Lucia Helena Salgado

A conhecida definição de pornografia – eu sei que é quando eu vejo (I know it when I see it, em tradução livre) – estreou no voto discordante do Juiz Potter Stewart na histórica decisão da Suprema Corte norte-americana de 1964, que confirmou condenação de proprietário de cinema por exibir filme de conteúdo dito obsceno. Desde então, tornou-se a referência mais repetida sobre o “problema da identificação” em pornografia[1].

Com preços abusivos[2] passa-se o mesmo. Você reconhece quando o vê. A proximidade com o evento pornográfico é ainda maior quando se tratam de preços de medicamentos prescritos, que impactam orçamentos de saúde pública, oneram sistemas privados de saúde e tornam-se inacessíveis aos indivíduos cujas vidas dependem deles.

Por décadas a população estadunidense conviveu com preços de medicamentos por prescrição crescentes e muito superiores aos encontrados em outros países, mesmo aqueles de alta renda[3]. Há poucos dias, após um ano de debates e negociações, foi aprovada a primeira norma naquele país capaz de dar inicio ao processo de contenção de preços de medicamentos.

A lei batizada de Inflation Reduction Act[4] ataca diferentes problemas a afligir os cidadãos de classe média e os mais vulneráveis naquele país, dentre eles a prática da indústria farmacêutica de atribuir preços estratosféricos a medicamentos novos desenvolvidos para tratar doenças graves, como diabetes, câncer, esclerose múltipla e esclerose lateral amiotrófica.

Durante as décadas de prevalência das ideias ultraliberais na condução da administração pública federal estadunidense, a ideia de intervenção na liberdade de preços soava como heresia. Quando tiveram oportunidade, os governos democratas – de Clinton e Obama – tentaram garantir acesso à saúde para milhões. Uma das medidas propostas em 1993 foi incluir medicamentos nos serviços prestados pelo Medicare, mas a ideia de que o poder de compra do Estado poderia levar a negociação garantindo preços de aquisição mais baixos foi explicitamente rejeitada pela indústria e seus representantes. Apenas no governo Bush a indústria convenceu-se que teria muito a ganhar com a inclusão de milhões de novos consumidores e a proibição expressa de negociação direta de preços entre Medicare e indústria afastou preocupações quanto à limitação de sua liberdade de precificar: a lei que incluiu a cobertura de alguns medicamentos prescritos na cobertura do Medicare, promulgada por um Congresso de maioria republicana, continha uma “cláusula de não-interferência”.

A teoria econômica convencional fundamenta-se na crença de que preços, por carregarem todas as informações necessárias para promover o equilíbrio entre oferta e demanda no mercado, tendem a se ajustar “naturalmente”[5] – desde que não sujeitos à interferência artificial pelo governo.

A ideia de que um grande comprador como o Medicare não possa negociar preços mais favoráveis com seus fornecedores, em prol do melhor uso dos recursos públicos, soa fora de propósito, mas passa a fazer sentido quando se considera a força doutrinária da teoria econômica tradicional, por um lado, e o inigualável poder de lobby da indústria farmacêutica nos Estados Unidos, por outro.

Quanto ao primeiro aspecto: na Nova Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, a tradição cristã ocidental de condenação moral ao desejo insaciável de ganho individual em desarmonia com o bem comum foi pouco a pouco substituída pela ética puritana de que acumulação de riqueza seria indicação de escolha divina. A conhecida tese weberiana de redenção moral do lucro[6]. Daí à consolidação do capitalismo industrial ao final do século XIX e à sistematização da teoria econômica como ciência, foi um pulo de pouco mais que um século.

Quanto ao segundo aspecto, a indústria farmacêutica é a “campeã do rent seeking,” despendendo milhões de dólares a cada ano com lobby – incluindo financiamento de campanhas de ambos os partidos – , conforme a organização OpenSecrets[7], organização do terceiro setor especializada em pesquisa e transparência governamental, que se dedica a “acompanhar o curso do dinheiro” na política e seus efeitos sobre eleições e políticas públicas.

Impressionante é que, já ao final da 2ª década do 3º milênio, autoridades estadunidenses continuassem a vocalizar as mesmas crenças sobre o funcionamento dos mercados – crenças sim, porque postulados carentes de verificação empírica – de séculos anteriores. Vejamos, como exemplo, o documento apresentado pelo FTC, que expõe a posição oficial daquele país em reunião do Comitê de Concorrência no debate sobre os preços excessivos de medicamentos, organizado pela OCDE[8] em 2018. Sinteticamente, os representantes estadunidenses explicam aos colegas de antitruste dos países mais ricos do mundo que: (i) nos Estados Unidos, a legislação antitruste não impede as firmas que adquiriram poder de mercado legalmente de cobrar preços que maximizam lucros; (ii) limitar a liberdade para precificar diminui incentivos à competição e à inovação; (iii) interferir nos mecanismos de precificação de mercado fatalmente distorce oferta e demanda e impede a alocação eficiente de recursos.[9]

Demonstrar as falácias embutidas nas afirmações (ii) e (iii) acima sobre o funcionamento dos mercados está além do objetivo dessa nota, de modo que podemos saltar no tempo para a promulgação da Inflation Reduction Act. A lei traz medidas que – a despeito da timidez do alcance, resultado do difícil processo de negociação que garantiu sua aprovação – representam verdadeiro rompimento de barreiras doutrinárias, vez que autoriza o poder público (Medicare) a negociar preços de medicamentos em suas aquisições, visando a obter preços menores, e na disponibilização de medicamentos prescritos em co-participação com beneficiários; estabelece um teto de gastos anuais em medicamentos por individuo, que não deve ultrapassar US$ 2,000[10]. Ademais, contrariando décadas de crença ultraliberal na inviolabilidade do direito da indústria de precificar sem limites, a lei prevê medidas para obrigar farmacêuticas a absorver parte dos custos de fabricação de medicamentos cujos preços têm subido acima da inflação.[11]

Contudo, por impactantes que se apresentem, as medidas acima representam apenas os primeiros passos em direção a um ambiente econômico em que possam conviver a eficiência e a equidade: o número de medicamentos cujos preços serão acompanhados mais de perto é restrito, havendo a previsão de que paulatinamente outros medicamentos serão acrescidos à lista; enquanto isso, novos medicamentos continuarão a ser precificados tão arbitrariamente como sempre.

Casos de preços estratosféricos de medicamentos de marca são frequentes também no outro lado do Atlântico, assim como no Brasil. Sob a justificativa de que são custosos e arriscados os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e sobre a garantia de uma elasticidade-preço que não reflete condições normais de mercado[12] e de uma particular opacidade na estrutura de custos de produção, preços de medicamentos novos têm sido estabelecidos a níveis arbitrariamente elevados. Na Europa, contudo, preços excessivos são tratados tecnicamente como abuso de posição dominante, sendo copiosa a lista de casos investigados e condenados, ou encerrados mediante acordo, tanto em jurisdições nacionais quanto europeia.

O caso clássico, que deu origem ao teste de preços excessivos e que até o presente é o parâmetro básico de análise nas investigações tanto da Comissão Europeia como de outras autoridades de concorrência da Europa é o caso United Brand[13]. O teste é dividido em duas partes: em 1o lugar se verifica se a diferença entre os custos realmente incorridos e o preço cobrado é excessiva; em 2o lugar se a resposta for positiva, verifica-se se o preço é injusto por si ou em relação a outros produtos concorrentes. Outro caso de grande relevo (concluído com acordo) foi a investigação da autoridade britânica (Competition and Market Authority) entre 2002 e 2007 contra a prática de discriminação de preços e preços excessivos adotada pela Napp na comercialização de morfina de liberação controlada, para pacientes terminais de câncer, sendo preços excessivamente baixos nos hospitais e excessivamente altos para as cooperativas de home care.

É inegável que atividades de P&D são complexas, que o risco e incertezas associadas a trajetórias tecnológicas – que podem ser ou não bem-sucedidas – implicam custos elevados. É inegável também que grandes avanços científicos na cura e prevenção de doenças tem se dado por força da parceria entre governos, universidades e a indústria[14]. Inegável também é a extrema opacidade envolvendo o processo de formação de preços de produtos farmacêuticos antes e depois da obtenção de patentes. Trata-se aqui de uma assimetria radical de informação, uma falha do mercado a demandar solução.

A nova lei estadunidense foi viabilizada em um ambiente em que a reordenação de forças políticas e um contexto de agravamento de dilemas econômicos demandavam a ousadia de buscar novas soluções.  Deu-se assim ensejo à ruptura do dogma da inviolabilidade do direito de firmas monopolistas precificarem medicamentos sob prescrição.

São em momentos assim, de superação de ideias arraigadas, que se pode tornar a sopesar a busca de lucro e a proteção do bem comum. Que os mesmos ventos logo soprem por aqui, abaixo do Equador. Afinal, o preço abusivo “você reconhece quando o vê”.


[1] Jacobellis v. Ohio

[2] Ou excessivos, da expressão comum nas jurisdições europeias.

[3] Relatório de 2021 da Rand Corporation mostra que os preços de medicamentos nos Estados Unidos são 256% mais caros que em 32 outros países: International Prescription Drug Price Comparisons www.rand.org/t/RR2956 citado no relatorio da Investigação da Câmara dos Deputados sobre preços de medicamentos publicado em dezembro de 2021: https://oversight.house.gov/sites/democrats.oversight.house.gov/files/DRUG%20PRICING%20REPORT%20WITH%20APPENDIX%20v3.pdf

[4] https://www.congress.gov/bill/117th-congress/house-bill/5376/text

[5] Não por outro motivo, é conhecida como “Teoria dos Preços”.

[6] Max Weber, Ética Protestante e O Espírito do Capitalismo (edição comemorativa de 100 anos de publicação) Companhia das Letras, 2004.

[7] https://www.opensecrets.org A organização do terceiro setor é especializada em pesquisa e transparência governamental e dedica-se a “acompanhar o dinheiro” na política e seus efeitos sobre eleições e políticas públicas.

[8] Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

[9] FTC, “Excessive Pricing in Pharmaceutical Markets – Note by the United States” in Competition Committee, DAF/COMP/WD(2018)11, OECD, November, 2018.28 (This document reproduces written contribution from the United States submitted for Item 9 of the 130th OECD Competition Committee meeting on 27-28 November 2018).

[10] É comum ouvir-se depoimentos de pacientes que dispendem anualmente – à força de superendividamento – quantias da ordem de 4 a 5 dígitos por apenas um medicamento, dos vários prescritos para doenças crônicas e graves.

[11] Entre 2009 e 2018, o preço médio de medicamentos de marca prescritos mais do que dobrou, enquanto entre 2019 e 2020, metade de todos os medicamentos cobertos pelo Medicare tiveram seus precos majorados acima da inflação (relatório da Kaiser Family Foundation, 2021 cif. The New York Times, 5 de agosto de 2022 https://www.nytimes.com/2022/08/05/us/politics/medicare-drug-costs.html

[12] A decisão de escolha de um medicamento costuma ser feita pelo médico responsável pelo tratamento, o “consumidor substituto”, que não percebe sua decisão sujeita à restrição orçamentária do paciente, usuario final do medicamento.

[13] (U Brands e U. Brands Continental v Commission, 27/6- 1978

[14] Azoulay et al “Funding breakthrough research: promises and challenges of the “ARPA Model” in Innovation policy and the Economy 19 (1), 69-96, 2019.  2018; Jeffrey Furman Academic “collaboration and organizational innovation: The development of research capabilities in the US pharmaceutical industry, 1927-1946” disponivel em Research Gate www.researchgate.net consultado em 1/1/2021.

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