Lucia Helena Salgado

Não olhe para cima: a tragédia do RS sob as lentes da economia comportamental

Lucia Helena Salgado

Faz tempo que a Ciência Política descreve o fenômeno do ciclo eleitoral e como ele afeta a tomada de decisão em política pública. Também não é de hoje que o modelo do indivíduo racional-maximizador construído a partir da filosofia política na economia política foi estendido para explicar o comportamento de agentes políticos no poder Legislativo ou no Executivo, como maximizadores de votos ou de orçamento, mas sempre guiados pelo interesse próprio.

Nessas leituras sobre as motivações das decisões políticas, não sobra espaço para a abstração do que no Direito ainda é denominado interesse público e que, antes da sistematização das ciências sociais, iniciada com o desgarramento da Economia de sua origem, a Filosofia Moral, denominava-se Bem Comum.

O modelo do indivíduo racional maximizador, tomando decisões – em todas as arenas, no mercado, no Estado, sobre todos os temas, privados e públicos – pareceu aderir bem às escolhas no mundo ocidental contemporâneo, até a eclosão de sucessivas crises e tragédias, como as provocadas por eventos climáticos, cada vez mais frequentes e severos, como o que desoladamente testemunhamos desenrolar-se no estado do Rio Grande do Sul.

Diante de uma calamidade de proporções apocalípticas como a que vive aquele estado, as reações e interpretações variam de acordo com o sistema de crenças e valores de cada um: seria uma fatalidade, evento inesperado e inevitável, ou um sinal do início das tribulações? Ou ainda evidência de governos ineptos, que desprezam o povo? Matérias jornalísticas, replicando a perspectiva individualista destacam as condutas virtuosas – dos cidadãos que agem de forma altruísta, salvando vidas – e condutas viciosas – dos especuladores, piratas, saqueadores e estupradores, que agindo de forma egoísta, exploram fragilidades.

A fora pela fala isolada, minoritária e sem eco, de cientistas e estudiosos de diversas áreas, pouca ênfase se dá às escolhas públicas que, cumulativamente, levaram ao estado de coisas que, de acordo com evidências trazidas à luz pela ciência, representam o novo normal, de eventos climáticos extremos mais frequentes e severos. Mesmo quando se identifica corretamente que a calamidade de proporções apocalípticas que se abateu sobre o Rio Grande do Sul é fruto de decisões humanas com consequências sobre o coletivo – políticas, portanto – se atribui à má índole de atores políticos, movidos pela cobiça.

O corolário dessa hipótese é que, uma vez afastados políticos corruptos e gananciosos, a sociedade retomaria seu curso, em paz e harmonia.

Não poderíamos estar mais enganados seguindo por aí. Faríamos melhor se revíssemos os parâmetros que usamos para avaliar as decisões humanas nas sociedades contemporâneas, as políticas entre elas.

Nós, humanos lançados nesse contexto, não funcionamos como quer o modelo utilitarista do indivíduo racional-maximizador. Não reproduzimos nem de longe, nem por similitude, um padrão de otimização seja nas decisões cotidianas, seja naquelas que definem nosso curso na vida. Nossa racionalidade é limitada, estamos sujeitos ao erro, ao engano, a ignorância e à incerteza – para não dizer das decisões alheias, sujeitas aos mesmos desvios que afastam desejos da realidade. Nossa capacidade de construir cenários, avaliar riscos e probabilidades, sopesar custos e resultados em escala intertemporal é construída com muito aprendizado, acumulando experiência a partir da constatação dos erros; nada disso é inato, não nascemos com um repertório que nos torne capazes de planejar e decidir de modo a garantir que nossos desejos se realizem.

Em uma frase, o comportamento humano, nos ensina a economia comportamental, é, quando muito intencionalmente racional, guiado por emoções e convenções sociais que nos oferecem atalhos para a decisão (heurísticas) e inexoravelmente sujeitos à incerteza, tornando nossa capacidade de errar… infinita.

Isso vale para todas as esferas da vida, mas se torna particularmente crítico quando se trata de decisões políticas, que afetam a coletividade por gerações, quando tais decisões geram consequências ao longo do tempo. Que catástrofes e misérias resultantes de decisões políticas, como a que acompanhamos à distância no Rio Grande do Sul – “simplificação” e “racionalização” da legislação ambiental, redução drástica de despesas federais e estaduais com manutenção de infraestruturas e prevenção de acidentes – ao menos despertem consciências para a necessidade de se rever radicalmente o modo de tomar decisões regulatórias.

Agentes políticos, lobistas, reguladores, governantes, legisladores, todos, como qualquer cidadão, estão sujeitos aos vieses que entortam até as melhores das intenções (e aprofundam dramaticamente os danos das más intenções). O que parece uma boa ideia hoje pode ter consequências desastrosas no futuro. O viés de otimismo, a visão de túnel e a inconsistência intertemporal nas decisões é ainda mais intensificado pela pressão da recorrência das eleições, que encurta o ciclo político, velho conhecido na análise de políticas públicas.  Precisamos reconhecer que as decisões dos agentes públicos, assim como as tomadas no mercado, embora racionalmente motivadas, podem implicar consequências desastrosas. Precisamos incorporar métodos de escolhas em políticas informados pela economia comportamental, métodos que envolvem contraposição de perspectivas, construção de cenários, avaliação e mensuração de riscos e consequências, revisão dinâmica de resultados e correção de rotas. Métodos que estão à disposição para quem se disponha a reconstruir o modo de se fazer política pública. É o que se denomina regulação sob risco e incerteza.

Precisamos começar a refletir coletivamente, em nossos grupos de WhatsApp, em nosso ambiente de trabalho, em comunidades de interesses comuns e com aqueles que escolhemos para nos representar sobre o que queremos como sociedade e o que queremos legar à próxima geração. Afinal, se chegamos até aqui como espécie, criando arte, literatura, ciência, desvendando os mistérios do cosmos e das partículas subatômicas, foi porque nossos antepassados se guiaram pelo ímpeto primeiro de sobrevivência da espécie. Que esse mesmo impulso nos faça, coletivamente, rever o modo de decidir em política.


Lucia Helena Salgado. Professora Títular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.


Big Government vs. Big Business – o déjà vue no caso DoJ vs. Apple

Lucia Helena Salgado

O DoJ (Departamento de Justiça norte-americano) anunciou no final de março de 2024 ter dado entrada em ação contra a Apple por práticas que têm conduzido à monopolização e à manutenção do monopólio.

A acusação básica é a monopolização do mercado de smartphones, com práticas que retêm os consumidores, – impedem a compatibilização com produtos, acessórios e aplicativos produzidos em outros sistemas operacionais e deterioram a comunicação e interoperabilidade com smartphones de outros fabricantes. Essas práticas tornam elevado o custo de troca por parte dos consumidores do iphone da Apple por outras marcas de smartphone.

Recentemente (2023), o DoJ entrou em outra disputa judicial, dessa feita com a Google, também pela monopolização e manutenção de monopólio do mercado de propaganda digital, enquanto o FTC (Federal Trade Commission), desde o início da administração Biden em 2021, vem questionando judicialmente aquisições tanto da Meta (dona do Facebook, Instagram e Whatsapp) quanto da Microsoft.

Essa mudança de rota radical na condução da política antitruste nos Estados Unidos, de décadas de “bigness is beautiful” para um retorno às origens do “bigness is awful” tem sofrido derrotas no Judiciário e pode vir a ser abandonada no caso do retorno de Donald Trump à Casa Branca.

Contudo, o atual caso DOJ vs. Apple guarda particularidades que vale a pena detalhar. A primeira, mais simples e circunstancialmente importante, é que a investigação sobre as práticas adotadas pela Apple para manter inexpugnável sua posição de mercado (mais de 60% do mercado norte-americano de smartfones), teve ainda em 2019, no curso da administração Trump. O fato serve como indicador da possibilidade da continuidade desse caso, mesmo com mudança do comando do governo federal, da administração democrata para a republicana.

O segundo ponto a salientar é a coincidência de temas do caso Apple com outros leading cases que marcaram a história do antitruste, a começar pelo caso Xerox passando por Kodak, Nespresso na França e Apple (na Europa e agora nos EUA)[1]. Em todos os casos, estamos falando de um modelo de negócios alicerçado sobre a fidelização dos consumidores, processo iniciado com uma inovação (de produto ou serviço) que conquista a adesão e confiança de número expressivo de consumidores, tornando o empreendimento viável no novo front de mercado. Tal adesão baseia-se na conveniência, qualidade e disponibilidade do novo bem/serviço e é reforçada pela propaganda que acentua a diferenciação daquele produto – sempre associado a uma marca – com relação a qualquer candidato a substituto.

A partir dessa base, que em organização industrial conhecemos por “a vantagem do pioneiro”, o ofertante constrói barreiras que lhe permitem cobrar preços elevados e mantê-los em patamar elevado sem preocupação de que poderia perder seu público (e com ele seu faturamento), mantendo-se protegido da concorrência pela falta de disposição de seus clientes de se aventurarem a experimentar produtos/serviços de outros ofertantes, em função das inconveniências associadas ao custo de troca.

Até aí, estamos diante de uma estratégia bem-sucedida de criação de mercado por inovação e construção (real e/ou imaginária) de diferenciação, que atende tanto aos anseios de lucratividade como aos desejos dos consumidores.

Saliente-se que novos mercados foram criados pelas inovações: máquinas reprográficas da Xerox substituíram carbonos e mimeógrafos; rolos de filmes e kits de revelação disponíveis no comercio varejista popularizaram a fotografia, antes restrita a estúdios profissionais; a máquina de café Nespresso trouxe para dentro dos lares e escritórios europeus (principalmente franceses) o requinte do café expresso italiano; por fim chegamos ao iphone, cuja inovação consistiu em reunir em um único dispositivo inovações fundamentais desenvolvidas por anos de pesquisa e desenvolvimento com financiamento público (no âmbito de universidades e do complexo industrial de defesa norte-americano): a internet, o gps, a tela de cristal líquido, dentre outras.

Todos esses produtos e serviços inovadores, ultrapassados os dois estágios iniciais já descritos, consolidaram-se adotando um modelo de negócios que vincula a oferta principal à oferta de produtos e serviços adjacentes, de extrema utilidade – muitas vezes, cruciais para a própria utilidade do produto principal. No caso Xerox, era (sobretudo, mas não somente) o toner; no caso Kodak, eram os insumos de revelação; no caso Nespresso, as cápsulas de café, e agora no caso Apple, os carregadores, fones, relógios inteligentes e aplicativos que, ou não são acessíveis a usuários em outros aparelhos (como a carteira eletrônica), ou não permitem uma conectividade de qualidade (como o aplicativo de mensagens de texto, que funciona mal com smartphones que não o iphone).

Está aí o ponto central da questão antitruste associada a esse modelo de negócios: uma vez estabelecida a dominância, com a captura e retenção de parcela expressiva do mercado – senão a totalidade dele – o impulso inovativo inicial arrefece, porque qualquer inovação com potencial disruptivo porá em risco a dominância conquistada. A empresa dominante passa a inviabilizar o surgimento de alternativas, seja impedindo a interoperabilidade, seja adquirindo rivais potenciais, eliminando seu potencial criativo.

No presente caso, é estatisticamente insignificante o número de usuários nos Estados Unidos dispostos a trocar de smartphone – e por conseguinte, de sistema operacional, de acesso a facilidades exclusivas como a Apple Wallet e de compatibilidade com smartwatches e outros acessórios – do iphone para um mais barato, pela perda de conveniência e os custos com a necessidade de aquisição de outros acessórios, o que caracteriza um quadro de clientela locked in.

A defesa já trazida à luz pela Apple é ingênua senão anacrônica: que ela não seria dominante – muito menos monopolista – pois o DoJ estaria equivocadamente considerando o mercado relevante geográfico como sendo os Estados Unidos, quando sua participação global é em torno de 20%. É nos Estados Unidos, mercado onde o Iphone foi originalmente introduzido, que o poder de mercado da Apple é exercido, e justamente as barreiras estratégicas criadas pela empresa são os elementos que inviabilizam o estabelecimento sustentável de concorrentes.

 Contudo, o caso para o DoJ é para lá de complicado: levantar evidências de que o modelo de negócios da Apple além de prejudicar a curto prazo os consumidores, extraindo renda de monopólio, prejudica a dinâmica da economia norte-americana, ao arrefecer o desenvolvimento e introdução de inovações, o mecanismo que mantém a liderança tecnológica daquela economia, é tarefa para lá de desafiadora.

Por outro lado, espera-se que a Apple vá defender ao limite seu modelo de negócios, como tem feito na Europa, ao contestar na Corte Europeia decisão da Comissão que recentemente a multou em bilhões de euros pela não adoção da padronização universal de conectores em seus smartphones.

Se a “dependência de trajetória” se manifestar também neste caso, veremos uma longa batalha sem vencedores e derrotados: em algum momento um acordo será fechado, a empresa fará algumas concessões, o governo valorizará o resultado obtido e no curso da disputa, distraída pelo processo da preocupação em combater a concorrência potencial, a Apple acabará por se defrontar com rivais que encontrarão espaço para apresentar novas alternativas, novos encantos para os consumidores norte-americanos. Cenário promissor, em que se mantém vivo o impulso da inovação tecnológica.


[1] A lista complete de casos similares incluiria IBM e Microsoft, porém ambos carregam diferenciais sendo em um caso que o mercado de computadores dominado por IBM foi desconstruído pelo surgimento de tecnologia disruptiva, e no outro que a inovação representada pelo navegador de internet não ter sido introduzida pela Microsoft e sim pela rival vítima de práticas exclusionárias, a Netscape.

O PRO-REG (também) voltou!

Lucia Helena Salgado

O PRO-REG está de volta. O Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação, criado no início do 2º mandato do Presidente Lula (Decreto nº 6.062, de 16 de março de 2007), foi reformulado e relançado há poucos dias, pelo Decreto nº 11.738 de 18 de outubro de 2023. Vamos chamá-lo aqui de PRO-REG II. Assim como o PRO-REG I, o programa conta com o apoio financeiro do BID e a cooperação técnica da OCDE, dando continuidade à sua agenda de expandir a aplicação das melhores práticas desenvolvidas ao redor do mundo em regulação. Em seu novo formato, o PRO-REG será comandado por um Comitê Gestor no âmbito do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MIDIC), cuja Secretaria-Executiva será exercida pela Secretaria de Competitividade e Política Regulatória do MIDIC.

A despeito do hiato que o processo de construção institucional e aprimoramento das políticas públicas no país teve que enfrentar nos anos recentes, a retomada do PRO-REG não significa uma volta ao começo. Os anos de intensa atividade do programa, entre 2007 e 2014 semearam no terreno fértil das mentes que compõe o corpo dos (em sua maioria jovens) concursados das agências reguladoras e gestores lotados na administração direta.  Técnicas e saberes foram incorporados nas rotinas de trabalho das agências pelos servidores que participaram dos inúmeros cursos, treinamentos e visitas técnicas organizadas no âmbito do PRO-REG I. Assim, mesmo durante os anos de hiato institucional, a perseverança e determinação conjunta desse corpo estável de servidores manteve em marcha, mesmo contra a corrente, o planejamento original do programa.

Podemos tirar muitas lições dessa experiência, que se assemelha a um “experimento natural”: O PRO-REG foi desenhado de forma robusta, pensado como política de Estado, planejado como etapas ao longo de anos, de aprofundamento de técnicas e espalhamento de práticas a serem desenvolvidas, visando no longo prazo alcançar todos os níveis da administração pública. Seu modelo bottom-up – focado na conquista de corações e mentes do corpo técnico estável e qualificado dos especialistas em regulação e gestores públicos – garantiu a resistência e continuidade da agenda mesmo na ausência de qualquer apoio – e compreensão – dos centros de governo.

Esse desenho – baseado na divulgação de conhecimentos acumulados no curso de outras experiências nacionais, na capacitação de servidores de Estado, genuinamente dedicados à condução de políticas públicas, na disponibilização de instrumentos e métodos a serem paulatinamente incorporados nas rotinas de trabalho e empregados diretamente pelos servidores, numa dinâmica bottom-up, fortalecida pela harmonização de práticas entre as agências – é responsável pelo sucesso do PRO-REG I.

Evidência desse sucesso foi a continuidade do projeto, com a edição, depois de longa tramitação, da Lei Geral das Agências (Lei n 13.848 de 25 de junho de 2019), determinando o instituto da agenda regulatória e da análise de impacto regulatório e o Decreto nº 10.411, de 20 de junho de 2020, regulamentando as determinações legais e prevendo o instituto da análise de resultado regulatório, em conformidade com as melhores práticas.

O PRO-REG I previa, como segunda fase do programa, a extensão das boas práticas regulatórias para toda a administração pública federal, autárquica e fundacional no exercício de função regulatória de atividades e serviços de interesse da sociedade. Essa etapa da agenda foi cumprida, na instituição do decreto que regulamentou o instituto das análises de impacto, mais uma evidência do sucesso do programa em capacitar e motivar servidores para o aperfeiçoamento das políticas públicas.

 Figura como emblema desse sucesso, a despeito das nefastas circunstâncias, a impecável análise de impacto (risco-efetividade) da aprovação em caráter emergencial, em janeiro de 2021, das duas primeiras vacinas contra a covid-19 desenvolvidas respectivamente pelo Instituto Butantã e a Fundação Osvaldo Cruz em parceria com a Universidade de Oxford e o laboratório Astra-Zeneca. A análise feita pelos especialistas da ANVISA recomendando a aprovação, amparada na melhor técnica de Análise de Impacto, foi apresentada de público, transmitida pela internet e aprovada unanimemente pela diretoria da Agência; o episódio deixou registrada a autonomia e excelência da ANVISA e representou um marco no processo de construção institucional, iniciado há cerca de 25 anos.

 O novo PRO-REG, nosso PRO-REG II, avança no desenho de governança, ao criar um comitê-gestor, composto por representantes dos seguintes órgãos: I – Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, que o presidirá; II – Advocacia-Geral da União; III – Casa Civil da Presidência da República; IV – Controladoria-Geral da União; V – Ministério da Fazenda; VI – Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos; e VII – Ministério do Planejamento e Orçamento (Art. 5º do Decreto 11.738/2023), com a Secretaria-Executiva exercida por Secretaria dedicada justamente à Competitividade e à Politica Regulatória.

O modelo é muito bem-vindo, por replicar o desenho de governança que melhor funciona para a harmonização, articulação e coordenação de ações com impactos transversais. Confere, com sua formação colegiada, legitimidade para a adoção de medidas modernizadoras de maior impacto, resultando em maior transparência, controle social e racionalização nas iniciativas regulatórias. O comitê gestor deverá operar como verdadeiro órgão supervisor dos esforços coordenados pela Secretaria-Executiva e poderá contribuir para o desenvolvimento da capacitação regulatória que estados e municípios tanto necessitam para estimular atividades e proteger os cidadãos. Boa sorte e mãos à obra, PRO-REG II!


LUCIA HELENA SALGADO. Professora Títular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.


Notícias do Norte: as recentes batalhas do antitruste nos Estados Unidos

Lucia Helena Salgado

Nos Estados Unidos dos anos Joe Biden, a FTC (Federal Trade Commission), sob a condução de Lina Khan, vem procurando resgatar o espírito original do antitruste – a defesa do processo concorrencial, combatendo a concentração do poder econômico. A agenda de trabalho da autoridade incorpora hoje a reflexão de professores de Economia e Direito – como Fiona Scott-Morton, Carl Shapiro, Robert Pitofsky e Tim Wu – que há anos vêm apontando as falácias da doutrina borkiana que há quatro décadas domina as decisões antitruste no Judiciário estadunidense.

Em estudos acadêmicos, debates públicos e investigações protagonizadas pelo Congresso, esses professores vêm alertando há tempos: é preciso retornar às origens do antitruste na América, quando há um século se percebeu que a onda de concentração e conglomeração industrial corroía as bases da democracia e os valores do próprio capitalismo: a liberdade de empreender, de escolher, de deter propriedade.

O lendário Juiz Hand, integrante da Suprema Corte norte-americana na primeira metade do século XX, definiu – em uma das clássicas decisões da Corte, o caso Alcoa – o espírito da legislação antitruste: “Nós temos falado apenas das razões econômicas que proíbem o monopólio; mas como já indicamos, há outras baseadas na crença de que grandes consolidações industriais são inerentemente indesejáveis, à parte os resultados econômicos. Nos debates no Congresso, o próprio Senador Sherman (…) mostrou que entre os propósitos do Congresso em 1890 estavam o desejo de pôr um fim às grandes agregações de capital por força da vulnerabilidade do indivíduo diante delas.” Essa lição perdeu-se com o tempo, mas vem sendo resgatada.

O programa posto em marcha pelo FTC a partir de 2021 é tão ambicioso quanto arriscado, visto que esbarra em dois obstáculos poderosos: um Judiciário predominantemente composto por juízes treinados na doutrina de Chicago e o prazo muito curto – a princípio um mandato de quatro anos – para retomar a rota da defesa do processo concorrencial, após décadas de desvio.

Ao contestar aquisições do grupo Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), da Microsoft e práticas adotadas pela Amazon, Lina Khan e equipe demonstram que não se intimidam com o tamanho do desafio que enfrentam; assim como diante de uma super maioria ultraconservadora na Suprema Corte disposta a rever avanços civilizatórios, a minoria progressista tem proferido votos dissidentes que ficarão registrados na História, os esforços do FTC para conter a super dominância das Big Tech, mesmo que não alcancem sucesso, são já estímulos à consciência crítica.

Até o momento, já transcorrida a metade do mandato de Joe Biden e, por conseguinte, de Lina Khan à frente da FTC, três contestações a práticas e aquisições das Big Tech foram apresentadas ao Judiciário, vejamos cada uma delas.

 Ainda em 2021, a FTC apresentou denúncia contra a Facebook Inc. (agora Meta Platforms Inc.), de que a empresa vem mantendo o monopólio nas redes sociais por anos de conduta anticompetitiva. A denúncia alegou que a Facebook vem se engajando em sistemática estratégia de eliminação da concorrência por meio da aquisição de rivais em ascensão, como o Instagram em 2012 e a aquisição em 2016 do aplicativo de mensagens WhatsApp e por meio da imposição de condições anticompetitivas a desenvolvedores de softwares para afastar ameaças a seu monopólio.

A denúncia foi rejeitada ainda em primeira instância, pois de acordo com o despacho do juiz responsável, a FTC não havia demonstrado a condição de monopolista da Facebook.

Em paralelo à denúncia da FTC contra a Facebook Inc., em dezembro de 2020, 48 estados e territórios norte-americanos liderados pelo estado de Nova York haviam feito idêntica denúncia contra a companhia, centrando nas aquisições de Instagram e WhatsApp. A alegação havia sido que Facebook/Meta monopolizaria o mercado de mídias sociais por meio de um esquema de “buy or bury” (comprar ou enterrar) suas rivais. A ação coletiva foi negada em 1ª instância em junho de 2021 – entendendo o juiz que as promotorias estaduais levaram tempo demais, indevidamente, para apresentar a queixa –, e em abril deste ano, um painel de três juízes do Tribunal de Recursos do Circuito do Distrito de Columbia confirmou a rejeição da ação.

O motivo legal arguido no caso da denúncia pelas promotorias não se aplica ao governo federal (FTC), que ainda aguarda a decisão de 2ª instância na rejeição da ação.

A despeito do baque inicial, a FTC persiste no cumprimento de sua agenda, tendo interposto duas ações em junho último, respectivamente contra a Microsoft Inc. e a Amazon.

A ação contra a Microsoft é uma clássica petição de bloqueio de aquisição, com pedido de liminar para suspender os efeitos da aquisição da Activision Blizzard em dezembro de 2022. A aquisição é um passo estratégico para a Microsoft manter sua posição no mercado relevante de jogos eletrônicos. O acesso a jogos apresenta crescimento mais expressivo através de aparelhos celulares, não mais por meio de computadores e consoles, onde se consolidou a posição de Microsoft por meio de sua plataforma Xbox. A empresa, contudo, não vinha se mostrando capaz de desenvolver programas para serem rodados em celulares, de onde o interesse na Activision Blizzard, produtora de campeões globais como Call of Duty e OverWatch.

O pedido de bloqueio da operação pauta-se na teoria do dano do fechamento de mercado a concorrente, diante das condições e incentivos para que a Microsoft restrinja – ou mesmo bloqueie – o acesso de Sony e Nintendo, suas rivais no mercado de jogos eletrônicos, aos jogos mais populares entre os usuários. A Microsoft chegou a manifestar intenção de manter o acesso da Sony aos jogos, mas a preocupação persistiu, dado que o compromisso se restringiria às atuais, não abrangendo futuras, versões dos jogos. Ademais, a conduta de exclusão já foi adotada pela Microsoft por ocasião da recente compra da ZeniMax/Bethesda SoftWorks, quando a adquirente tornou os também populares jogos Redfall e Starfield exclusivos da plataforma XBox, além do jogo Indiana Jones, ainda a ser lançado em 2023.

No Reino Unido a operação de aquisição da SoftWorks foi bloqueada, decisão que a Microsoft segue contestando, enquanto na União Europeia a empresa obteve autorização para seguir com a operação.

No entanto, a FTC enfrentou nova derrota na sexta-feira dia 15 de julho, tendo seu pedido de suspensão da operação de compra (temporary restrainct order and injunction) negada pelo 9º Circuito do Tribunal de Apelações.

Pavimentando seu caminho para a conclusão da aquisição, cujo prazo acordado é 18 de julho próximo, a Microsoft anunciou no dia seguinte à rejeição da suspensão da operação nos Estados Unidos, ter firmado com a Sony acordo com validade de dez anos. Em mensagem pelo Twitter, o responsável pela divisão de jogos da Microsoft deu notícia de que “a Microsoft e a PlayStation [Sony] assinaram acordo vinculativo para manter Call of Duty no PlayStation após a aquisição da Activision Blizzard.”

A decisão da CMA (Competition and Market Authority), autoridade em Competição e Mercados britânica será revista pelo Tribunal de Apelações em 17 de julho, véspera do fechamento da operação; o recente anúncio da Microsoft sobre seu acordo com a Sony poderá impactar na decisão do Tribunal.

Finalmente, a FTC aciona a Amazon por sua prática conhecida na literatura econômica antitruste como obsfuscation e cancelation trickery, ao obrigar os usuários a assinarem serviços Prime não demandados e dificultar o processo de cancelamento. A teoria do dano baseia-se no entendimento de que a companhia abusa de seu poder de mercado usando achados da ciência comportamental para extrair extra-rendas de usuários, desenhando interfaces manipulativas, coercitivas e enganadoras, levando consumidores a aderirem e renovarem automática e involuntariamente a subscrição dos serviços Prime.

Este é um caso que – independente do resultado – em breve deverá se tornar referencial, por trazer à tona problemas antitruste típicos da economia digital e por assinalar a importância da incorporação da análise em economia comportamental à defesa da concorrência.

Sigamos acompanhando as batalhas travadas pela FTC, como sempre muito ensinamento poderemos retirar, tanto de suas derrotas como de eventuais vitórias, para nossa própria reflexão sobre a condução do antitruste no Brasil.

É mesmo necessário regular plataformas digitais? Por quê? Como? Por quem?

Lucia Helena Salgado & Bianca Mollicone

Plataformas digitais são empresas de tecnologia que operam como intermediários entre ofertantes e demandantes, em mercados de dois ou múltiplos lados. Como desenho de negócios, não são uma inovação da era digital; veículos de comunicação (jornais) e de meios de pagamento (cartões de crédito) são exemplos mais antigos e conspícuos de mecanismos facilitadores e multiplicadores de transações entre compradores e vendedores. Nem mesmo a aparente gratuidade de serviços de redes sociais ou busca é uma invenção das plataformas digitais: basta recordar o exemplo do rádio e tv aberta, remunerados pela propaganda.

O que há de disruptivo na economia de plataformas é algo de dupla dimensão: de um lado o tratamento de dados dos usuários – coleta e análise crescente por poderosas ferramentas de inteligência artificial, utilizados como fonte de geração de valor (monetização); de outro lado a amplitude planetária do fenômeno, capaz de influenciar os rumos da economia e sociedade nas mais diversas jurisdições. As grandes empresas de tecnologia souberam aplicar resultados de décadas de pesquisa em ciência básica – a internet, o gps, a transmissão de dados por satélites e por fibras óticas – em produtos e serviços. A economia do conhecimento e da informação, potencialmente geradora de bens públicos e bem-estar, deu lugar neste século a tecnologias proprietárias, incorporadas ao modelo de negócios em plataformas, dando origem à concentração de poder econômico até então jamais vista na história humana.

A dominância exercida hoje pelas plataformas tecnológicas reproduz em escala superior o movimento de centralização e concentração de capital do final do século XIX e início do século XX, protagonizado pelas indústrias mais dinâmicas naquele período, formando trustes e cartéis: energia, metalurgia, siderurgia, ferrovias. Nos Estados Unidos, epicentro desse processo, as transformações do ambiente econômico geraram desconfiança e revolta nos mais diferentes segmentos entre empresários, trabalhadores e consumidores, traduzindo-se em ácidas críticas, nas ruas e nos meios de comunicação, aos riscos à democracia e aos princípios formadores daquela sociedade impostos pela monopolização de indústrias.

O mal-estar provocado pelo visível desequilíbrio de forças na sociedade em favor dos segmentos mais avançados e concentrados da indústria canalizou-se no Congresso norte-americano para a legislação que gerou as inovações institucionais que hoje tão bem conhecemos. Da mesma forma que a demanda social por uma resposta política à concentração de poder econômico naquele momento deu origem ao antitruste e à regulação de serviços de utilidade pública, em diversas jurisdições hoje (tendo a União Europeia à frente), estuda-se e debate-se o que fazer para frear a dominação exercida pelas plataformas digitais.

A União Europeia (UE) promulgou recentemente duas leis regulando serviços digitais. O Digital Services Act (DSA), cujas regras para operação de plataformas entraram em vigor em novembro de 2022, determinando às empresas digitais o envio de dados em fevereiro deste ano. Com base neles, a Comissão Europeia adotou, em 25 de abril de 2023, as primeiras decisões de designação previstas no DSA, apontando dezessete plataformas[1] como “Very Large Online Platforms” (VLOPs) e duas como “Very Large Online Search Engines” (VLOSEs), que atingem pelo menos 45 milhões de usuários ativos mensais. A partir da designação, essas plataformas e mecanismos de busca terão quatro meses para estar em conformidade com as novas obrigações, o que deverá ocorrer até setembro de 2023.  Empresas e Estados nacionais têm prazo para adaptação às regras até fevereiro de 2024.

O DSA, embora tenha um escopo bem mais amplo, serviu de inspiração ao PL 2.630/2020 (“PL das Fake News”). O PL busca estabelecer regras para a geração e divulgação de conteúdo pelas plataformas, responsabilizando-as solidariamente pelo conteúdo veiculado em caso de distribuição por meio de publicidade ou do descumprimento do dever de cuidado trazido pelo novo texto do Projeto.

A segunda lei é o Digital Market Act (DMA), que entrou em vigor na EU em 1º de maio deste ano, estabelecendo ex-ante as condutas proibidas às denominadas Gatekeepers. O DMA define regras de conduta (“do’s and dont’s”) buscando impedir, antes que ocorram, abusos de posição dominante. Seguindo os debates e estudos travados desde 2019, a lei cria uma mescla de antitruste e regulação assimétrica, ao estabelecer a proteção da concorrência – com a intenção de preservar a contestabilidade e o potencial de inovação de novos entrantes, impedindo práticas de fechamento de mercado e predação de rivais, garantindo o acesso justo (fair access) aos mercados existentes (multi-homming) e mercados adjacentes.

O DMA inspirou o Projeto de Lei 2768, proposto em novembro de 2022 no Brasil, visando a regulação, fiscalização e sanção das plataformas digitais, delegando essa tarefa à Agência Nacional de Telecomunicações. O projeto mira nas plataformas consideradas detentoras de poder de controle de acesso essencial, assim definidas como aquelas que auferirem receita operacional anual igual ou superior a R$ 70 milhões com a oferta de serviços ao público brasileiro, nos termos de regulamentação da ANATEL.

Na agenda de regulação das plataformas digitais em todo o mundo estão ainda estudos sobre leis que visam definir regras para o uso de inteligência artificial (IA). Na UE, pioneira nessa iniciativa, foi proposto, em abril de 2021, o AI Act, cuja aprovação avançou  mais um passo em 11 de maio último. As regras seguem uma abordagem baseada no risco, estabelecendo obrigações escalonadas para provedores e usuários, com base no nível de risco que a IA pode gerar. Sistemas de IA com um nível inaceitável de risco para a segurança das pessoas são estritamente proibidos.

Novamente com inspiração na UE, o presidente do Senado brasileiro protocolou, no dia 03.05.23, o Projeto de Lei 2338/23, que cria o marco regulatório da Inteligência Artificial no país. O projeto prevê maior transparência sobre a utilização e o funcionamento dos sistemas de IA e o direito a explicação. Assim como no AI Act europeu, os sistemas de IA também serão categorizados pelo nível de risco.

O exemplo europeu é inspirador: após profundo debate e análise, incluindo consultas públicas, dos problemas levantados pelo surgimento das plataformas digitais e a intensa concentração de poder econômico, formou-se consenso em torno da complexidade das questões a serem enfrentadas. Foram identificadas as três principais fontes de danos à sociedade geradas pelo modelo de negócio das plataformas: a) a rentabilização via propaganda e posicionamento em resultados de busca do tempo de atenção capturada do usuário, por meio de táticas de mobilização de emoções e filtragem de informações (bem conhecidas pela economia comportamental); b) condutas exclusionárias impulsionadas pelas externalidades de rede diretas e indiretas presentes nos mercados digitais; c) riscos para a coesão e mesmo convivência social advindos da utilização ilimitada e opaca de inteligência artificial. Para o enfrentamento de cada dimensão de riscos vêm sendo definidas e postas em prática regras visando a proteção da privacidade, da concorrência, da coesão e da convivência social, de modo a preservar os benefícios gerados pelas inovações tecnológicas ao tempo em que se mitigam danos ao bem-estar.

No Brasil tampouco estamos distantes de inovar institucionalmente, estabelecendo regras de conduta e mecanismos de monitoração e cumprimento da legislação por plataformas digitais, na mesma direção do que se vem construindo na União Europeia, como visto, e do mesmo modo no Canadá, na Austrália e países nórdicos.

A economia digital, com estratégias focadas no uso intensivo de dados e inteligência artificial, tem trazido desafios significativos nas esferas da proteção de dados, defesa do consumidor e defesa da concorrência. Certamente uma futura entidade de supervisão deveria aliar competências nessas áreas, que já possuem legislação e órgãos reguladores próprios no Brasil.  Temos dois Projeto de Lei em tramitação na Câmara de Deputados tratando de pontos levantados no DSA e DMA europeus. Contudo, para seguirmos avançando precisamos inovar no desenho institucional.

O aparato regulatório e de proteção da concorrência e do consumidor não tem se mostrado (aqui como em outras jurisdições), isoladamente, suficiente para estabelecer com clareza limites e obrigações para as empresas com posições dominantes nos mercados digitais.

Conferir autoridade para aplicar as leis que virão resultar dos Projetos de Lei 2630/2020 e 2768/2022 a um dos entes públicos já existentes pode estar longe de configurar uma solução inteligente, visto que há “n” dimensões da economia digital a serem tratadas, sendo que cada uma delas ultrapassa tanto competência como expertise dos entes públicos federais aqui referidos. Tampouco faz sentido criar uma autoridade regulatória específica quando várias das dimensões dos problemas gerados pela economia digital tangenciam ou são passiveis de tratamento pelas autoridades já existentes.

A solução institucional que propomos requer a mobilização transversal da capacidade técnica, ferramental e procedimental já em operação transferida para um ente destacado composto por conjunto de técnicos e gestores atuantes nas agências reguladoras, no CADE, SENACON e ANPD (sem excluir outros agentes públicos interessados e futuros concursados) a serem convocados para treinamento e capacitação nos fundamentos técnicos necessários para a compreensão dos mecanismos em uso na economia digital e respectivos impactos.

Esse núcleo de técnicos (experiente em regulação e/ou defesa da concorrência, do consumidor e proteção de dados e capacitado, pela nova iniciativa, em ciência de dados, ciência comportamental e até ciência da computação) seria responsável pela análise de denúncias e acompanhamento sistemático de mercados. As notas técnicas preparadas à forma de parecer seriam encaminhadas a um colegiado composto por representantes das autoridades (ANPD, ANATEL, CADE, SENACON e eventualente do BACEN, tendo em vista o avanço das plataformas nos serviços financeiros), representante do Ministério Público (direitos difusos), representante de entidade de defesa dos consumidores e representante de instituto de estudos de mercados digitais, sem fins lucrativos. Esse corpo de representantes, da Sociedade e do Estado, decidiria o encaminhamento de providências como determinar ordem de fazer ou não fazer que, caso descumprida, importaria em remessa à autoridade indicada pelo colegiado (conforme tipo de infração), sugerindo a imposição de penalidade, assim como denúncia fundamentada ao MPF, tudo com ampla ciência da Sociedade.

Esse desenho institucional inovador – que não importaria em aumento da máquina estatal nem aumento expressivo de gastos de custeio (visto que os representantes da sociedade participariam das sessões do colegiado sem remuneração, recebendo apenas eventual cobertura de custos de deslocamento) – daria conta de aplicar uma “Lei das Plataformas Digitais”, que comportaria medidas como as previstas no PL 2768/2022,  equivalentes às definidas no DMA europeu, que definem ex-ante o código de conduta das plataformas detentoras de poder de controle de acesso essencial, de modo a proteger a concorrência e o consumidor na era digital, sem prejuízo à inovação.


[1] https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/dsa-vlops

Lucia Helena Salgado. Professora Títular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.

Bianca Mollicone. Doutoranda em Direito pela USP, com pesquisa na área de concorrência e regulação de IA, Mestre em Administração pela UFBA, com pesquisa na área de competitividade e inovação, Economista pela UFBA. Pós-graduada em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e em Direito Tributário pelo IBET. Formação complementar em Negociação pelo Program on Negotiation da Harvard Law School e em Law & Economics pela Law School da Universidade de Chicago. Professora convidada dos cursos de Direito e Economia e Proteção de Dados da Faculdade Baiana de Direito. Coordenadora do Legal Grounds Institute. Diretora Acadêmica da Associação Brasileira de Direito e Economia – ABDE. Membra da Comissão Juridica do IBGC. Sócia responsável pela área de Proteção de Dados e Compliance do Pessoa e Pessoa Advogados.

Ainda sobre Desvios, Abusos e Usurpações: o CADE na contramão da própria história.

Lucia Helena Salgado

Há pouco, no dia 10 de setembro, o CADE completou 60 anos como a autoridade brasileira de defesa da concorrência. No desenrolar dessas seis décadas, a trajetória da instituição tem refletido com precisão o desenrolar da História contemporânea do país. O CADE conheceu um longo período ofuscado pelo intenso dirigismo estatal da economia durante o regime militar. O advento da Nova República representou uma verdadeira primavera para a instituição, com a indicação de juristas notáveis, como Isabel Vaz e Mauro Grinberg. O rito de passagem para a maioridade como instituição, identidade essa conferida pela lei 8.884/94, foi conduzido por agentes públicos do calibre de Neide Malard e Rui Coutinho, que não poderiam traduzir melhor os critérios legais de notório saber e ilibada reputação.

O momento em que o CADE como autoridade antitruste alcança a maioridade não por acaso coincide com aquele em que se gestava o Plano Real, os programas de transferência direta de renda e a reforma do Estado, com a introdução de novos atores, as Agências Reguladoras, e novas formas de gestão de setores de infraestrutura. Foi em meados dos anos 1990, que o CADE inaugura o desenho de “agência reguladora”, como autarquia dotada de autonomia decisória e recursos necessários para o enforcement legal (como capacitação técnica, procuradoria especializada e institutos como medidas preventivas e sancionadoras e ordens de cessação). No curso das mais de duas décadas, já neste século, sucessivas composições memoráveis da autoridade brasileira – sempre primando pela excelência técnica e a submissão ao interesse público – lograram difundir a cultura da concorrência, obtendo sucesso na alteração de padrões de conduta de firmas no mercado, firmar jurisprudência, propor ao legislativo aperfeiçoamentos ao enforcement legal – como os instrumentos de busca e apreensão e acordos de leniência firmados em casos de cartel. Foi o processo que levou a instituição à maturidade, com a promulgação da lei 12.529/11, que confirmou os avanços anteriores, corrigiu falhas e lapidou o desenho institucional da autoridade.

Esse processo de amadurecimento do CADE, no curso do qual firmou reputação que ultrapassa fronteiras pela qualidade e independência de suas decisões, acompanhou um processo mais amplo de construção institucional, inaugurado com a promulgação da Constituição Cidadã e moldado de forma especial pelos princípios da boa governança – autonomia, transparência e fundamentação técnica das decisões e prestação de contas à sociedade soberana. É com profundo assombro, portanto, que se recebe a notícia de que o atual presidente do CADE determinou de oficio à Superintendência Geral a abertura de inquérito administrativo para apurar suposta conduta colusiva de institutos de pesquisa de opinião em razão de erros de previsão semelhantes incorridos nos levantamentos de intenção de voto a candidatos à Presidência da República.

O desenho institucional do CADE, fortalecido pelo compromisso de seus integrantes – dirigentes e corpo técnico – com o cumprimento estrito das melhores práticas de governança, manteve-o por muito tempo infenso ao fenômeno que a literatura especializada denominou como captura. A reputação de qualidade técnica das decisões, por outro lado, sempre inibiu indicações fundadas no apadrinhamento político. Essas salvaguardas, contudo, demonstram perder força quando as instituições que sustentam o Estado de Direito – como as eleições – sofrem continuado ataque.

A determinação para que a SG abra inquérito para apurar suposto cartel entre institutos de pesquisa não encontra qualquer fundamento na Economia e no Direito Antitruste; os elementos econômicos básicos estão ausentes, a começar pela racionalidade da conduta: conluios quando organizados intencionam afetar artificialmente quantidades e preços visando maximizar lucros conjuntos.  Não há teoria do dano fundada em teoria ou jurisprudência de defesa da concorrência capaz de descrever como hipótese a racionalidade de institutos de pesquisa combinarem errar resultados de pesquisas de intenção de voto para assim maximizarem lucros no mercado de surveys de opinião.

A ilação de que haveria “uma ação orquestrada dos institutos de pesquisa na forma de cartel para manipular em conjunto o mercado e, em última instância, as eleições” (SEI/CADE – 1133237 – Oficio) revela um espantoso desconhecimento da economia aplicada à defesa da concorrência, do escopo da legislação em defesa da concorrência e das competências legais do CADE. Em última análise, estamos diante de um flagrante desvio de finalidade e de vicio de competência, condutas incorridas por parte do dirigente do CADE que ferem mortalmente a reputação construída pela instituição em décadas de esforço coletivo de seus integrantes e da comunidade antitruste que a acompanha e respeita.

Em editorial do último dia 15/10[1], a WebAdvocacy descreveu com perfeito didatismo o porquê da economia antitruste não se aplicar à análise de pretensa conduta de institutos de pesquisa de opinião, além de explicar as características básicas de uma análise estatística – algo que se esperaria ser de conhecimento da presidência do CADE, saber elementar que jamais faltou aos ocupantes desse importante cargo de Estado. Àquela análise, caberia acrescentar apenas uma conjectura: os surveys de opinião seguem metodologia estatística consagrada, usualmente supondo uma distribuição gaussiana (normal) da população. Contudo, o distanciamento entre resultados de pesquisa e resultados concretos de eleições na atualidade – como na eleição presidencial estadunidense de 2020 e nos referendos do Brexit também em 2020 e do projeto de Constituição chilena em 2022 – apontam para a necessidade de revisão da metodologia que supõe a distribuição normal da população (em formato de sino). É plausível supor que a divisão recente das sociedades entre posições inconciliáveis esteja gerando distribuições assimétricas de frequências, a serem melhor representadas por outros formatos de função.

Como é consabido, na mesma data de publicação do fatídico ofício do Presidente do CADE a seu Superintendente, a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou de pronto sem efeito a decisão de instaurar o referido inquérito administrativo, entendendo haver usurpação de competência da Justiça Eleitoral e indícios de abuso de poder político. Determinou ainda o envio do despacho à Corregedoria-Geral Eleitoral e à Procuradoria-Geral para apuração das irregularidades cometidas. Aguardemos com paciência – e confiança na solidez institucional do CADE – os resultados das apurações serem promovidas pelo TSE.

Mais uma vez, o instituto dos pesos e contrapesos, um dos pilares da engenharia institucional que sustenta o Estado de Direito, veio em socorro de nossa jovem Democracia. Que o funesto episódio sirva de alerta à Sociedade, para que esta atente à seriedade da exigência imposta pelo Legislador quando estabeleceu requisitos de notório saber e ilibada reputação aos indicados pela Presidência e sabatinados e aprovados pelo Senado da República para exercer mandato seja nas Agências Reguladoras, seja no CADE.

Lucia Helena Salgado, Professora Titular de Ciências Econômicas, UERJ, foi Conselheira do CADE por dois mandatos (1996-2000).


[1] WEBADVOCACY. Resultados semelhantes e distantes do efetivamente verificado são indícios de cartel capazes de merecer inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica? Vamos à teoria antitruste!!! – WebAdvocacy. Editorial. 15 de outubro de 2021. Disponível em: Resultados semelhantes e distantes do efetivamente verificado são indícios de cartel capazes de merecer inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica? Vamos à teoria antitruste!!! – WebAdvocacy.