Direito

Encerrando uma empresa insolvente: uma proposta de simplificação

André Santa Cruz & Filipe Aguiar de Barros

Introdução

No recente Informativo 735, de 9 de maio de 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) noticiou, a título de destaque do julgamento do Recurso Especial 1.876.549-RS pela sua 2ª Turma, que “no caso de micro e pequenas empresas é possível a responsabilização dos sócios pelo inadimplemento do tributo, com base no art. 134, VII, do CTN, cabendo-lhes demonstrar a insuficiência do patrimônio quando da liquidação para exoneração da responsabilidade pelos débitos”.

No caso em questão, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) havia mantido sentença de extinção da execução fiscal ao fundamento de que a demanda fora ajuizada após a “baixa” da sociedade empresária executada.

Interposto recurso especial pela União (Fazenda Nacional), o STJ autorizou o prosseguimento da execução fiscal em face dos sócios-gerentes[1], concedendo-lhes, todavia, a oportunidade para exoneração da responsabilidade tributária se comprovarem a insuficiência do patrimônio da sociedade empresária por ocasião da sua liquidação.

Dissolução regular de sociedade e seus efeitos

Conforme dispõe o Código Civil, a extinção de uma pessoa jurídica deve ser precedida de sua dissolução e da fase de liquidação (as regras gerais estão descritas nos arts. 51, 1.030 e ss. e 1.102 e ss.).

Na fase de liquidação, caso seja constatada insolvência da sociedade e não se opte por alguma alternativa porventura disponível (a exemplo da recuperação judicial), o liquidante tem o dever de confessar falência (art. 1.103, inciso VII do CC) ou, quando inaplicável esta, o instituto a ela correspondente, de acordo com a legislação específica. O art. 105 da Lei 11.101/2005 reforça isso ao prever que “o devedor em crise econômico-financeira que julgue não atender aos requisitos para pleitear sua recuperação judicial deverá requerer ao juízo sua falência (…)” (sem grifos no original).

A mera dissolução, liquidação e/ou falência, notadamente se realizadas de forma regular, não autorizam, por si sós (a menos, por exemplo, que se trate de sócio de responsabilidade ilimitada ou de terceiro que tenha prestado garantia fidejussória, ou, em relação ao bem gravado, garantia real), a responsabilização de terceiros por dívidas fiscais constituídas exclusivamente em face da pessoa jurídica. Em regra, aplica-se o mesmo raciocínio para dívidas de outras naturezas.[2]

A “dissolução irregular” e suas consequências

No julgamento do Tema Repetitivo 630, o STJ definiu que, “em execução fiscal de dívida ativa tributária ou não-tributária, dissolvida irregularmente a empresa, está legitimado o redirecionamento ao sócio-gerente”, o que ocorre, por exemplo, na situação descrita na Súmula 435/STJ: “presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes” (sem grifos no original).[3]

Em suma: o STJ tem jurisprudência consolidada no sentido de que somente é possível responsabilizar o(s) administrador(es) de sociedades por dívidas objeto de execução fiscal, por meio do redirecionamento dela a ele(s), quando há dissolução irregular da pessoa jurídica executada (Tema Repetitivo 630) ou presunção de sua ocorrência (Súmula 435).[4]

A “baixa” simplificada e suas repercussões jurídicas

No Brasil, por razões histórico-culturais, não é comum ver uma sociedade ser extinta após um regular procedimento dissolutório (ato de dissolução – como um distrato – seguido da respectiva liquidação e da posterior extinção da pessoa jurídica). Mais raro ainda é ver, na prática, uma sociedade empresária formular pedido de autofalência.

Como alternativa à realização de tais procedimentos, e com a intenção de estimular a dissolução regular de sociedades, o art. 9º da Lei Complementar 123/2006 e o art. 7º-A da Lei 11.598/2007 admitem a extinção (ou “baixa”) da pessoa jurídica mesmo diante da existência de dívidas e da possibilidade de surgimento de dívidas futuras[5]. Para tanto, contudo, impõem aos empresários/titulares/sócios/administradores no período da ocorrência dos respectivos fatos geradores[6] uma responsabilidade solidária pelos respectivos débitos, ou seja, nessa hipótese, a tal “baixa” simplificada implica, por si só, a responsabilização de terceiros por dívidas da pessoa jurídica[7], na contramão dos entendimentos do STJ já mencionados.

Ocorre que tais regras não foram suficientes para mudar a realidade. Por razões óbvias, ninguém quer assumir, em nome próprio, as dívidas de uma pessoa jurídica insolvente. Disso resulta que continuamos tendo muitos casos de “dissolução irregular”, gerando um verdadeiro ciclo vicioso e sem escapatória. Um perde-perde.

Os problemas do julgamento do REsp 1.876.549-RS

É provável que essa constatação do parágrafo anterior tenha estimulado o STJ a, no julgamento do REsp 1.876.549-RS, mediante hermenêutica jurídica bastante questionável, misturar o art. 9º da LC 123/2006[8] com o art. art. 134, inciso VII do CTN, para criar, por via transversa, uma saída honrosa para as pessoas jurídicas insolventes (ao menos as microempresas e as empresas de pequeno porte).

O que nos parece, porém, é que o STJ pode ter acertado no diagnóstico, mas errou no remédio e, a bem da verdade, sequer seria competente para fabricá-lo, haja vista a necessidade de alteração legislativa.

O acórdão do REsp 1.876.549-RS não esclareceu exatamente como se daria essa comprovação da “insuficiência do patrimônio”, indicando, por exemplo, se caberia a produção de provas na execução fiscal (na via dos respectivos embargos[9]) ou se somente seria admissível a apresentação de documentos produzidos durante eventual liquidação formal[10]. Tampouco se explicou, no referido julgamento, como evitar o risco de decisões judiciais conflitantes, na hipótese de existirem diversas execuções fiscais. E mais:  parece-nos que os julgadores não atentaram para o fato de que, enquanto o art. 134, inciso VII do CTN é restrito aos créditos tributários, o art. 9º da LC 123/2006 também abrange créditos de outras naturezas, a exemplo dos trabalhistas.

No entanto, longe de pretender se restringir ao exame do (des)acerto da decisão proferida pelo STJ quanto ao caso concreto e das consequências da sinalização conferida aos demais casos similares, o objetivo deste artigo é o de trazer à tona o problema existente (e que parece ser incontroverso) e instigar o leitor a refletir sobre possíveis soluções.

Uma proposta de solução para o problema exposto

Como, então, viabilizar, com eficiência, sem burocracia e sem gerar riscos sistêmicos para a economia, o encerramento de pessoas jurídicas insolventes, quando não for hipótese ou não houver interesse no uso de mecanismos voltados ao seu soerguimento?

O PLP 33/2020, aprovado pelo Senado Federal, busca endereçar uma solução para o tema, através da criação da Liquidação Especial Sumária. No entanto, tal proposição não é restrita ao tema e adentra em vários pontos polêmicos, revelando-se extensa e complexa, o que parece vir atraindo resistências e dificultando a sua discussão, tramitação e eventual aprovação.

No intuito de não incorrer no mesmo problema, ponderamos se não seria mais eficiente e factível a apresentação de um projeto de lei complementar específico, disciplinando exclusivamente um encerramento (“baixa”) especial ou uma espécie de falência extrajudicial de microempresas e empresas de pequeno porte cujo passivo não exceda determinado montante (ou mesmo pessoas jurídicas em geral que atendam a determinados critérios).

O pedido poderia ser direcionado à Junta Comercial (ou, quando fosse o caso, ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas)[11] e, quando admitido, poderia implicar imediatamente a extinção das obrigações, conferindo-se a devida publicidade. Nas hipóteses e no prazo do art. 159-A da Lei 11.101/05, seria cabível ação anulatória desse ato ou ação de cobrança em face do responsável pela sonegação do ativo e, eventualmente, daqueles que tenham se beneficiado do ato.

Para evitar a necessidade de criação de uma fase de liquidação nesse procedimento (com a escolha de liquidante, remuneração e possível litigiosidade), ele poderia ser, ao menos inicialmente, restrito às pessoas jurídicas que não possuam ativos ou, no máximo, àquelas cujos ativos sejam insuficientes para atender as despesas inerentes a um processo de falência/insolvência, o que provavelmente já contemplaria a maior parte dos interessados na medida. Nessa última hipótese, seria possível exigir que o responsável assuma o compromisso de realizar o ativo e pagar aos credores na ordem prevista na Lei 11.101/05, sob pena de ser responsabilizado pelas dívidas.

Não nos parece haver nenhum motivo para resistências a uma proposta nos moldes acima. Afinal, o art. 114-A da Lei 11.101/05 já admite o encerramento sumário da falência (o que implica extinção das obrigações do falido, nos termos do art. 158, inciso VI da mesma lei) “se não forem encontrados bens para serem arrecadados, ou se os arrecadados forem insuficientes para as despesas do processo”.

O assunto é instigante e traz sérias repercussões práticas no ambiente econômico, notadamente em relação ao reempreendedorismo. Há aspectos relevantes (sobretudo que exorbitam a seara tributária) que não foram aqui abordados, a exemplo das garantias fidejussórias prestadas por pessoas físicas. Mas julgamos ser o suficiente para iniciar e fomentar um imprescindível debate.


[1] A expressão, comumente utilizada, inclusive pela nossa Corte Superior, pode levar a conclusões equivocadas. Uma sociedade possui sócio(s) e administrador(es), e este(s) pode(m) ser sócio(s) ou não, a depender do tipo societário. O uso da expressão sócio-gerente (ou sócio-administrador) parece indicar a existência de uma categoria autônoma, com direitos e deveres próprios, algo que não existe. Nesses casos, portanto, entendemos que o correto seria usar a expressão administrador (que pode, repita-se, ser sócio ou não, a depender do tipo societário).

[2] Nesse sentido, merece menção a Súmula 430/STJ: “O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”.

[3] Vale destacar que as Turmas que integram a Primeira Seção do STJ entendem que o “distrato social, ainda que registrado na Junta Comercial, não garante, por si só, o afastamento da dissolução irregular da sociedade empresarial e a consequente viabilidade do redirecionamento da execução fiscal aos sócios gerentes” (v.g. REsp 1877340/RS e AgInt no AREsp 1561461/RS). Não é, portanto, suficiente o ato de dissolução, sendo necessária, também, a regular liquidação e a posterior extinção, que completam o chamado procedimento dissolutório.

[4] Sobre que administrador (sócio ou terceiro) pode sofrer o redirecionamento da execução fiscal, ver Temas Repetitivos 962 e 981 do STJ, nos quais a Corte Superior decidiu que o importa é quem exercia a administração no período da ocorrência da dissolução irregular, e não da ocorrência do fato gerador.

[5] Em relação às dívidas tributárias, observados, obviamente, os prazos dos arts. 150, § 4º, 173 e 174 do CTN.

[6] Trata-se de um grave falha da legislação. Somente aqueles que optaram pela baixa simplificada (que não necessariamente são os mesmos administradores da época do fato gerador das dívidas) poderiam ser responsabilizados por tal fundamento. 

[7] No linguajar comum, “as dívidas do CNPJ passam para o CPF”.

[8] É importante lembrar que há similar previsão para as pessoas jurídicas em geral no art. 7º-A da Lei nº 11.598/2007  (acrescentado pela LC Nº 147/2014).

[9] A jurisprudência somente admite exceção de pré-executividade para matérias cognoscíveis de ofício que não demandem dilação probatória

[10] Além de ser bastante incomum, em casos concretos como o analisado pelo STJ, a efetiva ocorrência de fase de liquidação, é no mínimo duvidoso que dela possa resultar algum documento indicativo da insolvência, na medida em que isso obrigaria o liquidante a requerer a autofalência, dever este que, não cumprido, representaria uma irregularidade da liquidação.

[11] A menção aos cartórios se dá porque é neles que se registra a sociedade simples (art. 1.150 do Código Civil), a qual pode ser enquadrada como ME ou EPP, conforme previsão do caput do art. 3º da LC 123/2006.


André Santa Cruz. Advogado. Doutor em Direito Comercial pela PUC-SP. Professor de Direito Econômico e Empresarial do Centro Universitário IESB. Ex-Diretor do DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração.


Filipe Aguiar de Barros. Procurador da Fazenda Nacional, Chefe da Defesa na 5ª Região. Mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP. Ex-Coordenador-Geral de Representação Judicial da PGFN e assessor da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia.

A lei e os números: o que temos para contar

Uinie Caminha

É célebre a fala de Ariano Suassuna na qual narra que fez Direito porque não sabia “fazer conta de somar”. O genial escritor paraibano fala de maneira jocosa da recorrente falta de habilidade com os números daqueles que optam pela Direito. Tradicionalmente, diz-se que, em matéria de número, advogado só sabe o número do artigo. Todavia, hoje não é mais possível as profissões jurídicas ignorarem outras disciplinas que envolvem a matemática. Em algumas áreas, como Direito Societário e Tributário, conhecer contabilidade e finanças não é apenas um diferencial, é uma necessidade.

Mais recentemente, também a estatística vem se tornando uma grande aliada do Direito, tanto na elaboração de leis quanto na formulação de políticas de organização judiciária, e ainda na definição de estratégias para defesa dos interesses de clientes.

A Jurimetria, como ficou conhecida a aplicação da estatística na medição de indicadores jurídicos, tem, cada vez mais, sido utilizada nas decisões envolvendo formulação e aplicação de leis, e ainda estratégias contratuais e processuais.

Por vezes, nós, que estudamos o Direito de maneira dogmática, não percebemos que o que muitos chamam de ciência do Direito é, na verdade, um amontoado de opiniões que são misturadas e escalonadas de maneira que, ao final, haja alguma possibilidade de conclusão compatível como nossa própria opinião. É muito comum nós, acadêmicos na área jurídica, criarmos teses e hipóteses que não se sustentam diante de uma análise superficial dos fatos, da realidade em que o Direito é aplicado.

Já na década de 1960, Lee Loevinger[1] diferenciava de maneira muito didática as atividades desempenhadas por aplicadores do Direito, Juristas e Cientistas:

“Lawyers and judges generally are engaged in seeking to apply the principles or analogies of cases, statutes, and regulations to new situations. Scientists generally are engaged in collecting experimental and statistical data and in analyzing them mathematically. Writers on jurisprudence are engaged in the philosophical analysis of legal concepts and ideas.”

Precursor das análises jurimétricas no Brasil, o Professor da PUC de São Paulo Marcelo Nunes Guedes[2] costuma afirmar em suas aulas e palestras que os fatos não têm a menor educação… afrontam uma ideia que nos parece boa e dão-lhe uma sova… isso é comum quando se trata de produção legislativa. Se forem a analisadas corretamente, grande parte das reformas legislativas parecem mais soluções a procura de um problema que nem existe. Em suas palavras

“O jurista estuda as leis sem se preocupar com seus resultados práticos. Os bacharéis em Direito (futuros advogados, juízes, consultores legislativos, promotores e diretores jurídicos de empresas) são treinados para discutir ad nauseum todos os sentidos hipotéticos atribuíveis uma lei, mas pela falta de conhecimentos básicos em estatística e pesquisa empírica, não possuem qualquer preparo para verificar as consequências práticas que esses sentidos produzem”

A Jurimetria se propõe a analisar os cenários existentes para efetivamente identificar os problemas e permitir traçar a melhor estratégia para resolvê-lo… deixa-se o campo da opinião, para o da probabilidade. Note-se que não se fazem necessárias grandes ferramentas tecnológicas (apesar de ajudarem muito) ou uma mente matemática tão aguçada, como ensina a Professora Luciana Yeung[3]

“O primeiro mito a ser destruído no exercício da aplicação da Jurimetria é que ela exige emprego de métodos sofisticadíssimos, com matemática e/ou recursos computacionais de última geração, manejáveis apenas por doutores das ciências exatas. Qualquer estudo cujo objeto faz parte das ciências jurídicas (…) que se valha de dados coletados empiricamente, e cuja análise se baseie de alguma forma em conceitos estatísticos (…) é um trabalho jurimétrico”

Para a advocacia, conhecer os cenários e gargalos do Judiciário é extremamente importante para a avaliação da conveniência de medidas judiciais, cláusulas contratuais e eventuais acordos, especialmente no cenário de insegurança jurídica do Brasil. Para isso, não precisamos de fórmulas tão complexas, mas talvez, apenas ceder um pouco do espaço de nossos pensamentos e análises aos números.

Atualmente, existem muitos serviços de mapeamento de decisões de grandes litigantes, e conhecer e saber interpretar esses resultados é, e cada vez mais será, importante para uma advocacia de qualidade.

Muito se fala de uma suposta obsolescência de profissões jurídicas, e que em breve não mais serão necessários advogados, pois “máquinas” poderão substituir seus serviços. Alguns serviços, não só de advogados, mas de juízes e outros agentes do Direito deveriam, mesmo, ser executados por programas.  Porém, os números, assim como as palavras, também podem ser “torturados” até que nos digam o que queremos… Assim, os advogados (e todos os outros que vivem de fazer, aplicar e interpretar a Lei) precisamos conviver com os números e aprender a interpretá-los para nos mantermos indispensáveis como diz a Constituição. Isso é certo como dois e dois são quatro.


[1] Lee Loevinger, Jurimetrics: The Methodology of Legal Inquiry, 28 Law and Contemporary Problems 5-35 (Winter 1963)
Available at: https://scholarship.law.duke.edu/lcp/vol28/iss1/2

[2] Jurimetria: como a estatística pode reinventar o Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p.

[3]  Jurimetria ou análise quantitativa de decisões judiciais. In: Machado, Maíra Rocha (Org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017, p. 249-274.