Lucia Helena Salgado
“No dia em que o Brasil passar de comprador a vendedor de petróleo, então deixaremos de ver essa coisa tristíssima de hoje – milhões de brasileiros descalços, analfabetos, andrajosos – na miséria. O Brasil tem todos os elementos para tornar-se um país riquíssimo – mas riquíssimo de verdade, e não, como hoje, apenas rico de “possibilidades” ou de “garganta”.”
(Lobato, 1937)[*].
Foi assim que o Visconde de Sabugosa resumiu, no terceiro dos serões sobre geologia no sítio de Dona Benta, a convicção de Monteiro Lobato de que a exploração e refino do petróleo (tido, na época, como inexistente no Brasil) por uma empresa pública nacional, de um lado, e o desenvolvimento econômico e social, de outro, estavam intimamente ligados.
Monteiro Lobato não viveu para ver as esperanças que tinha para o Brasil, pelo menos em parte, concretizadas. A empresa pública com que sonhou foi criada cinco anos após sua morte, a Petrobras. Esta tornou-se a maior empresa do país e da América Latina, desenvolveu tecnologia própria, capacidade multiplicadora de demanda por suprimentos nacionais e aceleradora de investimentos, ocupou papel central no planejamento da politica energética e industrial do pais – implantando a petroquímica e a indústria de fertilizantes durante o II PND após o choque do petróleo de 1973 –, segue investindo em P&D para desenvolver fontes de energia renováveis como biomassa; a composição do legado que proporcionou ao pais é mesmo vasta.
Contudo, foi apanhada na armadilha do neoliberalismo tardio, zeitgeist dominante neste país. “O Brasil não é para principiantes”, dizia o maestro Tom Jobim. É espantoso como ideias superadas pela realidade, teses falsificadas pelas evidências, são requentadas e defendidas aqui como achados; museu de grandes novidades este nosso Brasil.
Os anos 1990 foram marcados por mudanças radicais, prenunciando novos tempos: a queda do muro de Berlim, a derrocada da União Soviética e, com ela, o fim da guerra fria, tudo apontava para um “caminho único” – o fim da História? – para os países industriais avançados e para aqueles agora denominados emergentes. O caminho único para o pleno desenvolvimento já tinha uma receita pronta, conhecida como o “Consenso de Washington”: liberação do comércio exterior, privatização, disciplina fiscal, redução do tamanho (sobretudo dos gastos sociais) do Estado. Era a formula pela qual os países em desenvolvimento (agora renomeados emergentes) participando da globalização alcançassem a prosperidade.
A fórmula neoliberal para o desenvolvimento parecia ao mesmo tempo tão simples e consistente que influenciou desenhos de políticas públicas mesmo entre segmentos tradicionalmente ligados ao ideário socialdemocrata – aquele que desenhou a Constituição- Cidadã de 1988. Ali nos anos 1990, muitos de nós estávamos convencidos de que a concessão de serviços públicos e a extinção de monopólios legais, acompanhados do desenho cuidadoso de instrumentos e instituições reguladoras, seriam suficientes para atrair novos investidores, introduzir a concorrência e revelar todas as virtudes de uma economia de mercado apoiada por um Estado regulador competente e bem-intencionado.
Mas não só aqui; na Europa do Sul (Espanha, Portugal, Itália e Grécia), no Reino Unido e na França, muita esperança foi depositada na privatização de empresas estatais operando em serviços públicos, como caminho para introdução da concorrência e oferta de melhores serviços e preços mais baixos. O fundamento seria a superioridade operacional da empresa privada que, mais eficiente, atenderia melhor a sociedade com preços menores.
Essa hipótese foi posta à prova em várias experiências reais, mas tanto o volume de casos de abuso de posição dominante como as evidências de que os mercados permaneciam fortemente concentrados revelaram a ingenuidade do pressuposto; em uma frase: abrir mercados para a concorrência privatizando estatais ou concedendo serviços públicos não tornou os mercados competitivos.
A teoria da organização industrial tem explicado o aparente paradoxo da livre entrada não ser suficiente para eliminar o poder de mercado (e o abuso do poder de mercado). Continuam presentes elementos estruturais como barreiras à entrada, custos afundados, externalidades de redes e custos de troca pelos usuários. Ademais, em indústrias que operam em rede, a diversificação e a verticalização reduzem custos de transação, de logística e coordenação, geram economias de escopo e reduzem riscos de portfolio. O desmembramento, desinvestimento e restrição de operação em um segmento onde a empresa apresente vantagens comparativas não necessariamente leva a uma situação socialmente ótima.
Concluída a longa digressão, voltamos à Petrobras e à armadilha do neoliberalismo tardio em que a empresa se deixou apanhar. A melhor expressão da doutrina neoliberal aplicada à gestão empresarial foi exposta no artigo de Milton Friedman publicado em 13/12/1970 no jornal New York Times: “The Social Responsibility of Business is to increase its profits.” O titulo sumariza toda a doutrina que por cinquenta anos reinou como dogma nas escolas de negócios e nos conselhos de administração. Como observou Marianne Bertrand[1], a primazia do acionista, ignorando-se as vozes de trabalhadores, consumidores e das comunidades, traduzindo uma única função objetivo para a empresa, foi a visão dominante desde os anos 1970 nos Estados Unidos e em países que seguiram seu ideário. Por décadas se acreditou que “o que fosse bom para o acionista era bom para a sociedade.[2]
Essa crença foi posta em xeque sobretudo a partir de 2008, com a debacle provocada pela crise financeira que se estendeu após a quebra da casa bancária Lehman Brothers nos Estados Unidos, evento que levou todo o mercado financeiro internacional à beira do colapso. As contradições, tensões e fracassos do capitalismo globalizado em sua expressão mais desenvolvida, nos Estados Unidos, trouxeram à luz o quadro de concentração de renda e riqueza, com seu fardo de sofrimento para milhões, como jamais a humanidade conhecera ao longo de sua história. Neste ambiente, ganha força uma nova consciência sobre as responsabilidades das empresas não apenas com a “teoria do valor do acionista”, mas também com o meio ambiente, a comunidade, os trabalhadores, os consumidores. É o momento em que se fortalece o movimento que já se organizava desde os anos 1970 e que hoje responde pelo acrônimo ESG (Environmental, Social and Governance).
Paralelamente, chama atenção o movimento denominado Patriots Millionaires[3]: centenas de herdeiros, investidores e empresários que se reúnem desde os anos 2010 em torno de uma pauta: queremos pagar mais impostos, o credo da maximização de lucros à custa do bem-estar da sociedade não mais nos representa.
É espantoso que, enquanto nas economias avançadas do mundo ocidental, uma nova mentalidade se forma[4], no Brasil a maior empresa do país é instada a operar sob o antigo credo friedmaniano: a única responsabilidade social da empresa é maximizar o lucro do acionista! Com o agravante de que se trata de uma monopolista de fato atuando livre, leve e solta, sem qualquer restrição à precificação de monopólio!
Ora, empresas mistas como a Petrobras sofrem, por definição, da síndrome que Abranches (1978) denominou de “dupla lógica da empresa estatal”: convivem com o dilema de, por atuarem no mercado, precisarem ser produtivas e rentáveis, serem vistas como importantes instrumentos de políticas públicas de curto e de longo prazo para os governos[5]. Sob o comando de uma agenda neoliberal centrada no desmonte de políticas públicas (que não combinam com o ideal de um Estado mínimo) e destituída de qualquer resquício de estratégia de desenvolvimento, a Petrobras tem se empenhado na implosão de suas capacidades – com a venda de ativos e saída de segmentos[6] – e numa démarche anacrônica de “maximizar o lucro do acionista”.
Desde 2017, no governo Temer, a Petrobras passou a adotar uma política de preços cuja função objetivo é exclusivamente maximizar lucros. Com aval governamental, passou a se comportar como se o acionista principal já não fosse a União, estando a empresa liberada de perseguir objetivos de longo prazo, colaborando com o planejamento energético do país. O parâmetro adotado passou a ser o preço de paridade internacional (PPI), que na pratica representa equivalência com o preço de importação – supostamente para estimular a concorrência com importadores[7]. De fato, a importação de petróleo ainda é necessária, visto que o óleo mais leve trazido de outras fontes é misturado ao nacional para torna-lo adequado à produção de combustível. O refino do petróleo extraído nas bacias brasileiras, em quantidade superior ao consumo, demandaria investimentos para modernizar e adaptar refinarias que foram projetadas para um tipo de petróleo mais leve que só recentemente, no Pré-Sal, passou a ser produzido no país. não à toa, das oito refinarias que o Cade determinou a venda pela Petrobras em 2019, decisão aplaudida e apoiada pelo governo, apenas duas encontraram até agora interessados[8].
O Brasil não é mesmo para principiantes. Movidos pela ingênua crença de que a concorrência se estabeleceria por meio de algumas poucas oportunidades e incentivos, transformamos um monopólio público[9] de direito em um monopólio privado de fato[10], que decide, às expensas da sociedade, maximizar seus lucros de monopólio, enquanto abre mão de sua capacidade de planejamento energético de longo prazo do país, desenvolvendo fontes de energia renováveis, pesquisa em novos insumos, em biofertilizantes e biodefensivos, em tecnologia de reciclagem de resíduos, tudo o que em um horizonte mais largo se mostra absolutamente indispensável para a retomada de desenvolvimento em bases sustentáveis.
Na contramão dos esforços empregados pelas suas rivais no cenário mundial, que investem pesadamente em fontes de energia renováveis, integração vertical e novos segmentos, adquirindo ou atuando em parceria com start-ups de tecnologia, a orientação imposta à Petrobras pelo comando escolhido pelo governo é esquecer o longo prazo e desfazer-se dos ativos em segmentos estratégicos e em novas fontes de energia, concentrando-se na atividade
mais lucrativa a curto prazo, a extração em águas profundas, para satisfação dos acionistas privados.[11]
Comportando-se como uma monopolista privada – e isolada da concorrência pelas características estruturais da indústria – a Petrobras atua hoje de forma nitidamente abusiva. Abusa de sua posição dominante com o expediente mais simples: estabelecendo paridade do preço dos combustíveis com o preço internacional como se não houvesse alternativas. Há. Conforme outros analistas já apontaram, a parcela dos lucros extraordinários – os windfall gains que são independentes de qualquer ação ou inação da empresa, função da flutuação de preços internacionais – poderia formar um fundo de estabilização do preços dos combustíveis, o que, considerando o grau de dependência que a cadeia logística e de transporte apresenta com relação aos combustíveis fósseis, teria forte impacto estabilizador sobre ampla gama de preços na economia.
Esses mesmos ganhos extraordinários – que nada devem a uma pretensa eficiência em gestão – poderiam ser também transformados em fonte importante de financiamento de pesquisa e desenvolvimento de fontes alternativas de energia. Estaria aí a forma mais rápida da Petrobras adaptar-se a novas regras, adequar-se ao novo padrão de conduta empresarial ESG, o mesmo que os grandes fundos de investimento comprometem-se em priorizar em suas aplicações[12].
Diversas soluções regulatórias já foram concebidas para compatibilizar interesses de uma monopolista natural privada e o interesse público, do conjunto da sociedade[13]. No entanto a agência regulatória do setor, a ANP, reluta em atuar onde quer que a palavra “preço” seja pronunciada. Da mesma forma, o Cade, autoridade de defesa da concorrência, permanece preso à teoria econômica convencional – irmã siamesa da doutrina neoliberal – fundamentada na crença de que os preços “livres”, por carregarem todas as informações necessárias para promover o equilíbrio entre oferta e demanda , tendem a se ajustar “naturalmente” desde que não sujeitos à interferência artificial do Estado.
São momentos como este que atravessamos que exigem daqueles que se dedicam a propor saídas para impasses coletivos e tomam decisões com impacto sobre a sociedade, sobretudo criatividade e coragem. Ainda está nessas mãos a chance de realizar aquele projeto de país sonhado pelo Visconde de Sabugosa:
“o Brasil tem todos os elementos para se tornar uma país riquíssimo – (…) de verdade.”
[1] Professora de Economia da Universidade de Chicago, “Booth School of Business”.
[2] Artigo especial publicado na edição de 13/09/2020, nos 50 anos do ensaio de Friedman https://www.nytimes.com/2020/09/13/business/dealbook/milton-friedman-essay-anniversary.html
[3] “Members of the Patriotic Millionaires say the income gap in the US has become a disaster – and it’s time to ‘take that money back’” https://www.theguardian.com/us-news/2022/apr/08/patriotic-millionaires-one-percenters-pay-higher-taxes
[4] Em 2021, Larry Fink, CEO da Black Rock, maior fundo de investimento do planeta, em sua carta anual aos acionistas, tratando do lema ESG, conclamou-os à ação urgente para que a comunidade de negócios passe a desempenhar o papel que lhes cabe para fazer “um mundo melhor.” https://www.blackrock.com/br/2021-blackrock-client-letter.
[5] “A questão da empresa estatal: economia, política e interesse público.” Sergio Abranches in Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, 19(4): 95-105, out-dez 1979.
[6] O plano posto em marcha a partir de 2019 é concentrar-se no que rende lucro de monopólio de imediato, desfazendo-se de ativos à montante, à jusante (refinarias, distribuidora) bem como em segmentos estratégicos como insumos para fertilizantes e defensivos agrícolas (que o país até o presente não produz e do qual depende como de oxigênio), usinas eólicas e outros.
[7] Não obstante as importações representarem cerca de 8% do total do petróleo comercializado e desempenharem função complementar no refino, duas fortes sinalizações de que instrumentos regulatórios poderiam dar conta melhor dessa equalização, sem sacrifício de toda a cadeia de produção e todos os consumidores de combustível e gás.
[8] Decisão no mínimo controversa, visto que ao determinar a venda de dutos de transporte e refinarias em diferentes mercados relevantes geográficos, deverá dar origem a monopólios regionais.
[9] Até 1997 a Petrobras exercia o monopólio da pesquisa, exploração e refino do petróleo, quadro alterado pela Emenda Constitucional n. 9/1995 regulamentada pela lei n. 9.478/1997.
[10] Em 2000, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a Petrobras passou a colocar papéis na bolsa de valores de Nova York. Desde então a União passou de 80% para 36% de controle do capital total da empresa (50% das ações com direito a voto), sendo que hoje cerca de 64% do capital da empresa pertence a acionsitas privados, sendo 40% desses papeis negociados no exterior. https://www.cut.org.br/noticias/afinal-quem-manda-na-petrobras-fup-pergunta-e-responde-e-o-presidente-do-brasil-333c
[11] https://www.cartacapital.com.br/opiniao/petroliferas-europeias-tem-visao-mais-ambiciosa-sobre-renovaveis-do-que-a-petrobras/
[12] Como a Black Rock, comentada na nota 5 acima.
[13] Por exemplo Optimal Regulation, Kenneth Train, The MIT Press, 1991 e The Theory of Regulation and Procurement, Jean Tirole e Jean-Jacques Laffont, The MIT Press, 1993.
[*] O Poço do Visconde, Monteiro Lobato, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1937.