Não olhe para cima: a tragédia do RS sob as lentes da economia comportamental
Lucia Helena Salgado
Faz tempo que a Ciência Política descreve o fenômeno do ciclo eleitoral e como ele afeta a tomada de decisão em política pública. Também não é de hoje que o modelo do indivíduo racional-maximizador construído a partir da filosofia política na economia política foi estendido para explicar o comportamento de agentes políticos no poder Legislativo ou no Executivo, como maximizadores de votos ou de orçamento, mas sempre guiados pelo interesse próprio.
Nessas leituras sobre as motivações das decisões políticas, não sobra espaço para a abstração do que no Direito ainda é denominado interesse público e que, antes da sistematização das ciências sociais, iniciada com o desgarramento da Economia de sua origem, a Filosofia Moral, denominava-se Bem Comum.
O modelo do indivíduo racional maximizador, tomando decisões – em todas as arenas, no mercado, no Estado, sobre todos os temas, privados e públicos – pareceu aderir bem às escolhas no mundo ocidental contemporâneo, até a eclosão de sucessivas crises e tragédias, como as provocadas por eventos climáticos, cada vez mais frequentes e severos, como o que desoladamente testemunhamos desenrolar-se no estado do Rio Grande do Sul.
Diante de uma calamidade de proporções apocalípticas como a que vive aquele estado, as reações e interpretações variam de acordo com o sistema de crenças e valores de cada um: seria uma fatalidade, evento inesperado e inevitável, ou um sinal do início das tribulações? Ou ainda evidência de governos ineptos, que desprezam o povo? Matérias jornalísticas, replicando a perspectiva individualista destacam as condutas virtuosas – dos cidadãos que agem de forma altruísta, salvando vidas – e condutas viciosas – dos especuladores, piratas, saqueadores e estupradores, que agindo de forma egoísta, exploram fragilidades.
A fora pela fala isolada, minoritária e sem eco, de cientistas e estudiosos de diversas áreas, pouca ênfase se dá às escolhas públicas que, cumulativamente, levaram ao estado de coisas que, de acordo com evidências trazidas à luz pela ciência, representam o novo normal, de eventos climáticos extremos mais frequentes e severos. Mesmo quando se identifica corretamente que a calamidade de proporções apocalípticas que se abateu sobre o Rio Grande do Sul é fruto de decisões humanas com consequências sobre o coletivo – políticas, portanto – se atribui à má índole de atores políticos, movidos pela cobiça.
O corolário dessa hipótese é que, uma vez afastados políticos corruptos e gananciosos, a sociedade retomaria seu curso, em paz e harmonia.
Não poderíamos estar mais enganados seguindo por aí. Faríamos melhor se revíssemos os parâmetros que usamos para avaliar as decisões humanas nas sociedades contemporâneas, as políticas entre elas.
Nós, humanos lançados nesse contexto, não funcionamos como quer o modelo utilitarista do indivíduo racional-maximizador. Não reproduzimos nem de longe, nem por similitude, um padrão de otimização seja nas decisões cotidianas, seja naquelas que definem nosso curso na vida. Nossa racionalidade é limitada, estamos sujeitos ao erro, ao engano, a ignorância e à incerteza – para não dizer das decisões alheias, sujeitas aos mesmos desvios que afastam desejos da realidade. Nossa capacidade de construir cenários, avaliar riscos e probabilidades, sopesar custos e resultados em escala intertemporal é construída com muito aprendizado, acumulando experiência a partir da constatação dos erros; nada disso é inato, não nascemos com um repertório que nos torne capazes de planejar e decidir de modo a garantir que nossos desejos se realizem.
Em uma frase, o comportamento humano, nos ensina a economia comportamental, é, quando muito intencionalmente racional, guiado por emoções e convenções sociais que nos oferecem atalhos para a decisão (heurísticas) e inexoravelmente sujeitos à incerteza, tornando nossa capacidade de errar… infinita.
Isso vale para todas as esferas da vida, mas se torna particularmente crítico quando se trata de decisões políticas, que afetam a coletividade por gerações, quando tais decisões geram consequências ao longo do tempo. Que catástrofes e misérias resultantes de decisões políticas, como a que acompanhamos à distância no Rio Grande do Sul – “simplificação” e “racionalização” da legislação ambiental, redução drástica de despesas federais e estaduais com manutenção de infraestruturas e prevenção de acidentes – ao menos despertem consciências para a necessidade de se rever radicalmente o modo de tomar decisões regulatórias.
Agentes políticos, lobistas, reguladores, governantes, legisladores, todos, como qualquer cidadão, estão sujeitos aos vieses que entortam até as melhores das intenções (e aprofundam dramaticamente os danos das más intenções). O que parece uma boa ideia hoje pode ter consequências desastrosas no futuro. O viés de otimismo, a visão de túnel e a inconsistência intertemporal nas decisões é ainda mais intensificado pela pressão da recorrência das eleições, que encurta o ciclo político, velho conhecido na análise de políticas públicas. Precisamos reconhecer que as decisões dos agentes públicos, assim como as tomadas no mercado, embora racionalmente motivadas, podem implicar consequências desastrosas. Precisamos incorporar métodos de escolhas em políticas informados pela economia comportamental, métodos que envolvem contraposição de perspectivas, construção de cenários, avaliação e mensuração de riscos e consequências, revisão dinâmica de resultados e correção de rotas. Métodos que estão à disposição para quem se disponha a reconstruir o modo de se fazer política pública. É o que se denomina regulação sob risco e incerteza.
Precisamos começar a refletir coletivamente, em nossos grupos de WhatsApp, em nosso ambiente de trabalho, em comunidades de interesses comuns e com aqueles que escolhemos para nos representar sobre o que queremos como sociedade e o que queremos legar à próxima geração. Afinal, se chegamos até aqui como espécie, criando arte, literatura, ciência, desvendando os mistérios do cosmos e das partículas subatômicas, foi porque nossos antepassados se guiaram pelo ímpeto primeiro de sobrevivência da espécie. Que esse mesmo impulso nos faça, coletivamente, rever o modo de decidir em política.
Lucia Helena Salgado. Professora Títular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.