Marco Aurélio Bittencourt

André Lara Resende, Stiglitz e James Galbraith: suas contribuições relevantes ao debate sobre políticas públicas

Marco Aurélio Bittencourt

O seminário Estratégias de Desenvolvimento Sustentável, patrocinado pelo BNDES, contribuiu de forma contundente para a posição já bem conhecida de André Lara Resende sobre o desempenho do nosso Banco Central. Em especial sua ênfase sobre uma política de juros equivocada, iniciada no final de 2022, com uma escalada nos juros até chegar ao nível absurdo de quase 14% a.a, frente a uma inflação de no máximo 6%. Essa estratégia entrega a economia brasileira uma taxa de juros real por volta de 8%. – a maior do planeta.

No vídeo que está disponível na Internet – https://www.youtube.com/watch?v=HXsbSiOH8bE -, encontramos as falas dos três economistas. Faço, aqui, uma síntese sobre o ponto de vista dos três participantes.

André Lara Resende destaca que esperava um crescimento da economia mais robusto após o sucesso do Plano Real. Não foi o que aconteceu de lá até hoje, com crescimentos episódicos. Ele esclarece o motivo. Primeiro, destaca que o investimento cresceu muito pouco; o investimento público colapsou – caiu abaixo de 2% do PIB. Frisa que bem sabemos a causa.  Na tentativa de conter as despesas públicas com o teto dos gastos, as despesas obrigatórias correntes cresceram em demasia, espremendo as despesas com investimento, chegando à situação de nem sequer se investir para cobrir a depreciação da infraestrutura do País.

O Brasil tem uma carga fiscal alta (34% do PIB), mesmo se comparada com as dos países desenvolvidos. O País tem também taxas de juros extraordinariamente altas. O Banco Central fixou a taxa básica de juros (Selic) em quase 14%. Com a inflação próxima a 6%, chegamos a uma taxa de juros real de 8%. É a taxa de juros mais alta do mundo.  Sabe-se que sem investimento não há crescimento. A explicação dominante que ampara o Banco Central é que, como o Executivo não equilibra suas contas, isso gera um risco fiscal que o obriga a manter taxas de juros altas. Isso leva o professor Lara Resende a achar o assunto curioso. O Brasil não tem uma relação dívida/PIB elevada, ressaltando que se deve considerar a dívida líquida que colocaria essa razão em torno de 43%. Lembra ainda que essa dívida é integralmente doméstica, em moeda nacional e detidas por residentes em sua grande maioria (93%).  Por isso, portanto, não temos uma restrição que justifique essa política de juros.

Lara Resende, então, expõe sua tese: a relação pode ser inversa. Em vez da dívida levar a um aumento dos juros, são os juros muito altos que aumentam o próprio custo da dívida. Essa situação de juros altos leva, por sua vez, a um cumprimento do serviço da dívida que chega a 8,5 % do PIB, que se reflete em aumento de impostos e cortes nos gastos públicos. Em síntese, temos uma combinação perversa de juros e impostos muito altos e mesmo assim temos déficits nominais. A visão convencional quer que isso se resolva com geração de superávits primários, mesmo que tenha um custo social e econômico elevado. Essa estratégia trava o crescimento da economia, tanto pelo efeito no setor privado quanto no estatal.

Fala Lara Resende da inconsistência teórica dos modelos que o Banco Central tem se valido para justificar a taxa de juros no patamar exagerado em que ela se encontra. As preleções do atual Presidente do Banco Central apontam para o risco fiscal como uma de suas causas, mas dizem pouco sobre o risco que a própria política de juros altos acarreta à política fiscal. Nesse particular, André Lara Resende reflete sobre a necessidade de coordenação das políticas fiscal e monetária e que uma aritmética da dinâmica da dívida pública mostra que, se a taxa de juros estiver abaixo da taxa de crescimento da economia, a relação dívida/PIB decresce com o tempo e, portanto, converge para algum patamar de estabilidade. Se a taxa de juros estiver acima, o contrário acontece.

Lara Resende fez ainda a observação importante sobre essa razão dívida/PIB, que deve incorporar no seu numerador a dívida líquida. Nesse caso, tal razão estaria ao redor de 43%, ou seja, não temos um problema fiscal insanável. Ressalta que a coordenação de políticas é importante, porque juros da dívida pública são parte importante do orçamento e assim, se onerosos, o trava, fazendo encolher gastos em investimento, educação, saúde, etc. Essa redução necessariamente compromete o crescimento da economia. Em outras palavras, o próprio Banco Central exacerba o risco fiscal! E o lógico seria procurar cumprir a aritmética da dívida na sua formulação favorável, ou seja, juros abaixo da taxa de crescimento ou nessa direção. Não o contrário.

Essa lógica do Banco Central, que segue a macroeconomia dominante, foi posta em xeque a partir das crises financeiras, e por isso merece ser revista. Os dois palestrantes americanos são expoentes na crítica à macroeconomia dominante que sustenta a ideia de estabilização com superávits primários, pois são contraproducentes. A ideia de austeridade laissez-faire, com impostos e juros altos, está sob severas críticas mundo afora. Para cumprir o que propõe o atual governo como meta – crescimento sustentável e inclusivo -, é necessária a compreensão dessa armadilha que nos envolve há décadas.

O Estado é parte da solução do problema. Não é possível ter aumento de produtividade sem a participação do Estado. Não existe dinamismo na economia sem a participação de um Estado competente. O Estado tem que usar os recursos de forma eficiente, não ser burocrático e muito menos atrapalhar os negócios, criando dificuldades. Sem um Estado competente não há produtividade, não há crescimento. Assim, segundo Lara Resende, ao concluir sua exposição, as considerações dos palestrantes americanos nos ajudarão a cumprir o papel de suporte para quem apoia a ideia de crescimento sustentável e inclusivo, objeto desse seminário.

Ambos os economistas americanos corroboraram a exposição de Lara Resende e criticaram o nosso modelo de Banco Central por excessiva independência. Banco Central ater-se apenas à questão inflacionária não é mais um modus operanti aceito.

Stiglitz fala sobre diversos itens. Valho-me aqui de suas ideias expressas alhures, pois ajuda a encaixar os assuntos debatidos. Comecemos pela desigualdade de renda. Ele é voz atuante contra a ideia de que, se fazendo o bolo crescer, a desigualdade diminui com o tempo. Cita Lucas (outro prêmio Nobel) como um dos defensores dessa tese tempos atrás. Stiglitz se opõe a ela frontalmente. É preciso políticas públicas que garantam oportunidades aos mais pobres, concomitantemente às de crescimento.

Stiglitz fala sobre o tamanho do Estado. A turma dos liberais prega a tese de Estado mínimo e afrouxamento na regulação. Stiglitz mostra que essa foi exatamente a política de Reagan, mantida por bom tempo. Resultado: crises financeiras, concentração de renda e aumento do poder de mercado para vários segmentos. O economista defende mais Estado. Aqui é bom uma ressalva: isso não autoriza ninguém a concluir sobre mais estatais e regulamentação geral do mercado. Ele prega a sempre e bem difundida ideia expressa nos livros texto que ações de governo são necessárias, quando ocorrem falhas nesse mecanismo de autorregulação eficiente dos mercados pelo sistema competitivo de preços. Isto ocorre na presença de bens públicos, bens comuns, bens semipúblicos, externalidades, mercados não perfeitamente concorrenciais, informação assimétrica e desemprego dos fatores de produção. A regulação é necessária para combater então essas falhas de mercado. Uma boa política pública amplia a matriz competitiva e não privilegia conglomerados; o funcionamento do mercado se dá sob a égide de políticas públicas que promovam uma economia competitiva, além de instituições que gerem os incentivos corretos e garantam o funcionamento do mecanismo de mercado para alocação de recursos.

Quanto à privatização, ele sugere analisar caso a caso.

Sobre política de juros, Stiglitz fala o óbvio: juros na dimensão do Brasil são sufocantes ao investimento e deprime a economia.  Juros altos e política de austeridade não faz sentido econômico. É o crescimento da economia que, mesmo na presença de déficit do governo, irá reduzir a razão dívida/PIB.  O investimento é a causa motora do crescimento, junto com inovações e oportunidade de emprego para ampla faixa da população. Principalmente investimento público em infraestrutura e pesquisa. Para piorar, como os credores da dívida pública são em sua grande maioria os mais ricos, o pobre, em suas compras cotidianas ou em seus empréstimos habituais, é que arcarão com grande parte desse ônus financeiro, piorando o quadro da distribuição de renda. Evidentemente, tem reflexo no próprio serviço da dívida que fatalmente exigirá cortes em investimentos, educação e saúde, reduzindo ainda mais a trajetória de crescimento.

Quanto à solução do déficit público, o economista se opõe às políticas recessivas. A melhor política para estabilizar a razão dívida/PIB é aquela que privilegie os investimentos, inclusive o público, pois levará ao crescimento e assim poderá reduzir essa razão dívida/PIB. Isso se acrescenta a necessidade de se reduzir os juros da dívida pública. 

Stiglitz é favorável a políticas industriais e cita o caso dos Estados Unidos do estímulo à produção de chips e elogia o BNDES. Reconhece que há falhas na implementação de políticas públicas pelo BNDES e diz que as falhas representam um processo de aprendizagem. E, na sua palestra no BNDES, foi cortês: lembrou que conhecia os erros recentes e lançou a esperança de que teríamos aprendido com eles. Uma visão otimista é sempre bem-vinda. O ponto central do BNDES seria sua conexão com políticas industriais que devem ser desenhadas adequadamente. Não entrou em detalhes, mas citou o exemplo americano que criou lei de incentivos às empresas locais para produção de chips. Bem diferente da nossa estratégia que foi a criação de uma empresa estatal, alvo de um processo de liquidação iniciado em 2021.

Sobre o Banco Central, dá uma aula sintética e bem resumida. O nosso Banco Central é excessivamente independente. Nos EUA, o Banco Central é independente, mas o senso democrático dos seus ocupantes é que faz a diferença (mais uma vez cortês). Outros objetivos além da inflação ocupam a sua agenda, tais como desemprego, crescimento e estabilidade financeira.  O senso de responsabilidade é também explicitado nos depoimentos do presidente do Banco Central ao Congresso, justificando sua política. Stiglitz defende a necessidade de se ter representantes da sociedade na direção do Banco Central, como sindicatos e outros, porque seriam afetados por decisões de política financeira ou monetária.  Complementando esse quadro, aborda regras de governança, citando a que impede pessoas do mercado financeiro ocuparem posição de comando nos Bancos Centrais.

Por fim, fala também sobre tributação dos mais ricos e do sistema financeiro, objetivando dirigir os recursos dos poupadores para investimentos produtivos e ajuste na matriz energética, em busca de uma política verde. A tributação deveria ajudar a formatar a economia. Daí a inclusão dos chamados impostos verdes que desencorajariam o uso de combustíveis fósseis. No sistema financeiro, a tributação deveria objetivar reduzir a volatilidade. Enfim, impostos que possam ajudar no crescimento da economia pelos incentivos que poderiam gerar. Nessa linha de estimular o crescimento, fala sobre impostos reduzidos para empresas que se engajam em investimento produtivo.

Quanto ao Professor Galbraith, sua exposição foi sintética e direta. Falou do Banco Central e fez referência aos agregados relevantes: razão dívida/PIB e inflação. Confirmou os dados de André Lara Resende e apontou que a inflação estaria mais associada aos problemas de oferta agregada. Trouxe à baila a questão da taxa de juros e ressaltou que taxas reais altíssimas, como as que estão sendo praticadas, teriam efeitos profundos sobre a distribuição de renda, aumentando a riqueza dos que já a tem e tornando mais onerosa as dívidas dos mais pobres ou mesmo suas compras cotidianas.

Além disso, segundo o professor, taxas altas aumentam a própria despesa do governo, retraem o investimento público e privado e aumentam os custos dos empresários. Conclui o mesmo que André Lara Rezende e Stiglitz: a política adequada seria mais crescimento e mais inclusão, refletidos pelo padrão de investimentos adequados para essas finalidades. E mais: a situação de autonomia financeira que o Brasil desfruta, juntamente com os ativos que sustentam as operações do Banco Central, garantem uma retaguarda razoável para as mudanças aqui propostas.

Nada a opor sobre a posição teórica dos eminentes professores. Muito pelo contrário. A concordância é plena. O problema surge na aplicação de suas ideias ao Brasil. Não que expressem ideias erradas e desconheçam nossas falhas. Mas, olhando pelo retrovisor que leva ao passado e ao farol baixo que ilumina o presente, torna difícil acreditar que os erros foram aprendidos e não se repetirão. Tudo vai depender do arranjo político que se desenrolará.  E conforme expressa Stiglitz, o caráter resiliente do sistema é importante no encaminhamento da solução. Esse é o ponto!

No caso das políticas industriais e o papel do BNDES, é crucial que não se repita a estratégia de promover mais aumento de poder de mercado ao financiar grandes grupos econômicos que apenas aumentaram o seu patrimônio, incorporando o de terceiros ou investindo no exterior. Os casos caricatos são os da AMBEV e JBS. A nossa atuação equivocada sobre política industrial é crítica, diferentemente do que prega Stiglitz que estabelece incentivos dirigidos ao setor privado e não pela criação de estatais.

Não sei se Stiglitz tem notícia, por exemplo, da nossa experiência traumática do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada – estatal que produziria chips.  Ela apresentava recorrentes prejuízos e seus gestores não conseguiram provar que ela se justificaria do ponto de vista social e o Governo Bolsonaro iniciou um processo de liquidação que foi revertido pelo governo Lula. A governança sobre as instituições estatais é simplesmente crítica e favorece o corporativismo, com o inchaço salarial e de postos de trabalho. Evidentemente, esse inchaço não é generalizado e localiza-se mais na estrutura administrativa e nas estatais lucrativas. Vale lembrar a ênfase de Lara Resende sobre a gestão pública: o governo deve ser competente!

Certamente, Stiglitz deve conhecer a experiência bem-sucedida da ditadura militar que foi a criação da Embrapa. Do ponto de vista social, a Embrapa é altamente superavitária, como se depreende do seu Balanço Social. Com toda justiça, Lula a trata melhor do que todos os outros presidentes eleitos, principalmente aos seus técnicos, como o faz para as demais instituições do Executivo, abonando-os com reajustes salariais merecidos que acontecem sempre depois de algum jejum salarial imposto por governos anteriores. Novamente, esse é o caso e novamente Lula assume o prejuízo político. O problema aqui é que a estrutura salarial do setor governamental é bastante superior à do setor privado, o que fará aumentar a animosidade contra os servidores públicos, abrindo espaço político para a sua fragilização.

Quanto à independência do nosso Banco Central, fazem os palestrantes críticas acertadas. O problema é que a mídia tradicional as abafa e sempre faz parecer tonto quem ouse criticar o Banco Central. Sempre bom ouvir um arrazoado coerente, responsável e sério.

Hoje, com o retorno do PT ao poder, estamos num compasso de espera, porque o básico do primeiro ano de qualquer mandato presidencial é fruto do governo anterior. Ponto importante. As agendas microeconômicas não têm sido atacadas em grande escala; o que é muito bom. Outra exceção importante está nos exageros da privatização que provavelmente Stiglitz concordaria (eu também), como a idéia tosca de se privatizar os Correios; questão resolvida pelo governo atual.

De qualquer sorte, o caráter resiliente de que tanto fala Stiglitz em suas palestras, tudo indica, cai bem em Lula. Até agora, constatamos o ensaio de políticas industriais de auxílio às multinacionais automobilísticas com aproveitamento da classe média mais abastada, manutenção da tributação excessiva e rearranjo político com ocupação política das instituições públicas e ressurgimento de empresas estatais como a dos chips que poderiam e devem ser conduzidas pelo setor privado com o devido apoio estatal. Se no governo Bolsonaro, o seu quadro técnico não mudou significativamente, por que teria que mudar agora?

Feitas as minhas considerações, fico aqui com o otimismo de Stigler e faço a reprodução das palavras finais de André Lara Rezende que resumem bem as palestras dos economistas americanos. Assim, o fez:

  1. Claramente, taxa de juros excessivamente altas são injustificáveis, tanto na presença de déficit público ou de uma dívida pública alta. É injustificável para combater a inflação quando ela não é de demanda. Mais do que injustificável, taxas altas podem ser contraproducentes, ter efeitos perversos, contrários do que se pretende. Inviabilizam o crescimento. Podem agravar a inflação; agravam o déficit público, pioram a relação dívida/PIB. Adicionalmente, têm efeitos negativos na distribuição de renda. Taxa de juros elevadas é uma política profundamente equivocada.
  2. O Banco Central pode ter autonomia operacional para executar as metas definidas democraticamente, mas não pode ser um quarto poder, sem prestar contas e responsabilidade aos poderes democraticamente constituídos.
  3. A ideia de uma política industrial em nome de uma referência de investimentos e direção ao País é fundamental em todos os momentos e especialmente hoje com necessidade de reorganização da matriz energética, descarbonização da economia. O crescimento econômico não necessariamente engloba todo mundo. A política de crescimento tem que adicionalmente contar com medidas outras para aqueles que ficam fora do crescimento produzido por esse esforço de investimento publico e rearranjo das políticas em direção ao crescimento.
  4.  O Brasil está numa situação relativamente privilegiada no mundo; nós é que erramos com uma política equivocada nas últimas décadas, especialmente a monetária de juros, e uma adoção impensada do neoliberalismo com essa visão equivocada de que Estado deve ser suprimido ao mínimo, amordaçado e impedido de ter políticas. Isso nos levou à estagnação nesses últimos anos. Temos tudo para sair disso.

MARCO AURÉLIO BITTENCOURT. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Uma Réplica ao texto –Desestatização dos Correios no Brasil: Mais Uma Reforma Requerendo Urgência – César Mattos

Marco Aurélio Bittencourt

Adianto que discordo da análise esboçada no artigo quase que integralmente, principalmente em sua ênfase de urgência que vai na contramão do que se prega em termos de boa gestão pública (padrão alemão). Pressa infundada é de se desconfiar.

Inicialmente destaco que o texto remete para nota de rodapé quais atividades seriam monopólio em benefício à ECT. Vejamos:  atividades postais: I – recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal; II – recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada; III – fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal. Em síntese, a atividade que poderia ser de interesse do setor privado seria a de correspondência agrupada. Que venha a concorrência com o fim do monopólio estatal.

Ressalte-se que a receita para a ECT que vem do item postal como carta e impressos ou produtos que possam se enquadrar como carta não alcança a receita expressiva dos serviços Sedex e PAC. Vale lembrar que carta no segmento tradicional – simples correspondência entre pessoas comuns – tem receita recorrentemente decrescente. Mas na modalidade carta pode haver outros produtos como impresso, etc. Poderiam aproveitar e retirar também os privilégios licitatórios que porventura possam existir. Nada disso enfraqueceria o correio no seu formato atual; o estimularia a competir. O que é ótimo para o consumidor.

Mas no artigo não há indicativo em quanto tais privilégios de monopólio respondem em termos de receita da empresa. Creio que seja negligenciável se considerarmos o produto carta principalmente no seu padrão tradicional. E mesmo que fosse de alguma monta, seria necessário avaliar a viabilidade econômica do surgimento de uma empresa concorrente – neste segmento de carta o caráter de monopólio técnico seria justificável. Por isso, não vejo sentido em se falar do monopólio da correspondência por carta como um privilégio – quem estaria interessado em prestar este serviço e, como sugere o articulista, minguará e talvez até mesmo desapareça? Mais um ponto. Mesmo que a receita da ECT fosse afetada por privilégios de monopólio, a regra de regulação implícita na sua configuração jurídica atual entabularia automaticamente o ajuste, forçando despesa a ser igual a receita, quando da retirada do privilégio de monopólio ou por qualquer outra razão.

 O articulista coloca a mudança da configuração jurídica da empresa como se fosse uma vantagem. De fato, poucos entendem ou parecem não entender o que significa em termos regulatórios empresa pública no Brasil. Significa que receita tem que ser igual a despesa; o que equivale, nos termos regulatórios, uma regulação pelo custo médio. Como se sabe, tal regulação exige governança focada sobre os custos, porquanto a negligência nos custos acarretaria, como opção simples, reajustes tarifários para igualar receita à despesa. Essa regra, embora possa sugerir negligência com custos, pelos limites contábeis de receita = despesa, inibe o surgimento de crescimento de receitas exponencialmente. Evidentemente, se há uma negligência regulatória de fazer valer tal regra, o desbalanceamento entre receita e despesa pode induzir a aumento de gastos. De fato, nunca tive notícia de que o governo tenha confiscado receita da ECT, quando os resultados positivos da empresa apareceram de forma sistemática. Mesmo no caso adverso, a regulação implícita na regra receita = despesa que as empresas públicas deveriam observar, duas vias de solução imediata seriam possíveis:  redução de gastos (correntes ou de investimento) ou reajuste tarifário. Quanto ao caso de necessidade de aporte de capital, nada, a princípio, indica sua necessidade, porque, em caso de necessidade de investimento de longo prazo, os recursos poderiam vir do setor privado, através de empréstimos. O BNDES seria o caminho natural ou até mesmo o sistema financeiro privado. Se a situação fosse tal que exigisse ajustes estruturais, a regra despesa = receita poderia também ser posta em prática de forma efetiva. O certo é que não há nada que obrigue a União aumentar ou fazer aporte de capital – geralmente é uma opção burocrática e não atende necessariamente ao interesse público.

Não há nada de extraordinário nessa mudança na forma jurídica da empresa e só faz colocar na empresa mais uma amarra de gestão, abrindo caminho para uma burocracia que usualmente se mostra pilhadora e concentradora – os planos de demissão voluntaria mostram exatamente isso: um grupo na instituição se acha melhor do que os demais funcionários e pedem, em nome de ajustes, a cabeça dos que estão hierarquicamente em posição inferior. Evidentemente, as nossas leis trabalhistas garantem um pouco de estabilidade para a turma CLT. Não é por outra razão que tais planos de demissão carregam o adjetivo voluntaria.

Outras consequências importantes e trágicas pela mudança da forma jurídica – de empresa pública para sociedade de economia mista – envolveria o aparecimento de um componente tarifário sujeito a um processo de indexação que só extrapolaria as tarifas dos seus verdadeiros custos, além do incentivo às estratégias de conluio e cartelização. O articulista cita que “as tarifas poderiam ser diferenciadas geograficamente, com base no custo do serviço, na renda dos usuários e nos indicadores sociais. A regra de reajuste das tarifas do serviço postal universal concebida na Câmara será anual, adotando-se o modelo de price-cap, que se baseará na variação do Índice de Preços ao Consumidor Ampliado-IPCA, podendo incluir um fator de desconto. Foi prevista também a revisão das tarifas com base nos indicadores de qualidade do serviço em um típico mecanismo de regulação de incentivos. Assim, o operador designado responsável pelo serviço universal, a ECT (que será renomeada para “Correios do Brasil”), contará com incentivos regulatórios para melhorar a prestação de serviço.”

Um arrazoado ilógico, pois desconsidera o esforço de se combater práticas de políticas de preço que carreguem inércia inflacionária; uma indexação vexatória para quem se diz amante do mercado. Isso me lembra os economistas tantãs da ditadura ao inventarem todo tipo de controle de preços. Abrir mão de uma estratégia regulatória simples e eficiente, como a de empresa pública, em prol de uma estratégia que embute fator inflacionário inercial (e talvez esse seja o problema fulcral da nossa privatização) além, como veremos, de incentivo à cartelização, denota que chegamos ao absurdo da privatização. Esses seriam os pontos críticos dessa privatização.

Além disso, se considerarmos que a precificação seria regional, decretaremos o fim do serviço postal em muitas regiões. A prática tarifária dos correios que já vem há décadas garante a universalidade dos serviços e atende a regra regulatória. Havendo subsídio cruzado, a regra receita = despesa já carrega a solução no âmbito da empresa e não a extrapola diretamente para toda sociedade.

Quanto ao caráter de incentivos à cartelização, baseia-se no fato de que, se privatizarmos os correios, estaríamos enfraquecendo a concorrência, porque a ECT se destaca no segmento encomenda e neste segmento não há monopólio. A sua liderança (ou a de quem quer que seja) obriga que as empresas que atuam nessa franja se ajustem às tarifações da ECT. Como a tarifação da ECT é eficiente em termos regulatórios, abriríamos espaço com a privatização para o comportamento cartelizado das empresas já que seguem a regra de maximização de lucros. O conluio entre as empresas seria possível. Exatamente o que devemos evitar!!!!! 

Portanto, não há nenhuma vantagem em mudar a configuração jurídica da empresa ECT. É exatamente o que não deveria fazer um bom órgão regulatório, porque mesmo não havendo monopólio estatal, a dimensão da empresa requer, para combater o poder de mercado, alguma estratégia reguladora. Transformá-la em sociedade de economia mista em nada contribuiria para a regulação eficiente como é o caso de uma empresa com o status de empresa pública em que os ajustes regulatórios são totalmente endógenos – claro, a vigilância quanto à negligência aos custos é necessária, embora seja mais importante fazer valer a regra contábil.

 O problema das estatais, e nesse caso inclui-se a ECT, estaria na ausência de uma boa governança. Que se diga logo: não vejo nada no atual governo (e em governos passados também, obviamente) que aponte para uma governança a levar a recuperação do padrão de gestão que a empresa teve em épocas passadas. Eu trabalhei nos correios na década de 1980, na assessoria do Departamento de Finanças, e pude presenciar uma gestão autocrática, mas dentro dos parâmetros de eficiência e inovação. De fato, a primeira medida que o governo (principalmente este que se diz sério ou pretende ser) teria que tomar seria promover a melhoria na governança das empresas estatais e não há nada complicado nesse padrão ideal de governança das estatais. É trivialmente simples estabelecer regras que ajudem a preservar o interesse público, mesmo considerando perspectivas sombrias para o comportamento dos agentes públicos.

Ter uma visão privatista como axioma de gestão revela-se claramente dogmática ou ideológica. Mas isso não respeita a constituição que não estabelece tal orientação. O que demonstra o repetir cansativo de privatizar, privatizar, privatizar (Friedman, embora tardiamente, fez a ressalva: antes de privatizar, privatizar, privatizar teríamos que regular, regular, regular) é uma atuação orquestrada da burocracia: geralmente funcionários com salários fora do mercado a promoverem políticas que eliminem os concorrentes ao caixa do Estado ou que promovam interesses privados não tão republicanos. A terceirização dessa turma poderia ser uma solução (outra jabuticaba brasileira que só pega os pobres e miseráveis, poupando a classe média alta), mas não conta com meu apoio, porque o resultado seria a destruição plena do padrão salarial brasileiro. O empenho é para que todos possam se beneficiar do padrão salarial ideal ou desejável. Mas adianto aqui uma regra de gestão simples, para evitar funcionários públicos audaciosos: demissão do funcionário público que promover ou propor a destruição do padrão salarial e o fim dos concursos públicos. Um simples processo seletivo e talvez até mesmo cotas é o que recomendaria. Claro, aqui me afasto do liberalismo raiz que nunca vi proclamado pela turma privatista que tem cargos na burocracia estatal: o arranjo do leiloeiro walrassiano.

O articulista fala da lógica empresarial da ECT considerando informações fora do âmbito da própria ECT; o que demonstra desconhecer ou não querer conhecer a realidade operacional e financeira da empresa. A ECT está enfrentando as mudanças tecnológicas e de demanda de forma acertada, conforme se depreende de seus resultados contábeis.

Nada do que foi dito pelo articulista quanto ao padrão de gestão atual da ECT comprova que a empresa não esteja no caminho certo. Evidentemente, o desconhecimento da forma de tarifação dos correios pode sugerir que no segmento encomendas o correio pudesse ter um padrão aquém das expectativas, muito embora o montante de receitas nesse segmento aponte exatamente o contrário. Mas o articulista opta por considerações exógenas à empresa e não encara o problema per se. Bom destacar que nesse segmento dinâmico da indústria não há monopólio público.

Afirmações que não respeitam a lógica poluem o texto. Cito por exemplo a seguinte passagem: “Ainda que não exista um modelo único de correios no mundo, a OCDE (1999)[2] considera que a abertura ao capital privado e o fim do monopólio são fundamentais para a melhoria da qualidade e da eficiência dos serviços…” São considerações puramente axiomáticas e de mãos dadas com uma ideologia liberalizante. E cada um tem a sua. O ponto correto é a retirada do monopólio – que, de fato, nem se apresenta como condição restritiva. Mas o que defende o articulista não gera a implicação de que há de se privatizar os correios.

Para piorar a sua argumentação, tenta fazer crer que os correios nos padrões atuais se depreciariam ou desapareceriam. Diz o articulista que “a dramática redução na demanda de serviços de correspondências se deriva da simples constatação que pessoas de todas as classes sociais atualmente se comunicam umas com as outras por meios alternativos como e-mail ou whatsapp. De outro lado, foram incrementadas substancialmente as encomendas de bens, caracterizando um outro tipo de necessidade do consumidor. “De novo, faz-se consideração mercadológica sem levar em conta os resultados que a ECT apresenta e muito menos a missão da empresa que espelharia seu planejamento. Faz sugerir que a empresa como um todo tem prejuízo sistemático por conta dessa atividade. Esquece como se faz a tarifação nos correios. Esquece dos resultados contábeis da empresa. Esquece do lado operacional da ECT. Esquece do grupo técnico de excelência da ECT.  Como tudo indica que há um bom resultado nesse período de gestão bolsonarista, os órgãos reguladores deveriam mesmo é se empenharem na redução tarifária, cumprindo-se a regra receita =despesa; o que certamente não agradaria a franja toda dessa indústria.

Indica-se no artigo da necessidade de investimento e sugere que a União é quem provê os recursos. De fato, o articulista não indica ou faz referência (demonstrando não conhecer) aos planos de investimento da empresa, bem como ao seu padrão contábil que pudesse comprovar tal situação de pindaíba empresarial. Os resultados contábeis atuais não sugerem isso. Segundo, não há nada que obrigue que os investimentos sejam financiados por aporte de capital. Empresa pública significa que o padrão a ser seguido é o de receita = despesa. Assim, havendo necessidade de investimento, a empresa poderia recorrer ao mercado de crédito e principalmente ao BNDES. Aumentar o capital da empresa com aporte da União é uma possibilidade, mas não uma exigência técnica.

Existe um plano de investimento da empresa que está sujeito a interferência do Ministério das Comunicações. O que aconteceu nesse ambiente? É de se estranhar a introdução dessa nova jabuticaba, porquanto o efeito, se valer a privatização sem aporte da União, seria a redução no ágio da empresa ou no valor das ações por conta da privatização.  Antes, a praxe era arrumar a casa em seus possíveis ou aventados desvarios de custeio. Agora, entra em cena os desvarios de investimento. Na verdade, teremos mais um novo capítulo no esquema de privatização tupiniquim.

No tocante ao impacto trabalhista, há de se ressaltar o padrão salarial do setor público que é bem superior ao padrão privado. A privatização certamente reduzirá o padrão salarial; o que por si só é péssimo. Evidentemente que a crítica relevante sobre o padrão salarial atual da ECT seria se ele reduz de forma significativa a capacidade de investimento da empresa, estando fora, portanto, de um padrão tecnológico e econômico eficientes. Não há estudo sobre isso e seus resultados contábeis apontam para eficiência econômica, embora a atuação regulatória seja simplesmente precária.

Quanto aos planos de demissão voluntaria, seja qual for a razão, deveria garantir a renda permanente do trabalhador e não nos termos que a burocracia sugere aos legisladores.  Como diz o ditado popular: pimenta na sopa dos outros é refresco. Isso retrata o essencial: a falta de ética da burocracia. O que só confirma o caráter quadrilheiro dessa turma burocrática tupiniquim, exatamente como prevê a literatura em escolha pública.

A assertiva do articulista de que as remunerações da estatal tendem a ser negativamente correlacionadas às reais competências dos funcionários carece de mínima prova indicativa de que tal ocorra na ECT. Tal assertiva talvez valha não para as estatais, mas para os estatutários, principalmente dos órgãos do legislativo e judiciário. Existem planos de cargos e salários nas empresas estatais coordenados por departamentos de recursos humanos. No caso da ECT, existe uma política de treinamento e qualificação de excelência que se espelha no seu centro de treinamento técnico, em destaque para a escola de administradores postais criada na década de 1970 que hoje carrega o status de universidade.

Desconheço estudo que possa minimamente garantir que esse é o caso dos correios – correlação negativa entre salário e competência. De fato, nunca ouvi falar que um carteiro ocupe ou possa ter ocupado função por exemplo de gerente financeiro que é exercida pelos administradores postais (o equivalente à função dos bacharéis em administração). Claro, no período petista, os sindicalistas assumiram posição de gerência e muitos deles tinham pouca qualificação. Não é atoa que a imagem do  PT está bem prejudicada e, juntamente com o partido político, a de seus operadores, como os sindicalistas. Mostraram atuar como verdadeira quadrilha e novamente com a complacência (sendo generoso no meu julgamento) da burocracia em geral. De novo, o retrato indica a falta de governança que poderia ser facilmente melhorada, se contássemos com regras legais votadas no parlamento. Observe-se ainda que a bagunça administrativa também alimenta o raio de ação e de poder de políticos e burocratas. E a privatização nos termos aqui defendida certamente aumentará a burocracia regulatória, porque abre-se mão de uma regulação com componente endógeno de valor – o padrão empresa pública e se estabelece regras de revisão tarifaria indexada e criam-se incentivos para a cartelização.

O articulista fala em franqueados e esquece de falar que isso demonstra que a empresa já está parcialmente privatizada. Sugere ainda que funcionários poderiam conseguir franquias; simplesmente desconheço que algum funcionário tenha algum dia conseguido o privilégio de ter uma franquia. Entendo como algo esquisito o silencio da turma franqueada, porque certamente serão onerados com a privatização. Digo isso, já que a estrutura atual dos correios atenderia a lógica acumulativa dos novos donos, no caso de a empresa ser privatizada. Mais ainda um outro ponto a ser trazido a baila. Existe uma contabilidade envolvendo essas empresas franqueadas que o articulista simplesmente desconhece; o que denota que regulação no Brasil tem as suas piadas se não for a própria.

A ECT segue um padrão tarifário consagrado e que tem como consequência a universalização dos serviços postais e homogeneidade tarifária.  Isso sempre esteve nas nossas leis e regulamentos que tratam dos correios, respeitando-se convenções internacionais que a empresa sempre participou e já tendo um brasileiro, ex-presidente da ECT, como dirigente máximo da União Postal Internacional. Quanto aos problemas tarifários, o que se quer saber é se os serviços que têm caráter deficitário (pelo menos parcialmente) serão mantidos e subsidiados; o que indica certamente ser um contrassenso a privatização da ECT. Sabe a turma privatista que o empresário não irá assumir atividades que gerem prejuízos. O esquema atual da ECT como Empresa Pública contorna esse problema. O projeto de privatização   vai garantir a solução do problema tarifário com subsídios cruzados por tempo determinado; depois que se lasquem os usuários desses serviços. Certamente, como a lógica tem que ser lucro máximo (ainda bem que assim), os segmentos deficitários seriam eliminados. E se a lei exige a manutenção dos serviços, quem pagará? Tudo isso, no caso de ser a empresa privatizada nos termos presente, seria refletido no deságio ou nas tarifas. Na verdade, o assunto demonstra que os correios não deveriam ser privatizados e muito menos deixar de ser empresa pública que carrega um fator endógeno de regulação que agora poderia se perder com a ideia descabida de torná-la sociedade de economia mista. Exatamente o que um bom regulador não faria.  Tal privatização injustificada sugere outros interesses ou a prevalência do canto da sereia. Mais a frente falarei sobre isso.

Poderiam retirar o monopólio e manter a ECT como empresa pública. Onde estaria o problema? O problema está exatamente na sua privatização.

Em resumo, não existe uma linha nesse artigo que demonstre a urgência da privatização. Talvez a urgência seja apenas uma estratégia para esconder o indefensável. Uma lástima. De fato, a turma privatista nunca alinha os prós e contras. Os argumentos favoráveis seriam a redução dos gastos públicos, redução tarifaria e garantia de investimentos. Quanto à questão do padrão salarial, muitos argumentariam que é uma questão de mercado. Algo que aceito parcialmente, porque sei bem o que é ter amparo trabalhista do ponto de vista legal. Os argumentos contra seriam os mesmos da pró-privatização, mas com sinal invertido. Então, fazendo as contas. Redução dos gastos públicos é simplesmente retórica e arranjo da burocracia, porque a regra de regulação da ECT é clara: empresa publica exige receita=despesa. Quanto à tarifação, certamente pode inicialmente ficar aquém, mas a custa do desaparecimento de serviços deficitários como a remessa de cartas para pontos longínquos. E pior, pela estratégia que carrega o fator inercial, o aumento sistemático das tarifas ocorrerá. Se ainda prevalecer o conluio empresarial como sói acontecer em indústrias propícias à cartelização, mais uma razão para o poder de mercado aumentar. Quanto ao ponto do investimento, o efeito negativo é óbvio. O que se quer é avançar sobre a estrutura física da ECT que tem, dentre outras coisas, centros de triagem que funcionam a contento. A Amazon não tem tal padrão, pelo menos no Brasil. Mas até aí tudo bem, porque a estrutura não seria extinta. Mas o poder de monopólio da empresa Amazon aumentaria. Entretanto, há mais considerações em relação à estrutura física. Os correios estão presentes em quase todos os municípios brasileiros que têm um padrão mínimo de urbanização. E já estão presentes há tempo. Isso significa que a ECT é proprietária de imóveis valiosíssimos. O efeito imediato seria a dilapidação urbana (coisa que poucos se importam) com o sumiço desses imóveis. O que está em jogo é o butim público. As receitas com Sedex e PAC, juntamente com o patrimônio da ECT aguçam o apetite dos burocratas corruptos e empresários de quinta categoria. Ainda poderíamos incluir possíveis interesses escusos sobre o Plano de Previdência dos funcionários dos correios. Uma quadrilha que não é de forró. Evidentemente o canto da sereia da ideologia privatista pode atuar tal qual a parábola de Ulisses e a Sereia. O melhor a fazer é tapar os ouvidos aos cantos das sereias.

Portanto, o que é urgente é abortar essa privatização infundada tecnicamente. Não vejo razão técnica para privatizá-la. Pelo contrário; urge mantê-la no padrão de empresa pública e que se proceda a uma governança que elimine todos os vínculos políticos que porventura ainda possam existir e garanta que os funcionários não extraiam rendas indevidas da instituição.

* Doutor em Economia. Ex-funcionário da ECT – Assessoria do Departamento de Finanças e Professor de Gestão Pública do IFB.

O Novo paradigma desenvolvimentista: produtivismo.

Marco Aurélio Bittencourt

Dani Rodrik, economista colocado no topo junto àqueles que contribuem para questões de políticas públicas relevantes para o desenvolvimento  de países com baixa renda per capita, traz agora uma visão resumida para os tempos atuais: o paradigma neoliberal encontrou seu limite e só aprofunda problemas de política econômica. Em seu lugar propõe um novo paradigma: produtivismo. Do que se trata?

Em suas próprias palavras, diz que “uma abordagem que prioriza a disseminação de oportunidades econômicas produtivas em todas as regiões da economia e segmentos da força de trabalho …. enfatiza a produção e o investimento sobre o financiamento e a revitalização das comunidades locais sobre a globalização, trabalhando no lado da oferta da economia para criar boas oportunidades de empregos produtivos para todos”.

Ele põe ênfase nos principais problemas econômicos como pobreza, desigualdade, exclusão e insegurança que são reproduzidos e reforçados diariamente no curso da produção, como um subproduto imediato das decisões de emprego, investimento e inovação das empresas, ou seja, essas decisões estão repletas de externalidades para a sociedade.

E nesse compasso produtivo de efeitos colaterais temos dois lados: externalidades negativas e positivas que podem ser reforçadas por políticas públicas. Rodrik vai se ater as externalidades positivas pela geração de “bons empregos.” 

Segundo Rodrik, “Os formuladores de políticas em nações avançadas estão agora lidando com as mesmas questões que há muito preocupam os formuladores de políticas de desenvolvimento: como atrair investimentos, criar empregos, aumentar as habilidades, estimular o empreendedorismo, melhorar o acesso ao crédito e à tecnologia – em suma, como fechar a lacuna com as partes mais avançadas e produtivas da economia nacional?”

Certamente, nossas mazelas têm um pé nas externalidades negativas das próprias políticas públicas. A dificuldade de se identificar a tempo tais eventos perversos, talvez justifique em parte tal omissão corretiva. Mas sobram outras questões, principalmente a mentalidade escravagista. Mas isso não foi assunto tratado por Rodrik em seu artigo sobre o produtivismo – on production 2023.

Essa indagação de como fechar a lacuna entre os setores produtivos tem que primeiro desvendar o padrão produtivo atual que pode ser refletido pelo gráfico abaixo (Parkin, economics).

O Brasil se aproxima quantitativamente do padrão americano, conforme se depreende do gráfico abaixo (IBGE).

O Capital humano acompanha essa estrutura produtiva. Para o padrão americano, temos a seguinte estimativa :

Para o padrão brasileiro, temos a seguinte configuração para o capital humano:

Uma análise mais aprofundada poderia revelar onde se encontram os mais qualificados. Certamente em serviços , por conta da participação governamental e da importância do segmento saúde, teremos fatia importante. Resta o setor financeiro e aqueles ramos de alta tecnologia. A indústria ocuparia outra faixa e agricultura uma faixa provavelmente pequena.

É essa estrutura produtiva nacional que me faz crer que a reforma do ensino médio está no caminho correto, privilegiando o setor serviços que demandam capital humano na faixa do ensino médio e superior incompleto. Mas chama atenção a faixa dos que detêm pouca qualificação o que demandaria política educacional específica.

As políticas públicas sugeridas por Rodrik devem necessariamente observar o padrão produtivo estampado nos gráficos acima. O trabalho recente do banco mundial – Equilíbrio Delicado para a Amazônia Legal Brasileira – Um Memorando Econômico – é uma tentativa nessa direção de Rodrik. Mas certamente o estímulo ao pleno funcionamento de instituições que promovam uma economia competitiva também deve entrar no rol de políticas públicas relevantes para abrir espaço para novas oportunidades de negócios.

Uma análise elementar de teoria de preços sobre a taxação às importações asiáticas de até US$ 50

Marco Aurélio Bittencourt

Já sabemos que, em nome de uma análise com teor científico, necessitamos de dois elementos: modelo e prova do seu funcionamento. O modelo pode ser visto, num sentido amplo, como uma narrativa que embute alguma matemática ou lógica. Para sua consolidação teórica, precisa ter dados e teste. Este é o pacote científico numa versão livre e resumida. O ponto é que os dois elementos se casam, mas podem ser elaborados separadamente. Vou me ater ao campo da narrativa sobre o tema proposto.

Algumas hipóteses são imprescindíveis. Vejamos o contexto. Aqui falamos das importações livres pela internet que alcançam o limite de US$ 50,00. Supomos que os compradores locais , ao comprar tais produtos, alcancem alguma folga financeira que , por hipótese, se dirige ao mercado interno. Então, há um efeito tributário indireto pela compra do produto estrangeiro: o aumento da arrecadação decorrente dessa folga financeira que se dirige aos produtos locais. Outra hipótese que assumimos que tais produtos importados atendem a uma faixa populacional de poucos recursos, podendo incluir outras faixas. Não tenho os dados sobre isso. Então nessa contabilidade hipotética quem ganha e quem perde? Ganham os consumidores. Perdem as empresas que teoricamente competem com as importações asiáticas. Quais seriam essas empresas? Lojas americanas, Rener, Magazine Luíza, Carrefour e similares. Em outras palavras, para produtos que saem , pela importação asiática, por R$ 120,00 estariam sendo vendidas , digamos, por R$ 170,00, ou seja, não conseguem competir. De novo, não tenho os dados. É uma estimativa. O fisco ainda manteria receita sobre os R$ 50,00 que se dirigiria ao mercado interno; digamos 20% sobre os R$ 50,00, ou seja, R$ 10,00.

Agora, façamos o experimento: impor alíquota sobre os produtos importados. A questão fundamental: qual a alíquota ? Suponhamos dois casos: uma impeditiva e outra parcialmente impeditiva. No primeiro caso, não se tem arrecadação fiscal pelas importações que iriam a zero.  Então os R$ 50 seriam perdidos com prejuízo de R$ 10,00 para o fisco. Mais agora o importador brasileiro tem que pagar pelo produto R$ 170,00. Certamente, irá reduzir suas compras. Então suponha que isso acarrete uma redução pela metade no valor gasto, ou seja R$ 85,00 iria se dirigir ao mercado interno. Isso daria, um ganho tributário de R$ 17,00 e liquidamente R$ 7,00 (computando a perda pelo comercio internacional – o ganho indireto pela folga orçamentária). Certamente, pelo aumento de preços que agora o consumidor se depara, terá que reescalonar seus gastos , reduzindo-os e isso tem um efeito recessivo indireto que apareceria ao longo do tempo. Quem ganharia? Certamente, os empresários citados que teriam suas vendas acrescidas pelo redirecionamento forçado da demanda. O fisco, ganharia residualmente e declinante. E os pobres pagariam a conta. Qualquer outra alíquota, abaixo do limite impeditivo, traria alguma combinação desses valores, com ganhos para o fisco e o empresário.

As contas exatas requerem estimativas mais precisas. Independentemente dessa estimativa, a lógica básica se manteria: os consumidores mais pobres perderiam, os empresários ineficientes contariam com a proteção tarifária e o fisco aumentaria residualmente sua arrecadação, mas de forma declinante. Portanto, do ponto de vista social, o ganho fiscal certamente não superaria a perda de bem-estar da população.

Trata-se, portanto, de uma velha política brasileira: o domínio de grupos de interesse sobre a política, usando-a em seu benefício. Nessa luta política, vale todo tipo de propaganda, como a de injustiça tributária por isentar importações. Como sabemos, as exportações não são, como boa regra de comércio externo, taxadas e assim cada país escolhe o que taxar de produtos importados; o que depende de negociações, pela possibilidade de simples retaliação. As empresas estrangeiras não mudariam sua posição, exceto se a faixa tributária lhe permitir alguma competição.

Restrição orçamentária do Governo e juros: um lembrete importante

Marco Aurélio Bittencourt

A discussão sobre coordenação das políticas fiscal e monetária tem seu início, quase que ubíquo, a partir da década de 1960. Antes, aqui, tínhamos um olhar centrado no orçamento público e o lado monetário completava direta ou indiretamente o montante de recursos para fechar o orçamento. Não era sem razão uma inflação, em geral, nessa época anterior às mudanças de rumos das políticas macroeconômicas, no patamar de cerca de 10%. Chegou, então, no Brasil, com o regime militar de 1964, a perseguição de metas monetárias e o surgimento formal do Banco Central, concretizando-se a efetiva separação das políticas fiscal e monetária. O que veio junto com essas mudanças? A dívida pública nos padrões atuais: complementar o financiamento dos gastos públicos, com o efeito sobre a sua conta juros da política implícita de juros altos.

A dinâmica dessa implacável dívida pública é bem conhecida e está na raiz dos problemas inflacionários. Como se sabe, a restrição do governo federal encontra amparo em quatro itens: seus gastos, G, seus tributos, T, Dívida Pública, D, e Emissão monetária, M. Esses são os elementos que devem necessariamente fazer cumprir a restrição orçamentária. O lado monetário cuida de M e de forma independente do lado fiscal que cuida de G, T e D.  Como diz Leeper (2005) em seu artigo sobre restrição orçamentária do governo:

“A restrição orçamentária do governo é uma identidade contábil ligando as escolhas da autoridade monetária do crescimento monetário ou da taxa de juros nominal e as escolhas da autoridade fiscal de gastos, tributação e empréstimos em um determinado momento e ao longo do tempo. Os links intertemporais criam um rico conjunto de resultados possíveis a partir de experimentos de políticas macro padrão. Levar a restrição orçamentária do governo a sério pode derrubar algumas crenças amplamente mantidas sobre efeitos de política.”

Leeper analisa uma variedade de possibilidades para fazer cumprir a restrição orçamentária que dependeria das escolhas individuais, das políticas fiscal e monetária futuras e da estrutura econômica. O contexto ainda seria o de sincronização das políticas fiscal e monetária, muito embora a perseguição operacional de metas monetárias tenha sido substituída pelo uso dos juros como instrumento de ação do Banco Central. Que item especificamente importa destacar no orçamento público? O efeito da política monetária sobre o orçamento público, a saber, sobre a conta juros.

Os modelos teóricos, respeitando a restrição orçamentária do governo, garantem o equilíbrio orçamentário intertemporal, se T, G e D são rígidos, pelo efeito inflacionário. Mas esse efeito, estabelecido teoricamente, está distante do que se passa na prática. O compromisso monetário deveria ser o de traduzir tal efeito inflacionário em efetiva redução do pagamento dos juros, garantindo-se, pois, o redirecionamento automático dos gastos públicos. Dessa forma, alcançaríamos novamente o equilíbrio orçamentário sem traumas.

A discussão atual sobre juros deveria focar sobre esse ponto, porque há ainda um hiato entre ação do Banco Central em direção a um aumento da meta inflacionária e seu efetivo efeito na restrição orçamentária do governo. Em outras palavras: aumentar meta inflacionaria sem reduzir o pagamento de juros é fazer um desserviço de política monetária.

O que exatamente seria reduzido de juros, dependeria da meta inflacionaria e da própria situação do estoque da dívida pública, além dos elementos de preferências e estrutura da economia. Minha expectativa é que, dados esses elementos, a inviabilidade do concertamento orçamentário é quase certa e, assim, o “nirvana monetário” não poderia cumprir seu objetivo final: o de reequilíbrio orçamentário. Dessa forma, seria necessário reduzir gastos públicos (aumentar impostos ou aumentar dívida tem custo elevado) e conferir o que poderia efetivamente ser reduzido na conta juros pela condução adequada do Banco Central da sua política de ajuste da meta inflacionária.

Como sabemos, o estoque da dívida pública é elevado e ainda carrega o endividamento de estados e municípios (embora conte com contrapartida desses entes federativos). Portanto, ajustar a liquidez com efetivo ajuste dos juros a recompor a estrutura prévia orçamentária não seria trivial.  Talvez a ação da política monetária tenha mesmo um efeito reduzido sobre juros a pagar na conta orçamento público federal. O fato é que, mesmo havendo tal direcionamento efetivo do Banco Central, se optarem pelo aumento da meta inflacionária, seria pouco provável o sucesso de um ajuste definitivo do orçamento público. Como disse em outro artigo publicado nessa Webadvocace (2023), o concertamento orçamentário é urgente. Mas, para se obter sucesso, é necessário um amplo apoio político. Sob o presidencialismo, temos visto que tal concertamento não foi e certamente não será viável exatamente pela dificuldade de se compor uma ampla aliança política nessa direção. Se é para sonhar, que venha o parlamentarismo.

Referências

Leeper, E. Government Budget Constraint, The New Palgrave Dictionary of Economics, 2008. https://www.researchgate.net/publication/311979085_Government_Budget_Constraint

Bittencourt, M.A. Orçamento Público: Sua Estrutura Adequada para o Crescimento e Desenvolvimento. Texto para Discussão 1.203. Webadvocacy , 2023. https://webadvocacy.com.br/2023/01/25/orcamento-publico-sua-estrutura-adequada-para-o-crescimento-e-desenvolvimento/