Artigos de opinião

O Nobel de Economia de 2024 e as reformas estruturais em direção a melhores instituições e desenvolvimento

Katia Rocha

Nessa semana, o Prêmio Nobel de Economia de 2024 foi concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson, por seus trabalhos sobre como as instituições são formadas e como afetam o desenvolvimento econômico e social dos países. Entre os diversos trabalhos seminais, talvez o mais conhecido seja o livro Por que as Nações Fracassam. As Origens do Poder, da Prosperidade e da Pobreza de 2012.

Segundo os laureados, as instituições econômicas de uma sociedade dependem da natureza das suas instituições políticas e da distribuição do poder político na sociedade. A ideia norteadora recai no argumento no qual o principal determinante das diferenças das riquezas entre países são suas instituições econômicas. As instituições, entendidas em aspecto amplo, seriam as causas no que toca a disparidade e heterogeneidade no desenvolvimento econômico e social dos países, determinando não apenas o potencial de desenvolvimento econômico da respectiva economia, mas também a sua distribuição de recursos na sociedade.

A investigação recai, portanto, nos fatores que levam uma sociedade a um equilíbrio político que apoia boas instituições econômicas (“inclusivas ao contrário de extrativistas” segundo os autores) e que facilita as reformas econômicas necessárias em direção à prosperidade.

Os estudos apontam evidências em direção a causalidade, ou seja, uma associação direta entre causa-efeito, entre as características institucionais dos países e seu nível de riqueza ou renda per capita. Dessa forma, pode-se cotejar a hipótese de que melhores instituições, como um todo, estão associadas a um maior desenvolvimento e riqueza.

As Figuras a seguir nos ajudam a observar estruturas de correlação entre possíveis características institucionais representadas pelos indicadores de Governança do Banco Mundial – qualidade regulatória, aparato legal, efetividade das políticas públicas, controle de corrupção, responsabilidade e gestão – e a renda per capita (riqueza) dessas economias, considerando uma amostra aleatória de 180 países em diversos anos.

Instituições x Riqueza

Fonte: World Govenarce Indicators (2023)

O incentivo, portanto, recai em compreender e reformar as forças que mantêm as más instituições em funcionamento. Nesse sentido, e em particular para Brasil, os estudos guardam boa relação com as reformas estruturais propostas por diversos think tanks há tempos para o país, e que se relacionam a questões de produtividade, investimentos em infraestrutura, educação e outras. Tais reformas teriam exatamente o potencial de estimular o crescimento via aumento de produtividade, ao promover maior eficiência alocativa de recursos.

A OCDE, por exemplo, sempre apresenta em sua publicação OCDE – Economic Surveys Brazil uma seção dedicada a estimar, através de modelos econométricos de crescimento de longo prazo, o potencial impacto de médio e longo prazo na atividade, decorrente de diversos conjuntos de reformas políticas e institucionais. Na última publicação, um pacote de reformas, que melhorasse a qualidade regulatória e a concorrência, reduzisse as barreiras ao comércio exterior e melhorasse as instituições e a governança, geraria um aumento real do PIB de 14.1% e um incremento no crescimento médio anual de 1% ao ano, de forma consistente no longo prazo.

Entre as propostas sugeridas temos a reforma tributária de consumo (IVA), aprovada recentemente e objeto atual de regulamentação. Há também recomendações em direção à reforma tributária de renda, com maior progressividade, bem como a pauta da abertura econômica, com redução de barreiras tarifárias e não tarifárias (atingindo, em 5 anos, o nível atual nas principais economias da OCDE) e abertura gradual da conta de capital. Há reformas institucionais com melhorias nos indicadores de Governança, capturado pelos índices do Banco Mundial (controle de corrupção, aparato legal e judiciário, qualidade regulatória, governança das empresas estatais, efetividade, reponsabilidade, controle e gestão) convergindo gradualmente ao valor médio da OCDE em 2060. 

Nesse aspecto, sempre oportuno ressaltar a palavra chave concorrência e o entendimento no qual a propriedade pública não é uma questão per se, desde que as regras de governança das empresas estatais envolvidas em atividades comerciais limitem a interferência política indevida, e, promovam a igualdade de condições entre empresas públicas e privadas.

O FMI, igualmente, recomenda nos seus relatórios anuais para a Economia Brasileira  (Brazil 2024: Article IV Consultation) sugestões de políticas e reformas estruturais similares. Identifica que melhoras em indicadores relacionados a qualidade regulatória, ambiente de negócios, governança e abertura econômica foram os principais drivers do fluxo de investimento externo direto para os países emergentes na última década. Identifica ainda que a dimensão de Governança é o condicionante que define e potencializa o impacto dos investimentos públicos (gastos públicos) na economia, induzindo maiores dividendos de crescimento por meio de uma maior participação do setor privado (efeito crowding in). Melhorias de Governança aumentariam a eficiência do investimento público entre 30% e 40% nas economias emergentes. Ou seja, crescem mais gastando menos, contribuindo inclusive para a agenda de responsabilidade fiscal, com menor pressão na curva de juros.

A agenda de reformas sugeridas dialoga bem com as diretrizes e instrumentos legais da própria OCDE, aos quais, o Brasil já aderiu, praticamente, à metade, em sua jornada para adesão. A continuidade desse processo, tem o potencial de fortalecer as instituições econômicas inclusivas, conforme propõe os laureados do Nobel. Alinha-se, igualmente, aos diversos eixos estratégicos do Estado Brasileiro para o desenvolvimento econômico e social. São recomendações de reformas em direção a uma agenda positiva que devemos considerar.

Financiamento de Litígios na São Paulo Arbitration Week 2024: Moldando o Futuro da Resolução de Disputas

Eric Moura

À medida que se aproxima a São Paulo Arbitration Week (SPAW) 2024, programada para a semana de 14 de outubro, percebe-se a comunidade internacional de arbitragem repleta de expectativas. Este evento anual tornou-se um fórum essencial para explorar as dinâmicas em evolução da arbitragem, especialmente em setores cruciais para o crescimento econômico global. Em indústrias como energia e infraestrutura, onde as disputas podem ser de alto risco e complexas, o financiamento de litígios tem se mostrado fundamental na superação de barreiras financeiras, permitindo que as partes busquem e defendam suas causas de maneira mais eficaz.

Os setores de energia e infraestrutura formam a espinha dorsal do desenvolvimento global, envolvendo projetos de grande escala e natureza intrincada. Seja na construção de gasodutos transnacionais, no desenvolvimento de instalações de energia renovável ou na modernização de redes de transporte, esses empreendimentos exigem enormes investimentos de capital e coordenação entre múltiplos marcos legais e regulatórios. Dada a sua magnitude, não é surpreendente que disputas frequentemente surjam. Essas disputas podem derivar de desacordos contratuais, mudanças regulatórias, questões ambientais ou fatores externos, como tensões geopolíticas e desastres naturais. Quando milhões de reais estão em jogo, os riscos são extremamente elevados, tornando imperativa a busca por uma resolução justa.

A arbitragem tem sido o método preferido para a resolução dessas disputas devido à sua flexibilidade, confidencialidade e capacidade de fornecer às partes especialização por meio da escolha dos árbitros. Para os setores de energia e infraestrutura, a arbitragem permite uma abordagem sob medida para tratar disputas que envolvem questões altamente técnicas e complexas do ponto de vista jurídico. No entanto, essa flexibilidade tem um custo. As despesas com honorários advocatícios, custos de peritos e a necessidade de gerir disputas transfronteiriças podem tornar a arbitragem proibitivamente cara ou particularmente indesejável, especialmente para entidades menores ou provenientes de mercados onde o acesso ao capital é limitado.

Quando as disputas frequentemente envolvem conhecimentos técnicos altamente especializados, o financiamento de litígios torna-se um facilitador essencial. Questões complexas, como tecnologias de energia renovável, regulamentações ambientais e contratos multipartes, exigem a participação de advogados e peritos de ponta. O financiamento de litígios garante que as partes tenham os recursos para engajar esses especialistas, melhorando assim a qualidade geral dos procedimentos arbitrais.

Em um mundo ideal, as restrições financeiras jamais deveriam impedir uma parte de acessar a justiça. A arbitragem, como método de resolução de disputas, é construída sobre princípios de equidade, igualdade e acessibilidade. O financiamento de litígios alinha-se com esses princípios ao tornar a arbitragem mais acessível a um espectro mais amplo de partes, especialmente àquelas oriundas de contextos com menos recursos. Ao reduzir as barreiras financeiras de entrada, o financiamento de litígios reforça a integridade da arbitragem como um processo que entrega resultados justos e equitativos.

É nesse contexto que o financiamento de litígios surge como uma solução revolucionária. Ao fornecer recursos financeiros non-recourse[1] necessário para a condução da arbitragem, financiadores de terceiros permitem que as partes busquem justiça sem arcar com todo o ônus financeiro. Em troca de um percentual acordado ou de um montante dos proveitos, o financiamento de litígios geralmente cobre uma ampla gama de despesas, incluindo honorários advocatícios, custos de peritos e despesas operacionais durante o processo. Esse apoio financeiro é especialmente crucial em indústrias onde o fluxo de caixa precisa ser gerido cuidadosamente para garantir a continuidade das operações durante disputas prolongadas. O financiamento de litígios nivela, assim, o campo de atuação, permitindo que as partes enfrentem-se em pé de igualdade.

O financiamento de litígios também introduz uma camada de escrutínio profissional que pode elevar a qualidade dos casos arbitrados. Os financiadores conduzem uma rigorosa due diligence antes de comprometer recursos, avaliando minuciosamente os méritos do caso e a probabilidade de sucesso. Esse processo de avaliação frequentemente ajuda as partes a refinarem suas estratégias jurídicas e a focarem nos aspectos mais persuasivos de seus argumentos. Como resultado, os casos apoiados por financiamento de litígios podem se beneficiar de maior eficiência, representação de qualidade superior e resultados mais equitativos.

Uma aplicação particularmente relevante do financiamento de litígios nos setores de energia e infraestrutura é a prática de monetização de sentenças arbitrais. A monetização de sentenças envolve a conversão de uma decisão arbitral pendente ou final em capital imediato, por meio de sua venda ou uso como garantia para financiamento. Ao monetizar uma sentença, as partes podem acessar os fundos de que necessitam para reinvestir em projetos ou compensar perdas financeiras sofridas durante a disputa. Para empresas envolvidas em projetos de grande escala de infraestrutura ou energia, o acesso oportuno ao capital pode ser a diferença entre manter-se operante ou enfrentar retrocessos significativos. A capacidade de converter um resultado incerto em um retorno financeiro garantido oferece um conforto financeira necessário, assegurando que as operações empresariais continuem sem interrupções.

Além disso, o financiamento de litígios e a monetização de sentenças beneficiam mais do que apenas as partes diretamente envolvidas na disputa. Essas ferramentas financeiras contribuem para a estabilidade e o crescimento dos setores de energia e infraestrutura como um todo. Facilitando a resolução de disputas, ajudam a manter o fluxo de investimentos e a prevenir atrasos custosos na progressão de projetos de desenvolvimento essenciais. Em economias emergentes, onde o desenvolvimento da infraestrutura está muitas vezes vinculado ao crescimento econômico nacional, a capacidade de resolver disputas de maneira eficiente é especialmente crucial. O financiamento de litígios garante que restrições financeiras não impeçam o acesso à justiça, permitindo que os projetos avancem e atendam a necessidades sociais prementes.

Ao olharmos para a São Paulo Arbitration Week, fica claro que o papel do financiamento de litígios na arbitragem está pronto para crescer. Seu impacto nos setores de energia e infraestrutura, em particular, tem grande potencial de expansão. Ao remover barreiras financeiras, o financiamento de litígios permite que as partes defendam vigorosamente suas reivindicações, contribuindo para a execução de contratos, a resolução de disputas e a continuidade de projetos importantes. As discussões na SPAW 2024, sem dúvida, ajudarão a moldar o futuro da arbitragem, tornando-a mais acessível, equitativa e eficaz.

Em conclusão, à medida que a arbitragem continua a evoluir, o financiamento de litígios desempenhará um papel central nesse processo. Ele fornece suporte essencial às partes em disputas complexas e de alto risco, assegurando que restrições financeiras não impeçam o acesso à justiça. Ao oferecer soluções inovadoras, como a monetização de sentenças, o financiamento de litígios auxilia as partes a gerenciar riscos e a manter a estabilidade financeira, mesmo diante de longas batalhas jurídicas. À medida que nos reunimos na São Paulo Arbitration Week, a comunidade arbitral tem uma oportunidade empolgante de explorar esses desenvolvimentos e de trabalhar em conjunto para refinar as ferramentas e práticas que definirão o futuro da arbitragem.


[1] “Non-recourse” significa que a recuperação do financiamento ocorre apenas a partir dos rendimentos do litígio financiado, sem que o financiador possa exigir o pagamento de outros bens ou ativos da parte financiada.


Eric Moura. LLM in Global Business Law pela Columbia Law School. Consultor na Omni Bridgeway. E-mail: emoura@omnibridgeway.com


Remédios concorrenciais na Economia Digital

Fernando de Magalhães Furlan

Jurisdições antitruste ao redor do mundo têm se debruçado sobre os mercados digitais e os desafios trazidos pelas rupturas tecnológicas e mercadológicas.

As primeiras iniciativas legislativo-regulatórias adotadas, como na União Europeia e no Reino Unido, privilegiam um sistema híbrido, conjugando instrumentos típicos do controle antitruste prévio ou ex ante, com ferramentas características do controle posterior ou ex post. A esse sistema híbrido chamamos de “controle antitruste simultâneo”, em que as autoridades da concorrência mantêm um âmbito oficial de diálogo constante com os grandes operadores da economia digital, a fim de que possam acompanhar, esclarecer e, eventualmente, remediar preocupações concorrências nesses espaços cibernéticos.

Estudos sustentam, de maneira convergente, que existem aspectos econômicos específicos dos mercados digitais que favorecem elevados níveis de concentração. Entre eles:

  • economias de escala e de escopo relevantes, que, potencialmente podem incentivar comportamentos anticoncorrenciais em relação aos utilizadores empresariais a jusante ou a montante;
  • subsídios cruzados, especialmente quanto a receitas publicitárias que permitem oferecer serviços gratuitos a usuários de outros lados comerciais da plataforma;
  • coleta e utilização de dados dos utilizadores, isto é, as plataformas utilizam os dados como insumo essencial, criando uma “economia dinâmica de escala”, uma vez que empresas com mais dados melhoram os seus produtos a custos mais baixos do que outras (menores). Isto pode caracterizar potencial barreira à entrada de novos competidores;
  • (custos de mudança (switching costs): algumas plataformas podem gerar altos custos para os usuários mudarem de provedor de serviço, como configurar um novo perfil, enviar novos conteúdos ou criar nova comunidade de seguidores;
  • externalidades de rede: a utilidade de uma tecnologia ou serviço cresce à medida que aumenta o seu número de usuários. Os efeitos de bloqueio (lock-in) podem dificultar a substituição de uma plataforma dominante, mesmo que exista uma alternativa superior disponível;
  • competição “o vencedor leva tudo” (“winner takes all”) ou “o vencedor leva a maior parte” (“winner takes most”): o primeiro a entrar num mercado pode tornar-se forte tão rapidamente que deixa os participantes posteriores em desvantagem;
  • estratégias de auto favorecimento (self-preferencing) de produtos e serviços oferecidos pelo próprio grupo econômico da plataforma, para excluir seus rivais, tais como: mostrar classificações de pesquisa online com seus resultados primeiro, distribuição “desigual” de lojas de aplicativos e imposição de dificuldades à interoperabilidade, isto é, quando uma plataforma dominante restringe a capacidade dos concorrentes de interoperar com a sua plataforma ou acessar informações importantes, como dados, APIs ou lojas de aplicativos (barreiras à entrada);
  • as plataformas digitais também podem dar um novo significado aos comportamentos abusivos tradicionais, como práticas de exclusividade e vendas casadas. Os exemplos incluem a pré-instalação de aplicativos da empresa em sistemas operacionais móveis, a imposição de serviços conjuntos de mídia social e anúncios de comércio eletrônico.

Autoridades de defesa da concorrência mundo afora, inclusive no Brasil, têm defendido a adoção do modelo de controle prévio (ex ante) para os mercados digitais, além da adoção de normas específicas e preventivas para atender às peculiaridades da economia digital.

Exemplos de inciativas em jurisdições tradicionais nesse sentido são o Reino Unido (2023), a Alemanha (2021), a Austrália (2021), a África do Sul (2023), o Japão (2021) e o Canadá (2023). A ideia é adotar um quadro regulamentar flexível e adaptável, um modelo que se ajusta de forma dinâmica e permite um acompanhamento contínuo, mantendo o controle e a autonomia sobre a evolução das normas aplicáveis aos mercados digitais.

Limitações de um controle posterior (ex post)

O controle ex post da conduta, ainda que potencialmente, anticoncorrencial não é considerado adequado para os mercados digitais, quando considerado sozinho. Tem se considerado mais adequado, não somente a aplicação de ambos, o controle prévio (via atos de concentração econômica) e o controle posterior (via investigação de condutas); mas algo novo: um controle simultâneo da operação das grandes plataformas digitais.

Mesmo que a Lei de Defesa da Concorrência brasileira seja considerada moderna, especialmente quando contempla formas de intervenção mais flexíveis, como medidas preventivas, que inclusive têm sido utilizadas em casos envolvendo aplicativos digitais (iFood[1] e Gympass[2]), ou a celebração de acordos de cessação de conduta (TCC), não é suficiente e adequado enfrentar investigações, que podem durar anos e exigir a estrita observância dos direitos processuais, num contexto contraditório, que pode prolongar o processo de tomada de decisão para remediar a conduta anticompetitiva.

O desenho de soluções comportamentais ou estruturais eficazes é um desafio, uma vez que as condições de mercado tendem a mudar substancialmente, além de envolver questões como acesso a dados, interoperabilidade e portabilidade, que são difíceis de controlar.

Nos casos Google Shopping[3], Google AdWords[4] e Google Scraping[5], por exemplo, houve longos debates sobre os padrões de prova e a presunção de regimes de ilegalidade necessários para demonstrar os efeitos anticompetitivos das práticas analisadas. Isto acabou por determinar o arquivamento do processo.

Os conceitos de “mercado relevante”, “posição dominante” e “fechamento de mercado” enfrentam desafios adicionais em modelos de negócios baseados em dados, onde os efeitos anticoncorrenciais não relacionados com o preço permitem a configuração de situações de exclusão (por exemplo: exploração abusiva de dados, imposição de restrições à interoperabilidade, cópia de conteúdos em mercados de comparação de preços e relações de favoritismo em mercados de pesquisa etc.).

A definição de mercado relevante, focada na substitutibilidade e na participação de mercado, não considera a concorrência dentro do ecossistema, onde a competição por receitas emergentes de serviços complementares é mais relevante do que a rivalidade horizontal.

As estratégias utilizadas pelas plataformas digitais dominantes manifestam-se de formas que tornam difícil classificá-las como violações antitruste conhecidas, como “recusa de contratar”, “vinculação” ou “discriminação”.

Objetivos e fundamentos do controle prévio (ex ante)

O controle ex ante das plataformas e aplicativos digitais deve abordar as disfunções nos ecossistemas digitais como falhas funcionais e distributivas que afetam a geração e apropriação de valor, com peculiaridades em relação às falhas tradicionais de mercado[6].

A ideia seria adotar um modelo de diálogo contínuo, para orientar e garantir o cumprimento dos padrões de concorrência, reduzindo a necessidade de intervenções punitivas e permitindo uma aplicação mais ágil e adaptativa da lei, ajustando-se rapidamente às inovações do mercado.

Da mesma forma, esse modelo promoveria uma cultura de compliance, garantindo o pilar da prevenção voluntária de condutas, importante em qualquer jurisdição antitruste.

Assim, a intervenção antitruste “simultânea” promoveria a concorrência por meio da garantia pari passu da redução de barreiras à entrada, da contestabilidade dos mercados, da inovação (incremental, disruptiva ou radical) e o empreendedorismo (livre iniciativa).

A necessidade de um controle, não somente prévio, mas simultâneo, capaz de prevenir e impor imediatamente obrigações de proteção da concorrência aos operadores em mercados digitais, aliás, já foi objeto de legislação (hard law) ou regulamentação (soft law) em Jurisdições tradicionais.

A União Europeia aprovou no Parlamento Europeu o Digital Markets Act – DMA, lei para tornar os mercados no setor digital mais justos e contestáveis, estabelecendo um conjunto de critérios objetivos claramente definidos para identificar potenciais riscos à concorrência.

No Reino Unido, o Parlamento também aprovou o Digital Markets, Competition and Consumers Act – DMCC Act, ou Lei de Mercados Digitais, Concorrência e Consumidores, de 2024. Um projeto de lei apresentado pelo governo, incialmente à Câmara dos Comuns. O objetivo é a regulamentação da concorrência em mercados digitais, alterando a Lei da Concorrência de 1998 e a Lei Empresarial de 2002.  A nova lei também traz disposições relacionadas à proteção dos direitos do consumidor em mercados digitais.

Na Alemanha, o novo artigo 19-A da Lei Alemã da Concorrência, também com aprovação legislativa, a chamada “Lex GAFA” (iniciais de Google, Apple, Facebook e Amazon), do início de 2021, aborda “empreendimentos de suma importância para a concorrência em todos os mercados” e permite que o Bundeskartellamt, como autoridade da concorrência alemã, impeça certos comportamentos abusivos de detentores de grande poder de mercado. No entanto, procedimentos para declarar a Apple, o Facebook (Meta) e a Amazon como “empreendimentos de suma importância” (undertakings of paramount significance) ainda estão em andamento[7]. Embora, após quase um ano de avaliação, o Bundeskartellamt tenha declarado o Google (Alphabet) como um empreendimento de suma importância[8], medidas concretas ainda não foram tomadas.

O Senado dos Estados Unidos da América atualmente discute um projeto de lei conhecido como American Innovation and Choice Online Act (“AICO”)[9]. Tal proposição legislativa proíbe certas grandes plataformas on-line de se envolverem em atos específicos, incluindo dar preferência aos seus próprios produtos na plataforma, limitar injustamente a disponibilidade de produtos concorrentes de outra empresa ou discriminar na aplicação ou execução dos termos de serviço da plataforma entre usuários em situação semelhante.

Além disso, segundo a proposta em análise no Senado estadunidense, uma plataforma não pode restringir ou impedir materialmente a capacidade de um usuário comercial concorrente acessar ou interoperar com a mesma plataforma, sistema operacional ou recursos de hardware ou software. O projeto de lei também restringe a instalação ou desinstalação de software, funcionalidade de pesquisa ou classificação e retaliação por contato com a polícia em relação a violações reais ou potenciais da lei.

O que parece incontestável é a necessidade de adaptar e melhorar as leis de concorrência, as suas ferramentas e o desenho institucional das autoridades para serem capazes de fazer frente à dinâmica e inovadora economia digital e desempenhar o papel de prevenir e reprimir o abuso do poder econômico nesses mercados.

Conclusão

O “regulador” antitruste pode e deve adaptar o seu ferramental prático e teórico na medida em que novos desafios da realidade dinâmica dos mercados, especialmente os inovadores, se apresentam.

No contexto brasileiro, mostramos brevemente que isso vem sendo feito ao longo do tempo, com a adoção de soluções criativas, contudo realistas e fundamentadas, no direito e na economia, capazes de fazer frente à necessidade de implantação de providências para prevenir e remediar condutas potencialmente danosas.

Não há que se falar em “reorientação do direito da concorrência” em razão dos desafios postos pela Economia Digital. No máximo, estamos diante de uma adaptação. Os conceitos do direito da concorrência também continuam intocados, talvez merecendo um novo verniz, uma nova tonalidade.


[1] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcaPonKpemYl591TZDVz41cKkeMG3znSccU-isTZDv-qj. Acesso em: 05/07/2024.

[2] Processo Administrativo nº 08700.004136/2020-65. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcSAlNG3BEuxBuDxuaTl21JtluCsnT1rW6o6w8bRweD-x. Acesso em: 05/09/2024.

[3] Processo Administrativo nº 08012.010483/2011-94. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOb0rdAAnkZ36Rru6H33qbFO51_fjuVWb1uid6m5S5BxJ8gFyW8xprjnuylPdYbaX3VDhhG3SAtGWLJPIqjsEDX. Acesso em: 05/09/2024.

[4] Processo Administrativo nº 08700.005694/2013-19. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?2pXoYgv29q86Rn-fAe4ZUaXIR3v7-gVxEWL1JeB-RtUgqOwvr6Zlwydl0IhRNSr2Q22lByVKByYDYwsa13_Jxjwy0jsF2VUK9nLLMn4AapgzHPEyXU3WqUFUJvQc-tbB. Acesso em: 05/09/2024.

[5] Processo Administrativo nº 08700.009082/2013-03. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?2pXoYgv29q86Rn-fAe4ZUaXIR3v7-gVxEWL1JeB-RtUgqOwvr6Zlwydl0IhRNSr2Q22lByVKByYDYwsa13_JxuPKafcwvOhoHGvTOhF6VN9yQ1Q84rME0Sb3aYKzWyP2. Acesso em: 05/09/2024.

[6] Informação assimétrica, concentração de mercado, externalidades etc.

[7] Bauermeister, Tabea.  Section 19a GWB as the German “Lex GAFA” – lighthouse project or superfluous national solo run?   Working Paper Series No. 23/22. Jean Monnet Network on EU Law Enforcement Working Paper Series, p.2. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://jmn-eulen.nl/wp-content/uploads/sites/575/2022/05/WP-Series-No.-23-22-Section-19a-GWB-as-the-German-Lex-GAFA-Bauermeister.pdf. Acesso em: 06/09/2024.

[8] Idem, p.2.  Alphabet Inc. Google Germany GmbH (2021) B7-61/21 (BKartA).

[9] Disponível em: https://www.congress.gov/bill/117th-congress/senate-bill/2992/text. Acesso em: 18/09/2024.


Fernando de Magalhães Furlan. Antigo Secretario-Executivo do Ministerio do Desenvolvi mento, Industria e Comercio Exterior (MDIC) e assessor especial da CAMEX. Foi presidente do Conselho de Administracao do BNDES e da BNDESPAR. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE. Foi também diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. Atualmente e membro do grupo de especialistas do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL e consultor ad hoc de projetos de defesa da concorrência das Nações Unidas (UNCTAD). É professor de direito em Brasília e atua, como professor ou pesquisador, em universidades e institutos no Brasil e no exterior. É consultor externo ou membro não-governamental de organizações e institutos brasileiros e estrangeiros e consultorias. Graduado em Administração pela UDESC/ESAG e em Direito pela UnB, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela Universidade de Macau, China.


Termos de Compromisso: BCB chega a 100 homologados

Leandro Oliveira Leite

Tanto o Banco Central do Brasil (BCB) quanto o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) desempenham papéis cruciais na supervisão de suas respectivas esferas de atuação – o BCB na regulação do sistema financeiro e o Cade na defesa da concorrência econômica.

Para cumprir suas funções de maneira mais eficiente e ágil, ambas as instituições utilizam instrumentos que possibilitam soluções alternativas aos tradicionais processos administrativos sancionadores: o Termo de Compromisso (TC), no caso do BCB, e o Termo de Compromisso de Cessação (TCC), no caso do Cade. Além desses instrumentos, ambas as entidades também dispõem de acordos adicionais: o Acordo Administrativo em Processo de Supervisão (APS) pelo lado do BCB, e o Acordo de Leniência e o Acordo em Controle de Concentrações (ACC) pelo lado do Cade.

Apesar de serem instrumentos com objetivos semelhantes, existem algumas diferenças fundamentais em sua aplicação e impacto. A seguir, será feita uma análise comparativa desses instrumentos, destacando suas semelhanças e diferenças, além de uma visão quantitativa dos resultados obtidos por ambas as instituições.

Tanto o TC quanto o TCC são mecanismos que permitem às instituições envolvidas a correção de práticas inadequadas sem a necessidade de passar por um longo processo administrativo sancionador. O TC é utilizado pelo Banco Central como uma alternativa para que instituições financeiras cessem irregularidades antes ou durante o processo sancionador. De forma similar, o TCC do Cade é uma ferramenta para que empresas acusadas de práticas anticompetitivas possam encerrar as infrações e se comprometer a pagar contribuições pecuniárias, evitando penalidades mais severas.

Nos dois casos, as entidades investigadas devem realizar o pagamento de contribuições pecuniárias. No BCB, o valor arrecadado com o TC é destinado a corrigir as falhas identificadas, podendo também incluir ressarcimentos aos consumidores lesados. No Cade, o pagamento de contribuições pecuniárias é uma forma de penalizar as empresas envolvidas em condutas anticompetitivas, e os valores podem variar conforme a gravidade do caso.

O principal objetivo de ambos os instrumentos é garantir que as práticas prejudiciais sejam interrompidas. O BCB utiliza o TC para que instituições financeiras corrijam irregularidades como desvio de recursos, falhas em controles internos ou negligência em auditorias. No Cade, o TCC é aplicado para suspender práticas anticompetitivas, como cartéis e abusos de poder de mercado, promovendo um ambiente de concorrência saudável.

A principal diferença entre o TC e o TCC está na área de atuação de cada órgão. O BCB supervisiona instituições financeiras, como bancos, cooperativas de crédito e corretoras, garantindo que operem dentro das normas regulatórias estabelecidas. Já o Cade atua na defesa da concorrência em todos os setores da economia, inclusive também o mercado financeiro, investigando práticas que podem prejudicar o livre mercado, como formação de cartéis e abuso de poder econômico.

No Termo de Compromisso do BCB, as instituições financeiras não são obrigadas a confessar a prática de irregularidades. Elas apenas precisam cessar as práticas investigadas e implementar correções que garantam a adequação às normas regulatórias. Por outro lado, o TCC do Cade pode exigir que as empresas admitam a prática de infrações à ordem econômica ou, no mínimo, assumam o compromisso de cessar as práticas investigadas e adotar medidas que restabeleçam a concorrência no mercado.

O Termo de Compromisso do BCB, além de corrigir as práticas inadequadas, tem um foco forte no ressarcimento de clientes prejudicados. Desde a criação desse instrumento, o BCB obteve o ressarcimento a mais de 13 milhões de clientes. No TCC do Cade, o foco é principalmente na suspensão das práticas anticompetitivas e no pagamento de contribuições pecuniárias, sendo que os valores arrecadados são destinados ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD).

Além dos Termos de Compromisso, tanto o BCB quanto o Cade têm à sua disposição instrumentos complementares para lidar com irregularidades.

O Acordo Administrativo em Processo de Supervisão (APS) do Banco Central, por exemplo, pode ser celebrado quando uma instituição supervisionada confessa ilícitos, identifica os demais envolvidos e fornece provas das quais o BCB ainda não tinha conhecimento. Esse acordo permite a extinção da ação punitiva ou a redução da pena aplicada, dependendo da colaboração do investigado. O APS funciona de maneira semelhante ao Acordo de Leniência no Cade, mas é focado em questões relacionadas à supervisão do sistema financeiro.

Já no Cade, o Acordo de Leniência é um dos principais instrumentos para combater cartéis e outras práticas anticompetitivas. As empresas ou pessoas físicas que confessam a prática de infrações e cooperam com as investigações podem obter benefícios, como a isenção total ou parcial das multas que seriam aplicadas. Esse acordo é particularmente eficaz em casos de cartel, onde a cooperação entre as partes é essencial para identificar os demais infratores. O Cade também utiliza o Acordo em Controle de Concentrações (ACC) em processos de fusões e aquisições que possam gerar concentração econômica e diminuir a concorrência. O ACC permite que as empresas envolvidas se comprometam a adotar medidas que mitiguem os efeitos anticompetitivos, facilitando a aprovação das operações.

Comparação de números entre BCB e Cade:

O Banco Central celebrou, até 2024, 100 Termos de Compromisso, com um impacto direto na correção de irregularidades no sistema financeiro. Desde sua criação, em 2017, esses acordos resultaram no ressarcimento de mais de R$ 683 milhões aos consumidores e no recolhimento de R$ 300,9 milhões em contribuições pecuniárias pelas instituições financeiras envolvidas. Mais de 13 milhões de clientes foram diretamente beneficiados.

Pelo lado do Cade, até outubro de 2022, foram homologados 349 TCCs, resultando em R$ 724 milhões em contribuições pecuniárias aplicadas. Esses números demonstram o impacto financeiro considerável e a importância dos TCCs para o restabelecimento da concorrência no mercado e para a penalização de práticas anticompetitivas.

Esses acordos são importantes instrumentos de resolução de casos complexos, oferecendo benefícios tanto para o órgão regulador quanto para as empresas, como a suspensão de investigações em troca de compromissos que favorecem a concorrência.

O Termo de Compromisso do BCB e o Termo de Compromisso de Cessação do Cade são instrumentos fundamentais na manutenção da ordem econômica e financeira do Brasil. Embora operem em esferas distintas – o TC na supervisão do sistema financeiro e o TCC na defesa da concorrência –, ambos compartilham o objetivo de promover a correção de irregularidades e garantir que as práticas prejudiciais sejam interrompidas de forma ágil e eficaz.

Além disso, tanto o Acordo Administrativo em Processo de Supervisão do BCB quanto o Acordo de Leniência e o Acordo em Controle de Concentrações do Cade são ferramentas adicionais para garantir a colaboração dos envolvidos e a eficiência nas investigações, resultando em acordos que beneficiam a sociedade como um todo.

Logo, conforme vimos, em termos numéricos, ambos os instrumentos de compromisso de cessação de conduta têm obtido resultados expressivos, com o BCB beneficiando milhões de clientes e o Cade promovendo um ambiente mais competitivo. As contribuições pecuniárias e o ressarcimento aos clientes são componentes importantes de ambos os instrumentos, mas a ênfase do BCB está em proteger o consumidor e garantir a estabilidade do sistema financeiro, enquanto o Cade foca na promoção de um mercado justo e competitivo.


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


Clamor e chamas

Adriana da Costa Fernandes

O Brasil arde em mais de 60% de seu território.

Não se sabe, ao certo, o motivo de tamanha inclemência desse fogo. Em especial quando, quimicamente, é sabido que as chamas são produzidas a partir de um determinado ponto da reação, de combustão, chamado de “ponto de ignição”. E que apesar das secas vivenciadas, em várias partes do território, especialistas já indicaram que esta reação não se dá automaticamente.

A emergência climática vivenciada se tornou latente, em muito pouco tempo. O relógio global tocou e a natureza grita um impositivo “Chega, homem!”.

Não somente o Brasil, mas diversas partes do Mundo vivenciam severos dramas inerentes a este quadro negligenciados, minimamente, desde as ações pactuadas na ECO 1992, no Rio de Janeiro, até as conferências posteriores das ONU sobre o tema. Os alarmes soam cada vez mais gravemente, até mesmo pelo desiludido não atendimento às definições do Acordo de Paris e do Protocolo de Kyoto, diante da pouquíssima efetividade dos governos mundiais sobre a matéria.

2024 chegou apresentando a alta conta ao homem e ao globo.

A começar pela forte inundação dos Estados do Sul do País, onde, uma vez, passado o maior impacto, ao menos para quem se encontra fora de lá, o que restará à população local será uma gradual e lenta recuperação.

Logo a seguir, sobreveio a inclemente seca nacional, com altos indicadores de ausências de chuva em torno de 150 (cento e cinquenta) dias, ou mais, e os consequentes incêndios verificados, de grandes proporções, nas Regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, seja por causa raramente natural, seja, principalmente, pela mão criminosa de quem não se preocupa e não entende o que, de fato, faz.

Lavouras, plantações expressivas como as de cana-de-açúcar, café e o gado vêm sendo fortemente afetados. Em um cenário que, ao certo, logo ali à frente causará um novo forte impacto na economia nacional, afetando severamente, até mesmo, o custo de vida dos brasileiros. O PIB nacional e as exportações, inquestionavelmente, serão influenciados e a taxa básica de juros já foi novamente elevada.

Mas o Brasil segue inconsciente, vivendo imerso na forte polarização política contínua, cada vez mais arraigada em uma parcela da população que parece encontrar em si e em seus conceitos, alguma justificativa para seus atos eivados de insanidade, sem considerar o que quer que esteja sendo feito, tentado e efetivado pelas instituições em prol da melhoria da qualidade da vida urbana e rural da sociedade nacional nos últimos anos.

Do que se fala é, acima de tudo, de mitologia sim, mas de uma que se sustenta pela absoluta desinformação, acarretando o agravamento frontal da emergência climática não somente no país, mas no globo. Tudo é ecossistema, interligado, cada vez mais. E a crueldade e a insanidade identificada causa a extinção de vidas humanas, animais e até dos biomas. Enfim, da vida essencial e orquestrada pelo divino que dicotomicamente se defende e cultua, sendo frontalmente atacada.

Tudo em razão de pseudas utopias estreitas e por força de crenças desvinculadas da efetiva realidade. A maldade e a falta de uma cultura sustentável limpam campos por meio de altas chamas, mas, em muitos casos, apenas agindo por agir, por ordem coordenada, sem dimensão exata das consequências dos fatos ou quiçá, sem nem se preocupar com isto realmente.

Caos instalado.

Mas quem é esse que vive hoje ao seu lado?

Em que ele acredita e como age?

Quais as razões reais, conjugadas, para a adoção de ações tão irresponsáveis identificadas e mapeadas?

Limpeza de territórios para qual atividade posterior exatamente?

Quais são as áreas que se beneficiarão futuramente com os biomas altamente degenerados, completamente devastados e em demorado processo de recuperação e até passíveis a não recuperação efetiva?

Cenário: Uma caixa de fósforo, um pedaço de estopa ou um trapo qualquer, galões de álcool e muita má fé ardendo dentro de nacionais, que carregam em si a visão estreita de que o futuro não se encontra já na próxima curva, não parecendo compreender nada, de fato, acerca de posturas básicas inerentes a conceitos tão relevantes como soberania, justiça, segurança e democracia.

No meio da devastação dos incêndios, a Amazônia já conta com mais de 460 mil pessoas vivendo com extrema dificuldade. A capital da República e diversos Estados como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro também lidam com os fortes estragos.

Mais da metade das unidades de conservação, fundamentais para a conservação da biodiversidade mais pura, já se encontra atingida, indicando um aumento de 173% (cento e setenta e três por cento) de ocorrências em relação ao ano passado. E tendo sido identificado, ainda, que 75% destes severos eventos estão ocorrendo em terras da União, bem como 30% na Amazônia.

Pará, Tocantins, Mato Grosso do Sul divisa com Paraná, Bahia, Brasília e tantos outros pontos de riqueza absoluta, incomensurável, de um país continente, maculados sem que ainda se tenha a dimensão do tamanho dos efeitos, do prazo e da possibilidade de recuperação.

O raríssimo Araguaia, bioma único e unificador de outros como Amazônia, Cerrado e Pantanal foi altamente afetado. O Pantanal praticamente se foi, onde espécies nativas sofreram carbonizações e já se fala da possibilidade de não reversão.

Pessoas morreram, e morrem, lutando em diversas áreas, por casas, bens e comunidades. Idosos e crianças são muito afetados em sua saúde. Se tornou difícil dormir e agressivo viver mediante a ampliação da ansiedade e da depressão coletiva instalada.

Outras partes do mundo simultaneamente sofrem, e não somente o Brasil vivencia os impactos da inconsciência, seja decisória prévia, seja no relativo às ações individuais e atitudes coordenadas. Da mesma forma, países da Europa e os Estados Unidos, vem lidando com os impactos causados pelo homem.

Portugal, em sua região central, especialmente em Aveiro, padece e grita por apoio ao resto da União Europeia. Itália, Espanha e Grécia já enviaram socorro aéreo.

Igualmente nos Estados Unidos, especialmente, na Califórnia, que já aprendeu com episódios devastadores anteriores, já vem sendo utilizados satélites, drones e a inteligência artificial, de forma conjugada, visando uma atuação mais imediata, efetiva, para a minimização dos impactos.

Em outra linha, a Europa Central sofre com uma das maiores tempestades em 27 anos, inundando cidades da Hungria, República Tcheca, Polônia e se deslocando para a Itália, deixando rastros de inúmeros desabrigados e vários mortos.

A urgência se instalou, a emergência climática idem. O mundo caminha para a definição inquestionável de um estado de exceção climático onde os países unidos ou, ainda por meio dos blocos de nações, precisarão, de forma inconteste, abrir mão de uma parcela fundamental da sua soberania sobre tema, na tentativa de agir com pragmática agilidade e eficácia.

Carl Schmidtt afirmava em sua obra Teologia Política que pouco importa, do ponto de vista teórico ou prático, se o que se estabelece como a  definição de soberania é aceito ou não, até mesmo por defini-la como o poder supremo e original de comandar. Schmidtt compreendia que, na história da soberania, não há disputa sobre um conceito como tal. O que há é, em verdade, uma controvérsia sobre a sua aplicação, ou seja, sobre quem efetivamente deve decidir em caso de conflito, bem como, qual é o interesse a ser tutelado, público ou estatal, a segurança, a ordem pública, a saúde pública, etc.

Defende, ainda, que o caso excepcional, que não está previsto no ordenamento jurídico vigente, pode, no máximo, ser classificado como caso de extrema necessidade, de perigo à existência do Estado ou de outra forma análoga, mas não pode ser delimitado com rigor. Daí, então, ele parte apresentando suas conclusões,  justificativas e aponta logo nas primeiras linhas, que que soberano é quem realmente decide acerca do estado de exceção.

Portanto, uma vez que os governos do mundo todo vêm sendo demandados acerca da adoção de posicionamentos ágeis e efetivos, e que a parcela afetada da população com os episódios climáticos já segue endereçando aos órgãos jurisdicionais suas demandas, já será, de fato, em muito pouco tempo, que se verificará a definição de políticas públicas e leis comuns às nações, envolvendo tribunais multifacetados e correlacionados. Culminando, eventualmente, na criação de um novo tribunal de ordem constitucional mundial ou de alguns específicos, representativos de blocos, mas focados na matéria ambiental.

Do que se fala, portanto, são dos direitos humanos e sociais climáticos, talvez até mesmo da ampliação de escopo dos tribunais internacionais de direitos humanos já existentes, enquanto solução, ao menos, a priori, para o tratamento da problemática prática e legal em agravamento.

O fato é que passou da hora de agir, de forma urgente e integrada, em prol do futuro deste planetinha, ainda azul, e de cada um de seus habitantes.


Adriana da Costa Fernandes. Advogada com atuação em 3 eixos: Direito Público; Infraestrutura e Tecnologia (em especial Telecom, TI, Digital, Energia Elétrica e Ferrovias) e Cível Estratégico (foco em Consumidor e Contratos). Mestranda em Direito Constitucional pela UNINTER PR sob a tutela da Profa. Dra. Estefânia Barboza e com tese sobre PRAGMATISMO CONSTISTUCIONAL HUMANISTA na Era Digital, unindo Direito Constitucional, Digital, Filosofia e Ciência Política. Pesquisadora vinculada ao NEC CEUB DF sob a mentoria da Profa. Dra. Christine Peter da Silva e ao IDP – Observatório Constitucional do Professor André Rufino do Vale. Aluna da Escola de Magistratura do Distrito Federal – ESMA DF. Pós-graduada (MBA) em Marketing pela FGV RJ, especializada em Relações Governamentais e Institucionais (RELGOV) pela CNI / Instituto Euvaldo Lodi (IEL), com Extensão em Energia Elétrica pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e detentora de diversas titulações em instituições de renome Nacional e Internacional. Consultora e Parecerista. Com experiência em empresas renomadas, de portes expressivos e atuação em mercados relevantes e agências governamentais. Atualmente com escritório próprio e atuação voltada para Tribunais Superiores, Tribunal de Contas da União e CARF.


Conduta Unilateral – Influência e Promoção de Conduta Comercial Uniforme

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Quando falamos em Direito da Concorrência, as primeiras palavras que vêm à mente são cartel e ato de concentração, dado o destaque que a autoridade de defesa da concorrência dá na apuração, análise e solução destas questões. No entanto, há outras questões relevantes que também são analisadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”), dentre elas as chamadas condutas unilaterais.

Unilaterais porque não traduzem um acordo de mercado, um conluio envolvendo concorrentes, são individuais, mas possuem grande capacidade de gerar, ainda que potencialmente, efeitos deletérios ao ambiente competitivo. O artigo 36, da Lei de Defesa da Concorrência[1] (“LDC”), traz em seu texto uma lista não exaustiva destas condutas, cabendo, nesta oportunidade, o destaque para a influência e promoção de conduta uniforme.

O artigo 36, incisos I e IV e §3º, inciso II, da LDC, assim dispõe:

“Art. 36.  Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: 

I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; 

IV – exercer de forma abusiva posição dominante. 

§ 3o As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: 

II – promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes;”

De acordo com o sítio eletrônico do CADE, a “influência de conduta uniforme pode ser caraterizada como a realização de medidas com o objetivo de uniformizar a atuação de concorrentes em um dado mercado”[2]. Um exemplo desta conduta, com este objetivo, é o estabelecimento de tabelas de preço para uma determinada categoria, com intuito de uniformizar os preços dos agentes que atuam no mercado. Esta prática, muitas vezes, é realizada por associações, conselhos e sindicatos e a sua apuração e análise tem ganhado destaque.

“59. Neste sentido, entende-se que a influência para a adoção de conduta comercial uniforme pode se consubstanciar em uma diretriz, sugestão, recomendação ou, até mesmo, numa imposição para que outros agentes econômicos de um mesmo mercado adotem uma conduta comercial de acordo com a recomendação emanada.

60. Em outras palavras, a intenção de quem tece tais recomendações é a de influenciar a decisão de seus pares ou associados/filiados de maneira que não tomem decisões por si sós, mas que sigam um parâmetro estabelecido.

61. Apenas com vistas a elucidar o tema, constituem exemplos de práticas anticompetitivas adotadas sob a forma de recomendações a concorrentes: tabelas de preços; orientações sobre concessões de descontos; orientações de reajuste de preços; adoção de preços únicos feitas unilateralmente e impositivamente por órgãos classistas ou representativos de setores econômicos, como associações, sindicatos, federações e confederações.

62. Sob esse prisma, o Cade tem condenado como influência à adoção de prática comercial uniforme as recomendações a concorrentes veiculadas pelas associações empresariais e profissionais sob a forma de tabelas de preços mínimos não derivados de negociações bilaterais legítimas, proibição da concessão de descontos ou de contratação e de outras práticas restritivas da livre concorrência.” (Inquérito Administrativo nº 08700.004116/2023-37. Representante: Unimed Goiânia Cooperativa de Trabalho Médico. Representado: Associação dos Hospitais Privados de Alta Complexidade do Estado de Goiás – AHPACEG. Nota Técnica nº 129/2023/CGAA6/SGA2/SG/CADE, data 12.09.2023)

Os sindicatos, associações e conselhos de classe desempenham um papel fundamental em nossa sociedade, na medida em que são filiações que reúnem indivíduos e empresas que detêm interesses semelhantes, com o intuito de representá-los institucional, política e socialmente. Suas atividades são amplamente conhecidas, já que podem beneficiar seus membros e contribuir para o aumento da eficiência de mercado.

No entanto, não obstante os aspectos benéficos e pró-concorrenciais de sua atuação, por sua própria natureza, estão sempre expostos ao risco de serem responsabilizados por práticas anticoncorrenciais. Suas atividades são protegidas por direitos fundamentais previstos em nossa Constituição[3], como o direito à liberdade de expressão e à livre associação, mas que encontram limites nos princípios constitucionais[4] da proteção ao consumidor, da livre inciativa e da livre concorrência.

Neste sentido, a jurisprudência uníssona do CADE entende que sindicatos e associações de classe que atuem de modo a coordenar o mercado, uniformizando práticas, ainda que sem efeitos, podem causar prejuízos, potenciais ou efetivos, à ordem econômica e aos consumidores, estando sujeitos, desta forma, à persecução e atuação por parte da autoridade concorrencial, nos termos do artigo 31, da LDC. Os conselhos de profissões reguladas, de natureza de direito público, também são passíveis de controle pela lei antitruste.

“40. As associações e conselhos profissionais, usualmente, argumentam que sua atuação foge ao conceito de conduta comercial ou de atividade econômica, motivo pelo qual a Lei 8.884/94 não seria aplicável a elas.

41. A alegação não merece prosperar. Como acertadamente apontou a SDE, é pacífico no âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência a submissão das entidades representativas, inclusive Conselhos Profissionais, associações e sindicatos à legislação antitruste.

42. O entendimento encontra amparo no art. 15 da Lei 8.884/94 (art. 31 da Lei 12.529/2011), que dispõe expressamente: “Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituída de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal”.

43. Assim, qualquer um que pratica ato restritivo à concorrência está sujeito à legislação antitruste, ainda que sua atividade não tenha fins lucrativos e, independentemente de se tratar de pessoa natural ou pessoa jurídica de direito público ou privado.

44. O fato de a atuação das representadas estar amparada pela liberdade de associação, direito fundamental expressamente assegurado na Constituição Federal, não afasta a conclusão. O referido direito, obviamente, não é absoluto, e deve ser interpretado à luz dos princípios da unidade da Constituição e da concordância prática, daí a necessidade de compatibilizá-lo com os princípios constitucionais da ordem econômica, notadamente a livre concorrência e a livre iniciativa.

45. Ademais, como acertadamente destacou a SDE, os médicos, ao disponibilizarem um serviço no mercado e assumirem os riscos de sua atividade, exercem de maneira inconteste atividade econômica, caracterizando-se como verdadeiros concorrentes. Dessa forma, a atuação das representadas, ao estipular e negociar coletivamente os preços dos honorários médicos, pode afetar a concorrência no mercado de serviços médico-hospitalares. Daí por que não há dúvidas de sua submissão à Lei 8.884/94.

46. Diante das considerações, acima é forçoso reconhecer a competência da autoridade antitruste para analisar as condutas praticadas pelas representadas. Com isso, não se quer dizer que eventuais peculiaridades das atividades exercidas por profissionais liberais sujeitas à regulação de conselhos profissionais criados por lei devam ser totalmente desconsideradas na análise. Ocorre que tais características não se prestam para afastar a incidência da lei antitruste, mas sim para assegurar que a aplicação desta ocorra de forma coerente, como se verá mais à frente.” (PA 08012.001591/2004-47. Representante: SDE ex officio. Representados: Associação de Médicos de Hospitais Privados de Distrito Federal e outros. Voto Conselheira-Relatora Ana Frazão. Data 05.09.2015).

Neste contexto, no último dia 11[5], o Tribunal do CADE realizou ampla discussão acerca de metodologias de análise de tabelamento de preços, condenando, ao final, o Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Estado de Goiás (CRECI-GO)[6] por influência à conduta comercial uniforme nos serviços de corretagem em Goiás. Isto porque, as investigações realizadas pela Autarquia identificaram, no sítio eletrônico do CRECI-GO, documentos de caráter anticompetitivo[7], relacionados à imposição de tabelamentos mínimos de preço[8]. Não se tratava de mera recomendação ou sugestão, mas de imposição.

De acordo com o relator do caso, Conselheiro Diogo Thomson[9], o conjunto de documentos apurados levava os corretores de imóveis do estado de Goiás a crer que deveriam seguir os valores mínimos definidos na tabela de preços e que, em caso de descumprimento, sofreriam sanções. Além disso, o relator considerou, diante da potencialidade lesiva da adoção de tabelas somada às nuances do caso concreto, a citar, grande capacidade do CRECI-GO de influenciar seus credenciados e realidade contrária a obrigatoriedade de seguir tabela, que a conduta causou danos à concorrência, votando em prol da condenação da entidade, seguida por unanimidade pelos demais Conselheiros[10]

Ressaltou, durante o julgamento, que o CADE, no Ofício nº 2547/2018/CADE– que sistematiza alguns riscos aventados em seus julgados no tocante a tabelas –, abordou que a inserção destas em ambientes concorrenciais (i) mitiga a liberdade contratual, (ii) pode reduzir a competitividade entre concorrentes, tendo em vista que pode provocar elevação artificial vinculante no preço final do produto, em prejuízo ao consumidor, seja ele da cadeia de produção ou final, (iii) reduzir incentivos à inovação por levar a um arrefecimento concorrencial e consequentemente diminuir a pressão por diferenciação e melhoria contínua, e (iv) levar à queda da qualidade do produto ou serviço em razão da acomodação dos concorrentes. Neste sentido, há uma atuação incisiva do CADE na condenação de entidades representativas das categorias que congregam profissionais liberais que realizam tabelamento de preços. Além disso, também há relevantes julgados de condenações relacionadas à adoção de condutas comerciais uniformes em diferentes órgãos de classe.

Adicionou, ainda, que a seu ver, as tabelas, como conduta anticompetitiva de influência à adoção de conduta comercial uniforme, devem ser analisadas como ilícito por objeto:

 “93. Diante das nuances elencadas, entendo que as tabelas como conduta anticompetitiva de influência à adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes (art. 36, incisos I e IV c/c §3º, inciso II, da Lei nº 12.529/2011) devem ser analisadas como ilícitos por objeto, considerando dois níveis de presunção de ilicitude:

 I – Uma presunção absoluta de ilicitude aplicável à adoção de tabelas para o consumidor final, como nos casos mencionados de autoescolas, diante de sua nítida similitude com carteis hardcore; e

II – Uma presunção relativa de ilicitude para os demais casos, abarcando discussões não apenas da ausência de autoria e materialidade, mas também questões como: (i) se a adoção da tabela é obrigatória ou facultativa; (ii) se estabelece preços mínimos ou máximos; (iii) se influencia o comportamento dos filiados; (iv) se é usada como forma de compensação e/ou (v) se está vinculada a alguma imunidade antitruste decorrente de regulação pública com fundamento em legislação específica”.

Ademais, resumiu os pontos analisados em seu voto, de modo a possibilitar o desenvolvimento de um algoritmo hermenêutico que contribua para uniformizar um padrão de análise desta conduta. São eles:

“I – Determinação enquanto ilícito por objeto: tendo em vista o elemento objetivo da infração referente à aplicação de uma tabela de preços, esta deve ser considerada a priori como uma forma de restrição à concorrência, sendo entendida, portanto, como uma forma de ilícito por objeto, ensejando a análise de presunções distintas de ilicitude;

II – Análise de possíveis “imunidades antitruste” e distorções de utilização: anteriormente a quaisquer outros exercícios de análise, deve ser considerado se a tabela é ou não disciplinada por legislação específica, configurando uma espécie de imunidade antitruste. Sendo este o caso, não cabe análise posterior. Ainda assim, é central avaliar se a utilização efetiva da tabela cumpre precisamente a finalidade estabelecida pela norma, caso contrário (cenários de distorção da utilização vis-à-vis a legislação), volta-se à análise de sua presunção de ilicitude sob a espécie de ilícito por objeto;

III – Caracterização do alvo do tabelamento e adoção de presunção absoluta: em caso de tabelas voltadas ao consumidor final, deve ser aplicada presunção absoluta de ilicitude, configurando de antemão a natureza anticoncorrencial da conduta, dado que o repasse de preços se dá diretamente ao consumidor;

IV – Caracterização do alvo do tabelamento e adoção de presunção relativa: em quaisquer outros cenários, cabe a aplicação de presunção relativa de ilicitude focada na avaliação do contexto em que se insere a tabela, isto é, a análise das condições econômicas e jurídicas nas quais esta está circunscrita. Neste caso, o uso/aplicação da tabela pode ou não resultar anticompetitivo;

V – Análise efetiva das condições econômicas e jurídicas: na sequência, deve ser avaliada a relação de mercado e as particularidades econômicas e jurídicas que determinam a aplicação da tabela. Neste ponto se dá a análise das relações entre os agentes no mercado, elemento que pode ser sintetizado na relação entre o poder de mercado/posição dominante dos agentes envolvidos. O Gráfico 3 sintetiza de modo esquemático essas relações, que são exploradas de modo aprofundado a seguir.

VI – Avaliação de elementos adjacentes/específicas ao conjunto probatório: por fim, são considerados elementos particulares, como mecanismos de coerção, ameaça e boicote, relações específicas entre os elos do mercado ou entre diferentes entidades/agentes/profissionais, acordos de negociação coletiva etc. Trata-se de análise das particularidades de cada caso para além da dinâmica de mercado em si

Destacou, ainda, o relevante papel do CRECI-GO, na medida em que tem a competência de decidir acerca das inscrições de profissionais e empresas, manter registros profissionais, emitir carteiras e certificados, impor sanções disciplinares conforme a legislação vigente, dentre outras, ou seja, a entidade detém uma grande capacidade de influência sobre os seus credenciados, “consubstanciado assim o poder de influência à adoção de conduta comercial uniforme no mercado relevante”. Desta forma, e em razão deste fato, ressaltou jurisprudência da Autarquia no sentido de que a caracterização da conduta não está vinculada ao caráter impositivo da tabela.

“49. Observa-se que as entidades representativas têm sido punidas mesmo quando não há evidências de coação contra associados para adotar os valores definidos na tabela. Nesses casos, a existência de condições estruturais favoráveis à prática anticoncorrencial e de um relevante poder de influência das associações tem sido considerada suficiente para a caracterização da infração à ordem econômica.” (PA 08012.004020/2004-64. Representante: Ministério Público da Bahia. Representado: Conselho Regional de Medicina da Bahia – CMEB. Voto Conselheira Relatora Ana Frazão. Data 15.10.2014. SEI 0001396. Pág. 98.-207)[11]

E, por fim, esclarece que embora “seja possível que, em determinadas situações, se leve em consideração a natureza e a característica não sugestiva de algum tipo de tabela na análise da licitude/ilicitude da conduta não basta para isso a mera nomenclatura da mesma como sugestiva. A facultatividade eventual da tabela tem que advir de um contexto, que envolve o de poder de mercado/posição dominante de quem emite, o marco legal, a ausência de possibilidade de coerção/retaliação, a existência de poder compensatório ou de fatores de competição mitigantes, etc.

Dentro deste cenário, depreende-se que, na última sessão de julgamento, novos estândares de análise da conduta foram estabelecidas pela autoridade antitruste, visando à padronização da análise e a uniformização da jurisprudência, que guiarão a apuração dos demais casos envolvendo a sugestão/fixação de tabelas de honorários. Há diversos casos sob análise do CADE[12], no que concerne ao tabelamento, e esses padrões estabelecidos na última sessão de julgamento, dão as nuances, não apenas de como tais casos serão decididos, mas trazem diretrizes que deverão ser observadas pelas associações, sindicatos e conselhos, de modo a se enquadrarem à legislação concorrencial, evitando os prejuízos ao mercado e às sanções decorrentes de seu descumprimento.



Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Reforma Tributária

Luis Henrique B. Braido

Aceitei, com grande satisfação, o convite da WebAdvocacy para ocupar este espaço periodicamente. Em linhas gerais, pretendo escrever sobre Law & Economics e Organização Industrial, além de apresentar meu ponto de vista sobre algumas das políticas públicas em debate, com especial atenção para as reformas econômicas, as regulações setoriais e a política antitruste.

Atualmente, uma das principais discussões legislativas no país trata da regulamentação da reforma dos tributos sobre o consumo. Penso ser interessante utilizar este primeiro artigo para explorar alguns aspectos menos discutidos dessa mudança. Adotarei a seguinte estrutura. Inicialmente, descreverei os principais pontos da reforma, constantes na Emenda Constitucional 132, promulgada em 20 de dezembro de 2023, e no Projeto de Lei Complementar 68/2024, recentemente aprovado pela Câmara Federal e submetido à apreciação do Senado. Após esta breve descrição, apresentarei algumas preocupações quanto às escolhas feitas e analisarei os prováveis impactos dessas mudanças sobre o sistema produtivo e sobre nossa estrutura de competição.

A Emenda Constitucional 132/2023 prevê a adoção de um tributo sobre valor agregado de caráter dual, composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A CBS destina-se a financiar os gastos da União e será cobrada em substituição ao Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS). O IBS, por sua vez, destina-se ao financiamento dos entes subnacionais (i.e., o Distrito Federal, os Estados e os municípios), sendo cobrado em substituição ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e ao Imposto sobre Serviços (ISS). A unificação desses impostos se dará gradualmente, com longo período de transição durante o qual todos os tributos conviverão.

A Emenda Constitucional também estabelece a existência de alíquotas de referência para a CBS e o IBS, além de três regimes diferenciados, com reduções de alíquotas de 30%, 60% e 100% (isenção). A alíquota de referência para o IBS será, inicialmente, idêntica para todos os entes subnacionais, os quais serão autônomos para aprovar mudanças de valor por meio de legislação específica. Os bens e serviços incluídos em cada um dos diferentes regimes mencionados serão regulamentados por legislação complementar, a exemplo do que faz o PLP 68/2024, ora em discussão. A composição de produtos em cada classe de alíquota será, portanto, idêntica para todos os entes da federação. Há previsão de avaliação quinquenal de custo-benefício dos regimes diferenciados.

Os regimes especiais e simplificados para microempresas e empresas de pequeno porte (Simples Nacional) serão mantidos. Lei complementar disporá sobre regimes específicos de tributação para diversas atividades econômicas, tais como: combustíveis e lubrificantes; serviços financeiros; operações com bens imóveis; planos de assistência à saúde; sociedades cooperativas; serviços de hotelaria; parques de diversão; agências de viagens; bares e restaurantes; sociedades anônimas do futebol; aviação regional; transporte coletivo de passageiros rodoviário intermunicipal e interestadual, ferroviário e hidroviário; e repartições consulares.

A EC 132/2023 estipula, ainda, que legislação complementar estabeleça mecanismos para a preservação do diferencial competitivo assegurado à Zona Franca de Manaus e às áreas de livre comércio existentes em 2023, a saber: Tabatinga, no Amazonas; Guajará-Mirim, Boa Vista e Bonfim, em Rondônia; Macapá e Santana, no Amapá; e Brasiléia, Epitacolândia e Cruzeiro do Sul, no Acre.

Para esse fim, o Projeto de Lei Complementar 68/2024 reduz a zero, a partir de 2027, a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para os produtos que não foram efetivamente industrializados na Zona Franca de Manaus no ano de 2023. Para os demais produtos, incidirá IPI quando fabricados fora das áreas incentivadas.

Adicionalmente, o Projeto de Lei isenta da cobrança de CBS e de IBS as aquisições de bens intermediários utilizados no processo produtivo da indústria incentivada; regula a concessão de créditos presumidos sobre essas operações; autoriza a apropriação e utilização de créditos relativos a operações antecedentes; e concede crédito presumido na venda de seus produtos em território nacional. Tais créditos poderão ser utilizados apenas para compensação de CBS e de IBS, sendo vedada a compensação de outros tributos ou o ressarcimento.

Imposto Seletivo

Outro aspecto tratado no PLP 68/2024 é a regulamentação do Imposto Seletivo (IS) com incidência sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, conforme previsto no art. 153, VIII, da Constituição Federal de 1988. Esse tributo se assemelha à tributação defendida pelo economista inglês Arthur Pigou, no século XIX, sobre produtos geradores de externalidade negativa (no caso concreto, à saúde e ao meio ambiente). Tal tributo teria a finalidade de igualar o custo privado ao custo social de tais produtos e, assim, melhorar a eficiência alocativa diante dessa falha de mercado.

O Imposto Seletivo será cumulativo, não podendo ser compensado pelos demais elos da cadeia produtiva. Sua arrecadação será dividida entre a União e os entes subnacionais. O texto aprovado na Câmara Federal e, atualmente, em discussão no Senado prevê sua incidência sobre alguns tipos de veículos, embarcações e aeronaves; produtos fumígenos; bebidas alcoólicas; bebidas açucaradas; e bens minerais extraídos.

Origem versus Destino

Diferentemente do atual modelo do ICMS e do ISS, restou estabelecido na EC 132/2023 que o IBS será calculado a partir da soma das alíquotas do Estado e do Município no qual ocorrer o consumo do produto (destino), ao invés daquelas vigentes no local de sua produção (origem). Desta forma, ao escolherem suas alíquotas de IBS, os entes subnacionais definirão os impostos incidentes sobre seus próprios consumidores e não mais, como é hoje, sobre os cidadãos de todo o país. Este aspecto da reforma tem o potencial de aproximar os eleitores dos legisladores responsáveis pela definição das alíquotas de IBS.

Além disso, a cobrança no destino elimina a chamada “guerra fiscal”, caracterizada pelo poder de se conceder isenções ou reduções seletivas de ICMS ou de ISS com o intuito de atrair firmas de outras localidades do país. Isso porque as alíquotas de CBS e de IBS independerão do local de produção do bem.

Método de Cobrança

O recolhimento de tributos sobre valor agregado ocorrerá em cada fase do processo produtivo, com compensação integral dos tributos já recolhidos nas fases anteriores, conforme estabelecido na EC 132/2023. Esse sistema de compensação evita a criação artificial de ganhos de consolidação de cadeias produtivas interestaduais. A tributação final ao consumidor será a mesma, seguindo a alíquota vigente no local de destino, independentemente do caminho percorrido pelo produto nas suas diversas fases de produção.

Uma “novidade” no sistema tributário brasileiro é o fato de as alíquotas da CBS e do IBS incidirem sobre o preço efetivamente recolhido pelo revendedor, sem esses impostos. Esse preceito tributário é denominado “método por fora”. Atualmente, no Brasil, vigora o “método por dentro” no qual o tributo incide sobre o preço final do produto pago pelo consumidor, com os impostos. Ou seja, no sistema atual, há cobrança de imposto sobre o próprio imposto.

Um exemplo pode ajudar a compreensão dessa questão. Consideremos um produto sobre o qual incida apenas ICMS – ignorar, nesse momento, a existência de outros impostos simplifica a explicação. No sistema atual, se o preço ao revendedor for 100 reais e a alíquota de ICMS for 20%, o preço final do produto será 125 reais, sendo 100 reais destinados ao revendedor e 25 reais destinados ao fisco (25 reais equivalem a 20% de 125 reais). No novo sistema, o imposto incidirá sobre o preço ao revendedor (100 reais) e não mais sobre o preço final (125 reais). Dessa forma, para arrecadar os mesmos 25 reais, precisaríamos de uma alíquota de 25% ao invés de 20%. Essa explicação é importante para se avaliar corretamente as discussões sobre os possíveis valores das alíquotas de referência.

A cobrança de imposto sobre o próprio imposto (“método por dentro”) é usada também para o ISS, o PIS e o COFINS. Trata-se de impostos sobre o faturamento total o qual já embute os próprios impostos. A multiplicidade de impostos incidindo sobre o preço final ou, equivalentemente, sobre o faturamento total gerou uma calorosa controvérsia tributária: A base de cálculo de um imposto deveria incorporar os demais impostos? Após longa discussão no judiciário, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a base de cálculo do PIS e do COFINS não deveria incluir o ICMS recolhido. O conteúdo prático dessa decisão foi incorporado na Lei 14.592/2023.

Assim, segundo a interpretação que predominou no Brasil, apesar de haver incidência de um imposto sobre ele mesmo (“método por dentro”), não deveria haver incidência cumulativa das contribuições federais sobre o imposto estadual. Entretanto, a partir dessa decisão, nascem diversas outras questões tributárias. Por analogia, não deveríamos excluir o PIS e o COFINS da base de cálculo do ICMS? O ISS também não deveria ser excluído da base de cálculo do PIS e do COFINS e vice-versa? E por que não excluir o PIS da base de cálculo do COFINS e vice-versa? Algumas dessas questões encontram-se, de fato, em disputa no sistema judiciário.

Felizmente, ao adotar o “método por fora”, o novo modelo tributário se desprende, definitivamente, dessas controvérsias. Não haverá mais cobrança de um tributo sobre ele mesmo, tampouco de um sobre outro. Para tanto, haverá ajuste no nível das alíquotas.

Múltiplas Alíquotas

Conforme já mencionado, a Emenda Constitucional que institui a reforma dos tributos sobre consumo previu a existência de três regimes diferenciados (com descontos sobre as alíquotas de referência), além de regimes específicos para diversas atividades econômicas. Nesse aspecto, o texto final se distanciou da concepção original da reforma, a qual comtemplava a adoção de alíquota única para todos os bens e serviços. Quais seriam os prós e contras de cada opção?

Do ponto de vista teórico, a melhor forma de se tributar o consumo – no sentido de gerar a menor distorção alocativa possível para um dado nível de arrecadação – seria através da fixação de alíquotas mais altas para produtos cujo equilíbrio de mercado fosse menos sensível a preço, por apresentarem demanda ou oferta menos elásticas. Isso porque, ao se impor um tributo sobre o consumo, cria-se uma diferença entre o preço pago pelo consumidor e aquele recebido pelo produtor, desestimulando a produção e o consumo. Quanto mais sensível um desses lados do mercado for à distorção tributária, maior o custo social do imposto, refletido na queda da produção, do consumo e, consequentemente, do bem-estar social. Devemos esse resultado teórico ao matemático e economista inglês Frank Ramsey, nascido no início do século XX e que, apesar de sua vida breve, deixou contribuições disruptivas nos campos de tributação e de crescimento econômico, além de trabalhos relevantes em matemática e filosofia.

Do ponto de vista prático, entretanto, alguns profissionais argumentam ser difícil mensurar tais elasticidades, além do fato de o debate parlamentar sobre alíquotas ser mais influenciado por lobbies setoriais do que por argumentos de eficiência alocativa.

Por um lado, o se permitir alíquotas diferenciadas e regimes específicos, abriu-se espaço para que alguns privilégios setoriais existentes no atual sistema sejam mantidos ou até ampliados. Isso, invariavelmente, recairá sobre a produção e o consumo dos setores não agraciados com os descontos. O sistema com uma só alíquota para todos os produtos resolveria esse problema. Entretanto, o custo social (“peso morto”) gerado por tal sistema unificado seria maior relativamente ao caso ideal, no qual as alíquotas fossem definidas de acordo com a teoria de Ramsey.

Difícil saber se o sistema desenhado constitui uma boa solução de compromisso. A consolidação de alíquotas proposta simplificará a estrutura atual, reduzindo o espaço para disputas judiciais. Incomoda-me, entretanto, o grande número de setores com regimes específicos; a existência de setores completamente isentos; e o fato de o debate sobre os descontos de alíquotas estar baseado, quase que exclusivamente, em argumentos redistributivos, ignorando-se os aspectos de eficiência alocativa.

Pessoalmente, penso que a tributação de rendimentos e a alocação do gasto público sejam formas mais adequadas de se promover redistribuição de renda. Além disso, no âmbito da reforma, já existe a previsão de devolução personalizada de tributos aos membros de grupos sociais vulneráveis, por meio da adoção de programa de “cash back”. A execução desse programa demandará cuidados para se evitar fraudes, tais como a compra com isenção, utilizando a identidade de indivíduos beneficiados pelo programa, para posterior repasse a famílias não beneficiadas. Resolvidas essas questões de ordem prática, a restituição a consumidores selecionados me parece ser uma forma mais direta de se promover redistribuição. Descontos e isenções universais, contemplando todos os consumidores, retiram o foco da política redistributiva e reduzem seu impacto sobre os mais necessitados.

Impactos Econômicos

A reforma tributária em discussão possui pelo menos dois pilares com importantes impactos econômicos. Primeiramente, a simplificação do sistema – com a adoção de menor número de alíquotas, de maior uniformidade de regras e de maior amplitude na compensação de tributos recolhidos em diferentes fases do processo produtivo – facilitará o cumprimento das obrigações tributárias, fortalecerá o ambiente de negócios e, possivelmente, reduzirá a evasão fiscal e a informalidade.

Em segundo lugar, a cobrança no local de consumo do produto (destino), ao invés de seu local de produção (origem), padronizará a tributação de bens produzidos em diferentes localidades, favorecendo significativamente a livre concorrência no mercado de destino.

Adicionalmente, esse aspecto da reforma eliminará relevantes ineficiências geradas pelo conflito tributário entre regiões do país. Do ponto de vista industrial, a localização ideal para se produzir algo deveria minimizar os custos de produção, incluindo o transporte dos insumos e a distribuição do produto final. Uma vez verificada a disponibilidade local de serviços essenciais, tais como energia elétrica e telecomunicação, a decisão de onde instalar uma planta produtiva deveria depender dos custos de se atrair mão de obra qualificada, da localização de fornecedores e de consumidores, bem como do acesso a diferentes modais de transporte. Desviar-se dessa lógica por razões de natureza tributária produz ineficiência técnica e alocativa, aumentando os custos de produção e, consequentemente, os preços aos consumidores. A reforma ataca esse problema de forma direta, apesar de contemplar um período de transição longo e de manter os incentivos à produção industrial de determinados produtos em áreas específicas da região Norte, geralmente distantes de fornecedores e de consumidores.

Por fim, convém destacar que o término dos conflitos regionais para atrair empresas (“guerra fiscal”) não eliminará a saudável competição tributária entre os entes subnacionais. A decisão sobre as tarifas de IBS possui impacto direto no bem-estar da população local, além de constituir importante vetor de atração de novos habitantes. O novo sistema tributário permite a convivência de regiões com maiores ou menores níveis de impostos e de provisão de serviços públicos, com efeitos exclusivos aos habitantes locais.

IA Hype – hiperentusiasmo e exaltação marketeira

Maxwell de Alencar Meneses

Em maio de 2024, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) apresentou sua contribuição ao projeto de lei (PL) destinado a regular a Inteligência Artificial (IA). Existem preocupações sobre o uso de algoritmos que podem facilitar estratégias anticompetitivas e dificultar a detecção e punição pelas autoridades competentes. Também se discute a necessidade de equilibrar a regulação da IA com incentivos à inovação, considerando os riscos e benefícios.

O órgão mantém, assim, sua postura equilibrada de advocacia da concorrência, evitando açodamentos, como já demonstrado no caso do projeto de lei de congelamento de preços durante a Covid, ou na questão da proibição da cobrança por bagagens em voos nacionais (CADE, 2020). A atual proposta inclui a criação de um sandbox regulatório como uma estratégia para testar e monitorar algoritmos de IA em um ambiente controlado. A ideia é equilibrar a regulação da IA com incentivos à inovação para evitar barreiras à entrada e promover a concorrência. (CADE, 2024)

Adicionalmente, o próprio Superintendente-Geral do Cade, Alexandre Barreto, de acordo com entrevista publicada no Valor Econômico por ocasião de sua recente recondução ao cargo, ao ser perguntado a respeito da IA como problema concorrencial em si, afirma de modo muito ponderado e pragmático que não seria possível dizer que se tornará um problema específico. No entanto, ele destaca que a IA é um instrumento que, se usado para infração econômica, entra na atuação do Cade, não pelo instrumento em si, mas pela sua utilização em efeito anticompetitivo. (OLIVON; PIMENTA, 2024)

Dessa forma, é possível extrapolar que ferramentas como bancos de dados, planilhas ou aplicativos de mensagens podem ser utilizadas para diversas infrações, incluindo delitos econômicos. Nesse sentido, exemplifica-se que a criação da planilha eletrônica, com suas atualizações automáticas, representou uma revolução em relação às versões datilografadas, acelerando muitos processos de trabalho e, infelizmente, também facilitando atividades criminosas. No entanto, isso não levanta questionamentos sobre uma eventual descabida necessidade de regulamentar o uso do pacote Office em si. Ressaltando de início, que nenhuma das cogitações desse texto representam a opinião de nenhuma instituição em particular, nem mesmo do autor, apenas de um teste de hipótese para fins de reflexão.

Logo, esse equilíbrio observado no Cade pode estar ausente em outras esferas. Muito se discute sobre os perigos da IA, frequentemente em tom apocalíptico, e não é difícil encontrar argumentos que sustentem essa visão. No entanto, sigamos aqui pela estrada menos percorrida, como em um teste científico para avaliar o verdadeiro estágio da IA ou se isso não passa de mais uma onda de marketing comum no ambiente tecnológico, usada para gerar interesse em novos produtos. Considerando que mudanças na sociedade frequentemente surgem de pensamentos entrópicos — ou seja, desvinculados de certezas estáticas estatais — é essencial manter a mente aberta. Como dizem: use a criatividade.

Por essa estrada menos percorrida, portanto, serão visitadas avaliações de cenários por parte de autoridades, assim como serão revisitadas ações comparáveis da história recente que podem lançar luz sobre as questões levantadas, iniciando pelo hype.

Nesse sentido, o Ph.D. em aprendizado de máquina pela Universidade Columbia, ex-professor da mesma instituição, escritor, CEO e co-fundador da Gooder AI, Eric Siegel, afirma categoricamente que o que vemos nas manchetes acerca da IA generativa (aquela que cria conteúdo em resposta a comandos dos usuários), em suas palavras, “It’s hyperbole. It’s hype.” Segundo Siegel, embora a tecnologia atual de fato ofereça eficiências e capacidades de automação, no mundo real ele não acredita que, tão cedo, ou sequer que haja avanços consistentes na direção da replicação da inteligência humana (SIEGEL, 2024).

Ao falar sobre incerteza, que é muitas vezes característica do hype, Jason Abelak, professor de economia na Yale School of Management, afirma que a IA representa um momento revolucionário na tecnologia, mas ainda há muitas incertezas sobre seu verdadeiro potencial. Abelak, assim como este artigo, questiona: estamos em um momento em que o progresso tecnológico irá acelerar drasticamente, resolvendo muitos dos problemas complexos que enfrentamos, ou a tecnologia existente basicamente estagnará? (GOOD WORK, 2023)

Como efeito colateral do hype ou de suas características, observam-se paralelos com danos ao progresso e ao acesso a tecnologias emergentes, algo que já ocorreu no passado. John Coogan, economista formado pela Northeastern University, CTO, documentarista e cofundador da Soylent e Lucy, e atualmente Entrepreneur-in-Residence no Founders Fund — que tem em seu portfólio empresas como OpenAI, Nubank e SpaceX —, afirma em seu documentário “AI Regulation, Explained” que a IA “acabou de se tornar nuclear”. Ele argumenta que, assim como aconteceu com o desenvolvimento da tecnologia atômica, a IA está gerando preocupações globais, e o futuro dessa tecnologia pode ser ameaçado por uma regulamentação excessiva, baseada no medo.

Coogan destaca que, após a criação da bomba atômica, o foco se desviou de uma visão promissora de energia nuclear abundante para uma corrida armamentista, sufocando o progresso civil. A IA pode estar seguindo um caminho semelhante, sendo amplamente utilizada por governos e militares, enquanto o público em geral se beneficia pouco dessa tecnologia. Portanto, em sua visão, seria necessária uma regulamentação equilibrada, que evite o bloqueio total da inovação e assegure que a IA traga benefícios reais, sem se tornar uma ferramenta de controle autoritário ou causar danos irreversíveis à sociedade (JOHN COOGAN, 2023).

Esse bloqueio indesejável mencionado por Coogan, causado pela mistura de hype e medo (hype-medo), já começa a se manifestar devido a regulações. O Brasil, assim como a União Europeia, ficou de fora do lançamento da IA da Meta em razão de entraves regulatórios. Enquanto isso, as ferramentas foram disponibilizadas em outros países da América Latina, como Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru. Segundo uma reportagem da CNN, no início de julho, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) notificou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) sobre a forma como a Meta estava utilizando as informações dos usuários de suas redes sociais no Brasil para treinar sua inteligência artificial (BRITO, 2024).

Curiosamente, o hype-medo, funciona como um propulsor regulatório, sob a égide da proteção do uso de dados, tanto que para combater vazamentos e roubos de dados, o governo brasileiro decidiu parar de utilizar até mesmo o WhatsApp. Ricardo Cappelli, presidente da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial), abrirá uma licitação para escolher uma plataforma nacional de mensagens que garanta a preservação do sigilo nas comunicações da alta cúpula do governo. Cappelli argumenta que grandes plataformas de mensagens não devem ser usadas para a troca de informações no governo nem pelos demais poderes da União. De acordo com ele, essa alternativa visa aumentar a segurança na comunicação interna e evitar o vazamento de informações altamente sensíveis. Com essa nova iniciativa, as autoridades esperam “proteger a soberania” do país. (WIZIACK, 2024)

Essa proteção, sem fazer juízo de valor, remete ao caso em que o presidente Obama assumiu a responsabilidade pela espionagem da presidente Dilma Rousseff (MACEDO, 2013), levando o Serpro a criar o sistema Expresso V3 para evitar esse tipo de problema. Esse sistema, entretanto, foi descontinuado, e, a partir de 2017, o Zimbra, baseado em uma plataforma de software livre da empresa norte-americana Synacor, foi adotado como nova solução de e-mail para órgãos públicos. Em 2021, o Serpro finalizou a migração do correio eletrônico Zimbra, que usava o Google, para o Office 365 (CONVERGÊNCIA DIGITAL, 2021).

Exemplificando a que destino essa linha regulatória pode levar, a situação também remete à lei de internet soberana promulgada por Putin em 2019, que foi seguida pelo banimento de mídias sociais populares por serem estrangeiras (IYENGAR, 2022). De forma semelhante, Biden sancionou uma lei nos Estados Unidos banindo o TikTok (FUNG, 2024). Agora, as exigências brasileiras colocam o Brasil na lista de países onde o aplicativo X está proibido, como China, Coreia do Norte, Irã, Rússia, Nigéria, Mianmar e Turcomenistão (VICTORIA NOGUEIRA ROSA, 2024).

Nota-se que, segundo Barcellos (2024), a popularização do WhatsApp no Brasil realmente começou em 2013, ainda sem o mesmo impacto e relevância que tem atualmente. Talvez por isso, no caso da espionagem do governo Dilma por Obama e seus desdobramentos tecnológicos, o WhatsApp não tenha sido incluído no esforço original de criação de aplicativos nacionais substitutivos, como ocorre agora com as atuais preocupações.

Nesse sentido, parece que há um retorno ao “cenário do crime” anterior (espionagem), aplicando aparentemente o mesmo remédio precipitado, que ao longo do tempo se mostrou inviável e custoso, ou ainda cortinas de ferro digitais aplicadas em experiências autoritárias e ineficazes (THORNHILL, 2022). Além disso, o vai e vem nas estratégias adotadas tem se revelado ainda mais oneroso, já que mudanças de plataformas tecnológicas são, em geral, bastante dispendiosas. Em países como os EUA, por exemplo, mesmo sendo pioneiros em avanços na área, sistemas legados são mantidos por anos justamente para evitar essas transições custosas. Esse contexto pode explicar a acusação de obsolescência programada a que algumas plataformas estão sujeitas por meio de hype de inovações, um problema que, de certo modo, o Linux ajudou a amenizar, devido a capacidade de operar em máquinas antigas e de hardware limitado. É o que ocorre, por exemplo, com as atuais promessas de incorporação de IA em tudo. (KING, 2016).

Aliás, o criador do Linux, Linus Torvalds, em evento da Linux Foundation, também refletiu sobre o hype em torno da IA, observando que, atualmente, todas as empresas afirmam ter um foco em IA. Apesar das preocupações de que a IA possa substituir empregos como programação ou criação de filmes, ele expressou ceticismo em relação a essas alegações.

Com base em experiências passadas com sistemas de IA que não eram realmente inteligentes, Torvalds argumenta que é essencial aguardar para ver o que a IA realmente será capaz de realizar em 10 anos. Ele desconfia de promessas exageradas, comparando o alvoroço em torno da IA a tendências tecnológicas anteriores, como criptomoedas e computação em nuvem.

Torvalds pede cautela diante do exagero, destacando que, embora a IA possa automatizar tarefas e aumentar a eficiência, é improvável que substitua completamente os profissionais. Para ele, o verdadeiro potencial da IA será revelado ao longo do tempo, em vez de ser definido pela empolgação imediata que a cerca atualmente. (SAVVYNIK, 2024)

Esse hype, por alguns, é visto como uma bomba relógio. Na reportagem da CNBC, intitulada “AI’s trillion dollar time bomb”, é justamente abordada a crescente onda de investimentos em IA generativa por gigantes da tecnologia, como Microsoft, Google e Meta, que tem gerado preocupações sobre o retorno real dessas apostas bilionárias.

A matéria aponta que, enquanto há promessas de grandes avanços em produtividade e inovação, o progresso tangível tem sido modesto, com o setor de IA ainda lutando para apresentar aplicativos que justifiquem o enorme capital empregado. Empresas estão gastando bilhões em infraestrutura, como chips e data centers, mas o retorno financeiro esperado ainda é incerto.

Analistas alertam que, embora o potencial da IA seja promissor, ele pode levar mais tempo do que o previsto para se materializar, comparando a situação com a bolha da internet dos anos 2000. Apesar disso, muitos continuam otimistas de que os benefícios a longo prazo surgirão, mas enfatizam a necessidade de paciência e realismo quanto ao impacto imediato da IA. (CNBC TELEVISION, 2024)

Reforçando o coro da incerteza característica de um hype, a revista The Economist, em seu artigo intitulado “AI needs regulation, but what kind, and how much?”, explora o crescente debate sobre a regulamentação da IA, destacando a tensão entre os riscos existenciais de longo prazo e os danos imediatos da tecnologia. Segundo a matéria, diferentes abordagens estão sendo adotadas globalmente, desde a autorregulamentação até leis abrangentes. No entanto, a incerteza sobre o futuro da IA e seus impactos potenciais levanta a questão: talvez seja prematuro impor regulamentações rígidas sem uma compreensão completa do que regular e como fazê-lo de forma eficaz. (THE ECONOMIST, 2024)

Ainda sobre regulação desmedida, na história recente a respeito de outra hype, em 2018, Bill Clinton, na Ripple’s Swell Conference em San Francisco, expressou preocupações sobre a regulamentação excessiva de tecnologias emergentes, como blockchain. Clinton argumentou que, enquanto a regulamentação é necessária para proteger os mercados e os consumidores, uma abordagem excessiva pode sufocar a inovação. Naquela ocasião, ele comparava a regulamentação excessiva com o risco de matar a ‘galinha dos ovos de ouro’ da tecnologia blockchain, que, em seus estágios iniciais, poderia sofrer com regras rígidas que limitariam seu crescimento e potencial revolucionário. (HIGGINS; FLOYD, 2018)

Continuando pelo caminho da infinita hype, chega-se a avaliação de Steve Case, ex-CEO e presidente da America Online e ex-conselheiro do governo Obama, que viveu o auge da bolha das pontocom em 2000. Reconhecido como um dos empreendedores mais influentes da história da internet (“Steve Case”, 2020), Case falou na cúpula ‘Forjando o Futuro dos Negócios com IA’ da Imagination In Action sobre as semelhanças entre o boom da IA e o boom das pontocom, além das lições que os empreendedores de IA podem aprender com aquele período.

Segundo Case (FORBES, 2024), uma semelhança é que a tecnologia, seja a IA ou a internet, vinha se desenvolvendo há décadas, com 75 anos de investimento em torno da IA. Nos últimos 18 meses, a tecnologia acelerou consideravelmente, principalmente devido ao sucesso repentino do ChatGPT, que levou 75 anos para ser desenvolvido.

Case recorda que o mesmo aconteceu com a AOL. Fundada em 1983, na época apenas 3% das pessoas estavam online, e essas 3% passavam cerca de uma hora por semana na internet. Durante uma década, de 1985 a 1995, poucos se importavam com a internet; o foco estava em semicondutores, computadores pessoais e software. A maioria não acreditava que a internet se tornaria um fenômeno mainstream. Era vista como uma tecnologia de hackers e entusiastas de computadores. Mas em 1995, a internet acelerou e se tornou uma mania. As empresas começaram a mudar seus nomes para algo.com, assim como agora vemos empresas mudando seus nomes para algo com IA para estar na moda. A U.S. Steel, por exemplo, agora é U.S. Steel AI. Isso indica que a tecnologia chegou ao seu momento.

Case lembra de uma música antiga que diz: ‘Algo está acontecendo aqui, mas o que é, não está exatamente claro.’ Em 2000, muitas empresas .com abriram o capital, e muitas acabaram falindo. Houve uma visão de um ‘inverno nuclear da internet’, mas as empresas que sobreviveram, como Google e Facebook, conseguiram se tornar significativas e icônicas. Passava-se da fase em que a pesquisa estava sendo feita, mas sem tração significativa, para uma fase de atenção e crescimento.

Case espera que a IA possa passar para a próxima fase de forma menos disruptiva do que o boom das pontocom, onde 90% das empresas faliram. Ele ressalta que, embora haja preocupações com a regulamentação excessiva sufocando a inovação, nenhuma regulamentação também não é uma resposta adequada. Ele observa que as propostas atuais na Europa podem exagerar e sufocar a inovação, mas uma abordagem equilibrada é necessária.

Na última cúpula de IA do Senado americano, Case destacou a importância de garantir que, ao pensar em proteções e regras, o foco esteja em permitir que novas empresas comecem e cresçam, evitando a captura regulatória que poderia beneficiar apenas os operadores históricos.

Ele recorda que, em 1985, era ilegal para consumidores ou empresas estarem na internet, que era restrita a instituições educacionais e agências governamentais. O Congresso aprovou uma lei de telecomunicações para criar uma internet comercializada, e a FCC determinou o acesso aberto. Não bastava criar novas empresas de telefonia; era necessário permitir que outras, como a AOL, operassem em suas redes. Sem isso, os custos não teriam diminuído, a inovação não teria acelerado e empresas como a AOL não teriam existido.

Case resume as lições para a IA, ressaltando a importância de garantir que ela seja aberta e permita o surgimento de novas empresas, em vez de apenas fazer as grandes empresas de tecnologia se tornarem ainda maiores. Ele acredita que devemos errar para o lado de garantir que a IA seja acessível a todos e que os líderes em IA daqui a 20 anos sejam novas empresas e empreendedores que ainda não existem. Assim como na internet, onde os líderes não eram empresas como AT&T ou IBM, que gastaram um bilhão de dólares para lançar um empreendimento online chamado Prodigy e falharam, novas empresas surgiram e moldaram o cenário. Segundo o bilionário, esse é o arco da inovação e da história americana.

Portanto, ainda no contexto de incerteza, que desenha o retrato falado de uma hype, percebe-se uma estratégia mais coerente, no mesmo sentido proposto pelo Cade. Em seu artigo Regulatory Sandboxes for AI: A Policy Approach, a OECD sugere o uso de sandboxes de IA devido à sua capacidade de permitir a experimentação de tecnologias emergentes em um ambiente controlado e regulado. A principal vantagem desses sandboxes é que eles oferecem um espaço seguro para testar inovações enquanto gerenciam os riscos associados, promovendo a colaboração entre desenvolvedores, reguladores e outras partes interessadas. Essa abordagem não apenas facilita a inovação responsável, mas também garante maior transparência e permite que as tecnologias sejam avaliadas com base em critérios claramente definidos, otimizando assim os benefícios para a sociedade. (FERRANDIS; PERSET; YOKOMORI, 2023)

Em outra avaliação consonante com o que já foi descrito aqui, em dezembro de 2023, o presidente francês Emmanuel Macron expressou preocupações de que a nova Lei de Inteligência Artificial da UE, projetada para regular o desenvolvimento da IA, possa prejudicar a inovação e a competitividade das empresas de tecnologia europeias em comparação com seus rivais dos EUA, Reino Unido e China. Macron criticou a regulamentação rigorosa sobre modelos fundamentais de IA, como o ChatGPT, temendo que isso possa levar a um atraso em relação aos chineses e americanos. A nova lei impõe requisitos de transparência, restrições ao reconhecimento facial e proíbe o uso de IA para “pontuação social”. As empresas que não cumprirem a lei podem enfrentar multas de até 7% do faturamento global. Críticos argumentam que as novas regras exigirão muitos recursos para conformidade, desviando investimentos da inovação. No entanto, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, elogiou a legislação, afirmando que ela “transpõe os valores europeus para uma nova era”. (ESPINOZA; ABBOUD, 2023)

Em mais uma exposição das incertezas, fica clara a única certeza: o perigo de perder competitividade e sufocar a inovação. Esse é o resumo da ópera do recente encontro de líderes mundiais realizado na Inglaterra, que abordou a regulamentação da inteligência artificial (IA). Durante a conferência, representantes de vários países, incluindo Brasil, China e EUA, assinaram uma declaração reconhecendo a importância de regular a IA, mas não chegaram a um consenso sobre uma regulação concreta. O debate sobre a viabilidade de controlar a IA continua, com figuras como Elon Musk questionando se tal controle é realmente possível (MILMO; STACEY, 2023). Contrastando com o cenário, de que nos EUA, uma ordem executiva de Biden sugere diretrizes para o desenvolvimento seguro da IA, mas não estabelece uma lei formal, indicativo de flexibilidade. No Brasil, a PL 2338/2023 propõe regras restritivas, mas há preocupações de que essas medidas possam retardar o progresso da IA no país. Como já percebido, a principal preocupação é que uma regulamentação excessiva possa inibir a inovação, enquanto países com regulações mais flexíveis avançam mais rapidamente no campo da IA.

Finalizando o caminho aqui percorrido de avaliações a respeito da IA, no que tange às regulações europeias, percebeu-se muitas preocupações por parte de autoridades no assunto que participaram do CEO Collaborative Forum (2024). Constantin Pavleas, advogado na União Europeia, admite que todos estão acostumados a ver a Europa regulamentando tudo. Ele lembra que, em certo ponto do processo regulatório, perceberam que ele já estava parcialmente desatualizado, o que resultou em mais um ano e meio de ajustes. Pavleas explica que o foco da regulamentação é a construção de confiança. A regulamentação foi projetada para ser baseada em risco: dependendo de como o sistema de IA for classificado, ele pode ser proibido, altamente regulamentado (se for considerado de alto risco), moderadamente regulamentado (se for de baixo risco) ou não regulamentado (se for de risco mínimo). Por exemplo, o reconhecimento facial para vigilância pública é proibido na UE. A pontuação social, como visto na China, também não será permitida. Da mesma forma, sistemas de IA que rastreiam comportamento e emoções em tempo real para manipular o comportamento humano não serão permitidos.

No que diz respeito à manipulação de comportamento, também não será permitido. Por exemplo, não será possível armar um drone e enviá-lo para atacar e matar alguém com base em uma decisão automatizada — isso não é permitido na UE. No entanto, há muitas outras aplicações da IA que podem ser classificadas como de alto risco. Em setores como saúde, recursos humanos ou educação, quaisquer decisões automatizadas que impactem significativamente as liberdades ou escolhas das pessoas podem ser consideradas de alto risco. Com essa classificação, surgem várias obrigações, incluindo o design adequado e a supervisão rigorosa da ferramenta.

Por exemplo, agora os sistemas de IA são considerados produtos na UE, o que significa que eles exigem a marcação CE. Pavleas afirma que a IA generativa se enquadra na categoria de baixo risco e que, quando a UE começou a trabalhar nessas regulamentações em 2022, o surgimento da IA generativa ainda não havia sido previsto. No entanto, após muito lobby e negociações, a IA generativa passou a ser regulamentada, especialmente em relação às obrigações de transparência.

Ao desenvolver um grande modelo de linguagem, é necessário fornecer uma lista suficientemente detalhada das fontes utilizadas. Isso pode parecer um requisito menor, mas representa um grande desafio para os desenvolvedores de grandes modelos de linguagem. O legislador da UE visa proteger os criadores de conteúdo ao exigir essa transparência, o que sujeita os grandes modelos de linguagem a essas novas obrigações.

O desafio recai sobre as pequenas e médias empresas (PMEs) da UE, que enfrentam uma enorme carga regulatória. Para advogados, isso cria um excelente modelo de negócios na Europa, na opinião de Constantin.

Já o Radouane Oudrhiri (Rad), Doutor e Ph.D. em Teoria da Informação e Sistemas pela ESSEC e Université d’AIX-Marseille, no mesmo evento, opina: “Em relação às leis, não acredito que elas resolvam os problemas subjacentes — elas são apenas o ponto de partida. Costumávamos dizer em IA: ‘Aqueles que podem, fazem; aqueles que não podem, simulam.’ Vou reformular isso: ‘Aqueles que podem, fazem; aqueles que não podem, regulamentam.’ Muitas vezes, há uma crença de que a regulamentação resolverá o problema, mas isso nem sempre acontece. Na maioria das vezes, pessoas com entendimento limitado da tecnologia acabam definindo as regulamentações, e acredito que é isso que está acontecendo agora na UE.

É lamentável, porque temos grandes talentos — muitos cientistas e especialistas em IA — mas talvez estejamos limitando o potencial deles. Isso é preocupante. O segundo problema é que eu não acho que a regulamentação seja a solução. Veja o exemplo dos dados: muitas vezes, assustamos as pessoas em relação ao uso de dados, mas eu os vejo como algo que pode salvar vidas. Os dados deveriam ser tratados como o sangue — deveríamos encorajar as pessoas a doá-los. No entanto, precisamos educá-las sobre o valor dos dados.

Não se trata de impor restrições ou proibir o uso de dados, mas sim de educar e mudar perspectivas. Isso é algo que ainda não consideramos completamente no contexto da regulamentação de IA. Por exemplo, a abordagem baseada em risco que estamos adotando foi emprestada da regulamentação de dispositivos médicos, e é assim que acabamos com este sistema. No entanto, há áreas onde essa abordagem não se encaixa perfeitamente.

Provavelmente o que vai acontecer é que muitos talentos irão para outros lugares — e isso já está acontecendo. Na Europa, particularmente em países como França e Reino Unido, temos grandes matemáticos, pois não devemos esquecer que a IA também é sobre matemática. O que vemos agora é que muitos cérebros estão migrando e trabalhando em outros lugares.

Também podemos ver novas startups que, em vez de abrirem aqui, estão sendo fundadas na África, nos EUA ou em outros lugares. Esse é o custo da conformidade. Isso vai tornar os custos tão altos que acabaremos fazendo isso em outros lugares.

Rad finaliza admitindo que a única maneira de acertar é ser humilde, reconhecer que não sabemos tudo, e entender que a regulamentação, por si só, não será suficiente. Acho que, agora, muitos governos e países estão apenas jogando o jogo para mostrar que estão participando. Mas muitos vão perceber que não vai funcionar. Algo mais colaborativo é necessário. Acredito muito mais em revisões de código aberto, baseadas na comunidade, do que em regulamentação. Educação é fundamental.

A partir de tudo que foi exposto, pode-se refletir sobre um ponto levantado no curso de Organização Industrial Aplicada à Concorrência e à Regulação Econômica, ministrado pelo doutor em economia e ex-conselheiro do Cade, Elvino Mendonça. Esse ponto, aparentemente simples, mas profundamente significativo, corrobora muito do que foi discutido aqui. O Dr. Elvino compartilha uma de suas ricas experiências na administração pública, em que, ao ser instado a regular determinado setor, questionou os envolvidos sobre o que e por que se pretendia regular essa matéria e qual falha de mercado seria abordada. Essas perguntas destacam a necessidade de clareza antes de qualquer ação regulatória — uma abordagem que, em alguns aspectos, contrasta com o cenário aqui apresentado, que se mostra dúbio e incerto conforme as avaliações mencionadas.

Em conclusão, o panorama atual da inteligência artificial (IA) é repleto de incertezas, com muitos sinais de que estamos diante de um hype ou, potencialmente, de uma bolha tecnológica. O entusiasmo exagerado em torno da IA, impulsionado por expectativas de avanços revolucionários, esbarra em dúvidas sobre a capacidade real dessas tecnologias de cumprirem suas promessas. Figuras como Eric Siegel e Steve Case, além de estudos e análises recentes, indicam que o progresso pode ser mais lento do que o previsto, reforçando o risco de uma supervalorização das expectativas.

Neste contexto, o Cade tem adotado uma abordagem prudente e equilibrada. Ao propor o uso de sandboxes regulatórios para testar e monitorar os impactos da IA, o Cade demonstra uma compreensão clara das complexidades envolvidas, evitando o exagero regulatório que poderia sufocar a inovação sem uma real necessidade. Essa postura se alinha a uma visão mais cautelosa e racional, reconhecendo tanto o potencial quanto os perigos da IA, sem ceder ao alarmismo que, em outros contextos, pode gerar regulações prematuras e prejudiciais ao desenvolvimento tecnológico.

Assim, o Conselho se posiciona de maneira acertada ao buscar um equilíbrio entre a necessidade de regulação e o incentivo à inovação, o que parece ser o caminho mais promissor em meio à incerteza que cerca a evolução da IA.

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Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


A Lei nº 14.874/2024 e a Necessidade de Regulamentação da Pesquisa com Seres Humanos no Brasil

Andrey Vilas Boas de Freitas

A promulgação da Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024[1], marca um avanço significativo na regulamentação da pesquisa com seres humanos no Brasil. Esta legislação estabelece diretrizes éticas e procedimentos rigorosos para a condução de pesquisas, além de instituir o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (SINEPSH). No entanto, apesar dos avanços, diversos aspectos da lei necessitam de regulamentação para garantir a sua plena eficácia.

Um dos aspectos a serem regulamentados é a composição e as competências do SINEPSH. A Lei nº 14.874/2024 institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, mas carece de detalhamento sobre a composição do SINEPSH, suas competências específicas e os critérios para a escolha de seus membros. Uma alternativa sugerida seria regulamentar a composição do SINEPSH com base em exemplos internacionais, como o Comitê de Ética da União Europeia[2], que inclui especialistas de diversas áreas, representantes da sociedade civil e membros independentes. A escolha dos membros poderia seguir critérios de qualificação acadêmica e experiência prática em ética de pesquisa, garantindo diversidade e representatividade.

Outro ponto que necessita de regulamentação é o processo de consentimento informado. A lei aborda o consentimento informado, mas não especifica os requisitos mínimos para sua obtenção, especialmente em contextos vulneráveis ou com populações específicas, como crianças ou pessoas com deficiência. Uma alternativa seria inspirar-se em diretrizes como as da Declaração de Helsinki e do CIOMS (Council for International Organizations of Medical Sciences)[3], que estipulam a necessidade de processos adaptados ao nível de compreensão dos participantes, incluindo consentimento informado por escrito e, em certos casos, audiovisuais. A regulamentação deve garantir que o consentimento seja um processo contínuo, com revisões periódicas durante a pesquisa.

A proteção de dados pessoais e privacidade também é um aspecto que precisa ser regulamentado. A proteção de dados pessoais dos participantes de pesquisa é mencionada na lei, mas falta um detalhamento sobre como as informações devem ser coletadas, armazenadas e compartilhadas, especialmente em estudos multicêntricos ou internacionais. A regulamentação pode seguir o modelo da GDPR (General Data Protection Regulation) da União Europeia, impondo regras estritas sobre a anonimização dos dados, a limitação do acesso a informações sensíveis e o direito dos participantes de acessarem e controlarem seus dados. É importante assegurar que as instituições de pesquisa estejam em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) do Brasil.

A fiscalização e as penalidades são outro ponto que exige regulamentação. A lei estabelece penalidades para violações das diretrizes de pesquisa, mas não especifica os mecanismos de fiscalização, nem os critérios para a aplicação de penalidades. A regulamentação poderia detalhar as competências das comissões de ética locais e do SINEPSH na fiscalização contínua das pesquisas, incluindo auditorias periódicas e mecanismos de denúncia anônima. A aplicação de penalidades deve ser proporcional à gravidade da violação e incluir desde advertências até a suspensão de licenças de pesquisa.

Por fim, a responsabilidade e a reparação em caso de danos também necessitam de regulamentação. A responsabilidade dos pesquisadores e das instituições em caso de danos aos participantes não é totalmente clara na lei, especialmente no que tange à reparação de danos físicos, psicológicos ou materiais. Uma alternativa seria basear-se em normas como as do NIH (National Institutes of Health) dos Estados Unidos[4], que estipulam a obrigatoriedade de seguros de responsabilidade civil para pesquisas envolvendo seres humanos. A regulamentação deve prever mecanismos claros e céleres para a reparação de danos, além de um fundo de compensação para vítimas em casos de insolvência dos responsáveis.

Em conclusão, a Lei nº 14.874/2024 é um marco importante, mas sua eficácia depende de uma regulamentação detalhada e bem estruturada. A adoção de melhores práticas internacionais pode contribuir para um sistema robusto de proteção aos participantes de pesquisa no Brasil, equilibrando o avanço científico com a defesa dos direitos humanos. A regulamentação desses aspectos críticos não só fortalecerá o SINEPSH, como também garantirá que o Brasil se alinhe aos mais altos padrões éticos globais em pesquisa científica.


[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Lei/L14874.htm

[2] The Independent Ethical Committee – European Commission (europa.eu)

[3] https://cioms.ch/

[4] https://www.nih.gov/


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


Evidências para uma Agenda Econômica Positiva e os Malefícios das Intervenções nas Agências Reguladoras

Katia Rocha

Há cerca de 5 anos foi publicada a Lei 13.848/19, que instituiu o novo Marco Legal das Agências Reguladoras no Brasil, com a atualização de regras de gestão, organização, processo decisório e controle social, trazendo diversos aperfeiçoamentos em direção à uma maior segurança jurídica, transparência e governança das instituições. As diretrizes avançaram no sentido de reforçar a autonomia institucional e financeira das autarquias, com previsão dos mecanismos de independência técnica e institucional necessária. Uma agenda estrutural positiva e relevante para todos: sociedade, agentes públicos e investidores privados.

No entanto, na arena política ainda presenciamos a persistência de certa dicotomia no tocante à independência técnica das agências, em diversas frentes. Para citar apenas alguns exemplos recentes, a Emenda 54/2023 que previa criação de “conselhos” que retiravam poder e autonomia das agências reguladoras, as tentativas de “retrocessos e mudanças” acerca do Marco Legal de Saneamento, o PDL 94/2022 cuja finalidade era “impossibilitar homologações” da Aneel no tocante a reajustes tarifários, o PDL 365/2022 revogando todo trabalho técnico da Aneel sobre “sinal locacional”, e mais, recentemente, a controvérsia sobre o Ofício 368/2024 do MME sobre “intervenção na Aneel”.

Nesse sentido, é pertinente argumentar e destacar os dados, estimativas e recomendações de políticas públicas de diversos think tanks (FMI, OCDE. etc) em prol do desenvolvimento de um robusto arcabouço regulatório e de governança. Há inúmeras evidências a favor da agenda de Pilar Regulatório e Governança para tratar a política regulatória, gestão e governo como um todo, com foco nas melhores práticas internacionais, abrangendo o fortalecimento das agências reguladoras, com autonomia, independência decisória, administrativa e financeira de forma a perseguir maturidade regulatória, transparência e segurança jurídica, baseadas em pilares técnicos.

Como principal referência deste artigo, destaco o recente relatório anual do FMI da economia Brasileira (Brazil: 2024 Article IV Consultation) publicado mês passado, que dentre diversas sugestões de políticas e reformas estruturais, apresenta em seu Anexo 2, um modelo econométrico que estima os determinantes do fluxo de Investimento Externo Direto (IED) para os emergentes e para o Brasil.

O modelo do tipo painel efeito fixo (push x pull), agrega dados de 28 economias emergentes entre 1990-2023, e conclui que as características estruturais do país, dentre as quais faz-se menção à qualidade regulatória e governança institucional, desempenharam papel significativo e relevante na atração de IED para os emergentes, incluindo Brasil, sendo, atualmente, seu principal driver (Figura 1 abaixo).

O relatório corrobora que as características institucionais dos países (como abertura comercial e conta de capital, qualidade regulatória e governança) potencializaram maior fluxo de IED, com efeitos superiores às variáveis comuns globais, como aversão ao risco global, liquidez internacional, ou variáveis de fundamentos cíclicas, como diferenciais de crescimento e inflação. Fato é que o Pilar Regulatório e as características institucionais de Governança aumentaram a preferência de estrangeiros por investimentos no Brasil, principalmente após a crise financeira global de 2008[1]. O fluxo de IED no Brasil passou de uma média de 1.3% do PIB antes de 2009, para cerca de 2.7% do PIB entre 2010-2023, com os setores de energia, incluindo as renováveis, recebendo fluxos substanciais, vindos, principalmente, da Europa e América do Norte. Como proporção de market share o Brasil recebeu uma média de cerca de 40% dos fluxos anuais de IED para a América Latina e cerca de 9% considerando todas as economias em desenvolvimento.

O relatório também relaciona a agenda regulatória positiva aos dividendos de crescimento e à sustentabilidade fiscal. Avançar nas reformas estruturais relacionadas à abertura comercial, regulação e governança tem potencial de aumentar o crescimento do país em cerca de 1% do PIB ao ano[2], conforme a ilustra a Figura abaixo.

Essa dinâmica virtuosa não é nova. Diversos estudos[3], há tempos, demonstram a relação positiva entre as características institucionais dos países e seu nível de crescimento e renda per capita. Melhores níveis de governança (qualidade regulatória, aparato legal, efetividade do governo, controle de corrupção) está associada a um maior desenvolvimento econômico e social.

Dessa forma, o Pilar Regulatório é cada vez mais visto como complementar de fato às políticas macroeconômicas e fiscais. Uma agenda institucional positiva dialoga e promove os objetivos de sustentabilidade fiscal, ao potencializar uma diminuição nos indicadores do endividamento público, proporcionando um menor risco país e, por conseguinte, menores juros.

O empenho para melhorar o ambiente de negócio, diminuir o custo país e aumentar a produtividade é extenso e contínuo. Os embates persistentes às entidades reguladoras vão na contramão de toda agenda positiva de Estado, e acabam por prejudicar os esforços já empregados seja com o novo arcabouço fiscal, seja com a reforma tributária de consumo (VAT) e sua regulamentação, ou ainda, para com as futuras reformas estruturais, como a reforma tributária de renda, administrativa, previdenciária, etc.

Sigo acreditando que dados, evidências e comparação por pares são extremamente úteis em manter as conquistas obtidas, e, seguir caminhando em direção à agenda positiva para o desenvolvimento econômico e social do país.  


[1] Resultado semelhante considerando o arcabouço regulatório como driver do volume de investimentos privados em infraestrutura (PPI) (Capex e outorgas) e o números de projetos de PPI para 18 economias emergentes entre 2000-2018 é apresentado no Texto de Discussão Ipea 2584 (2022).

[2] Estimativas semelhantes ao relatório OECD Economic Surveys: Brazil (2023)

[3]Ver Acemoglu et al. (2004), Acemoglu et al. (2010).


Katia Rocha é Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 1997.

Doutora em Engenharia Industrial/Finanças, Mestre e Graduada em Engenharia Industrial e Elétrica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora no Departamento de Engenharia Industrial (2002-2013).

Autora e revisora em diversos periódicos acadêmicos – Energy Policy, Journal of Fixed Income, Emerging Markets Review, Forest Policy and Economics, Pesquisa e Planejamento Econômico, Revista Brasileira de Finanças, Revista Brasileira de Economia, Economia Aplicada e Estudos Econômicos.

Atua no Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação de Políticas públicas nas áreas de Investimentos em Infraestrutura , Economia da Regulação, Financiamento da Infraestrutura (Investidores Institucionais e Mercado de Capitais), Finanças Internacionais, Determinantes de Risco Soberano, IED e Fluxos de Capital para Economias Emergentes.