Marcelo Nunes de Oliveira

Na semana que passou o Congresso Nacional aprovou o texto da MP 1108/2022, que, dentre outras medidas, altera algumas regras do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT, mais conhecido como ticket refeição ou alimentação.

A discussão do texto final foi cercada de polêmicas, em especial, quanto a três pontos: (i) possibilidade do trabalhador receber o valor em espécie; (ii) a proibição da chamada taxa negativa na negociação entre empregadores e empresas de meios de pagamentos eletrônicos; e (iii) a possibilidade do trabalhador efetuar a portabilidade do saldo do seu benefício para outra administradora.

O Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT foi instituído pela Lei 6.321/76 e regulado posteriormente pelo Decreto 05/1991, com o objetivo de melhorar as condições nutricionais e de qualidade de vida dos trabalhadores, a redução de acidentes e o aumento da produtividade, tendo como unidade gestora a Secretaria de Inspeção do Trabalho/Departamento da Saúde e Segurança no Trabalho.

Por meio do programa, os empregadores tributados com base no Lucro  Real podem deduzir do Imposto de Renda devido, a título de incentivo fiscal, entre outros, o valor correspondente à aplicação da alíquota do imposto sobre a soma das despesas de custeio realizadas no período em Programas de Alimentação do Trabalhador (PAT).

O Programa pode ser ofertado de diferentes formas: (i) manutenção de serviço próprio de refeições; (ii) distribuição de alimentos in natura; e (iii) convênios com entidades que fornecem ou prestam serviços de alimentação coletiva, desde que essas entidades sejam credenciadas pelo Programa e se obriguem a cumprir o disposto na legislação do PAT e na Portaria MPT 672/2021, condição que deverá constar expressamente do texto do convênio entre as partes interessadas. Nesta última categoria se enquadram as empresas emissoras de vales refeição e alimentação, geralmente ofertados por meio de cartões eletrônicos passíves de utilização nas redes credenciadas pelos respectivos arranjos de pagamento.

Contudo, a disponibilização do benefício por meios eletrônicos, formato prevalente no mercado, decorre de uma negociação entre empregadores e as empresas emissoras. Não raro – muito pelo contrário, nessas negociações as empresas emissoras dos cartões oferecem aos empregadores uma taxa negativa ou deságio sobre o valor do benefício contratado. Por exemplo, se um empregador possui um montante mensal de benefícios alimentação a pagar aos seus colaboradores de R$ 100.000 (cem mil reais), a administradora de cartões de benefícios pode oferecer esses benefícios por talvez R$ 95.000 (noventa e cinco mil reais), ou seja, com 5% de desconto sobre o valor nominal dos benefícios. Ora, como isso seria possível, considerando que a emissora ainda tem todos os custos administrativos e comerciais para emissão dos cartões, cadastramento da rede de estabelecimentos parceiros, dentre outros?

Simples: o custo de deságio, somado aos demais custos da operação e a margem dos emissores é repassada para a taxa de desconto cobrada dos estabelecimentos comerciais que aceitam esses cartões. Não por outro motivo as taxas de desconto para cartões de benefícios são consideravelmente mais elevadas do que as taxas de desconto de cartões de débito/crédito comuns. Segundo a nota Técnica nº 20/2019/DEE/CADE, que analisou aspectos concorrenciais em uma operação entre o Itaú e a Ticket Serviços S.A., enquanto a taxa média de débito e crédito girava em torno de 2,5%, nos vales alimentação/refeição esse desconto seria de aproximadamente 4,7%. Naturalmente, o custo da operação acaba sendo repassado para o preço dos alimentos adquiridos pelo trabalhador, ou seja, o desconto obtido pelo empregador na negociação com o emissor dos cartões de benefícios é compensado na forma de preços mais elevados aos trabalhadores, uma política “Robin Hood” às avessas.

 Essa é a falha de mercado que a MP 1108 busca endereçar, ao propor a proibição de “qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos sobre o valor contratado” (art. 3º, I, da MP 1108/2022). O Texto aprovado pelo Congresso ainda acrescentou dois pontos adicionais: i) a possibilidade de saque do benefício em espécie após 60 dias do recebimento do benefício; e ii) a possibilidade de portabilidade do benefício para outra empresa administradora.

Sem dúvidas a proposta de proibição do deságio na contratação dos benefícios por parte dos empregadores tem potencial de reduzir o custo das taxas de desconto praticadas pelos arranjos de pagamento que atuam no mercado de benefícios alimentação/refeição. Contudo, são as mudanças inseridas pela Câmara dos Deputados – e também as que mais provocaram reações contrárias, aquelas que podem, de fato alcançar o objetivo de redução de custos via aumento da competição.

A primeira, que permite o saque integral dos recursos após 60 dias do crédito do benefício, viabiliza, ainda que via uma escolha intertemporal, uma competição entre o meio eletrônico e o dinheiro em espécie: usar o benefício imediatamente, com os custos embutidos; ou, aguardar um período de tempo para sacar o benefício em espécie e, com isso, ter maior barganha no momento da aquisição dos produtos de seu interesse.

A segunda medida, aquela que potencialmente mais interfere positivamente a competição no mercado, permite ao trabalhador fazer a portabilidade do benefício para outro cartão, como se fosse uma conta-salário. A portabilidade torna quase desnecessária a proibição da prática do deságio, já que a empresa emissora não tem a garantia de retenção do consumidor na sua rede – único meio de recuperar o deságio ofertado ao empregador. Além de inibir o deságio, a portabilidade fomenta a competição entre as administradoras dos benefícios por custo e também por qualidade, aspecto que abrange desde o atendimento ao usuário até a qualidade/diversidade da rede credenciada. Em sendo um mercado de dois lados, quanto maior a rede credenciada – fator que depende significativamente das taxas de desconto cobradas, mais atrativo é determinado emissor.

Contudo, ambas as medidas já são alvo de ataques, inclusive com menção a possibilidade de veto às duas alterações promovidas pelo Congresso.

A possibilidade de saque do valor em espécie após 60 dias é criticada pelo setor de comércio e serviços alimentícios, que teme a perda de até R$ 30 bilhões de recursos cativos para o setor. A portabilidade dos valores é atacada, de maneira genérica, como uma perda de direitos dos trabalhadores.

É importante se ter em mente que se trata de um direito e um benefício destinado aos trabalhadores, ainda que sujeito a críticas quanto à sua necessidade, já que poderia constituir parte do salário, embora não seja este o objetivo deste texto. Os interesses desse grupo de indivíduos deve nortear as discussões em detrimento de interesses de setores porventura “prejudicados” com a perda de demanda cativa ou com o aumento da competição, seja entre estabelecimentos comerciais, seja entre administradoras de benefícios.

Vale ressaltar, ainda, que os servidores públicos federais recebem o benefício, há muito anos, de maneira pecuniária. Ampliar as possiblidades de recebimento e administração dos benefícios alimentícios por parte dos trabalhadores é, antes de tudo, conferir maior liberdade para que possam utilizar um recurso que lhes é de direito, e com menor custo. O que for dito em sentido contrário tende a ser tão somente defesa de interesse corporativo travestido de virtude.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *