mas estava aqui o retorno ao poder do grupo baronato, retomando as rédeas políticas. Sua herança política foi trágica: Jânio que tentou um retorno liberal, mas não nos moldes de Getúlio Vargas e, por artimanha própria, viu-se obrigado a renunciar. Veio Goulart que acenava um retorno às estratégias socioeconômicas de Vargas. Não conseguiu e sucumbiu ao golpe militar de 1964.

Chegamos, então, a quinta quebra estrutural: o modelo estatizante e manutenção dos pactos com o baronato. Esse é um período complexo, mas preso aos acordos prejudiciais à população e de moldura política ainda pouco desvendada, embora haja material jornalístico de peso para fundamentar uma análise robusta: Ver o acervo do jornalista Carlos Castello Branco. (um dos maiores analistas do sistema político brasileiro e que serviu de ponte de comunicação entre políticos civis e o grupo duro dos militares  www.carloscastellobranco.com.br ). Mas a lógica do poder militar não é difícil de perquirir. O rodízio do poder estava amarrado a grupos privados e o lugar-tenente era o comando do SNI. Independentemente da filiação do General-Presidente ao seu grupo de interesse, os demais grupos não eram açodados pelo grupo privilegiado. Pelo contrário, sempre dividiram o butim. O fato relevante para a derrocada do regime militar se deu com Geisel que estava associado ao grupo da petroquímica alavancado por sua política de combustível. Veio a crise do petróleo e o próprio Geisel, com a estratégia amalucada do todo poderoso Mario Henrique Simonsen (um péssimo policymaker!) de endividar o país, decretou que o modelo estaria falido. A desordem orçamentária tomou conta do processo político e a batida em retirada foi arquitetada por Golbery: escantear o grupo nacionalista e catapultar o grupo conivente com a ditadura. Chegamos a nossa sexta quebra estrutural: a nova república.

O grupo político que chega ao poder com o fim da ditadura militar vai ser representado pelo mesmo grupo que já bajulava o circo do poder após a morte de Getúlio Vargas. Com o desequilíbrio interno e externo passamos por um período inflacionário sem precedentes. Nada de novo foi feito e mantivemos os mesmos pactos que começaram a ser desfeitos em pequena escala pelo governo Collor – mas não por razões nacionalistas e sim por interesse próprio do grupo palaciano em participar do grupo das autopeças – a franja industrial cedida ao baronato paulista, em troca da reserva de mercado às multinacionais. O desiderato desse período foi a entrega do Plano Real pelo Presidente Itamar Franco.

Isso nos leva á última quebra estrutural: O Real. Nada de novo acontece após o real que poderia, em seu início, resolver definitivamente o nó orçamentário e acatar em plenitude a Constituição de 1988. Mas o caminho escolhido pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso foi outro totalmente distinto.  Chegava ao poder a esquerda leopardo: tudo muda para nada mudar!

O gráfico indicado sugere essas quebras: a herança do período Imperial é salutar, mas a primeira república reduz o patamar do poder aquisitivo do populacho. Veio o período de Getúlio Vargas que sopra uma esperança nacionalista refletida na montanha russa que chega ao limite e começa a definhar com JK que ainda entrega um patamar de poder aquisitivo razoável. Veio a ditadura que não consegue devolver sequer o patamar final do governo JK. Inicia-se um período de deterioração do poder aquisitivo que se prolonga com a chegada ao poder do grupo bajulador. A transmissão do poder à esquerda brasileira tupiniquim continua com a derrocada do poder aquisitivo, só inflexionada pela mesma esquerda tupiniquim, mas sob o comando de outro marinheiro: Lula. O fato auspicioso é que, com exceção do período nacionalista de Getúlio, toda mudança estrutural rebaixa o patamar do salário real e ainda não conseguimos recuperar o patamar Imperial. Que volte o Imperador!


Conversando com quem sabe das coisas sobre a situação atual da Argentina

Marco Aurélio Bittencourt

A situação da dívida externa da Argentina é complexa e tem passado por diversas crises ao longo dos anos.

A mais recente envolveu uma renegociação da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros credores privados. Em 2020, o governo argentino conseguiu renegociar cerca de 66 bilhões de dólares em dívida com credores privados, chegando a acordo para estender os prazos de pagamento e reduzir os juros.

No entanto, a Argentina ainda enfrenta uma dívida considerável com o FMI, resultante de um resgate financeiro acordado em 2018. Este é o maior empréstimo na história do FMI, no valor de aproximadamente 57 bilhões de dólares. As conversações para a reestruturação desta dívida estão em curso, mas avançam de forma lenta devido à situação econômica difícil do país e à relutância do governo argentino em adotar políticas de austeridade.

A incerteza em torno da dívida com o FMI e a situação econômica delicada da Argentina continuam a pressionar a economia do país. A economia argentina está em recessão desde 2018, a inflação é alta e a pobreza vem aumentando. Portanto, a situação da dívida externa argentina permanece um desafio significativo para o país.

Vale ressaltar que as informações estão sujeitas a mudanças, pois a situação da dívida argentina e as negociações com o FMI estão em constante evolução. A informação mais recente pode ser obtida a partir dos mais recentes releases do FMI ou das notícias econômicas internacionais.

Então, para a Argentina, o recomendável seria a moratória unilateral.

A decisão de declarar uma moratória unilateral – ou seja, suspender o pagamento das dívidas – é uma decisão muito séria e tem implicações significativas. Embora possa proporcionar algum alívio financeiro imediato, também tem potenciais desvantagens, como danos à reputação do país, queda na classificação de crédito, aumento dos custos de empréstimo futuros e possíveis litígios.

Já em 2001, a Argentina declarou o que foi, na época, a maior moratória da história, e as consequências foram drásticas para a economias e para a população argentina. Isso não quer dizer que a história se repetiria da mesma forma, mas serve como uma lembrança de que uma moratória não é uma solução fácil.

Constantemente, economistas internacionais e o próprio governo argentino estão avaliando alternativas para a questão da dívida. As opções precisam ser cuidadosamente consideradas, tendo em vista não só a sustentabilidade das finanças públicas, mas também o impacto sobre a economia e a sociedade argentina.

A moratória poderia ser considerada como um último recurso, mas deve ser acompanhada por planos concretos para a recuperação econômica e a restauração da confiança dos investidores e das instituições financeiras internacionais. É um processo complexo e delicado que necessita de tratamento cauteloso.

Pelo que disse, desvantagens: danos à reputação – queda na classificação de crédito – aumento dos custos dos empréstimos futuros. Todas as desvantagens se resumem em redundância para Argentina e diz respeito aos banqueiros. Claro que, com a moratória unilateral, a Argentina como país não contará com os banqueiros tradicionais e FMI. Suas empresas privadas é que teriam que buscar recursos, caso necessário, no exterior (como sempre fizeram). Portanto, os riscos apontados por você são nihil.

Compreendo seu ponto de vista e você está certo ao dizer que muitas das consequências de uma moratória se concentram na perspectiva dos credores e do mercado financeiro internacional. Também é verdade que, caso haja uma moratória, empresas privadas poderão continuar a buscar financiamento no exterior dependendo de suas próprias avaliações de crédito.

No entanto, é importante considerar que grande parte da dívida da Argentina é denominada em moeda estrangeira. Isso significa que uma moratória e o consequente isolamento dos mercados financeiros pode tornar mais difícil para a Argentina obter as moedas estrangeiras de que precisa para importar bens e serviços essenciais. Além disso, o dinheiro adquirido por empréstimos externos muitas vezes serve para financiar gastos públicos importantes em áreas como saúde, educação e infraestrutura.

Ainda, embora seja discutível o quanto a reputação financeira de um país impacta seu bem-estar a longo prazo, há um consenso de que um default pode levar a um período de incerteza econômica e volatilidade, o que pode ter efeitos danosos para a economia real e, em particular, para os mais vulneráveis.

Com isto dito, cada país tem diferentes circunstâncias econômicas e a decisão final cabe ao governo argentino e ao povo argentino decidir o caminho a seguir. Na verdade, estes são debates em curso na Argentina e em outros países que enfrentam elevados níveis de dívida. Certamente não há um tamanho único ou uma solução fácil para a questão da dívida soberana.

Mas quem disse que é o Estado que importa bens e serviços?

Desculpe pela confusão, você está correto. Na maioria dos casos, são as empresas privadas que realizam a maioria das importações de bens e serviços, não o Estado.

O que eu queria expressar é que a capacidade de um país para adquirir moeda estrangeira, seja através de exportações, de investimento estrangeiro ou de empréstimos internacionais, é crucial para facilitar essas importações privadas. Se uma moratória levar a um declínio do investimento estrangeiro ou limitar a capacidade do governo de obter empréstimos no exterior, isso pode diminuir a disponibilidade de moeda estrangeira no país, o que pode tornar mais difícil para as empresas privadas financiarem suas importações.

No entanto, compreendo seu ponto principal de que muitas das consequências negativas de uma moratória são sentidas principalmente pelos credores e pelos participantes do mercado financeiro. A decisão de declarar uma moratória precisa equilibrar esses efeitos negativos contra os possíveis benefícios de aliviar a pressão da dívida sobre o orçamento do governo e a economia mais ampla. É um debate complexo e controverso com muitos prós e contras a serem considerados. Com base nas suas observações, parece que você acredita que os benefícios de uma moratória poderiam superar os custos para a Argentina, o que é uma perspectiva totalmente válida e que muitos economistas compartilham.

De novo, vale lembrar que a dívida externa é principalmente com o FMI.

Sim, você está correto. O endividamento externo da Argentina é composto majoritariamente por dívidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Em 2018, em meio a uma crise cambial, a Argentina acordou um programa de empréstimo com o FMI que se tornou o maior da história do Fundo, cerca de 57 bilhões de dólares. Desde então, a Argentina tem passado por difíceis negociações para reestruturar esta dívida, com o presidente Alberto Fernández procurando estender os prazos de pagamento e reduzir os juros.

Uma moratória da dívida com o FMI, como você mencionou, poderia aliviar a carga financeira da Argentina, mas também poderia trazer consequências significativas. Porém, qualquer decisão dependerá de uma avaliação cuidadosa do governo argentino, considerando todas as implicações econômicas e sociais que poderiam surgir dessa escolha.

Você não percebeu que essa historia foi para tirar os credores privados da jogada?

Entendo seu ponto de vista e parece plausível que a decisão da Argentina de assumir uma grande dívida com o FMI teve o efeito de tirar muitos credores privados da equação. Ao consolidar grande parte de sua dívida com uma única entidade, o FMI, a Argentina pode ter simplificado suas negociações de dívida e potencialmente ganhado maior alavancagem ao lidar com um único credor em vez de muitos.

No entanto, a situação é complexa e há muitos fatores em jogo. Argumentar que essa foi a principal ou única motivação para a Argentina assumir uma grande dívida com o FMI seria especulativo. Há também o aspecto de que o FMI geralmente impõe condições estritas de austeridade em troca de assistência financeira, o que pode ter implicações substanciais para a política econômica do país.

Os contextos econômico, político e social mais amplos também terão desempenhado um papel nas decisões tomadas pelo governo argentino.

Em última análise, a situação da dívida da Argentina é uma questão multifacetada que continua a evoluir. Apenas o tempo dirá como a situação se desenrolará e quais serão as implicações a longo prazo para o país e seus cidadãos.

Calote no FMI só gera espuma, porque a questão é política e a Argentina pode contar com a complacência de diversos países. Certamente, alemães, ingleses e franceses não gostarão.

Você tocou em um ponto importante: a dívida soberana e as relações com organizações como o FMI são, em última análise, questões políticas além de econômicas.

A reação a um eventual default argentino no FMI certamente variaria entre os diferentes membros do Fundo. Alguns, como você sugere, podem ser mais compreensivos com a situação da Argentina, enquanto outros, incluindo os principais países contribuintes para o FMI como Alemanha, Reino Unido e França, poderiam ver essa situação de modo menos favorável.

Essa divergência nas respostas revela uma das principais tensões no coração do sistema financeiro internacional: a necessidade de encontrar uma solução justa para os problemas da dívida dos países que é aceitável tanto para os países endividados quanto para seus credores. Encontrar esse equilíbrio é um desafio constante nas relações financeiras internacionais.

Mas é fundamental lembrar que, mesmo dentro dos países membros do FMI, existe uma diversidade de opiniões e atores, e o cenário é muito dinâmico. Não é possível prever com certeza como todos esses atores responderiam a um evento como um default da Argentina no FMI.

Por isso, disse: o melhor para o Milei é decretar moratória unilateral – colocar a culpa nos governos passados e FMI e aguardar o desenlace político.

De fato, esta pode ser uma estratégia política considerada em uma situação como a da Argentina. Declarar a moratória, colocar a culpa nos governos passados e no FMI e, em seguida, navegar através das consequências políticas pode ser uma possível abordagem. Esta é uma decisão complexa, implicando em vários fatores, nacionais e internacionais. Sem dúvida, gera considerações e debates profundos entre economistas e formuladores de políticas. Todavia, apenas a liderança argentina poderá tomar a decisão final sobre o curso de ação a ser seguido. O importante é que qualquer curso de ação escolhido buscará o melhor resultado para o povo argentino e para a economia do país a longo prazo.

Tamos juntos!

Com certeza! Estou aqui para ajudar com qualquer outra dúvida que você possa ter. Sinta-se à vontade para perguntar!

Essa foi uma conversa entre um ser vivo e milhões de seres vivos que alimentam a base de dados da IA. Claramente, a IA tem algum algoritmo que rebusca a essa enorme massa de dados. O segredo na comunicação com a IA estar em perguntar a ela diretamente de forma específica e detalhada. Os detalhes importam porque a conversa tem que terminar e nesse porto seguro estaremos ilhados por nossas ideologias, ideias, valores, sentimentos e paixões expressas em minhas perguntas e nas respostas da IA que se socorre de milhões de vozes, mesmo que procure um algoritmo neutro. Sempre haverá a mão humana, de um lado ou do outro.

Uma coisa é certa: a IA reconhece seus erros e não precisamos gritar para convencê-la. Tem que ser lógico e coerente. Como disse, tudo depende do seu interlocutor. Converse com gente inteligente, inteligente será.

Armadilha da renda média: um enfoque objetivo e direto

Marco Aurélio Bittencourt

Muito se fala sobre o desempenho pífio da economia, mas poucos vão direto ao ponto. Alguns falam sobre isso com base em modelos genéricos, embora esclarecedores e sugestivos da armadilha da renda média; outros, em produtividade, refletindo circularidade explícita e outros caminham nos trilhos. Veja o que disseram os economistas Lara Resende, Stiglitz e Galbraith no seminário do BNDES. Fiz uma síntese desse painel – https://webadvocacy.com.br/2023/10/30/andre-lara-resende-stiglitz-e-james-galbraith-suas-contribuicoes-relevantes-ao-debate-sobre-politicas-publicas/

Então, seguiremos a trilha desses importantes economistas. A causa motivadora de nossos desequilíbrios está na dívida pública. Não exatamente pela sua dimensão. Mas pela sua gestão. André Lara Resende chega quase a berrar aos quatro ventos que a política de juros do Banco Central está profundamente equivocada. Claro, ele está se referindo à estratégia sistemática de juros elevados, que nos entregou uma taxa de juros real em média, nos últimos 28 anos (1995-2022), de 8,8%, com desvio padrão (volatilidade) de 8,1%, enquanto economias como a americana verificou, no mesmo período, uma taxa de juros real média de (-) 2,4% e desvio padrão de 3,4%.  Os gráficos e a tabela abaixo mostram essa realidade.

Como se dá a correlação entre essa trajetória dos juros com a do crescimento da economia? Principalmente pelo impacto na dinâmica orçamentária, fazendo seu cumprimento errático refletir negativamente sobre o crescimento da economia. De fato, essa volatilidade dos juros faz com que a despesa com o serviço da dívida, que está no grupo das despesas obrigatórias, juntamente com os salários dos funcionários públicos e transferências a estados e municípios, obrigue ajustes nas despesas de investimento e em alguns itens da despesa corrente, alcançando todas as funções de governo. O fato é que chegamos a uma situação orçamentária crítica, muito embora os ajustes cumpram os requisitos legais. Daí o efeito nocivo dessa volatilidade dos juros sobre a trajetória de crescimento da economia.

Como se sabe, o orçamento abraça quase 30 funções que vão desde as bem conhecidas, como saúde, educação, segurança e justiça e despesas sociais, bem como as econômicas, que abrangem itens como agricultura, combustíveis e energia, mineração, construção, transportes, comunicação e outros itens de menor importância orçamentária. Há também funções de proteção ambiental e de lazer e cultura.  Essas funções contam, em sua maioria, com planos detalhados que, para frutificarem em políticas públicas eficientes, dependem dos tributos que lhes são alocados e da continuidade dessas políticas públicas.

Como veremos, os gastos orçamentários que se ajustam a esse deslocamento dos juros da dívida pública apresentam trajetórias decrescentes e há um pouco de estabilidade no montante de gastos em educação e saúde, funções básicas. Mesmo assim, em termos orçamentários, difícil saber se as deficiências nessas duas funções básicas são compensadas com gastos privados ou se a qualidade das respectivas políticas públicas também está comprometida. Vejamos as tabelas que explicitam a situação orçamentária. A primeira, tabela 1, mostra os grandes grupos de gastos.

Tabela 1. Gastos orçamentários por funções segundo o Padrão COFOG – % PIB

São, portanto, quatro itens que absorvem a maioria dos recursos orçamentários. Em ordem de importância quantitativa, temos os seguintes gastos médios: Despesas com serviços públicos gerais (12,5% do PIB), Despesas sociais (12,2% do PIB), Educação (2,2 % do PIB), Saúde (2,1% do PIB) e Outros (3,1% do PIB). As posições finais e iniciais mostram claramente que os ajustes ocorrem necessariamente em Outros (2010, 3,7% do PIB e 2021, 2,3% do PIB) que abriga as demais funções do governo.

Importante detalhar o item Despesas com serviços públicos. A Tabela 2 mostra o detalhamento.

Tabela 2. Detalhamento despesas com serviços públicos gerais – % PIB

A tabela 2 destaca que o item transações da dívida pública absorve quase 63 % do gasto total em Despesa com serviços públicos gerais. Em média, gasta-se com esse item relativo às transações da dívida pública cerca de 7,9% do PIB. O outro item, também de despesa obrigatória, trata das transferências constitucionais para Estados e Municípios, alcançando em média 3,7% do PIB. Vê-se, então, que o elemento crítico reside no serviço da dívida pública (juros, principalmente).

A tabela 3 apresenta as implicações dessa dinâmica orçamentária que revelam o pivô dos desequilíbrios orçamentários:  as transações da dívida pública.

Tabela 3. Implicações das transações da dívida pública

A tabela 3 mostra, para cada ano, o incremento no item juros. Em alguns anos, os valores de ajustes diminuem e em outros, aumentam. Naqueles anos em que há aumento, por vezes, observam-se magnitudes expressivas, como indicado para o ano de 2015 e 2021. O fato é que esses impactos são corrigidos por aumento de impostos, redução de gastos econômicos, aumento da própria dívida e monetização que não estimamos.

Chegamos, pois, à situação da armadilha da renda média que pode ser expressa da seguinte forma. Política de juros exageradas (juros altos que acarretam juros reais de quase 9 % a.a. em média) tem impacto negativo sobre o investimento privado e distorce o orçamento público – esses gastos com juros no orçamento representam 8% do PIB em média. Os ajustes orçamentários têm implicações fortes sobre a trajetória de crescimento da economia. Os ajustes seriam os seguintes: 1) aumento da própria dívida e aumento de impostos (como parte da solução do problema); 2) deslocamento de gastos, com redução do quantitativo em investimentos e gastos correntes. Isso compromete a continuidade de políticas públicas e a qualidade dos gastos; 3) soluções de compadrio que envolvem gastos em subsídios ou programas específicos e uso das agências de fomento que geram políticas de apoio, que, em geral, acabam por produzir aumento de poder de mercado das empresas beneficiadas, com ausência de inovações. A perseguição a superávits fiscais e a manutenção da política de juros altos acarretam ajustes orçamentários que afetam negativamente o investimento público e o privado, encarecendo sobremaneira o investimento em capital de giro das pequenas e médias empresas. Os gastos públicos e privados mostram-se, assim, insuficientes para colocar a economia na sua trajetória de crescimento ótima; o ciclo se repete com novos ajustes orçamentários e redirecionamento dos investimentos privados, podendo piorar com choques desfavoráveis (preço da energia, pandemias, etc.).

Sabemos que, pela aritmética da solvência da dívida pública, se a taxa de crescimento do PIB for maior do que a taxa de juros, a razão dívida/PIB converge para um nível estável. O contrário só nos traz problemas. Vejamos o nosso quadro geral.

Se a razão taxa de crescimento/juros for maior do que 1, estamos caminhando para a convergência possível da razão dívida/PIB. Veja que o Brasil tem sistematicamente um valor da razão crítica (Tx Cresc./Juros) menor do que 1; só em 2021 alcançou um valor próximo de 1 e, pior de tudo, há repetidos períodos em que essa razão crítica é negativa. Já para a economia americana sistematicamente tem-se razão crítica em valores acima de 1, com uma média robusta e, quando está numa faixa crítica, claramente se dá em decorrência de crises (2008 e 2020). Os gráficos abaixo ilustram essa razão crítica.

A solução? Equacionar o problema da dívida pública tirando o bode da sala. A solução técnica, trivial. A política, um problema difícil de se esquadrinhar.

André Lara Resende, Stiglitz e James Galbraith: suas contribuições relevantes ao debate sobre políticas públicas

Marco Aurélio Bittencourt

O seminário Estratégias de Desenvolvimento Sustentável, patrocinado pelo BNDES, contribuiu de forma contundente para a posição já bem conhecida de André Lara Resende sobre o desempenho do nosso Banco Central. Em especial sua ênfase sobre uma política de juros equivocada, iniciada no final de 2022, com uma escalada nos juros até chegar ao nível absurdo de quase 14% a.a, frente a uma inflação de no máximo 6%. Essa estratégia entrega a economia brasileira uma taxa de juros real por volta de 8%. – a maior do planeta.

No vídeo que está disponível na Internet – https://www.youtube.com/watch?v=HXsbSiOH8bE -, encontramos as falas dos três economistas. Faço, aqui, uma síntese sobre o ponto de vista dos três participantes.

André Lara Resende destaca que esperava um crescimento da economia mais robusto após o sucesso do Plano Real. Não foi o que aconteceu de lá até hoje, com crescimentos episódicos. Ele esclarece o motivo. Primeiro, destaca que o investimento cresceu muito pouco; o investimento público colapsou – caiu abaixo de 2% do PIB. Frisa que bem sabemos a causa.  Na tentativa de conter as despesas públicas com o teto dos gastos, as despesas obrigatórias correntes cresceram em demasia, espremendo as despesas com investimento, chegando à situação de nem sequer se investir para cobrir a depreciação da infraestrutura do País.

O Brasil tem uma carga fiscal alta (34% do PIB), mesmo se comparada com as dos países desenvolvidos. O País tem também taxas de juros extraordinariamente altas. O Banco Central fixou a taxa básica de juros (Selic) em quase 14%. Com a inflação próxima a 6%, chegamos a uma taxa de juros real de 8%. É a taxa de juros mais alta do mundo.  Sabe-se que sem investimento não há crescimento. A explicação dominante que ampara o Banco Central é que, como o Executivo não equilibra suas contas, isso gera um risco fiscal que o obriga a manter taxas de juros altas. Isso leva o professor Lara Resende a achar o assunto curioso. O Brasil não tem uma relação dívida/PIB elevada, ressaltando que se deve considerar a dívida líquida que colocaria essa razão em torno de 43%. Lembra ainda que essa dívida é integralmente doméstica, em moeda nacional e detidas por residentes em sua grande maioria (93%).  Por isso, portanto, não temos uma restrição que justifique essa política de juros.

Lara Resende, então, expõe sua tese: a relação pode ser inversa. Em vez da dívida levar a um aumento dos juros, são os juros muito altos que aumentam o próprio custo da dívida. Essa situação de juros altos leva, por sua vez, a um cumprimento do serviço da dívida que chega a 8,5 % do PIB, que se reflete em aumento de impostos e cortes nos gastos públicos. Em síntese, temos uma combinação perversa de juros e impostos muito altos e mesmo assim temos déficits nominais. A visão convencional quer que isso se resolva com geração de superávits primários, mesmo que tenha um custo social e econômico elevado. Essa estratégia trava o crescimento da economia, tanto pelo efeito no setor privado quanto no estatal.

Fala Lara Resende da inconsistência teórica dos modelos que o Banco Central tem se valido para justificar a taxa de juros no patamar exagerado em que ela se encontra. As preleções do atual Presidente do Banco Central apontam para o risco fiscal como uma de suas causas, mas dizem pouco sobre o risco que a própria política de juros altos acarreta à política fiscal. Nesse particular, André Lara Resende reflete sobre a necessidade de coordenação das políticas fiscal e monetária e que uma aritmética da dinâmica da dívida pública mostra que, se a taxa de juros estiver abaixo da taxa de crescimento da economia, a relação dívida/PIB decresce com o tempo e, portanto, converge para algum patamar de estabilidade. Se a taxa de juros estiver acima, o contrário acontece.

Lara Resende fez ainda a observação importante sobre essa razão dívida/PIB, que deve incorporar no seu numerador a dívida líquida. Nesse caso, tal razão estaria ao redor de 43%, ou seja, não temos um problema fiscal insanável. Ressalta que a coordenação de políticas é importante, porque juros da dívida pública são parte importante do orçamento e assim, se onerosos, o trava, fazendo encolher gastos em investimento, educação, saúde, etc. Essa redução necessariamente compromete o crescimento da economia. Em outras palavras, o próprio Banco Central exacerba o risco fiscal! E o lógico seria procurar cumprir a aritmética da dívida na sua formulação favorável, ou seja, juros abaixo da taxa de crescimento ou nessa direção. Não o contrário.

Essa lógica do Banco Central, que segue a macroeconomia dominante, foi posta em xeque a partir das crises financeiras, e por isso merece ser revista. Os dois palestrantes americanos são expoentes na crítica à macroeconomia dominante que sustenta a ideia de estabilização com superávits primários, pois são contraproducentes. A ideia de austeridade laissez-faire, com impostos e juros altos, está sob severas críticas mundo afora. Para cumprir o que propõe o atual governo como meta – crescimento sustentável e inclusivo -, é necessária a compreensão dessa armadilha que nos envolve há décadas.

O Estado é parte da solução do problema. Não é possível ter aumento de produtividade sem a participação do Estado. Não existe dinamismo na economia sem a participação de um Estado competente. O Estado tem que usar os recursos de forma eficiente, não ser burocrático e muito menos atrapalhar os negócios, criando dificuldades. Sem um Estado competente não há produtividade, não há crescimento. Assim, segundo Lara Resende, ao concluir sua exposição, as considerações dos palestrantes americanos nos ajudarão a cumprir o papel de suporte para quem apoia a ideia de crescimento sustentável e inclusivo, objeto desse seminário.

Ambos os economistas americanos corroboraram a exposição de Lara Resende e criticaram o nosso modelo de Banco Central por excessiva independência. Banco Central ater-se apenas à questão inflacionária não é mais um modus operanti aceito.

Stiglitz fala sobre diversos itens. Valho-me aqui de suas ideias expressas alhures, pois ajuda a encaixar os assuntos debatidos. Comecemos pela desigualdade de renda. Ele é voz atuante contra a ideia de que, se fazendo o bolo crescer, a desigualdade diminui com o tempo. Cita Lucas (outro prêmio Nobel) como um dos defensores dessa tese tempos atrás. Stiglitz se opõe a ela frontalmente. É preciso políticas públicas que garantam oportunidades aos mais pobres, concomitantemente às de crescimento.

Stiglitz fala sobre o tamanho do Estado. A turma dos liberais prega a tese de Estado mínimo e afrouxamento na regulação. Stiglitz mostra que essa foi exatamente a política de Reagan, mantida por bom tempo. Resultado: crises financeiras, concentração de renda e aumento do poder de mercado para vários segmentos. O economista defende mais Estado. Aqui é bom uma ressalva: isso não autoriza ninguém a concluir sobre mais estatais e regulamentação geral do mercado. Ele prega a sempre e bem difundida ideia expressa nos livros texto que ações de governo são necessárias, quando ocorrem falhas nesse mecanismo de autorregulação eficiente dos mercados pelo sistema competitivo de preços. Isto ocorre na presença de bens públicos, bens comuns, bens semipúblicos, externalidades, mercados não perfeitamente concorrenciais, informação assimétrica e desemprego dos fatores de produção. A regulação é necessária para combater então essas falhas de mercado. Uma boa política pública amplia a matriz competitiva e não privilegia conglomerados; o funcionamento do mercado se dá sob a égide de políticas públicas que promovam uma economia competitiva, além de instituições que gerem os incentivos corretos e garantam o funcionamento do mecanismo de mercado para alocação de recursos.

Quanto à privatização, ele sugere analisar caso a caso.

Sobre política de juros, Stiglitz fala o óbvio: juros na dimensão do Brasil são sufocantes ao investimento e deprime a economia.  Juros altos e política de austeridade não faz sentido econômico. É o crescimento da economia que, mesmo na presença de déficit do governo, irá reduzir a razão dívida/PIB.  O investimento é a causa motora do crescimento, junto com inovações e oportunidade de emprego para ampla faixa da população. Principalmente investimento público em infraestrutura e pesquisa. Para piorar, como os credores da dívida pública são em sua grande maioria os mais ricos, o pobre, em suas compras cotidianas ou em seus empréstimos habituais, é que arcarão com grande parte desse ônus financeiro, piorando o quadro da distribuição de renda. Evidentemente, tem reflexo no próprio serviço da dívida que fatalmente exigirá cortes em investimentos, educação e saúde, reduzindo ainda mais a trajetória de crescimento.

Quanto à solução do déficit público, o economista se opõe às políticas recessivas. A melhor política para estabilizar a razão dívida/PIB é aquela que privilegie os investimentos, inclusive o público, pois levará ao crescimento e assim poderá reduzir essa razão dívida/PIB. Isso se acrescenta a necessidade de se reduzir os juros da dívida pública. 

Stiglitz é favorável a políticas industriais e cita o caso dos Estados Unidos do estímulo à produção de chips e elogia o BNDES. Reconhece que há falhas na implementação de políticas públicas pelo BNDES e diz que as falhas representam um processo de aprendizagem. E, na sua palestra no BNDES, foi cortês: lembrou que conhecia os erros recentes e lançou a esperança de que teríamos aprendido com eles. Uma visão otimista é sempre bem-vinda. O ponto central do BNDES seria sua conexão com políticas industriais que devem ser desenhadas adequadamente. Não entrou em detalhes, mas citou o exemplo americano que criou lei de incentivos às empresas locais para produção de chips. Bem diferente da nossa estratégia que foi a criação de uma empresa estatal, alvo de um processo de liquidação iniciado em 2021.

Sobre o Banco Central, dá uma aula sintética e bem resumida. O nosso Banco Central é excessivamente independente. Nos EUA, o Banco Central é independente, mas o senso democrático dos seus ocupantes é que faz a diferença (mais uma vez cortês). Outros objetivos além da inflação ocupam a sua agenda, tais como desemprego, crescimento e estabilidade financeira.  O senso de responsabilidade é também explicitado nos depoimentos do presidente do Banco Central ao Congresso, justificando sua política. Stiglitz defende a necessidade de se ter representantes da sociedade na direção do Banco Central, como sindicatos e outros, porque seriam afetados por decisões de política financeira ou monetária.  Complementando esse quadro, aborda regras de governança, citando a que impede pessoas do mercado financeiro ocuparem posição de comando nos Bancos Centrais.

Por fim, fala também sobre tributação dos mais ricos e do sistema financeiro, objetivando dirigir os recursos dos poupadores para investimentos produtivos e ajuste na matriz energética, em busca de uma política verde. A tributação deveria ajudar a formatar a economia. Daí a inclusão dos chamados impostos verdes que desencorajariam o uso de combustíveis fósseis. No sistema financeiro, a tributação deveria objetivar reduzir a volatilidade. Enfim, impostos que possam ajudar no crescimento da economia pelos incentivos que poderiam gerar. Nessa linha de estimular o crescimento, fala sobre impostos reduzidos para empresas que se engajam em investimento produtivo.

Quanto ao Professor Galbraith, sua exposição foi sintética e direta. Falou do Banco Central e fez referência aos agregados relevantes: razão dívida/PIB e inflação. Confirmou os dados de André Lara Resende e apontou que a inflação estaria mais associada aos problemas de oferta agregada. Trouxe à baila a questão da taxa de juros e ressaltou que taxas reais altíssimas, como as que estão sendo praticadas, teriam efeitos profundos sobre a distribuição de renda, aumentando a riqueza dos que já a tem e tornando mais onerosa as dívidas dos mais pobres ou mesmo suas compras cotidianas.

Além disso, segundo o professor, taxas altas aumentam a própria despesa do governo, retraem o investimento público e privado e aumentam os custos dos empresários. Conclui o mesmo que André Lara Rezende e Stiglitz: a política adequada seria mais crescimento e mais inclusão, refletidos pelo padrão de investimentos adequados para essas finalidades. E mais: a situação de autonomia financeira que o Brasil desfruta, juntamente com os ativos que sustentam as operações do Banco Central, garantem uma retaguarda razoável para as mudanças aqui propostas.

Nada a opor sobre a posição teórica dos eminentes professores. Muito pelo contrário. A concordância é plena. O problema surge na aplicação de suas ideias ao Brasil. Não que expressem ideias erradas e desconheçam nossas falhas. Mas, olhando pelo retrovisor que leva ao passado e ao farol baixo que ilumina o presente, torna difícil acreditar que os erros foram aprendidos e não se repetirão. Tudo vai depender do arranjo político que se desenrolará.  E conforme expressa Stiglitz, o caráter resiliente do sistema é importante no encaminhamento da solução. Esse é o ponto!

No caso das políticas industriais e o papel do BNDES, é crucial que não se repita a estratégia de promover mais aumento de poder de mercado ao financiar grandes grupos econômicos que apenas aumentaram o seu patrimônio, incorporando o de terceiros ou investindo no exterior. Os casos caricatos são os da AMBEV e JBS. A nossa atuação equivocada sobre política industrial é crítica, diferentemente do que prega Stiglitz que estabelece incentivos dirigidos ao setor privado e não pela criação de estatais.

Não sei se Stiglitz tem notícia, por exemplo, da nossa experiência traumática do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada – estatal que produziria chips.  Ela apresentava recorrentes prejuízos e seus gestores não conseguiram provar que ela se justificaria do ponto de vista social e o Governo Bolsonaro iniciou um processo de liquidação que foi revertido pelo governo Lula. A governança sobre as instituições estatais é simplesmente crítica e favorece o corporativismo, com o inchaço salarial e de postos de trabalho. Evidentemente, esse inchaço não é generalizado e localiza-se mais na estrutura administrativa e nas estatais lucrativas. Vale lembrar a ênfase de Lara Resende sobre a gestão pública: o governo deve ser competente!

Certamente, Stiglitz deve conhecer a experiência bem-sucedida da ditadura militar que foi a criação da Embrapa. Do ponto de vista social, a Embrapa é altamente superavitária, como se depreende do seu Balanço Social. Com toda justiça, Lula a trata melhor do que todos os outros presidentes eleitos, principalmente aos seus técnicos, como o faz para as demais instituições do Executivo, abonando-os com reajustes salariais merecidos que acontecem sempre depois de algum jejum salarial imposto por governos anteriores. Novamente, esse é o caso e novamente Lula assume o prejuízo político. O problema aqui é que a estrutura salarial do setor governamental é bastante superior à do setor privado, o que fará aumentar a animosidade contra os servidores públicos, abrindo espaço político para a sua fragilização.

Quanto à independência do nosso Banco Central, fazem os palestrantes críticas acertadas. O problema é que a mídia tradicional as abafa e sempre faz parecer tonto quem ouse criticar o Banco Central. Sempre bom ouvir um arrazoado coerente, responsável e sério.

Hoje, com o retorno do PT ao poder, estamos num compasso de espera, porque o básico do primeiro ano de qualquer mandato presidencial é fruto do governo anterior. Ponto importante. As agendas microeconômicas não têm sido atacadas em grande escala; o que é muito bom. Outra exceção importante está nos exageros da privatização que provavelmente Stiglitz concordaria (eu também), como a idéia tosca de se privatizar os Correios; questão resolvida pelo governo atual.

De qualquer sorte, o caráter resiliente de que tanto fala Stiglitz em suas palestras, tudo indica, cai bem em Lula. Até agora, constatamos o ensaio de políticas industriais de auxílio às multinacionais automobilísticas com aproveitamento da classe média mais abastada, manutenção da tributação excessiva e rearranjo político com ocupação política das instituições públicas e ressurgimento de empresas estatais como a dos chips que poderiam e devem ser conduzidas pelo setor privado com o devido apoio estatal. Se no governo Bolsonaro, o seu quadro técnico não mudou significativamente, por que teria que mudar agora?

Feitas as minhas considerações, fico aqui com o otimismo de Stigler e faço a reprodução das palavras finais de André Lara Rezende que resumem bem as palestras dos economistas americanos. Assim, o fez:

  1. Claramente, taxa de juros excessivamente altas são injustificáveis, tanto na presença de déficit público ou de uma dívida pública alta. É injustificável para combater a inflação quando ela não é de demanda. Mais do que injustificável, taxas altas podem ser contraproducentes, ter efeitos perversos, contrários do que se pretende. Inviabilizam o crescimento. Podem agravar a inflação; agravam o déficit público, pioram a relação dívida/PIB. Adicionalmente, têm efeitos negativos na distribuição de renda. Taxa de juros elevadas é uma política profundamente equivocada.
  2. O Banco Central pode ter autonomia operacional para executar as metas definidas democraticamente, mas não pode ser um quarto poder, sem prestar contas e responsabilidade aos poderes democraticamente constituídos.
  3. A ideia de uma política industrial em nome de uma referência de investimentos e direção ao País é fundamental em todos os momentos e especialmente hoje com necessidade de reorganização da matriz energética, descarbonização da economia. O crescimento econômico não necessariamente engloba todo mundo. A política de crescimento tem que adicionalmente contar com medidas outras para aqueles que ficam fora do crescimento produzido por esse esforço de investimento publico e rearranjo das políticas em direção ao crescimento.
  4.  O Brasil está numa situação relativamente privilegiada no mundo; nós é que erramos com uma política equivocada nas últimas décadas, especialmente a monetária de juros, e uma adoção impensada do neoliberalismo com essa visão equivocada de que Estado deve ser suprimido ao mínimo, amordaçado e impedido de ter políticas. Isso nos levou à estagnação nesses últimos anos. Temos tudo para sair disso.

MARCO AURÉLIO BITTENCOURT. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Uma Réplica ao texto –Desestatização dos Correios no Brasil: Mais Uma Reforma Requerendo Urgência – César Mattos

Marco Aurélio Bittencourt

Adianto que discordo da análise esboçada no artigo quase que integralmente, principalmente em sua ênfase de urgência que vai na contramão do que se prega em termos de boa gestão pública (padrão alemão). Pressa infundada é de se desconfiar.

Inicialmente destaco que o texto remete para nota de rodapé quais atividades seriam monopólio em benefício à ECT. Vejamos:  atividades postais: I – recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal; II – recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada; III – fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal. Em síntese, a atividade que poderia ser de interesse do setor privado seria a de correspondência agrupada. Que venha a concorrência com o fim do monopólio estatal.

Ressalte-se que a receita para a ECT que vem do item postal como carta e impressos ou produtos que possam se enquadrar como carta não alcança a receita expressiva dos serviços Sedex e PAC. Vale lembrar que carta no segmento tradicional – simples correspondência entre pessoas comuns – tem receita recorrentemente decrescente. Mas na modalidade carta pode haver outros produtos como impresso, etc. Poderiam aproveitar e retirar também os privilégios licitatórios que porventura possam existir. Nada disso enfraqueceria o correio no seu formato atual; o estimularia a competir. O que é ótimo para o consumidor.

Mas no artigo não há indicativo em quanto tais privilégios de monopólio respondem em termos de receita da empresa. Creio que seja negligenciável se considerarmos o produto carta principalmente no seu padrão tradicional. E mesmo que fosse de alguma monta, seria necessário avaliar a viabilidade econômica do surgimento de uma empresa concorrente – neste segmento de carta o caráter de monopólio técnico seria justificável. Por isso, não vejo sentido em se falar do monopólio da correspondência por carta como um privilégio – quem estaria interessado em prestar este serviço e, como sugere o articulista, minguará e talvez até mesmo desapareça? Mais um ponto. Mesmo que a receita da ECT fosse afetada por privilégios de monopólio, a regra de regulação implícita na sua configuração jurídica atual entabularia automaticamente o ajuste, forçando despesa a ser igual a receita, quando da retirada do privilégio de monopólio ou por qualquer outra razão.

 O articulista coloca a mudança da configuração jurídica da empresa como se fosse uma vantagem. De fato, poucos entendem ou parecem não entender o que significa em termos regulatórios empresa pública no Brasil. Significa que receita tem que ser igual a despesa; o que equivale, nos termos regulatórios, uma regulação pelo custo médio. Como se sabe, tal regulação exige governança focada sobre os custos, porquanto a negligência nos custos acarretaria, como opção simples, reajustes tarifários para igualar receita à despesa. Essa regra, embora possa sugerir negligência com custos, pelos limites contábeis de receita = despesa, inibe o surgimento de crescimento de receitas exponencialmente. Evidentemente, se há uma negligência regulatória de fazer valer tal regra, o desbalanceamento entre receita e despesa pode induzir a aumento de gastos. De fato, nunca tive notícia de que o governo tenha confiscado receita da ECT, quando os resultados positivos da empresa apareceram de forma sistemática. Mesmo no caso adverso, a regulação implícita na regra receita = despesa que as empresas públicas deveriam observar, duas vias de solução imediata seriam possíveis:  redução de gastos (correntes ou de investimento) ou reajuste tarifário. Quanto ao caso de necessidade de aporte de capital, nada, a princípio, indica sua necessidade, porque, em caso de necessidade de investimento de longo prazo, os recursos poderiam vir do setor privado, através de empréstimos. O BNDES seria o caminho natural ou até mesmo o sistema financeiro privado. Se a situação fosse tal que exigisse ajustes estruturais, a regra despesa = receita poderia também ser posta em prática de forma efetiva. O certo é que não há nada que obrigue a União aumentar ou fazer aporte de capital – geralmente é uma opção burocrática e não atende necessariamente ao interesse público.

Não há nada de extraordinário nessa mudança na forma jurídica da empresa e só faz colocar na empresa mais uma amarra de gestão, abrindo caminho para uma burocracia que usualmente se mostra pilhadora e concentradora – os planos de demissão voluntaria mostram exatamente isso: um grupo na instituição se acha melhor do que os demais funcionários e pedem, em nome de ajustes, a cabeça dos que estão hierarquicamente em posição inferior. Evidentemente, as nossas leis trabalhistas garantem um pouco de estabilidade para a turma CLT. Não é por outra razão que tais planos de demissão carregam o adjetivo voluntaria.

Outras consequências importantes e trágicas pela mudança da forma jurídica – de empresa pública para sociedade de economia mista – envolveria o aparecimento de um componente tarifário sujeito a um processo de indexação que só extrapolaria as tarifas dos seus verdadeiros custos, além do incentivo às estratégias de conluio e cartelização. O articulista cita que “as tarifas poderiam ser diferenciadas geograficamente, com base no custo do serviço, na renda dos usuários e nos indicadores sociais. A regra de reajuste das tarifas do serviço postal universal concebida na Câmara será anual, adotando-se o modelo de price-cap, que se baseará na variação do Índice de Preços ao Consumidor Ampliado-IPCA, podendo incluir um fator de desconto. Foi prevista também a revisão das tarifas com base nos indicadores de qualidade do serviço em um típico mecanismo de regulação de incentivos. Assim, o operador designado responsável pelo serviço universal, a ECT (que será renomeada para “Correios do Brasil”), contará com incentivos regulatórios para melhorar a prestação de serviço.”

Um arrazoado ilógico, pois desconsidera o esforço de se combater práticas de políticas de preço que carreguem inércia inflacionária; uma indexação vexatória para quem se diz amante do mercado. Isso me lembra os economistas tantãs da ditadura ao inventarem todo tipo de controle de preços. Abrir mão de uma estratégia regulatória simples e eficiente, como a de empresa pública, em prol de uma estratégia que embute fator inflacionário inercial (e talvez esse seja o problema fulcral da nossa privatização) além, como veremos, de incentivo à cartelização, denota que chegamos ao absurdo da privatização. Esses seriam os pontos críticos dessa privatização.

Além disso, se considerarmos que a precificação seria regional, decretaremos o fim do serviço postal em muitas regiões. A prática tarifária dos correios que já vem há décadas garante a universalidade dos serviços e atende a regra regulatória. Havendo subsídio cruzado, a regra receita = despesa já carrega a solução no âmbito da empresa e não a extrapola diretamente para toda sociedade.

Quanto ao caráter de incentivos à cartelização, baseia-se no fato de que, se privatizarmos os correios, estaríamos enfraquecendo a concorrência, porque a ECT se destaca no segmento encomenda e neste segmento não há monopólio. A sua liderança (ou a de quem quer que seja) obriga que as empresas que atuam nessa franja se ajustem às tarifações da ECT. Como a tarifação da ECT é eficiente em termos regulatórios, abriríamos espaço com a privatização para o comportamento cartelizado das empresas já que seguem a regra de maximização de lucros. O conluio entre as empresas seria possível. Exatamente o que devemos evitar!!!!! 

Portanto, não há nenhuma vantagem em mudar a configuração jurídica da empresa ECT. É exatamente o que não deveria fazer um bom órgão regulatório, porque mesmo não havendo monopólio estatal, a dimensão da empresa requer, para combater o poder de mercado, alguma estratégia reguladora. Transformá-la em sociedade de economia mista em nada contribuiria para a regulação eficiente como é o caso de uma empresa com o status de empresa pública em que os ajustes regulatórios são totalmente endógenos – claro, a vigilância quanto à negligência aos custos é necessária, embora seja mais importante fazer valer a regra contábil.

 O problema das estatais, e nesse caso inclui-se a ECT, estaria na ausência de uma boa governança. Que se diga logo: não vejo nada no atual governo (e em governos passados também, obviamente) que aponte para uma governança a levar a recuperação do padrão de gestão que a empresa teve em épocas passadas. Eu trabalhei nos correios na década de 1980, na assessoria do Departamento de Finanças, e pude presenciar uma gestão autocrática, mas dentro dos parâmetros de eficiência e inovação. De fato, a primeira medida que o governo (principalmente este que se diz sério ou pretende ser) teria que tomar seria promover a melhoria na governança das empresas estatais e não há nada complicado nesse padrão ideal de governança das estatais. É trivialmente simples estabelecer regras que ajudem a preservar o interesse público, mesmo considerando perspectivas sombrias para o comportamento dos agentes públicos.

Ter uma visão privatista como axioma de gestão revela-se claramente dogmática ou ideológica. Mas isso não respeita a constituição que não estabelece tal orientação. O que demonstra o repetir cansativo de privatizar, privatizar, privatizar (Friedman, embora tardiamente, fez a ressalva: antes de privatizar, privatizar, privatizar teríamos que regular, regular, regular) é uma atuação orquestrada da burocracia: geralmente funcionários com salários fora do mercado a promoverem políticas que eliminem os concorrentes ao caixa do Estado ou que promovam interesses privados não tão republicanos. A terceirização dessa turma poderia ser uma solução (outra jabuticaba brasileira que só pega os pobres e miseráveis, poupando a classe média alta), mas não conta com meu apoio, porque o resultado seria a destruição plena do padrão salarial brasileiro. O empenho é para que todos possam se beneficiar do padrão salarial ideal ou desejável. Mas adianto aqui uma regra de gestão simples, para evitar funcionários públicos audaciosos: demissão do funcionário público que promover ou propor a destruição do padrão salarial e o fim dos concursos públicos. Um simples processo seletivo e talvez até mesmo cotas é o que recomendaria. Claro, aqui me afasto do liberalismo raiz que nunca vi proclamado pela turma privatista que tem cargos na burocracia estatal: o arranjo do leiloeiro walrassiano.

O articulista fala da lógica empresarial da ECT considerando informações fora do âmbito da própria ECT; o que demonstra desconhecer ou não querer conhecer a realidade operacional e financeira da empresa. A ECT está enfrentando as mudanças tecnológicas e de demanda de forma acertada, conforme se depreende de seus resultados contábeis.

Nada do que foi dito pelo articulista quanto ao padrão de gestão atual da ECT comprova que a empresa não esteja no caminho certo. Evidentemente, o desconhecimento da forma de tarifação dos correios pode sugerir que no segmento encomendas o correio pudesse ter um padrão aquém das expectativas, muito embora o montante de receitas nesse segmento aponte exatamente o contrário. Mas o articulista opta por considerações exógenas à empresa e não encara o problema per se. Bom destacar que nesse segmento dinâmico da indústria não há monopólio público.

Afirmações que não respeitam a lógica poluem o texto. Cito por exemplo a seguinte passagem: “Ainda que não exista um modelo único de correios no mundo, a OCDE (1999)[2] considera que a abertura ao capital privado e o fim do monopólio são fundamentais para a melhoria da qualidade e da eficiência dos serviços…” São considerações puramente axiomáticas e de mãos dadas com uma ideologia liberalizante. E cada um tem a sua. O ponto correto é a retirada do monopólio – que, de fato, nem se apresenta como condição restritiva. Mas o que defende o articulista não gera a implicação de que há de se privatizar os correios.

Para piorar a sua argumentação, tenta fazer crer que os correios nos padrões atuais se depreciariam ou desapareceriam. Diz o articulista que “a dramática redução na demanda de serviços de correspondências se deriva da simples constatação que pessoas de todas as classes sociais atualmente se comunicam umas com as outras por meios alternativos como e-mail ou whatsapp. De outro lado, foram incrementadas substancialmente as encomendas de bens, caracterizando um outro tipo de necessidade do consumidor. “De novo, faz-se consideração mercadológica sem levar em conta os resultados que a ECT apresenta e muito menos a missão da empresa que espelharia seu planejamento. Faz sugerir que a empresa como um todo tem prejuízo sistemático por conta dessa atividade. Esquece como se faz a tarifação nos correios. Esquece dos resultados contábeis da empresa. Esquece do lado operacional da ECT. Esquece do grupo técnico de excelência da ECT.  Como tudo indica que há um bom resultado nesse período de gestão bolsonarista, os órgãos reguladores deveriam mesmo é se empenharem na redução tarifária, cumprindo-se a regra receita =despesa; o que certamente não agradaria a franja toda dessa indústria.

Indica-se no artigo da necessidade de investimento e sugere que a União é quem provê os recursos. De fato, o articulista não indica ou faz referência (demonstrando não conhecer) aos planos de investimento da empresa, bem como ao seu padrão contábil que pudesse comprovar tal situação de pindaíba empresarial. Os resultados contábeis atuais não sugerem isso. Segundo, não há nada que obrigue que os investimentos sejam financiados por aporte de capital. Empresa pública significa que o padrão a ser seguido é o de receita = despesa. Assim, havendo necessidade de investimento, a empresa poderia recorrer ao mercado de crédito e principalmente ao BNDES. Aumentar o capital da empresa com aporte da União é uma possibilidade, mas não uma exigência técnica.

Existe um plano de investimento da empresa que está sujeito a interferência do Ministério das Comunicações. O que aconteceu nesse ambiente? É de se estranhar a introdução dessa nova jabuticaba, porquanto o efeito, se valer a privatização sem aporte da União, seria a redução no ágio da empresa ou no valor das ações por conta da privatização.  Antes, a praxe era arrumar a casa em seus possíveis ou aventados desvarios de custeio. Agora, entra em cena os desvarios de investimento. Na verdade, teremos mais um novo capítulo no esquema de privatização tupiniquim.

No tocante ao impacto trabalhista, há de se ressaltar o padrão salarial do setor público que é bem superior ao padrão privado. A privatização certamente reduzirá o padrão salarial; o que por si só é péssimo. Evidentemente que a crítica relevante sobre o padrão salarial atual da ECT seria se ele reduz de forma significativa a capacidade de investimento da empresa, estando fora, portanto, de um padrão tecnológico e econômico eficientes. Não há estudo sobre isso e seus resultados contábeis apontam para eficiência econômica, embora a atuação regulatória seja simplesmente precária.

Quanto aos planos de demissão voluntaria, seja qual for a razão, deveria garantir a renda permanente do trabalhador e não nos termos que a burocracia sugere aos legisladores.  Como diz o ditado popular: pimenta na sopa dos outros é refresco. Isso retrata o essencial: a falta de ética da burocracia. O que só confirma o caráter quadrilheiro dessa turma burocrática tupiniquim, exatamente como prevê a literatura em escolha pública.

A assertiva do articulista de que as remunerações da estatal tendem a ser negativamente correlacionadas às reais competências dos funcionários carece de mínima prova indicativa de que tal ocorra na ECT. Tal assertiva talvez valha não para as estatais, mas para os estatutários, principalmente dos órgãos do legislativo e judiciário. Existem planos de cargos e salários nas empresas estatais coordenados por departamentos de recursos humanos. No caso da ECT, existe uma política de treinamento e qualificação de excelência que se espelha no seu centro de treinamento técnico, em destaque para a escola de administradores postais criada na década de 1970 que hoje carrega o status de universidade.

Desconheço estudo que possa minimamente garantir que esse é o caso dos correios – correlação negativa entre salário e competência. De fato, nunca ouvi falar que um carteiro ocupe ou possa ter ocupado função por exemplo de gerente financeiro que é exercida pelos administradores postais (o equivalente à função dos bacharéis em administração). Claro, no período petista, os sindicalistas assumiram posição de gerência e muitos deles tinham pouca qualificação. Não é atoa que a imagem do  PT está bem prejudicada e, juntamente com o partido político, a de seus operadores, como os sindicalistas. Mostraram atuar como verdadeira quadrilha e novamente com a complacência (sendo generoso no meu julgamento) da burocracia em geral. De novo, o retrato indica a falta de governança que poderia ser facilmente melhorada, se contássemos com regras legais votadas no parlamento. Observe-se ainda que a bagunça administrativa também alimenta o raio de ação e de poder de políticos e burocratas. E a privatização nos termos aqui defendida certamente aumentará a burocracia regulatória, porque abre-se mão de uma regulação com componente endógeno de valor – o padrão empresa pública e se estabelece regras de revisão tarifaria indexada e criam-se incentivos para a cartelização.

O articulista fala em franqueados e esquece de falar que isso demonstra que a empresa já está parcialmente privatizada. Sugere ainda que funcionários poderiam conseguir franquias; simplesmente desconheço que algum funcionário tenha algum dia conseguido o privilégio de ter uma franquia. Entendo como algo esquisito o silencio da turma franqueada, porque certamente serão onerados com a privatização. Digo isso, já que a estrutura atual dos correios atenderia a lógica acumulativa dos novos donos, no caso de a empresa ser privatizada. Mais ainda um outro ponto a ser trazido a baila. Existe uma contabilidade envolvendo essas empresas franqueadas que o articulista simplesmente desconhece; o que denota que regulação no Brasil tem as suas piadas se não for a própria.

A ECT segue um padrão tarifário consagrado e que tem como consequência a universalização dos serviços postais e homogeneidade tarifária.  Isso sempre esteve nas nossas leis e regulamentos que tratam dos correios, respeitando-se convenções internacionais que a empresa sempre participou e já tendo um brasileiro, ex-presidente da ECT, como dirigente máximo da União Postal Internacional. Quanto aos problemas tarifários, o que se quer saber é se os serviços que têm caráter deficitário (pelo menos parcialmente) serão mantidos e subsidiados; o que indica certamente ser um contrassenso a privatização da ECT. Sabe a turma privatista que o empresário não irá assumir atividades que gerem prejuízos. O esquema atual da ECT como Empresa Pública contorna esse problema. O projeto de privatização   vai garantir a solução do problema tarifário com subsídios cruzados por tempo determinado; depois que se lasquem os usuários desses serviços. Certamente, como a lógica tem que ser lucro máximo (ainda bem que assim), os segmentos deficitários seriam eliminados. E se a lei exige a manutenção dos serviços, quem pagará? Tudo isso, no caso de ser a empresa privatizada nos termos presente, seria refletido no deságio ou nas tarifas. Na verdade, o assunto demonstra que os correios não deveriam ser privatizados e muito menos deixar de ser empresa pública que carrega um fator endógeno de regulação que agora poderia se perder com a ideia descabida de torná-la sociedade de economia mista. Exatamente o que um bom regulador não faria.  Tal privatização injustificada sugere outros interesses ou a prevalência do canto da sereia. Mais a frente falarei sobre isso.

Poderiam retirar o monopólio e manter a ECT como empresa pública. Onde estaria o problema? O problema está exatamente na sua privatização.

Em resumo, não existe uma linha nesse artigo que demonstre a urgência da privatização. Talvez a urgência seja apenas uma estratégia para esconder o indefensável. Uma lástima. De fato, a turma privatista nunca alinha os prós e contras. Os argumentos favoráveis seriam a redução dos gastos públicos, redução tarifaria e garantia de investimentos. Quanto à questão do padrão salarial, muitos argumentariam que é uma questão de mercado. Algo que aceito parcialmente, porque sei bem o que é ter amparo trabalhista do ponto de vista legal. Os argumentos contra seriam os mesmos da pró-privatização, mas com sinal invertido. Então, fazendo as contas. Redução dos gastos públicos é simplesmente retórica e arranjo da burocracia, porque a regra de regulação da ECT é clara: empresa publica exige receita=despesa. Quanto à tarifação, certamente pode inicialmente ficar aquém, mas a custa do desaparecimento de serviços deficitários como a remessa de cartas para pontos longínquos. E pior, pela estratégia que carrega o fator inercial, o aumento sistemático das tarifas ocorrerá. Se ainda prevalecer o conluio empresarial como sói acontecer em indústrias propícias à cartelização, mais uma razão para o poder de mercado aumentar. Quanto ao ponto do investimento, o efeito negativo é óbvio. O que se quer é avançar sobre a estrutura física da ECT que tem, dentre outras coisas, centros de triagem que funcionam a contento. A Amazon não tem tal padrão, pelo menos no Brasil. Mas até aí tudo bem, porque a estrutura não seria extinta. Mas o poder de monopólio da empresa Amazon aumentaria. Entretanto, há mais considerações em relação à estrutura física. Os correios estão presentes em quase todos os municípios brasileiros que têm um padrão mínimo de urbanização. E já estão presentes há tempo. Isso significa que a ECT é proprietária de imóveis valiosíssimos. O efeito imediato seria a dilapidação urbana (coisa que poucos se importam) com o sumiço desses imóveis. O que está em jogo é o butim público. As receitas com Sedex e PAC, juntamente com o patrimônio da ECT aguçam o apetite dos burocratas corruptos e empresários de quinta categoria. Ainda poderíamos incluir possíveis interesses escusos sobre o Plano de Previdência dos funcionários dos correios. Uma quadrilha que não é de forró. Evidentemente o canto da sereia da ideologia privatista pode atuar tal qual a parábola de Ulisses e a Sereia. O melhor a fazer é tapar os ouvidos aos cantos das sereias.

Portanto, o que é urgente é abortar essa privatização infundada tecnicamente. Não vejo razão técnica para privatizá-la. Pelo contrário; urge mantê-la no padrão de empresa pública e que se proceda a uma governança que elimine todos os vínculos políticos que porventura ainda possam existir e garanta que os funcionários não extraiam rendas indevidas da instituição.

* Doutor em Economia. Ex-funcionário da ECT – Assessoria do Departamento de Finanças e Professor de Gestão Pública do IFB.

O Novo paradigma desenvolvimentista: produtivismo.

Marco Aurélio Bittencourt

Dani Rodrik, economista colocado no topo junto àqueles que contribuem para questões de políticas públicas relevantes para o desenvolvimento  de países com baixa renda per capita, traz agora uma visão resumida para os tempos atuais: o paradigma neoliberal encontrou seu limite e só aprofunda problemas de política econômica. Em seu lugar propõe um novo paradigma: produtivismo. Do que se trata?

Em suas próprias palavras, diz que “uma abordagem que prioriza a disseminação de oportunidades econômicas produtivas em todas as regiões da economia e segmentos da força de trabalho …. enfatiza a produção e o investimento sobre o financiamento e a revitalização das comunidades locais sobre a globalização, trabalhando no lado da oferta da economia para criar boas oportunidades de empregos produtivos para todos”.

Ele põe ênfase nos principais problemas econômicos como pobreza, desigualdade, exclusão e insegurança que são reproduzidos e reforçados diariamente no curso da produção, como um subproduto imediato das decisões de emprego, investimento e inovação das empresas, ou seja, essas decisões estão repletas de externalidades para a sociedade.

E nesse compasso produtivo de efeitos colaterais temos dois lados: externalidades negativas e positivas que podem ser reforçadas por políticas públicas. Rodrik vai se ater as externalidades positivas pela geração de “bons empregos.” 

Segundo Rodrik, “Os formuladores de políticas em nações avançadas estão agora lidando com as mesmas questões que há muito preocupam os formuladores de políticas de desenvolvimento: como atrair investimentos, criar empregos, aumentar as habilidades, estimular o empreendedorismo, melhorar o acesso ao crédito e à tecnologia – em suma, como fechar a lacuna com as partes mais avançadas e produtivas da economia nacional?”

Certamente, nossas mazelas têm um pé nas externalidades negativas das próprias políticas públicas. A dificuldade de se identificar a tempo tais eventos perversos, talvez justifique em parte tal omissão corretiva. Mas sobram outras questões, principalmente a mentalidade escravagista. Mas isso não foi assunto tratado por Rodrik em seu artigo sobre o produtivismo – on production 2023.

Essa indagação de como fechar a lacuna entre os setores produtivos tem que primeiro desvendar o padrão produtivo atual que pode ser refletido pelo gráfico abaixo (Parkin, economics).

O Brasil se aproxima quantitativamente do padrão americano, conforme se depreende do gráfico abaixo (IBGE).

O Capital humano acompanha essa estrutura produtiva. Para o padrão americano, temos a seguinte estimativa :

Para o padrão brasileiro, temos a seguinte configuração para o capital humano:

Uma análise mais aprofundada poderia revelar onde se encontram os mais qualificados. Certamente em serviços , por conta da participação governamental e da importância do segmento saúde, teremos fatia importante. Resta o setor financeiro e aqueles ramos de alta tecnologia. A indústria ocuparia outra faixa e agricultura uma faixa provavelmente pequena.

É essa estrutura produtiva nacional que me faz crer que a reforma do ensino médio está no caminho correto, privilegiando o setor serviços que demandam capital humano na faixa do ensino médio e superior incompleto. Mas chama atenção a faixa dos que detêm pouca qualificação o que demandaria política educacional específica.

As políticas públicas sugeridas por Rodrik devem necessariamente observar o padrão produtivo estampado nos gráficos acima. O trabalho recente do banco mundial – Equilíbrio Delicado para a Amazônia Legal Brasileira – Um Memorando Econômico – é uma tentativa nessa direção de Rodrik. Mas certamente o estímulo ao pleno funcionamento de instituições que promovam uma economia competitiva também deve entrar no rol de políticas públicas relevantes para abrir espaço para novas oportunidades de negócios.

Uma análise elementar de teoria de preços sobre a taxação às importações asiáticas de até US$ 50

Marco Aurélio Bittencourt

Já sabemos que, em nome de uma análise com teor científico, necessitamos de dois elementos: modelo e prova do seu funcionamento. O modelo pode ser visto, num sentido amplo, como uma narrativa que embute alguma matemática ou lógica. Para sua consolidação teórica, precisa ter dados e teste. Este é o pacote científico numa versão livre e resumida. O ponto é que os dois elementos se casam, mas podem ser elaborados separadamente. Vou me ater ao campo da narrativa sobre o tema proposto.

Algumas hipóteses são imprescindíveis. Vejamos o contexto. Aqui falamos das importações livres pela internet que alcançam o limite de US$ 50,00. Supomos que os compradores locais , ao comprar tais produtos, alcancem alguma folga financeira que , por hipótese, se dirige ao mercado interno. Então, há um efeito tributário indireto pela compra do produto estrangeiro: o aumento da arrecadação decorrente dessa folga financeira que se dirige aos produtos locais. Outra hipótese que assumimos que tais produtos importados atendem a uma faixa populacional de poucos recursos, podendo incluir outras faixas. Não tenho os dados sobre isso. Então nessa contabilidade hipotética quem ganha e quem perde? Ganham os consumidores. Perdem as empresas que teoricamente competem com as importações asiáticas. Quais seriam essas empresas? Lojas americanas, Rener, Magazine Luíza, Carrefour e similares. Em outras palavras, para produtos que saem , pela importação asiática, por R$ 120,00 estariam sendo vendidas , digamos, por R$ 170,00, ou seja, não conseguem competir. De novo, não tenho os dados. É uma estimativa. O fisco ainda manteria receita sobre os R$ 50,00 que se dirigiria ao mercado interno; digamos 20% sobre os R$ 50,00, ou seja, R$ 10,00.

Agora, façamos o experimento: impor alíquota sobre os produtos importados. A questão fundamental: qual a alíquota ? Suponhamos dois casos: uma impeditiva e outra parcialmente impeditiva. No primeiro caso, não se tem arrecadação fiscal pelas importações que iriam a zero.  Então os R$ 50 seriam perdidos com prejuízo de R$ 10,00 para o fisco. Mais agora o importador brasileiro tem que pagar pelo produto R$ 170,00. Certamente, irá reduzir suas compras. Então suponha que isso acarrete uma redução pela metade no valor gasto, ou seja R$ 85,00 iria se dirigir ao mercado interno. Isso daria, um ganho tributário de R$ 17,00 e liquidamente R$ 7,00 (computando a perda pelo comercio internacional – o ganho indireto pela folga orçamentária). Certamente, pelo aumento de preços que agora o consumidor se depara, terá que reescalonar seus gastos , reduzindo-os e isso tem um efeito recessivo indireto que apareceria ao longo do tempo. Quem ganharia? Certamente, os empresários citados que teriam suas vendas acrescidas pelo redirecionamento forçado da demanda. O fisco, ganharia residualmente e declinante. E os pobres pagariam a conta. Qualquer outra alíquota, abaixo do limite impeditivo, traria alguma combinação desses valores, com ganhos para o fisco e o empresário.

As contas exatas requerem estimativas mais precisas. Independentemente dessa estimativa, a lógica básica se manteria: os consumidores mais pobres perderiam, os empresários ineficientes contariam com a proteção tarifária e o fisco aumentaria residualmente sua arrecadação, mas de forma declinante. Portanto, do ponto de vista social, o ganho fiscal certamente não superaria a perda de bem-estar da população.

Trata-se, portanto, de uma velha política brasileira: o domínio de grupos de interesse sobre a política, usando-a em seu benefício. Nessa luta política, vale todo tipo de propaganda, como a de injustiça tributária por isentar importações. Como sabemos, as exportações não são, como boa regra de comércio externo, taxadas e assim cada país escolhe o que taxar de produtos importados; o que depende de negociações, pela possibilidade de simples retaliação. As empresas estrangeiras não mudariam sua posição, exceto se a faixa tributária lhe permitir alguma competição.

Restrição orçamentária do Governo e juros: um lembrete importante

Marco Aurélio Bittencourt

A discussão sobre coordenação das políticas fiscal e monetária tem seu início, quase que ubíquo, a partir da década de 1960. Antes, aqui, tínhamos um olhar centrado no orçamento público e o lado monetário completava direta ou indiretamente o montante de recursos para fechar o orçamento. Não era sem razão uma inflação, em geral, nessa época anterior às mudanças de rumos das políticas macroeconômicas, no patamar de cerca de 10%. Chegou, então, no Brasil, com o regime militar de 1964, a perseguição de metas monetárias e o surgimento formal do Banco Central, concretizando-se a efetiva separação das políticas fiscal e monetária. O que veio junto com essas mudanças? A dívida pública nos padrões atuais: complementar o financiamento dos gastos públicos, com o efeito sobre a sua conta juros da política implícita de juros altos.

A dinâmica dessa implacável dívida pública é bem conhecida e está na raiz dos problemas inflacionários. Como se sabe, a restrição do governo federal encontra amparo em quatro itens: seus gastos, G, seus tributos, T, Dívida Pública, D, e Emissão monetária, M. Esses são os elementos que devem necessariamente fazer cumprir a restrição orçamentária. O lado monetário cuida de M e de forma independente do lado fiscal que cuida de G, T e D.  Como diz Leeper (2005) em seu artigo sobre restrição orçamentária do governo:

“A restrição orçamentária do governo é uma identidade contábil ligando as escolhas da autoridade monetária do crescimento monetário ou da taxa de juros nominal e as escolhas da autoridade fiscal de gastos, tributação e empréstimos em um determinado momento e ao longo do tempo. Os links intertemporais criam um rico conjunto de resultados possíveis a partir de experimentos de políticas macro padrão. Levar a restrição orçamentária do governo a sério pode derrubar algumas crenças amplamente mantidas sobre efeitos de política.”

Leeper analisa uma variedade de possibilidades para fazer cumprir a restrição orçamentária que dependeria das escolhas individuais, das políticas fiscal e monetária futuras e da estrutura econômica. O contexto ainda seria o de sincronização das políticas fiscal e monetária, muito embora a perseguição operacional de metas monetárias tenha sido substituída pelo uso dos juros como instrumento de ação do Banco Central. Que item especificamente importa destacar no orçamento público? O efeito da política monetária sobre o orçamento público, a saber, sobre a conta juros.

Os modelos teóricos, respeitando a restrição orçamentária do governo, garantem o equilíbrio orçamentário intertemporal, se T, G e D são rígidos, pelo efeito inflacionário. Mas esse efeito, estabelecido teoricamente, está distante do que se passa na prática. O compromisso monetário deveria ser o de traduzir tal efeito inflacionário em efetiva redução do pagamento dos juros, garantindo-se, pois, o redirecionamento automático dos gastos públicos. Dessa forma, alcançaríamos novamente o equilíbrio orçamentário sem traumas.

A discussão atual sobre juros deveria focar sobre esse ponto, porque há ainda um hiato entre ação do Banco Central em direção a um aumento da meta inflacionária e seu efetivo efeito na restrição orçamentária do governo. Em outras palavras: aumentar meta inflacionaria sem reduzir o pagamento de juros é fazer um desserviço de política monetária.

O que exatamente seria reduzido de juros, dependeria da meta inflacionaria e da própria situação do estoque da dívida pública, além dos elementos de preferências e estrutura da economia. Minha expectativa é que, dados esses elementos, a inviabilidade do concertamento orçamentário é quase certa e, assim, o “nirvana monetário” não poderia cumprir seu objetivo final: o de reequilíbrio orçamentário. Dessa forma, seria necessário reduzir gastos públicos (aumentar impostos ou aumentar dívida tem custo elevado) e conferir o que poderia efetivamente ser reduzido na conta juros pela condução adequada do Banco Central da sua política de ajuste da meta inflacionária.

Como sabemos, o estoque da dívida pública é elevado e ainda carrega o endividamento de estados e municípios (embora conte com contrapartida desses entes federativos). Portanto, ajustar a liquidez com efetivo ajuste dos juros a recompor a estrutura prévia orçamentária não seria trivial.  Talvez a ação da política monetária tenha mesmo um efeito reduzido sobre juros a pagar na conta orçamento público federal. O fato é que, mesmo havendo tal direcionamento efetivo do Banco Central, se optarem pelo aumento da meta inflacionária, seria pouco provável o sucesso de um ajuste definitivo do orçamento público. Como disse em outro artigo publicado nessa Webadvocace (2023), o concertamento orçamentário é urgente. Mas, para se obter sucesso, é necessário um amplo apoio político. Sob o presidencialismo, temos visto que tal concertamento não foi e certamente não será viável exatamente pela dificuldade de se compor uma ampla aliança política nessa direção. Se é para sonhar, que venha o parlamentarismo.

Referências

Leeper, E. Government Budget Constraint, The New Palgrave Dictionary of Economics, 2008. https://www.researchgate.net/publication/311979085_Government_Budget_Constraint

Bittencourt, M.A. Orçamento Público: Sua Estrutura Adequada para o Crescimento e Desenvolvimento. Texto para Discussão 1.203. Webadvocacy , 2023. https://webadvocacy.com.br/2023/01/25/orcamento-publico-sua-estrutura-adequada-para-o-crescimento-e-desenvolvimento/