Artigos de opinião

Comentários ao regulamento de aplicação da LGPD para agentes de pequeno porte

Eduardo Molan Gaban

A última sexta-feira (28/01/2022) foi marcada por importantes acontecimentos. O primeiro deles foi a celebração do Dia Internacional da Proteção de Dados Pessoais. Nesta data, comemora-se o dia de 21 de janeiro de 1981, isto é, o dia em que foi firmado a Convenção 108 do Conselho da Europa para Proteção das Pessoas Singulares no que diz respeito ao Tratamento Automatizado de Dados Pessoais.

Esse foi o primeiro tratado internacional com efeitos jurídicos vinculativos firmado entre nações a fim de proteger a privacidade e dados pessoais frente a “abusos que podem acompanhar a coleta e tratamento de dados pessoais”[1] e para regular “o fluxo transfronteiriço de dados pessoais”[2] diante dos avanços tecnológicos de processamento e automatização desses dados.

O segundo evento marcante da última sexta-feira está intimamente relacionado ao primeiro: o Conselho Diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) publicou a Resolução CD/ANPD nº 2, que aprova o regulamento de aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) para agentes de tratamento de pequeno porte[3]. Assim, desde o dia 28/01/2022, passa a vigorar esse regulamento em todo o Brasil.

A aprovação deste regulamento não foi uma grande surpresa para a sociedade. Isso porque o projeto deste regulamento foi amplamente discutido e sofreu contribuições ativas da sociedade, seja por meio de Tomada de Subsídios[4], seja por meio de Consulta Pública e Audiência Pública[5]. Entretanto, isso não quer dizer que a aprovação deste regulamento não estava sendo ansiosamente aguardada pela sociedade. Trata-se de um importante documento que, inicialmente, sinaliza o entendimento e a preocupação da ANPD com a aplicação e com a adequação dos agentes de pequeno porte às regras e princípios da LGPD. E essa preocupação não é infundada, pois, conforme descreveu a própria ANPD, “durante a Tomada de Subsídios realizada por essa Autoridade” foi verificado que há uma “baixa maturidade e a falta de uma cultura de proteção de dados pessoais pelos agentes de pequeno porte que pode dificultar a adequação desses agentes aos ditames da LGPD e, eventualmente, pode inviabilizar sua existência”[6]. Os dados não dizem o contrário[7].

Assim, a fim de evitar que a LGPD se torne letra-morta e garantir o direito fundamental à proteção de dados pessoais de seu titular, a ANPD publicou o referido regulamento para estabelecer normas e procedimentos simplificados para esses agentes de tratamento de dados. Cumpre aqui, então, ressaltar as principais inovações do novo Regulamento de Agentes de Pequeno Porte.

O Regulamento já inicia respondendo a primeira e intuitiva pergunta: a quem se aplica esse regulamento? Somente aos agentes de tratamento de pequeno porte (art. 1º), que são: microempresas, empresas de pequeno porte, startups, pessoas jurídicas de direito privado, inclusive sem fins lucrativos, nos termos da legislação vigente, bem como pessoas naturais e entes privados despersonalizados que realizam tratamento de dados pessoais, assumindo obrigações típicas de controlador e de operador (art. 2º, inc. I).  

A segunda pergunta é: a quem não se aplica o Regulamento? Basicamente, àquelas pessoas listadas no art. 4º da LGPD[8] (parágrafo único do art. 1º do Regulamento), aqueles que realizam tratamento de alto risco para os titulares[9], ressalvada a hipótese prevista no art. 8º do Regulamento, aufiram receita bruta anual superior ao limite estabelecido no Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (R$ 4.800.000,00 – quatro milhões e oitocentos mil reais) ou que pertençam a grupo econômico cuja receita ultrapasse esse limite (art. 3º).

O art. 7º do Regulamento traz as obrigações dos agentes de tratamento de pequeno porte sobre os direitos de titulares, como disponibilizar informações sobre o tratamento de dados pessoais e atender às requisições dos titulares por meio eletrônico, impresso ou qualquer outro que assegure esse direito do titular. É possível também a tais agentes de tratamento, inclusive àqueles que realizam tratamento de alto risco, organizarem-se por meio de entidades de representação para atender reclamações de titulares.

É importante destacar que, no Regulamento, não estão dispostas todas as minúcias dos procedimentos simplificados. Por exemplo, penderá de regulamentação a forma de registro simplificado das atividades de tratamento (art. 9º) e as comunicações dos incidentes de segurança para agentes de tratamento de pequeno porte (art. 10º).

O Regulamento desobriga os agentes de tratamento de pequeno porte a indicar o encarregado pelo tratamento de dados pessoais (art. 11), mas impõe a criação e manutenção de um canal de comunicação com o titular para atender os pedidos destes (art. 11, § 1º). É claro que, se houver a nomeação de um encarregado, isso será considerado fator indicativo de boas práticas e governança para fins do disposto no art. 52, § 1º, IX da LGPD (art. 11, § 2º), que trata exatamente dos critérios de dosimetria das sanções administrativas aplicadas pela ANPD por violações à LGPD.

Outro ponto que será positivamente levado em conta nos critérios de dosimetria das sanções diz respeito à adoção, pelo agente de tratamento de pequeno porte, de medidas administrativas e técnicas para proteção dos dados pessoais, bem como a adoção de política simplificada de segurança da informação (art. 12 e 13).

Ainda, o art. 14 do Regulamento dispõe que os agentes de tratamento de pequeno porte terão prazo em dobro para o cumprimento de diversas obrigações, como: (1) no atendimento das solicitações dos titulares referentes ao tratamento de seus dados pessoais, (2) na comunicação à ANPD e ao titular da ocorrência de incidente de segurança que possa acarretar risco ou dano relevante aos titulares[10], (3) no fornecimento de declaração clara e completa e (4) em relação aos prazos estabelecidos nos normativos próprios para a apresentação de informações, documentos, relatório e registros solicitados pela ANPD a outros agentes de tratamento. Quanto aos prazos não estabelecidos neste regulamento, eles serão fixados em regulamentação específica[11].

Por fim, é importante mencionar que a ANPD resguardou um relevante poder para si, qual seja, de afastar a aplicação das obrigações dispensadas ou flexibilizadas neste regulamento aos agentes de tratamento de pequeno porte, desde que haja circunstâncias relevantes da situação, como a natureza, o volume das operações e os riscos aos titulares.

Os dispositivos deste Regulamento trazem benefícios relevantes e sensíveis para a aderência desses agentes às normativas da LGPD. Entretanto, ainda pendem algumas regulações, conforme indicado acima, que, certamente, darão melhores instrumentos para esses agentes realizarem um Compliance de dados sem incorrerem custos proibitivos, fatores esses essenciais para o desenvolvimento dos atuais negócios adequados às leis.


[1] Para acesso à íntegra da Convenção 108, vide: https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list?module=treaty-detail&treatynum=108. Acesso em: 01 fev. 2022.

[2] Id. Ibid.

[3] Vide notícia publicada pela ANPD: https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/conselho-diretor-aprova-regulamento-de-aplicacao-da-lgpd-para-agentes-de-tratamento-de-pequeno-porte. Acesso em: 01 fev. 2022.

[4] Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/ainda-na-semana-internacional-da-protecao-de-dados-anpd-inicia-tomada-de-subsidios-sobre-microempresa.

[5] Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/minuta-de-resolucao-para-aplicacao-da-lgpd-para-microempresas-e-empresas-de-pequeno-porte-.

[6] Vide trecho extraído da notícia publicada pela ANPD: https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/conselho-diretor-aprova-regulamento-de-aplicacao-da-lgpd-para-agentes-de-tratamento-de-pequeno-porte. Acesso em: 01 fev. 2022.

[7] Diversas pesquisas apontam a baixa adesão das pequenas empresas aos termos da LGPD. Vide, por exemplo: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/07/12/lgpd-esta-chegando-mas-adesao-e-baixa.ghtml; https://www.lgpdbrasil.com.br/84-das-empresas-brasileiras-nao-estao-preparadas-para-a-lgpd/; https://www.sopesp.com.br/2021/07/12/lgpd-esta-chegando-mas-adesao-e-baixa/.

[8] Exemplo: pessoas naturais que realizam tratamento de dados pessoais para fins exclusivamente particulares e não econômico.

[9] Em seu art. 4º, o Regulamento elenca critérios gerais e específicos para a definição de tratamento de alto risco.

[10] Neste caso, existe uma exceção quando houver potencial comprometimento à integridade física ou moral dos titulares ou à segurança nacional, de modo que o prazo aplicável será o mesmo daquele dos demais agentes de tratamento.

[11] Deve-se destacar que o Regulamento estabeleceu um prazo de até 15 (quinze) dias para os agentes de tratamento de pequeno porte fornecerem a declaração simplificada indicada no art. 19, inc. I da LGPD.

Economic group and liability for violation to the economic order under article 33 of the Brazilian Competition Law

Fernando de Magalhães Furlan

  1. Economic group under the Brazilian Competition Law, regulations, and jurisprudence:

Article 33 of the Brazilian Competition Law (Law No. 12.529/11) stipulates that: “companies or entities that are part of an economic group, in fact or in law, will be jointly and severally liable, when at least one of them practices a violation to the economic order”.

CADE Resolution No. 02/2012 regulates, among other things, the notification of merger filings, as well as the concept of economic group[1]. According to the resolution, the following shall be considered as part of the same economic group:

  • companies under the same control, internal or external; and
  • companies in which any of the companies of item “i” owns directly or indirectly at least 20% of equity interest.

Regarding item (ii) above, by adopting objective criteria for defining economic group and considering the intent and the volume of equity interests acquired, CADE is typifying a presumption that 20% is sufficient to qualify the ability to have real interference in the company, therefore constituting an economic concentration and not just a financial investment.

            Article 10 of that resolution reads:

“Art. 10 Under the terms of article 9, II, acquisitions of part of a company or companies that fall under one of the following hypotheses are mandatory to be notified to Cade:

I – In cases where the investee company is not a competitor or does not operate in a vertically related market:

a) Acquisition that gives the acquirer direct or indirect ownership of 20% (twenty percent) or more of the invested company’s voting or share capital;

b) Acquisition made by a holder of 20% (twenty percent) or more of the share capital or voting, provided that the participation directly or indirectly acquired, of at least one seller considered individually, gets to be equal to or greater than 20% (twenty percent) of the share or voting capital.

II – In cases where the investee company is a competitor or operates in a vertically related market:

  1. Acquisition that grants direct or indirect participation of 5% (five percent) or more of the voting or social capital;

b) Last acquisition that, individually or combined with others, results in an increase in participation greater than or equal to 5%, in cases where the investor already holds 5% or more of the acquired voting or social capital.

Single paragraph. For the purposes of framing an operation in the hypotheses of items I or II of this article, the activities of the acquiring company and the activities of the other companies belonging to its economic group, as defined in article 4 of this Resolution, must be considered”.

CADE, in the request for a Cease-and-Desist Agreement (Termo de Compromisso de Cessação – TCC) proposed by Unimed Araraquara[2], defined what should be understood by economic group and the importance of its correct identification for the application of sanctions that may be imposed by Cade to curb unlawful acts practiced by companies linked by a unified decision-making board.

Therefore, it starts from the definition of an economic group adopted by Corporate and Labor Law, specifying the particularities of its application in the scope of the Competition Law. In summary, CADE understood that to set up an economic group within the scope of the Antitrust Law, it is necessary that the entities of the group have their own legal personalities and that there is a certain connection between/among them, that is, that they act under common general guidelines.

In this context, from the perspective of the Competition Law, there will be an economic group configuration when two or more companies act under common direction or when there is, among them, a relationship capable of compromising their impartiality in relation to the other member companies and that can, thus, influence their performance in the market[3].

Another question that should be addressed is the basis for calculating a fine eventually applied by CADE. Should it comprise only the billing of the legal entity (company) listed as “investigated” in the administrative process at CADE, as it would be the only company in an economic group liable to respond for penalties that may apply?

Such an argument could perhaps have some support if the investigated society were the only company in the economic group to operate in the sector whose anticompetitive conduct referred to. If the economic group operates in the same economic sector investigated through other companies, in addition to the company investigated, with documents attesting to such sales, it is certain that the gain from the reduction of competition promoted by anti-competitive conduct also reflects in these other companies in the group, with no justification for their exclusion from the responsibility of repairing the damages caused.

  • Joint liability provided for in Article 33 of the Competition Law:

            Solidary responsibility, by Brazilian legal system, is not presumed. It results from the law (non-contractual) or from the will of the parties (contractual), as provided for in art. 265 of the Civil Code[4].

That is because article 33 of Law 12.529/11 (Competition Law), provides that:

“Art. 33. Companies or entities that are part of an economic group, in fact or in law, will be jointly and severally liable, when at least one of them practices an infringement of the economic order”.

Thus, joint and several liability of companies belonging to the same economic group, for damages caused by anti-competitive infraction, results from the law (Art. 33, of Law 12.529/11).

Law 12,529/2011, by giving joint and several liability to companies that are members of economic groups for the unlawful conduct practiced by another company in the same group, expanded the liability of an obligation, with repercussions on directing the enforceability of its compliance to more than one person.

Brazilian courts[5], at times, when analyzing the issue, have attributed responsibility for the fulfillment of obligations to legal entities belonging to the same group as the one originally obliged. To support this understanding, they use the argument that there is a common control between/among societies and that they would have merely formal structures.

It is argued that the separation is purely formal between/amongst the companies since they constitute a single economic group, with the same direction and that business, in this case, is conducted in view of the group’s interests and not those of each different society. The understanding, therefore, is that, in the economic group, business is conducted with global/general interest unified, since control is common/shared and/or unified, and therefore, the responsibility between/amongst all the subsidiaries is joint[6].

In another administrative proceeding, CADE understood of the possibility of a company being included in the passive pole of the process in which the conduct of members of other companies in the same economic group were investigated. The controlling company was considered jointly and severally liable for the anticompetitive conduct of its whole subsidiary. CADE also accepted as a proof of solidarity the presentation of a corporate document that attested that they belonged to the same group.

  • Joint and several liability:

To carefully analyze the rules that regulate joint and several liability in Brazilian antitrust law, it is necessary to start from the analysis of art. 17 of revoked Law 8.884/1994 (former Brazilian Competition Law). The article reads as below and gives rise to two possible interpretations:

“Art. 17. Companies or entities that are part of an economic group, in fact or in law, who practice infractions of the economic order will be jointly and severally liable”.

According to the first interpretation, the investigation of a legal entity because of the actions of another is not permitted. Solidarity, from that point of view, is possible only in cases where both companies had contributed somehow (by acting or not acting, when they should) for the practice of the illicit.

Such understanding becomes evident with the text given to art. 33 of the current Competition Law (Law 12,529/2011). The substitution in the law of the term “praticarem” (to perpetrate, in the plural) for “praticar” (in the singular) “a violation of the economic order”; shows that, for the previous law, it was necessary for each company to commit the infraction to be held responsible. Such a change reveals that, according to the previous law, there could only be accountability by one own act, and to be possible to remove accountability, it must be shown that the other companies in the group or the parent company are not infringers because they did not participate directly or indirectly in the infraction.

Moving on to the analysis of art. 33 of the New Competition Law (Law No. 12.529/11), it is possible to infer that the legislator, with the new wording given to the norm, opened space for an extensive interpretation, to consider solidarity in a broad way, so that the consequences of this solidarity could be imposed on other business companies that integrate the same corporate group. Such an interpretation must be viewed cum grano salis (“with a grain of salt”) considering that the punishment of an administrative infraction cannot be disconnected from the censurability of the conduct.

Thus, with respect to joint and several liability for an antitrust infringement, it requires that the parent company, or any other member of the economic group, have participated in the conduct or that it exercised control or dominant/relevant influence over the offending company.

In any case, CADE’s jurisprudence has settled in the direction of ample liability from the part of the controlling/parent company[7].

  • Shared, joint or common control and relevant influence pursuant to CADE Resolution 02/2012 and CADE jurisprudence:

The concepts of “antitrust control”, “shared or common antitrust control” and “determinant influence on relevant market matters” depend on what is meant, for instance, by “relevant influence” or “relevant market matters”; as “control” or “common control” are concepts well established.

Some of the shareholders’ rights have already been declared in decisions issued by CADE as generating ‘determinant influence on materially relevant matters’, such as: (i) veto over merger, incorporation, spin-off or transformation options; (ii) appointment of a member of the Board of Directors; or (iii) investments by the company in activities other than those provided for in its corporate purpose or in amounts greater than the amount predefined in the business plan or in the shareholders’ agreement.

The relevant influence can be conceptualized, albeit in a simplified manner, as “the possibility of an economic agent to make use of a minority shareholding, or even a simple contractual relationship, to intervene in the decision process of the target company of investments, thus affecting its actions and business strategies” (Concentration Case No. 08012.009529/2010-41)[8].

Upon analyzing the issue, CADE understood that:

The crux of the matter is determining the scope of expression ‘group of companies’ referred to in the Competition Law. As is well known, the concepts and norms of corporate law do not always coincide with those of antitrust law. In corporate law, the law is aimed at protecting the interests of minority shareholders and creditors and the decision-making power is seen as that capable of controlling the fate of the activity’s results (equity). As for competition law, the law is aimed at competitors and consumers, and, as for decision-making power, it is more important to determine who can control or influence market-relevant decisions, such as pricing, economic strategies, etc.”[9]

Thus, the antitrust analysis presupposes not only the examination of corporate forms, but the economic reality also. This leads to the notion of relevant influence. There is a ‘relevant (or significant) influence’ from a competitive point of view, whenever, from the union of decision-making centers in specific and strategic areas, it is possible to assume a cooperative behavior between/amongst companies, which does not assume ownership of most of the voting shares[10].

The concern about the existence or not of “relevant influence” was also directly related to the identification of the companies that are part of the same economic group at the time of the analysis, among others, of the Concentration Cases Nos.: 08012.000476/2009-60[11]; 08012.008415/2009-41[12] and 53500.012487/2O07[13].

Upon regulation of the provisions of item II of article 90 of Law No. 12,529/2011 (Competition Law), CADE Resolution No. 02/2012 established objective criteria related to the mandatory notification of transactions to the Brazilian Competition System (SBDC). The antitrust authority, with a view to ensuring greater efficiency in the analysis of acts of concentration that could result in greater competition concerns, ended up establishing, in an objective manner, minimum criteria for a given concentration act to be considered as of mandatory notification.

Indeed, by establishing, as a mandatory notification criterion, the acquisition of control resulting from the operation, item 1 of article 9 of Resolution No. 02/2012 must be interpreted in the technical sense of the expression, contained in articles 116 and 243, paragraph 2, of Law 6,404/76 (Corporate Law). In this case, the norm refers to the acquisition of shareholding control, either in isolation or in a shared manner.

At this point, it is worth noting that the concept of relevant influence is associated precisely with cases where there is no power to control. Both comprise expressions that, although not confused, are part of the concept of “active equity interests”.

A partner has the power to control a company when she/he/it holds rights that ensure her/his/its preponderance in the company’s decisions. If the partner cannot individually control the company’s decisions, but can, for example, veto or prevent other partners from doing so, her/his/its agreement being necessary to guide the company’s behavior, it is said that this partner enjoys the power of shared control. Although the controlling power normally concerns the shareholder holding more than 50% capital, it is possible, in certain cases, for minority shareholders to control a company.

There are cases, however, in which one or more partners do not have the power to control, alone or jointly, the behavior of a company; but they are able, even so, to exert a relevant influence on the company’s decisions, even if they only hold minority shares.

As seen, under Article 4 of CADE Resolution 02/2012:

Art. 4 It is understood as parties to the operation the entities directly involved in the legal business being notified and the respective economic groups.

§ 1 – It is considered an economic group, for purposes of calculating the billings contained in art. 88 of Law 12,529/11, cumulatively:

I – companies that are under common control, internal or external; and

II – companies in which any of the companies in item I holds, directly or indirectly, at least 20% (twenty percent) of the share capital or voting capital.

In the Rhodia/Granbio Concentration Act (Concentration Act No. 08700.008623/2013-78)[14], one company had a 20.6% stake in the other’s capital and was therefore considered part of the same economic group, even tough, due to a lawsuit, it could not fully exercise its social rights in the invested company.

This solution was given in line with CADE’s Resolution No. 2/2012, which characterizes unitary management by the simple participation of 20% or more in the company’s total share capital.

In the Agriport/Blue Ocean Concentration Act (Concentration Act No. 08700.002786/2015-17)[15], Cade considered a company that held 50% of shares of another as the same economic group. For the characterization of control, according to the rules of corporate law (Law 6,404/76), considering only the shareholding, 50% of the shares, plus at least one, would be required.

Even so, CADE’s understanding is in line with Resolution No. 2/2012, and it is plausible to assume that there is a unitary or common direction in the presence of a 50% shareholding or superior.

In the PricewaterhouseCoopers/PwC Strategy Concentration Act (Concentration Act No. 08700.006238/2015-58)[16], despite the lack of equity interest between the parties, external control (which already is provided for in CADE’s Resolution 02/2012) was sufficient to characterize a single economic group. Such external control was characterized because, despite the independence of the parties, there was an economic unit among the entities of the PwC Network, through which its entities could avail themselves of the resources and methodologies of the PwC Network.

In addition, the information presented by the parties suggested dependence, in relation to the development of the business, between the member company of the PwC Network and the internal bodies established by PwCIL, it being mandatory that each member company complied with the standards and policies established within the network, with a system for monitoring compliance with these obligations by the “Leadership Team”.

There was even a need for approval by the “Leadership Team” of certain acts individually performed by member firms, such as structural changes or decisions that could impact the performance, quality, economic interests, or reputation of the local business and, therefore, also of the Network. Adherence to and compliance with the norms, policies and standards established by the PwC Network were monitored and imposed/executed in a centralized manner, strengthening the argument of interdependence. In this context, the PwC Network was understood by CADE as a single economic group.

CADE Resolution 17/2016 regulates the notification of associative contracts referred to in item IV of article 90 of Law 12,529/2011 (“two or more companies enter an associative contract, consortium, or joint venture). Article 2 of the resolution provides that:

“Art. 2 – Any contracts with a duration equal to or greater than 2 (two) years that establish a common enterprise for the exploration of economic activity are considered as associations, provided that, cumulatively:

I – the contract establishes the sharing of risks and results of the economic activity that constitutes its object; and

II – the contracting parties are competitors in the relevant market object of the contract”.

And Art. 4 stipulates that:

“Art. 4 – For the purposes of this Resolution, contracting parties are those directly involved in the notified legal transaction and the respective economic groups, as defined in Article 4 of Resolution No. 2/2012”.

In another case of formation of a joint venture reviewed by CADE (Act of Concentration No. 08700.006723/2015-2)[17], the economic groups of media SBT, Record and RedeTV! notified the formation of “Newco”, to act together in the “transmission of content/programming of open TV for conditional access service providers”. The share capital of each company would be divided equally, with a 33% share for each.

The rapporteur of the case at CADE voted to reject the operation. CADE’s final decision, however, was to approve the joint venture with restrictions, by signing an Agreement on Control of Concentrations (Acordo em Controle de Concentrações – ACC). An excerpt of the decision was very enlightening about CADE’s perspective on joint ventures:

Joint ventures are a special type of arrangement whose characteristics are usually seen as neutral or beneficial to the competitive environment. A good translation of the term joint venture points to the meaning ‘enterprise with shared risks or responsibilities’. For competitive purposes, classic joint ventures are those whose mission is to serve as an exploratory vehicle for creating companies in unknown markets, whether this is lack of knowledge of a geographic or thematic market”.

In these cases, the most common formations of joint ventures are related to innovation, services, differentiated products or capital-intensive industries. As in the classic modality this type of company is always a means of entry into markets not related horizontally or vertically. CADE Resolution No. 2/2012 provides that the assessment of competition impacts takes place in a simplified procedure and summarily tending to approval without restrictions.

However, companies that deviate from this model may require a detailed antitrust assessment. The most common competitive risks associated with non-classical joint ventures are those relating to limitations on independent business decisions, shared control of important productive assets, facilitating the exchange of competitively sensitive information, incentives to reduce competition in markets other than the joint venture’s and other elements that indicate an increased risk of tacit or explicit collusion.

CADE Resolution 02/2012 itself defines a classic joint venture as “the creation of a company to explore another market”; and a concentrationist joint venture as “the creation of a company to explore a market already explored by the associated companies[18].

In fact, comparative law goes along the same lines, in relation to common or shared control. Article 3 of the European Union’s Merger Control Regulation (EU Regulation 139/2004) defines a concentration when there is a lasting change of control, through merger, acquisition or creation of a joint venture that performs all the functions of an autonomous economic entity.

In Opinion No. 394/2012/AGY/PGF/PFECADE, in the Concentration Act No. 08700.008736/2012-92[19], CADE’s legal body (ProCADE), when expressing its opinion on “associative contracts”, wrote that “there is no legal definition of what may arise to be ‘associative contracts’”. The doctrine conceptualizes them as legal transactions through which two or more companies, without forming a formal consortium, join to carry out an agreed undertaking. They do not lose the autonomy of the decision-making centers, but have their freedom limited, insofar as they are linked to the achievement of the common effort.

Thus, the delimitation of a legal transaction subsumable to the control of the Brazilian antitrust authority was established, insofar as it presents the following characteristics: it is about the establishment of a relationship between companies that, nevertheless, can maintain their legal and economic autonomy, they will jointly develop an activity, with technical (know-how) and structural complementation, in addition to exclusivity, preventing them from providing individual third parties with services similar to those that are the object of the partnership.

With a joint venture, it is unmistakable that a new business power center is created, either through a control that will be shared among the contracting parties, or through a control that will be exercised by only one of the contracting parties. That is why it is impossible not to associate joint ventures with the so-called “acts of business concentration”, since they nullify the competitive relationships between the contracting parties, regarding the joint venture, and may, therefore, be considered alternatives to the operations of corporate interpenetration, such as merger, acquisition, and incorporation[20].

On the other hand, the fact that the joint ventures admit the control of one of the contracting parties over the others, at least about the objectives of the joint venture, shows that such contracts can be seen as substitutes even for the business groups, insofar as that enables domination through contractual ties. From this angle, joint ventures could even be considered as instruments that generate partial external control, which is projected, a priori, in the exercise of enterprise, but which can be extended to other activities.

Joint ventures would be modalities of concentration by coordination or cooperation, alternatives to the usual forms of acquisition of controlling power or dominant influence over a company, or even the constitution of a fully controlled company[21]. For this reason, joint ventures have replaced acquisitions of companies or control, which has raised the yellow flag of competition authorities around the world.

By enabling the constitution of a new decision-making center or business control – effectively shared by the contracting parties or exercised only by one of them – it is unequivocal that joint ventures present themselves as new market structures, a circumstance that poses challenges in determining the liability regime of the contractors.

In joint venture contracts, the participating companies maintain their economic and financial independence, do not internally restructure their management or control power, and do not necessarily acquire assets, and if they do, this is merely instrumental. However, the communion of purposes and business risk, as well as the creation of a new specific control, certainly need to have repercussions in the responsibility regime of the contractors for the exercise of the joint venture.

The fundamental question that arises from joint venture contracts is precisely that of knowing to what extent the contractors simultaneously securitize the same business power and to what extent such circumstances allow them to be considered, together, as a single entrepreneur, including for the purposes of different liability regimes.

International joint ventures, therefore, and national joint ventures also cannot be allowed to conveniently deviate, by contractual provisions, imperative rules that seek to impute due responsibilities to those who jointly control or manage the enterprise[22].

Therefore, under CADE’s current legislation and jurisprudence, a joint venture (common or shared control) makes both shareholders liable for its acts and activities, in a competition or antitrust perspective, as they supposedly participated in the decisions of the joint venture, or, at least, did not take any action to opposed them.


[1] Law No. 12.529/11. Art. 90. “For the purposes of art. 88 of this Law, a concentration act is performed when:

I – 2 (two) or more previously independent companies merge;

II – 1 (one) or more companies acquire, directly or indirectly, through the purchase or exchange of shares, quotas, bonds or securities convertible into shares, or assets, tangible or intangible, by contract or by any other means or form, the control or parts of one or other companies;

III – 1 (one) or more companies incorporate another or other companies; or

IV – 2 (two) or more companies enter an associative contract, consortium, or joint venture.

[2] Requerimento n° 08700.005448/2010-14. Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?xgSJHD3TI7Rh0CrGYtJb0A1Onc6JnUmZgGFW0zP7uM-5q5sluy4XLqIdIJ5FuY3uZihVC6NaEsxcrTN7MNh0aoQdm4yejpT0EYXy5uoQhvSzaQix8jV1OcVSHZoOKsMl. Access: 26/05/2021.

[3] Requerimento No. 08700.005448/2010-14. Vote by the Reporting Member. December 14, 2011. Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?xgSJHD3TI7Rh0CrGYtJb0A1Onc6JnUmZgGFW0zP7uM-5q5sluy4XLqIdIJ5FuY3uZihVC6NaEsxcrTN7MNh0aoQdm4yejpT0EYXy5uoQhvSzaQix8jV1OcVSHZoOKsMl. Access on 25/05/2021.

[4] Art. 265. “Solidarity is not presumed; results from the law or the will of the parties”.

[5] The Eli Lilly case (CADE. ADMINISTRATIVE PROCESS No. 08012.011508/2007-91. Judged on 7/14/2015. Available at:

<https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?xgSJHD3TI7Rh0CrG

YtJb0A1Onc6JnUmZgGFW0zP7uM98EZn6wPgAA4S5qa8PY3kHZNkkhQsXqyoBEKEQO53fIqG5lav2fhcDbqzn7pI9D98IPIhFtEItq5ZxbeSnq9. Accessed on 12 May 2021. In the passive pole there was the parent company, headquartered abroad, and the Brazilian subsidiary. The billing for calculating the fine was that of the Brazilian subsidiary, but the obligation to pay was jointly and severally. This system was followed by two other cases: (i) CADE. ADMINISTRATIVE PROCESS No. 08012.008821/2008-22. Judged on 1/20/2016. Available at:

<https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZE

FhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yPQrNhNlQY1fJWMVS2OgIW3joeZbU0Nyma6gJX3oKI8AbgwPSHL7nptANhIYGfzV1BRCCjgS16VBHYZZV3A0ky>. Accessed on 12 May 2021: and (ii)ADMINISTRATIVE PROCESS No. 08012.003321/2004-71. Judged on 4/13/2016. Available at: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZE

FhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yNdsW2szLmPzaXSbOlv8Eu85-VyfcNecQlKh2GPZAIEthww9_x4-

HZRaRwJ5Km1tCo6ISylgWEZvr84CRRJ7nq->. Accessed on 12 May 2021).

[6] Superior Court of Justice (STJ) – 3a Turma – Recurso Ordinário em Mandado de Segurança (Ordinary Appeal in Writ of Mandamus) No. 12,872. Rapporteur: Nancy Andrighi. Judged on 24.06.2002. Available at: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=470151&num_registro=200100100791&data=20021216&tipo=51&formato=PDF. Accessed on May 26, 2021.

[7] Processo Administrativo No. 08012.004617/2013-41. Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?2pXoYgv29q86Rn-fAe4ZUaXIR3v7-gVxEWL1JeB-RtUgqOwvr6Zlwydl0IhRNSr2Q22lByVKByYDYwsa13_Jxv_TD0gMz5Bnf9DkLxr-asuqhGSyxpB7jiO8aqnx0vHf.Accessed on May 26 2021; Processo Administrativo No. 08012005324/2012-59. Available at:  https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?5LK2OPcLJR_ipmIIdOEcWJwPucpbCJDecPgMLlCe73jB508ahT9wUzaXUnjAZUJ4XW1xtu1H5kGUyGvypRMajWMjZBqZ7tkJ5OpHVeIxfwpnSYvFw1IVXU02fZRvCSdL. Accessed on May 26, 2021; and Processo Administrativo No. 08700.009029.2015-66. Available at:  https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcZNF6wRFQVq4JQpS_exAbBBVAdTW2UzM8ZeHpAvJHclU.  Accessed on May 26, 2021.

[8] Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?xgSJHD3TI7Rh0CrGYtJb0A1Onc6JnUmZgGFW0zP7uM-54cKv3whfMyMJyxgUnW4_2eumIfm7hbrs9CEY–1UylQfGJWMQ2fOH-G1JHthe3UCl6fqdq1HQ_z2d7PSUCJw. Access on Jnue 22nd, 2020.

[9] Concentration Case No. 08012.010293/2004-48. Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBccvBeUlKC18QR5HMh2pJ91JUNIbpbzpnnTqD9moOO3IZ. Access on June 22nd, 2020.

[10] Idem.

[11] Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yNNVQCTjpm7C367U-YYlYREK7bR1fRX6XGMZtrWUXZrJdjaC31raOYeQ4PM8cAeBei3qytqjJiPIQT6bi_egZ8V. Access on June 22nd, 2021.

[12] Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?xgSJHD3TI7Rh0CrGYtJb0A1Onc6JnUmZgGFW0zP7uM84PNCjAYZ9QiJRTulTuAHgOaF9Lv2OoPGZblinFWjyhJ1iamkGSGaMQAzhavT6YvDXQe3C_lV-goLimYGYPCNW. Access on June 22nd, 2021.

[13] Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?KOXi3eEqJC73dCc3G_MH5w73G76ivtXYDDG65Jr7vK4fhNNdRnnFDgAfJTIfRn8_ywCudV1gCNGrQiNgXFAcnUagM9Igy-8yamlycudxqG4KFbNWdRjNNLT7fGIBzaMp. Access on June 22nd, 2021.

[14] Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcYJLJ6_IMCO8aWl4r1pWTuUkoYV1lIlDbfeDxBKOYx0v. Access on June 23, 2021.

[15] Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?KOXi3eEqJC73dCc3G_MH5w73G76ivtXYDDG65Jr7vK4fhNNdRnnFDgAfJTIfRn8_ywCudV1gCNGrQiNgXFAcnRaC6ypKDabJe-detd0lKNX3ncd6hKdwRjeme_E8lBSu. Access on June 23, 2021.

[16] Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?KOXi3eEqJC73dCc3G_MH5w73G76ivtXYDDG65Jr7vK4fhNNdRnnFDgAfJTIfRn8_ywCudV1gCNGrQiNgXFAcnX7jA_nX9j8uz3AeZuKJMmd3xfZygW8FYE5kqUnKgh8R. Access on June 23, 2021.

[17] Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?KOXi3eEqJC73dCc3G_MH5w73G76ivtXYDDG65Jr7vK4fhNNdRnnFDgAfJTIfRn8_ywCudV1gCNGrQiNgXFAcnT41bnIPL8Pur7qdS9xYfkeM9jASRSJ3UrFMUUATmF75. Access on: June 23, 2021.

[18] Annex II (Phase III) of CADE Resolution 02/2012. Available at: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/normas-e-legislacao/resolucoes/Resolu%C3%A7%C3%A3o%202_2012%20-%20An%C3%A1lise%20Atos%20Concentra%C3%A7%C3%A3o.pdf. Access on: June 28th, 2021.

[19] Available at: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOUomQu-DYUEhGE-sLrGNPYNg1fNbKz4-aCwfmgHjQHgPpTZVa1neaNbOyglhXxJjUohdFg9Wke3n7qJP2NFmBW. Access on June 24, 2021.

[20] PIRONON, Valerie. Les joint ventures: Contribution à l’étude juridique d’un instrument de coopération internationale. Paris: Dalloz, 2004, p. 3.

[21] ASTOLFI, Andrea. El contracto international de joint venture. 1 ed. Buenos Aires: Depalma, 1986. Cuadernos de la Revista del derecho comercial y de las obligaciones; v. 2.

[22] PIRONON, Valerie. Op. Cit., p. 12-17.

Regra “PER SE” no direito antitruste brasileiro: um grande erro

Eduardo Molan Gaban

Desde o surgimento do sistema brasileiro de defesa da concorrência, é possível observar uma forte influência dos conceitos norte-americanos na sua estruturação. Por exemplo: para a avaliação da ocorrência de um ilícito antitruste no Brasil, sistematizaram-se duas metodologias “importadas” do direito norte-americano para a análise de casos concretos: a regra da razão e a regra “per se”. A diferença entre essas duas regras reside na quantidade de informação necessária antes da tomada de uma decisão pelo tribunal administrativo.

A partir da aplicação do padrão analítico “per se”, a conduta é considerada ilícita independentemente do contexto em que foi praticada, sendo desnecessária a análise de estrutura de mercado e de poder econômico do agente. Referida regra determina que, uma vez configuradas certas práticas, o ato poderá ser julgado como ilegal sem qualquer necessidade de aprofundamento das investigações[i].

Por meio da metodologia da razão, por sua vez, a conduta não pode ser, de pronto (ou pela mera identificação de sua existência), considerada ilícita. Esta regra apenas considera ilegais as práticas que restrinjam a concorrência de forma não razoável, sem justificativa. Em sendo aplicável esta regra, para que se chegue a uma conclusão sobre a ilicitude ou não da conduta, é necessária uma avaliação completa e detalhada de todas as circunstâncias envolvendo o caso sob análise, com verificação dos efeitos líquidos negativos para a concorrência, para que somente então seja considerada anticoncorrencial.

Muito embora a importação destes conceitos dos EUA possua inegável utilidade prática no processo de aplicação de leis antitruste, antes da simples adoção de tais padrões de forma automática é necessário avaliar se haveria substrato de validade jurídica no Brasil. Nesse sentido, infelizmente, não há disposição normativa no ordenamento jurídico brasileiro, muito menos na Lei Antitruste, que incorpore a regra “per se” e permita sua utilização nos procedimentos administrativos sancionadores ou mesmo nos processos judiciais.

A Lei nº 12.529/11 dispõe, em seu artigo 36, caput, que as condutas anticompetitivas a serem submetidas ao julgamento pressupõem uma análise de efeitos. Em que pese a lei não defina expressamente sobre a aplicabilidade da regra “per se” ou da razão, a interpretação que se extrai é a de que qualquer análise a ser feita pelo CADE não pode se ancorar em presunções e deve, necessariamente, avaliar os efeitos decorrentes da prática. Nesse sentido, se aproximaria mais da regra da razão, em que é necessária a demonstração dos efeitos em um caso concreto.

A explicação para a utilização da análise “per se” nos casos de cartéis hard core reside no fato de que, ainda que fosse feita uma análise pela regra da razão, esta sempre resultaria em um efeito líquido social negativo, pois a premissa é da existência do poder de mercado e de ser nulo qualquer efeito compensatório em cadeias industriais concentradas em seus diferentes elos. Assim, justifica-se a análise dos cartéis hard core sob a ótica “per se” pela alegada economia processual.

Se em tese o argumento seduz, na prática ele é inviável segundo o sistema jurídico brasileiro, sobretudo por carecer de qualquer previsão legal para tanto. Sua inaplicabilidade fica ainda mais evidente quando consideramos a natureza penal da norma dispositiva contida no art. 36, da Lei Antitruste. Sendo assim, por mais sedutor que seja ao aplicador da norma adotar o padrão “per se” para casos de cartéis clássicos, é imprescindível que seja demonstrada a posição dominante no caso concreto (não apenas a presunção em função da participação de mercado), além é claro de demonstrar-se e provar-se o envolvimento dos acusados e os efeitos negativos de suas práticas.

Por mais cristalina que seja a hermenêutica nesse tema, lacunas e inconsistências marcam a jurisprudência do CADE sobre a questão: o cartel clássico deve ser analisado sob a regra da razão, sob a regra “per se” ou, ainda, como infração por objeto?[1]

Como ponto de partida, notamos louvável resistência de alguns Conselheiros na importação acrítica de ideias de ordenamentos estrangeiros, os quais não coadunam com a realidade brasileira e tampouco com os parâmetros constitucionalmente estabelecidos. Como exemplo, podemos citar o voto condutor da interpretação jurídica segundo a qual a legislação nacional não adota a tese da infração “per se”, proferido pelo Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo no Processo Administrativo nº 08012.006923/2012-18[ii]. No mesmo sentido, o voto do Conselheiro Alessandro Octaviani Luis no Processo Administrativo nº 08012.011027/2006-02[iii] ressalva explicitamente a diferença de tradução entre as duas realidades (brasileira e norte-americana).

Tem prevalecido, entretanto, a aplicação da regra “per se” como padrão para aplicar a Lei Antitruste para os casos de carteis clássicos. A dispensa de necessidade de demonstração do poder de mercado para além do simples quadro da estrutura de oferta com as indicações de market share, bem assim da apuração dos efeitos propugnada pela regra “per se” – que “corta o caminho” de uma análise mais completa para uma presunção iuris et de iure do poder de mercado dos agentes – tem predominado nas notas técnicas da Superintendência-Geral[iv] e também nas decisões do Tribunal do CADE.

Este posicionamento punitivo/repressivo majoritário não fica imune à críticas. O primeiro exemplo a ser citado é a rejeição da regra “per se” para, ao invés, adotar a teoria da infração por objeto, com a qual também discordamos, como se denota do voto da Conselheira Ana Frazão no Processo Administrativo nº 08012.000261/2011-63[v]. A divergência também se faz presente no voto exarado pelo Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior no Processo Administrativo nº 08700.006965/2013-53[vi], em que, entre a escolha pela adoção da regra “per se” ou da razão, preferiu esta última.

Isso ocorre pois, ainda que o atalho da regra “per se” seduza pela praticidade e facilitação da decisão, o ordenamento jurídico brasileiro não permite a formação de um juízo pela autoridade competente sobre determinado caso com base em especulações. Não é possível a presunção, sem dados, fatos e contexto, de que o agente possui poder de mercado, apenas por estar inserido na tabela de estrutura de oferta apresentada pela acusação cuja somatória de market share dos acusados de conluio supera 20%.

Não é suficiente para justificar a adoção dessa metodologia o argumento de que a análise “per se” otimizaria o funcionamento e o processamento dos casos tramitando perante a autarquia, na medida em que dispensa a autoridade do exame detido e demorado dos impactos do mercado.

A regra “per se” é incompatível com o sistema jurídico brasileiro, já que este privilegia o princípio constitucional da presunção da inocência e impõe às autoridades de acusação e de decisão a comprovação das práticas e de seus efeitos. Em outras palavras, a presunção insculpida na Constituição Federal de 1988 é pela inocência, não pela existência de poder de mercado que, via de consequência, leva a uma possível existência de ilícito. A adoção da regra per se na investigação e no juízo punitivo leva ao absurdo da prova negativa de autoria e de materialidade, o que é absolutamente inconsistente com a matriz constitucional vigente no Brasil.

Investigar e decidir por intermédio da regra “per se” viola o princípio de que o ônus da prova cabe à acusação, ou de que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”, conforme disposto no artigo 156 do Código de Processo Penal – inquestionavelmente aplicável ao processo administrativo sancionador no âmbito do CADE. Nesse sentido, a presunção da existência de poder de mercado nesse tipo é aceitável apenas para se inaugurar investigações, porém jamais para se impor sanções.

Também não há que se falar em maior segurança jurídica. Na realidade, a aplicação da regra “per se” implica o efeito oposto, vez que aumenta significativamente o risco de overdeterrence, que pode culminar em erros do tipo I, e que, via de consequência, pode resultar em injustiças. Além disso, condenações injustas, que não decorrem do devido processo legal ante a verdade real dos fatos e de seu contexto, levam ao descrédito da sociedade sobre o trabalho da autoridade antitruste.

A este respeito, é digno de nota que Paolo Buccirossi[vii] entende que há três tipos de falhas que podem afetar o sistema de aplicação das normas – ou seu enforcement: (i) excesso ou contenção de dissuasão (over-deterrence/underdeterrence); (ii) erros tipo I e tipo II (ou falsos positivos e falsos negativos, respectivamente); e (iii) excesso ou contenção de inclusão (over-inclusion/under-inclusion). A primeira falha que se verifica na aplicação do direito concorrencial se refere à força do enforcement, que é demasiadamente grande com a regra “per se” (overdeterrence). A segunda é relacionada à qualidade do sistema de punição, que, pela aplicação da regra “per se”, pode revelar um falso positivo ou erro de tipo I, quando o agente é condenado por infringir uma norma, embora não tenha empreendido uma conduta proibida. A terceira falha é observada quando a norma proíbe uma conduta que em algumas circunstâncias é benéfica (over-inclusion).

E, de fato, a regra “per se” traz como consequência a proliferação de inquéritos/procedimentos administrativos muitas vezes infundados, o que resulta em um nível excessivo de repressão. Nestes casos, a coletividade, que é titular do bem jurídico protegido pela legislação concorrencial, se torna vítima da própria execução equivocada da lei.

Em síntese, o que se verifica é que a oposição e disputa entre as classificações da infração antitruste pela análise “per se” e da razão dizem respeito, principalmente, ao nível de segurança jurídica e de economia processual que cada uma das categorias proporciona. Todavia, estas são falsas justificativas, pois não há segurança jurídica em resultados que ferem a ordem constitucional vigente, e a economia processual não deve sobrepor-se aos princípios e direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal de 1988.

É de se notar que a regra “per se” é frequentemente questionada, inclusive, nos EUA, como recentemente indicou a decisão Sanchez et al. v. United States, em que aceitou a Suprema Corte daquele país reavaliar a aplicação da regra “per ser”. A questão apresentada nesse caso avalia se a aplicação da regra “per se” ao direito antitruste viola a proibição constitucional de instruir os julgadores de que certos fatos presumidamente estabelecem um elemento de crime.

Ao fim e ao cabo, mesmo havendo algum sentido analógico entre os padrões dogmáticos e econômicos de análise entre ambas as jurisdições (EUA e Brasil) no tocante à Política Antitruste, decisões baseadas apenas na regra “per se” são nulas de pleno direito, já que contrariam a Constituição Federal de 1988 e os parâmetros infraconstitucionais contidos nos diplomas aplicáveis aos processos sancionatórios.


[1] Trataremos desse tema em outro artigo.


[i] GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 96.

[ii] “30. Mencionado trecho do guia europeu (o Guidelines on the Application of 101(3) TFEU (formerly Article 81(3) TEC), no qual se inspirara) deixa claro que a presunção de ilicitude que acompanha as condutas anticompetitivas pelo objeto é baseada na experiência, no conteúdo do acordo e na sua alta probabilidade de prejudicar o bem coletivo protegido pela lei. Contudo, trata-se apenas de uma presunção iuris tantum, e não significa que se esteja adotando uma ficção absolutamente descolada da realidade, nem uma presunção irrefutável. (…) 99. Tudo isso não significa, evidentemente, que se trate de ‘infração per se’, até porque essa expressão sequer existe na legislação nacional. Em outras palavras, não significa que se trate de presunção iuris et de iure de ilegalidade”. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica.  Processo Administrativo nº 08012.006923/2012-18. Relator: Conselheiro Ricardo Machado Ruiz. Voto-vista do Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo. Brasília, 20 de fevereiro de 2013.

[iii] “A tentativa de submeter o direito administrativo e econômico brasileiro à prática norte-americana não é um bom método. Esse erro de tradução entre duas realidades legislativa e jurisprudencialmente distintas muitas vezes é a pedra angular da tese segundo a qual a condenação de infrações à ordem econômica, no Brasil, dependeria da efetiva comprovação dos efeitos deletérios da conduta pela autoridade de defesa da concorrência”. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica.  Processo Administrativo nº 08012.011027/2006-02. Relatora: Conselheira Ana Frazão. Brasília, 11 de março de 2015.

[iv] A título exemplificativo, podemos citar um trecho da Nota Técnica nº 23/2017/CGAA7/SGA2/SG/CADE, emitida no PA n.º 08012.002414/2009-92, excerto este comumente utilizado pela SG em investigações de mesmo objeto: “171. O resultado prático e útil desta classificação na aplicação da lei antitruste é evidente. Quando uma conduta for considerada anticompetitiva porque possui objeto ilícito, ou seja, sua mera existência a torna ilícita já que dela nunca decorreriam efeitos positivos concorrenciais, existe uma presunção de ilegalidade, aplicando-se aquilo que se convencionou chamar de regra per se. Neste caso, repise-se, a mera existência de uma conduta com determinado objeto é anticompetitiva, não sendo necessárias análises posteriores sobre efeitos ou sobre o mercado. (…) 183. Nesse sentido, estando diante de um cartel normalmente basta a comprovação da existência do acordo para sua punição, dispensando a prova acerca da existência de prejuízos efetivos para fins de sua repressão. Assim, nos casos de cartel clássico, a prova da existência do acordo já seria suficiente para sua condenação. Entretanto, a comprovação da existência de outros elementos que caracterizem perenidade e institucionalidade (ainda que potenciais) torna a conduta mais grave, ensejando punição proporcional a esta gravidade. Novamente, dispensa-se, para a caracterização de um cartel como clássico, provas relativas a efeitos ou digressões sobre poder de mercado, bastando a comprovação da existência de elementos de perenidade e institucionalidade. (…) Dessa forma, a utilidade em estabelecer as condições de existência de um cartel clássico, em outras palavras, comprovar se o acordo possui características que demonstrem sua perenidade (ao menos possível) e institucionalização (mecanismos de monitoramento do cumprimento dos objetivos acordados entre seus membros), está não em obter prova necessária para a condenação da conduta, para a qual basta a prova da existência do acordo colusivo, mas sim em determinar a gravidade da conduta e o quantum proporcional de punição”. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica.  Processo Administrativo nº 08012.002414/2009-92. Relator: Conselheiro Paulo Burnier da Silveira. Nota Técnica nº 23/2017/CGAA7/SGA2/SG/CADE. Brasília, 8 de março de 2017.

[v] Neste caso, embora entendendo que a adoção de tabela de preços é conduta ilícita, bastando à sua configuração a divulgação dos preços, sendo desnecessário investigar seus efeitos, reconheceu tratar-se de presunção relativa e não “per se”. Com isso, permitiu-se à defesa o afastamento da ilicitude caso provados os benefícios racionais e legítimos para o comportamento, ou seja, se a sugestão de preços for utilizada para a realização de outro objeto lícito e razoável. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica.  Processo Administrativo nº 08012.000261/2011-63. Relatora: Conselheira Ana Frazão. Brasília, 03 de setembro de 2014.

[vi] “25. Considerando a possível divergência sobre a metodologia de análise da influência à adoção de conduta uniforme ou concertada sob a regra ´per se´ ou sob a regra da razão, adoto postura conservadora e opto pela segunda alternativa. 26. Caso seja analisada pela regra ´per se´, o próprio escopo da conduta seria suficiente para demonstrar o potencial de lesividade do ilícito. Por outro lado, se adotada a regra da razão, seria necessário aferir a existência de poder de mercado, bem como aferir se os efeitos líquidos da prática seriam favoráveis ou não à concorrência. Diante dessa possível dúvida, essa postura conservadora será adotada no caso concreto para averiguar se, mesmo com a consideração de eventuais eficiências da concertação, a prática poderia elevar o bem-estar e culminar na efetiva oferta de melhores condições ao consumidor final”. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica.  Processo Administrativo nº 08700.006965/2013-53. Relator: Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior. Brasília, 23 de abril de 2015.

[vii] BUCCIROSSI, Paolo. The Enforcement of Imperfect Rules. 2010. Disponível em: https://www.learlab.com/wp-content/uploads/2016/03/lear_rp_1_10_1283338320.pdf. Acesso em: 26 jan. 2022. 5-15 pp.

Enforcement concorrencial privado e as condutas unilaterais

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

Desde o último Peer Review da OCDE, é uníssono entre doutrinadores brasileiros e estrangeiros a relevância que o enforcement concorrencial privado possui com relação ao aprimoramento da persecução pública. No Brasil, apesar da previsão normativa do Art. 47 da Lei 12.529/2011 possibilitar sua propositura, deficiências sistêmicas do sistema judiciário brasileiro e a dificuldade de equiparar as reparatórias concorrenciais ao sistema de reparação cível tradicional originaram um absoluto desestímulo ao crescimento deste tipo de demanda em território nacional.

Dentre as dificuldades desta equiparação, está a problemática de quantificação do valor do dano, uma vez que a captura do sobrepreço proveniente de condutas colusivas exige um robusto contrafactual, produzido a partir de exercícios econométricos não apenas complexos, como absolutamente distantes da realidade dos julgadores.

A metodologia acima descrita, contudo, possibilita unicamente o cômputo do sobrepreço em decorrência de condutas de natureza colusiva, ou seja, cuja ocorrência prejudica os demais entes da cadeia que precisarão absorver este aumento. Não obstante, é necessário relembrarmos que o Art. 47 não realiza qualquer delimitação de objeto, isto é, quanto a que tipo de infração econômica poderia vir a ensejar a propositura de uma ação reparatória privada. Do contrário, o artigo refere-se, de forma genérica, às “práticas que constituam infração à ordem econômica”, ou seja, incluindo-se também práticas de natureza unilateral, cujo cálculo do dano possui uma lógica diametralmente distinta.

Estas peculiaridades acentuaram ainda mais a coleção de desincentivos para que particulares ingressassem com estas ações no Brasil. Assim, em que pese a esperança de que o PL 11.275/2018 possa resolver parte relevante destes problemas – como as calorosas discussões sobre o prazo prescricional aplicável – a reparação de danos em sede de condutas unilaterais está ainda um passo atrás neste processo.

Enquanto isso, cinco dias atrás, na Inglaterra, teve início uma ação coletiva ajuizada em face do grupo Meta, hoje controlador do Facebook, cujos pedidos reparatórios somam aproximadamente 2,3 bilhões de libras. Trata-se de um pedido de reparação de danos com base no alegado abuso de posição dominante da plataforma Facebook durante o período de outubro de 2015 a dezembro de 2019, quando 44 milhões de usuários ingleses haveriam sido afetados por uma política de coleta de dados que, apesar de agressiva, como defendem os advogados da causa, seria essencial para que os usuários pudessem acessar os benefícios da rede social.

Retomando a discussão acerca das limitações para a difusão deste instrumento, para além do cálculo em si, há outras diferenças importantes e que vêm sendo mapeadas pela literatura estrangeira[1], como o grau de impacto da infração com relação aos competidores, o momento do dano, a duração e diferenciação do efeito sobre diferentes tipos de consumidores.

Com relação ao grau de impacto, além de prejudicar os demais entes ao longo da cadeia produtiva, condutas unilaterais possuem repercussões patrimoniais tanto para os consumidores diretos do infrator, quanto para os competidores[2], que atuam na mesma fase da cadeia. Isto ocorre porque, diferentemente do cartel, cujo intuito é apropriar-se de excedentes, similarmente ao fenômeno do monopolista, condutas unilaterais, como a utilização de preços predatórios, podem inicialmente inclusive beneficiar o consumidor, que se beneficiará de preços melhores.

Entretanto, uma vez que o incumbente tem sucesso ao excluir ou até mesmo coibir a entrada de novos competidores, a elevação de preços e possível deterioração da qualidade dos produtos é certa – caso contrário, não haveria racionalidade na conduta. Dessa maneira, a cobrança de lucros cessantes como reparação privada é não apenas mais óbvia, como também mais fácil de ser quantificada.

Sobre o momento do dano, diferentemente dos cartéis, as fases de implementação das condutas unilaterais são bastante demarcadas e geralmente remontam um fechamento, seguido por um atrito, onde ocorre a retirada dos demais concorrentes do mercado, e, em seguida, a recuperação, seguida pelo crescimento deste incumbente no mercado. Essas fases terão impacto direto não apenas na duração do efeito sobre concorrentes e consumidores, como também na forma com que são afetados, uma vez que, em razão do tratamento diferenciado com relação a consumidores específicos (por exemplo, oferecendo compensação a alguns deles), é possível que consumidores não sejam afetados de forma homogênea

Certamente, a proliferação da utilização de vieses comportamentais especialmente no contexto das plataformas digitais pode acentuar este fenômeno, ocasionando um desnível no grau de afetação dos consumidores com relação à prática, o que precisará ser levado em conta no momento de quantificar o dano.

No que diz respeito à duração do efeito – em que pese as calorosas discussões que debatem uma extensão de efeitos no contexto dos cartéis em licitação – ao passo em que o efeito do cartel normalmente não se sustenta por muito tempo após o encerramento da prática colusiva (o que também dependerá de características próprias de cada mercado, como a elasticidade da demanda, por exemplo), condutas unilaterais poderão implicar em saídas forçadas ou entradas impedidas, o que possibilita que os efeitos da infração perdurem por muito tempo após a cessação da conduta.

Ora, todas estas distinções carecem de um tratamento próprio e chamam atenção para a necessidade de fortalecer o enforcement concorrencial privado também com relação às condutas unilaterais – o que pode não apenas assumir a forma de tutelas reparatórias, como ressaltaram Camargo e Violada (2021)[3], mas também, no formato das chamadas “stand-alone suits”, de tutelas declaratórias, desconstitutivas, inibitórias ou mesmo reintegrativas.

Com o crescimento na quantidade de casos envolvendo infrações unilaterais e discutindo complexidades adicionais no que diz respeito às características inerentes às plataformas, observemos as cenas dos próximos capítulos. Mardsden (2013)[4], ao referir-se sobre a interação entre os dois tipos de enforcement, manifestou o entendimento de que o ideal seria que sua interação seguisse um modelo de engrenagens, como um veículo híbrido, que pudesse alternar suas baterias de acordo com a necessidade naquele momento. Ainda há muita estrada pela frente até que o Brasil possa atingir este “estado da arte” de aplicação do Direito Concorrencial, mas é possível que os novos desafios trazidos com a proliferação de condutas unilaterais possam acelerar este processo.


[1] MAIER-RIGAUD, Frank P.; SCHWALBE, Ulrich. Quantification of Antitrust Damages. In: ASHTON, David; HENRY, David. Competition Damages Actions in the EU: Law and Practice, 2013.

[2] Sobre este tema, a American Bar Association, em publicação que trata sobre a prova nas ações reparatórias, igualmente ressalta tal diferenciação: “Thus, exclusionary condut cases may be brought by either a rival or a customer (or class of customers). In this way, exclusionary conduct cases differ from price-fixing cases, in which competitors to the price-fixing conspirators typically do not have a claim to antitrust injury”, in: AMERICAN BAR ASSOCIATION. Proving antitrust damages: legal and economic issues. 3a Ed. Chicago: 2017, p. 275.

[3] GOMES, Adriano Camargo; VIOLADA, Kelly Fortes. Private enforcement do direito concorrencial: a tutela dos direitos nos casos de conduta unilateral. In MOTTA, Ricardo; OLIMPIA, Anna. Concorrência: um olhar contemporâneo sobre condutas unilaterais. São Paulo: Editora Singular, 2021, p. 125-142.

[4] MARSDEN, Philip. Public-Private for effective enforcement: some “hybrid” insights? In: FABBIO, Philipp, MARSDEN, Philip; WALLER, Spencer Weber. Antitrust Marathon V: When in Rome Public and Private Enforcement of Competition Law. European Competition Journal, Vol. 9, Número 3, 2013, p. 510-511.

A celebração de TCCs em sede de condutas unilaterais: dúvidas, inquietações e algumas poucas certezas

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

Os Termos de Compromisso de Cessação (“TCCs”) foram disciplinados pela antiga Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 8.884/94) e mantidos pela Lei nº 12.529/2011 em seu artigo 85, podendo ser negociados com a autoridade antitruste a pedido do representado ou a requerimento, uma vez atendidos os critérios de conveniência e oportunidade previstos no caput do referido artigo.

A partir da promulgação da nova lei, o papel dos TCCs no contexto de investigações de condutas colusivas mostrou-se decisivo na construção da história institucional do Cade, seguindo o padrão do continente americano, no qual, de acordo com o levantamento mais recente da OCDE[1], cerca de 48% dos casos envolvendo condutas cartelizadas resultou em acordo (considerando uma média de 130 casos julgados por ano, no período compreendido entre 2015 e 2019).

Há, entretanto, uma importante lacuna a ser preenchida em relação à política de acordos do Cade: e quando estes TCCs são celebrados no contexto da “terceira onda do antitruste”? Conforme defendem Athayde e Jacobs[2], esta terceira onda remete à ascensão dos ilícitos concorrenciais advindos de condutas unilaterais, o antigo calcanhar de Aquiles do Cade, de acordo com os últimos Peer Reviews publicados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)[3].

Em que pese já se falar em uma quarta onda, que remeteria à análise regulatória do antitruste[4], a terceira onda não parece ter chegado a seu zênite no Brasil, mas, ao contrário, vem sendo impulsionada por abalos sísmicos cada vez mais emblemáticos e representativos, sobretudo a partir da pandemia do COVID-19, sua relação com o crescimento dos mercados digitais e a consequente ampliação do número de casos envolvendo abuso de posição dominante por parte das plataformas[5].

Entretanto, a elevada complexidade ínsita a este tipo de análise – considerando que se trata de ilícitos por efeitos e, portanto, avaliados sob a ótica da regra da razão – impõe desafios adicionais ao juízo de conveniência e oportunidade para iniciar um acordo. Esses desafios se estendem a outras questões debatidas ao longo de sua negociação, como é o caso da necessidade e quantificação de uma contribuição pecuniária, da aplicação de multa por descumprimento, da necessidade de confessar ou não a prática lesiva e, finalmente, da inclusão ou não de garantias, por parte da Administração Pública, com relação à determinação sobre se a prática cessada através da celebração do acordo constituirá ou não um precedente vinculante para a instituição e da própria análise de mérito do caso.

Assim, inobstante o fato de ter o Cade estruturado um Guia de TCC, trazendo diretrizes gerais sobre a celebração destes acordos no âmbito da Autarquia, ainda há muita dúvida no que diz respeito aos parâmetros de negociação para acordos em sede de condutas unilaterais, como abuso de posição dominante através da adoção de cláusulas de exclusividade, programas de desconto, fixação de preços de revenda, recusa de contratar e discriminação de preços[6].

Recentemente, o Documento de Trabalho “TCC na Lei 12.529/2011” – publicado pelo Cade em Fevereiro de 2021 e fruto das contribuições de Carolina Saito, consultora PNUD[7] – identificou alguns padrões na celebração de acordos pelo Cade desde que a Lei nº 12.529/2011 entrou em vigor. Naquela oportunidade, chamou-se atenção à proporção dos TCCs celebrados em sede de cartel, frente aos acordos realizados perante condutas unilaterais – aproximadamente 3 para 1[8].

Tal desequilíbrio poderia se explicar como um reflexo da desproporção no que diz respeito à quantidade de investigações em cartéis vis-à-vis o volume de casos instaurados para averiguar infrações à ordem econômica no contexto das condutas unilaterais. Entretanto, analisar os dados sobre a abertura de investigações na Autarquia é suficiente para se chegar à conclusão de que esta hipótese não explica este desnível – pelo menos não exclusivamente – uma vez que, segundo aponta o Anuário do Cade 2020, a proporção média de cartéis com relação às condutas unilaterais considerando todas as investigações instauradas naquele ano foi de 1,16[9].

De acordo com o último Peer Review produzido pela OCDE em relação ao enforcement do antitruste no Brasil[10], é possível que a reduzida frequência da celebração de TCCs em sede de condutas unilaterais possa ser explicada a partir do receio da Autarquia em impedir a formação de um histórico jurisprudencial e, consequentemente, reduzir a experiência analítica do Tribunal Administrativo do Cade a respeito da matéria. Entretanto, apesar de parecer uma preocupação válida, sua natureza parece ser muito mais prospectiva do que explanatória.

Assim, o que talvez seja a melhor explicação para a desproporção na celebração destes acordos em relação aos diferentes tipos de conduta é o frequente arquivamento de investigações envolvendo condutas unilaterais[11], somado às incertezas quanto à correta fase processual para a celebração de um acordo – considerando a evolução do Procedimento Preparatório (Art. 66, §2º) para o Inquérito Administrativo (Art. 66, §1º) e, finalmente, para o Processo Administrativo (Art. 69 e seguintes), todos previstos na Lei de Defesa da Concorrência.

Ademais, a natureza do ilícito investigado traduz boa parte desta dificuldade, uma vez que as condutas unilaterais possuem pressupostos de ilicitude distintos, dependendo essencialmente da aplicação da regra da razão, o que, por si só, já configuraria um desincentivo ao promitente compromissário, vez que sua probabilidade de condenação é reduzida[12].

Tal desincentivo, por sua vez, possui efeito direto com relação à fixação de uma contribuição pecuniária e dos parâmetros para a sua quantificação. Neste sentido, enquanto que nos TCCs celebrados em casos de cartéis um dos requisitos é a fixação de tal contribuição, a mesma afirmação não é verdadeira em se tratando de condutas unilaterais.

Ao observarmos o histórico dos 76 TCCs celebrados desde a vigência da Lei 12.529/2011, 14 casos (18,42%) dispensaram sua fixação, ao passo em que um total de 39 casos (51,3%) teve a fixação da contribuição fixada proporcionalmente ao aporte da operadora Unimed (Representada), variando entre R$ 10 e R$ 30 milhões. Finalmente, os 23 casos remanescentes (30,26%) aplicaram uma média de R$8.652.645,90 em contribuições pecuniárias, com um desvio padrão amostral de aproximadamente 14.959.567,37. Esta média representa tão somente 6,14% do total de contribuições fixadas em TCCs no ano de 2020[13].

A desnecessidade de apresentar uma contribuição pecuniária para ensejar a negociação destes acordos em sede de condutas unilaterais poderá causar pelo menos dois efeitos, cujo entendimento requer retomar os conceitos de falsos positivos e falsos negativos. Quando tratamos de um falso positivo, ou seja, a condenação de um agente que não praticou um ilícito, é possível que o fato de se tratar de uma conduta unilateral gere danos mais intensos ao mercado, prejudicando a própria dinâmica naturalmente competitiva. Assim, exigir o pagamento de uma contribuição pecuniária nessas circunstâncias apenas potencializaria este dano. Por outro lado, um falso negativo poderia beneficiar-se da incerteza quanto aos parâmetros para aplicação da contribuição, que provoca um desvio-padrão tão alto quanto o que verificamos no caso concreto.

Para além dos efeitos reportados acima, a indefinição quanto à contribuição pecuniária afetará também o que será adotado como valor da multa por descumprimento do acordo, ensejando uma problemática quanto à mensuração deste valor. Neste sentido, apesar de o art. 85, §1º, II do RICADE estabelecer como cláusula obrigatória a multa por descumprimento total ou parcial dos termos do TCC, quando os acordos não fixam uma contribuição pecuniária, torna-se impossível realizar qualquer exercício de correlação entre estes valores – o que normalmente se faria nos casos de cartel.

Após revisar os mesmos 76 TCCs firmados neste espaço de tempo, constata-se que a maioria deles (aproximadamente 85,5%) possui cláusulas de multa por descumprimento do tipo “escalonadas”, ou seja, que fixam multas diferentes a depender do tipo de obrigação que venha a ser descumprida.

Do universo das cláusulas escalonadas, apenas 4,6% delas utilizam-se da receita líquida corporativa como a base de cálculo da multa, ao passo em que 3% acabam aplicando como multa um percentual do valor da contribuição pecuniária fixada. Dentre as cláusulas que fixam multas apenas em caso de descumprimento integral, 9% relacionam o valor da multa com esta contribuição.

A maior questão relativa ao estabelecimento de multa nesses casos deriva da própria dificuldade no monitoramento de cumprimento do acordo. Assim, caso a autoridade antitruste entenda pela não aplicação de cláusula de contribuição pecuniária, por todos os problemas evidenciados acima, os termos do acordo de TCC estarão calcados tão somente em obrigações de fazer e de não fazer, além de remédios comportamentais, cuja dificuldade de monitorar o seu cumprimento é conhecida não apenas pelo Cade, como também pelos demais órgãos atuantes na defesa da concorrência no Brasil.

Ora, a dificuldade no monitoramento também é outro elemento característico neste tipo de acordo. Neste sentido, denota-se que a esmagadora maioria, compreendendo aproximadamente 85,5% destes TCCs, adota como padrão de monitoramento de decisão a prestação de informações diretamente ao Cade, ao passo que o percentual remanescente se divide entre a contratação de consultoria externa, auditoria independente ou, mais recentemente, a adoção dos Trustees.

É certo que a ausência de um terceiro independente pode acarretar comportamentos oportunistas por parte dos promitentes compromissários, na medida em que estes vislumbrem, no decorrer das negociações, formas de maquiar eventuais descumprimentos, utilizando-se da assimetria informacional entre a autoridade e o representado no que diz respeito às particularidades de seu negócio.

De toda forma, ainda que o monitoramento seja realizado pela figura do Trustee, a fixação de obrigações comportamentais continua representando um ponto sensível para a identificação de descumprimento e, retomando o ponto anterior, a fixação de uma multa suficientemente dissuasória poderia ajudar, fixando a base de cálculo para a vinculação da multa por descumprimento – o que significaria uma incerteza a menos no mar de dúvidas potencializadas pelo abalo sísmico pandêmico.

Dentre tantas questões em aberto a respeito do desenho destes acordos em sede de unilaterais, contudo, resta uma possível certeza no que diz respeito à obrigação de confissão da prática lesiva – é possível que a estrutura de incentivos demonstre que obrigar o compromissário acusado de possivelmente cometer este tipo de ilícito pode enfraquecer a própria política de acordos, uma vez que, a depender da fase em que se encontra o processo, o agente que se comprometesse com a celebração do TCC em um estágio inicial e precisar confessar que praticou o ilícito para ter direito à celebração do acordo – assim como ocorre nos casos de cartel[14] – não enxergaria grandes benefícios com o TCC, sendo mais lógico que apenas optasse por fazê-lo em uma fase processual mais amadurecida e próxima à formação da convicção do julgador quanto à existência deste ilícito – que ainda enfrentaria uma ponderação sobre as possíveis eficiências geradas.

Corroborando com esta possível – e aparentemente, isolada – certeza, caberia questionar se a obrigatoriedade de assunção de culpa como requisito para a celebração de TCCs em sede de condutas unilaterais não seria capaz de viciar os termos contratuais[15], vez que inexiste a mesma presunção de ilicitude dos cartéis na qualidade de ilícitos per se.

A experiência do Cade na celebração destes acordos ainda é muito incipiente se comparada ao histórico de TCCs celebrados no âmbito de condutas colusivas. Entretanto, ao passo em que a OCDE manifestou sua preocupação no sentido de que estimular a celebração destes acordos pode acabar por prejudicar a formação de uma jurisprudência sólida sobre este tipo de análise antitruste, é possível que o aprimoramento da sua utilização possa gerar ganhos à autoridade, inclusive no que diz respeito à sistematização da análise investigativa.

[1] OECD (2021), OECD Competition Trends 2021, Volume I: Global Competition Enforcement Update 2015-2019. P. 13.

[2] ATHAYDE, Amanda; JACOBS, Patrícia. “A terceira ‘onda’ do antitruste no Brasil: marolinha ou tsunami?”. Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-01/athayde-jacobs-terceira-onda-antitruste-brasil. Acesso em: 20 de setembro de 2021.  

[3] OECD (2019), OECD Peer Reviews of Competition Law and Policy: Brazil. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/oecd-peer-reviews-of-competition-law-and-policy-brazil-2019.htm. Acesso em: 20 de setembro de 2021.

[4] JÚNIOR, Marco Antonio Fonseca. “Que onda surfa o Cade?”. Jornal Estadão. 17 de agosto de 2021. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/que-onda-surfa-o-cade/#:~:text=Come%C3%A7ou%2Dse%2C%20ent%C3%A3o%2C%20a,reparat%C3%B3rias%20decorrentes%20de%20danos%20concorrenciais. Acesso em: 20 de setembro de 2021.

[5] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/plataformas-digitais.pdf

[6] PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva. CASAGRANDE, Paulo Leonardo. Direito Concorrencial. São Paulo: Saraiva, 2016. P. 135.

[7]CADE, 2021. Documento de Trabalho: TCC na Lei 12.529/11. Fevereiro/2021. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/TCC%20na%20Lei%20nº%2012.52911/TCC%20na%20Lei%20nº%2012.529-11.pdf . Acesso em: 20 de setembro de 2021.

[8] Ibid. Conforme é possível constatar da Leitura da Imagem 6 (Página 18), aproximadamente 65,6% dos TCCs firmados envolviam casos de cartel, enquanto que apenas 22,6%, casos de conduta unilateral.

[9] CADE, 2020. Anuário do Cade 2020. P. 9. Disponível em: https://indd.adobe.com/view/f30f80e3-23b2-4370-9314-41a50b625073. Acesso em: 20 de setembro de 2021.

[10] Ob cit. OCDE (2019).

[11] Dos 19 casos que envolviam abuso de posição dominante através da imposição de exclusividades contratuais na história do Cade, aproximadamente 47% foram arquivados. Disponível em <https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/LACF(2021)23/en/pdf>

[12] “(…) a caracterização do ilícito de cartel exige uma efetiva comprovação de que existe ou existiu entre concorrentes um acordo cujo objeto é a restrição da competição, em que a presunção de produção dos efeitos anticompetitivos visados baseia-se, notadamente, pela detenção de relevante parcela conjunta de mercado”. Ob. Cit. PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva. 2016. P. 14.

[13] p. 11 https://indd.adobe.com/view/f30f80e3-23b2-4370-9314-41a50b625073

[14] Conforme dispõe o §5º do art. 179 do Regimento Interno do Cade

[15] Pode-se aqui realizar uma espécie de paralelismo com a colaboração premiada realizada na esfera penal, em que a Legislação responsável prevê como requisito para a celebração do acordo a voluntariedade do compromisso estabelecido, e que caso não seja observado, poderá vir a viciar os termos do contrato e torná-lo nulo.

Sobre a estupidez de Robert Musil e o combate as fake news: qual é a roupa da verdade?

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

Elvino de Carvalho Mendonça

As sociedades estão em constante transformação. As rupturas paradigmáticas decorrem da evolução das descobertas científicas pelos seres humanos e é inegável que a sociedade em rede traz incontáveis benefícios para a humanidade, tendo grande destaque a fluidez, a rapidez e a facilitação da troca de conhecimentos e experiências em tempo real. Dentre inúmeras modificações produzidas com o novo paradigma tecnológico, o modo de comunicação entre os seres humanos, considerados globalmente, teve especial impacto.

Até o advento da sociedade das plataformas e sua efetiva implementação por meio da utilização massiva dos aparelhos digitais e, notadamente, smartphones aliada à implantação de aplicativos de redes sociais, a produção do conteúdo da mídia era restrito aos meios tradicionais de comunicação, como emissoras de televisão, de rádio ou de jornal/revistas escritas, cujos parâmetros de atuação eram regulados pela Lei de Imprensa nº 5.250/1967.

Com a criação da internet e a possiblidade de comunicação instantânea via transmissão de dados, o modo de se comunicar mudou radicalmente, acelerando a transmissão do conhecimento e, por consequência, o poder de manipulação da informação que, diga-se de passagem, não é um fato novo. As notícias do outro lado do mundo chegam em tempo real em qualquer recanto do planeta e toda a humanidade passou a ter conhecimento e ser diretamente influenciado e/ou ter seus comportamentos induzidos sobre tudo o que acontece ao redor desse mesmo mundo instantaneamente.

Primeiro, foi a vez da criação da World Wide Web (www) e de duas ferramentas fundamentais para a sua plena utilização que foi o código HTML e o protocolo HTTP por Berners-Lee. Em seguida, vieram os aparelhos eletrônicos que permitiram a conexão em teia, como os computadores, celulares, tablets etc. Após essa inovação, foi a vez da criação das redes sociais e, essas sim, acabaram por implementar a comunicação instantânea e em rede, de notícias verdadeiras e falsas, propagadas pelos bem-intencionados no exercício do direito constitucional à liberdade de expressão e pelos mal-intencionados que utilizam dos mecanismos tecnológicos existentes, muitas vezes potencializados por robôs, para distorcer a realidade dos fatos e o real sentido do que seja liberdade de expressão.

Nesse contexto, é inegável que as Fake News já têm produzido impactos estarrecedores na jovem redemocratização brasileira. Os propaladores de Fake News utilizam os mecanismos tecnológicos em benefício próprio e, na grande parte das vezes, justificam as suas ações sob o manto do direito constitucional à informação e da garantia constitucional à liberdade de expressão.

O grande desafio do Estado é o de separar o joio do trigo. Liberdade de expressão não garante direitos à propagação em massa de notícias falsas e, também não se configura como um direito absoluto que permita divulgar qualquer notícia, de qualquer modo.

No entanto, dada a velocidade e a difusão da criação de conteúdos e a velocidade e o alcance da transmissão dessas informações, muitas vezes “viralizadas”, como separar o que é verdade e o que é mentira? Como criminalizar opiniões antidemocráticas?  Qual a diferença entre uma opinião, onde o certo e o errado cada ser humano tem o seu, de uma Fake News?

Segundo Robert Musil “sobre a estupidez”, “[n]ão há nenhum pensamento importante que a estupidez não saiba aplicar, ela se move em todas as direções e pode vestir todas as roupas da verdade. A verdade, ao contrário, tem apenas uma roupa em qualquer ocasião, um só caminho, e sempre está em desvantagem. A estupidez a que nos referimos aqui não é uma doença mental, porém a doença mais perigosa da mente, perigosa para a própria vida.[1]

É preciso, pois, abordar os impactos da desinformação sobre a higidez da democracia, notadamente, produzida e alardeada em grande escala por meio da divulgação massiva de notícias fraudulentas (Fake News) via whatsapp. É preciso analisar quais seriam os melhores caminhos a serem perseguidos pelo próprio Estado com o objetivo de refrear a avalanche de informações falsas que distorcem a realidade dos fatos e acabam induzindo a população a comportamentos antidemocráticos e, ao fim e ao cabo, produzem um impacto negativo ainda maior que é o de embaralhar os reais significados do direito constitucional à informação e da garantia fundamental da liberdade de expressão.

A democracia está em erosão e não está à venda. O Estado precisa agir para conter os abusos de poder econômico (não só das big techs, mas também daqueles que propagam Fake News), sob pena de se perder a noção do certo e do errado e acabar por esfacelar o bem mais precioso da humanidade que é a liberdade de agir, pensar e de comunidade, isenta de qualquer indução de comportamentos, como uma conquista democrática das nações. 


[1] MUSIL, Robert. Sobre a estupidez. 3.ed. Âyiné: Belo Horizonte, 2020, p. 44.

Autores:

RACHEL PINHEIRO DE ANDRADE MENDONÇA. Doutoranda em direito pelo IDP, mestre em direito público pela UNB, pós-graduada em direito econômico e regulatório pela  PUC-RIO, pós-graduada pela EMERJ, advogada, sócia fundadora do Mendonça Advocacia e sócia fundadora da WebAdvocacy.

ELVINO DE CARVALHO MENDONÇA. Ex-conselheiro do CADE e doutor em economia.

Da vinculação da sociedade aos atos do administrador

André Santa Cruz*

Henrique Arake**

A vinculação da sociedade pelos atos do seu administrador sempre foi uma questão muito debatida no direito societário, em razão da natureza jurídica da relação que há entre ambos.

Com efeito, a sociedade personificada é um sujeito de direitos para todos os fins legais a partir do momento em que seus atos constitutivos são arquivados no órgão de registro competente (art. 985 do Código Civil – “CC”), que será a Junta Comercial, no caso de sociedades empresárias, ou o Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, no caso das sociedades simples (art. 1.150 do CC).

Desse modo, a sociedade é juridicamente distinta da pessoa que ocupa o cargo de administrador e de seus sócios (art. 49 do CC), constituindo-se em uma esfera de direitos e obrigações autônoma e independente destes.

Entretanto, ao contrário do que se verifica entre as pessoas naturais, as sociedades (pessoas jurídicas que são – art. 44, inciso II do CC) existem perante o Direito, mas não existem no mundo fático. Vale dizer, as sociedades não possuem um “substrato concreto”[1] para se manifestarem autonomamente e interagirem com outros sujeitos de direito no mundo real. Por essa razão, ela precisa se valer de alguém que lhe empreste esse “substrato concreto” para que essa interação possa ocorrer. Esse “alguém” é o administrador que, no ordenamento jurídico brasileiro, necessita ser sempre uma pessoa natural (art. 997, inciso VI do CC), absolutamente capaz, e não impedida nos termos do art. 1.011, §1º do CC.

Assim, o administrador é, no exercício dessa função, um órgão da própria sociedade, ou seja, parte integrante desta, e não uma pessoa distinta dela (no mandato, por exemplo, o mandatário é, necessariamente, uma pessoa distinta do mandante – art. 653 do CC).

Com efeito, não é correto dizer que o administrador de uma sociedade é o seu representante ou mesmo o representante da vontade dos seus sócios, porque na verdade o administrador, como dizia Pontes de Miranda, “presenta” a vontade da sociedade[2], de modo que quando o administrador “fala”, quem “diz” é a sociedade.

É aqui que as analogias encontram seu limite. É evidente que quando nossos doutrinadores defenderam que o administrador é apenas um órgão da sociedade, tal qual a nossa boca é um órgão por meio do qual manifestamos nossas ideias para outras pessoas, não estavam fazendo o testemunho de um fato, mas uma comparação e uma simplificação úteis para ilustrar uma ideia mais complexa[3].

Na verdade, parece-nos evidente que as sociedades são instituições que existem para atender a um fim específico, qual seja, o exercício da atividade econômica (empresarial ou não) prevista em seu objeto social, de modo que os seus titulares (ou seu titular) possam partilhar os seus resultados positivos ou negativos, cuja formalidade de constituição e atuação no mundo real está prevista em lei.

Nesse passo, é, também, a lei quem diz que os atos do administrador vinculam a sociedade (arts. 47 e 1.015 do CC) e, do mesmo modo, é também a lei quem excepciona essa questão, como, por exemplo, no caso de oneração ou alienação de bens imóveis, não sendo este o objeto da sociedade (art. 1.015 do CC, parte final).

E aqui chegamos ao cerne deste artigo: a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC, que previa, expressamente, a adoção pelo legislador da chamada teoria dos atos ultra vires e suas consequências legais, bem como a desvinculação da sociedade quando o administrador contratasse contra as disposições do contrato social ou com terceiro de má-fé.

Sem a necessidade de adentrar nas origens históricas da teoria dos atos ultra vires, basta relembrarmos que, segundo ela, o administrador não poderia extrapolar os fins sociais da sociedade administrada e, assim, fazer a sociedade contratar matéria estranha ao seu próprio objeto social.[4]

A despeito das críticas que sempre foram feitas a essa teoria, parece-nos importante destacar que a sua proposição não é de todo errada, ao menos em uma primeira leitura.

Com efeito, considerando-se que, em última instância, as sociedades são instituições criadas para que os seus administradores possam otimizar o patrimônio dos seus titulares dentro dos limites estabelecidos nos seus atos constitutivos, parece-nos adequado concluir que o distanciamento desses objetivos se assemelharia a um “inadimplemento” por parte do administrador, não havendo razão, portanto, para que a sociedade honrasse os compromissos assumidos por este nessas condições.

Desse modo, ad absurdum, um administrador de uma padaria que, sem uma “boa razão”, contratasse a compra de uma tonelada de urânio enriquecido em nome da sociedade, estaria cometendo um ilícito tão patente e tão evidente que não seria “razoável” que a sociedade tivesse de honrar esse compromisso.

É essa, fundamentalmente, a ratio por trás da teoria dos atos ultra vires, que estava prevista em nosso ordenamento jurídico no (hoje revogado) inciso III do parágrafo único do art. 1.015 do CC[5].

O problema com essa teoria, portanto, não era a sua proposição em si mesma, mas a sua aplicação prática nos casos mais usuais.

Utilizando o mesmo exemplo do administrador da padaria, imaginemos que ele investiu parte não significativa das reservas de lucro da sociedade no mercado acionário como forma de otimizar os resultados dela, mas infelizmente isso acabou gerando um enorme prejuízo, porque o investimento foi realizado às vésperas da Pandemia da COVID-19. Esse negócio jurídico (compra de ações) deveria ser oponível contra a sociedade? A resposta não é tão clara assim, razão pela qual a adoção da referida teoria pelo Código Civil de 2002 foi bastante criticada pela doutrina especializada.

De fato, muitos defendiam, mesmo antes da revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC, que aos atos dos administradores que extrapolassem o objeto social deveria aplicar-se a teoria da aparência e o princípio da proteção aos terceiros de boa-fé, o que acarretaria o seguinte: a sociedade responderia perante terceiros pelos atos ultra vires dos seus administradores, mas poderia voltar-se contra eles posteriormente, exigindo reparação pelos prejuízos suportados.[6]

Por conseguinte, na linha desse posicionamento crítico à teoria dos atos ultra vires, o parágrafo único do art. 1.015 do CC foi revogado integralmente pela Lei 14.195/2021, de modo que, atualmente, não há mais regra legal que determine a não vinculação da sociedade aos negócios jurídicos celebrados por seus administradores que não tenham aderência com o seu objeto social, o que representa, na nossa opinião, um grande avanço em prol da segurança jurídica das relações econômicas.

Todavia, é preciso destacar que a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC não retirou do nosso ordenamento jurídico apenas o seu inciso III – que tratava, especificamente, dos atos “evidentemente estranhos aos negócios da sociedade” –, mas também os seus incisos I e II.

Esses incisos do parágrafo único do art. 1.015 do CC, respectivamente, previam duas outras exceções à vinculação da sociedade aos atos do seu administrador: (i) quando tais atos violassem, expressamente, previsão disposta no contrato social ou em ato separado devidamente arquivado no órgão de registro competente (Junta ou Cartório, conforme a natureza da sociedade); e (ii) quando tais atos envolvessem a contratação com terceiro de má-fé, isto é, que conhecia a ausência de poderes do administrador para a sua prática.

Alguns defendem que, após a revogação integral do parágrafo único do art. 1.015 do CC, a sociedade deve honrar com os negócios jurídicos contratados pelo administrador “mesmo havendo excesso de poder por parte do administrador ou prática de atos que não estavam autorizados […]”[7]. Mas discordamos desse entendimento.

Com efeito, em se tratando de relações econômicas entre iguais[8], há a presunção legal de que os negócios jurídicos sejam interpretados à luz dos pressupostos da autonomia privada, da liberdade contratual, da presunção de boa-fé e da intervenção estatal mínima (arts. 2º, incisos I, II e III e art. 3º, incisos V e VIII da LLE). Vale dizer, há que se presumir que as sociedades que decidam contratar entre si são agentes econômicos acostumados ao “giro mercantil”, conhecem o risco do negócio que estão celebrando, tendo-os avaliado ou optado por não investir nessa investigação, dentro de parâmetros razoáveis do comportamento esperado[9], e contrataram de boa-fé.

Desse modo, em negócios jurídicos materialmente relevantes, isto é, que tenham um valor envolvido não desprezível, é de se esperar que agentes econômicos racionais invistam em algum grau de investigação a respeito da sua contraparte contratual. Nesse passo, como os atos constitutivos de qualquer pessoa jurídica são públicos e é baixo o custo para a sua obtenção e análise (mormente com a digitalização das Juntas Comerciais), a diligência minimamente esperada é que as sociedades contratantes verifiquem nos atos constitutivos de suas respectivas contrapartes se existe alguma restrição específica para a contratação daquele negócio jurídico pretendido, até mesmo porque o art. 47 do CC e o caput do art. 1.015 do CC (que não foi modificado pela Lei 14.195/2021) são expressos em condicionar a vinculação da sociedade aos atos do administrador exercidos nos limites dos seus poderes de gestão.

Desse modo, o entendimento de que a mera proteção a terceiros de boa-fé deve convalidar a contratação de negócios jurídicos materialmente relevantes em violação aos atos constitutivos de um dos contratantes não parece razoável, na nossa opinião.

Na mesma esteira, observa-se que a presunção de contratação de boa-fé é juris tantum e, portanto, passível de ser impugnada, caso a sociedade afetada pela contratação com terceiro de má-fé consiga provar esse fato. Até mesmo porque, novamente, a lei veda a contratação de má-fé ou simulada (arts. 113, 166, inciso VI, 167 e 171, inciso II do CC). Entender de forma diferente seria aceitar que o ordenamento jurídico protegeria a colusão entre administradores que, de má-fé, aproveitassem de sua posição para prejudicar o patrimônio daqueles a quem lhes fora confiada a gestão.

Assim, discordamos da ideia de que a revogação dos incisos I e II do parágrafo único do art. 1.015 do CC importa na responsabilização irrestrita da sociedade por atos de seu administrador que violem uma limitação expressa de poderes. Para nós, se tal limitação de poderes foi devidamente publicizada por meio do arquivamento do ato respectivo no órgão de registro competente, ou se era comprovadamente conhecida pelo terceiro contratante – que nesse caso estará agindo de má-fé –, pode a sociedade, a depender do contrato e do contexto negocial, eximir-se de responsabilidade pelos atos excessivos do seu administrador (arts. 47 e 1.064 do CC).[10]

No tocante à teoria dos atos ultra vires (atos que simplesmente não guardam pertinência com o objeto social), concordamos que a revogação do inciso III do parágrafo único do art. 1.015 do CC significou a sua superação em nosso ordenamento jurídico, devendo-se aplicar, em seu lugar, a teoria da aparência, algo que consideramos um avanço em termos de segurança jurídica para os negócios empresariais.


[1] Tomazette, M. Curso de direito empresarial v. 1 – teoria geral e direito societário. SP: SaraivaJur. p. 361.

[2] Nesse sentido: Tomazette, M. Curso de direito empresarial v. 1 – teoria geral e direito societário. SP: SaraivaJur. p.361; Campinho, S. Curso de direito comercial – direito de empresa. SP: SaraivaJur. 17ª Ed. 2020. p.108; Diniz, G.S. Curso de Direito comercial. SP: Atlas. p. 190. Negrão. R. Curso de direito – comercial e de empresa v.1. – teoria geral da empresa e direito societário. SP: SaraivaJur. 16ª Ed. p. 356; Leite, M. L. Intervenção judicial em conflitos societários. RJ: Lumen Juris, 2019. p. 49.

[3] Para uma discussão mais aprofundada a respeito da relação entre a propriedade privada dos sócios e a delegação da gestão desse patrimônio por meio da constituição de uma sociedade (corporation), confira-se: Berle, A. A., & Means, G.C. The modern Corporation and private property. NJ: Transaction Publishers. 1999 (1968).

[4] “A ultra vires doctrine, formulada em meados do século XIX pelas cortes inglesas, tinha por objetivo evitar desvios de finalidade na condução dos negócios sociais, declarando nulo qualquer ato praticado em nome da sociedade que extrapolasse seu objeto” (Sérgio Campinho, em texto publicado nas suas redes sociais após a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC).

[5] Nesse sentido, veja-se o Enunciado 219 das Jornadas de Direito Civil: “Está positivada a teoria ultra vires no Direito brasileiro, com as seguintes ressalvas: (a) o ato ultra vires não produz efeito apenas em relação à sociedade; (b) sem embargo, a sociedade poderá, por meio de seu órgão deliberativo, ratificá-lo; (c) o Código Civil amenizou o rigor da teoria ultra vires, admitindo os poderes implícitos dos administradores para realizar negócios acessórios ou conexos ao objeto social, os quais não constituem operações evidentemente estranhas aos negócios da sociedade; (d) não se aplica o art. 1.015 às sociedades por ações, em virtude da existência de regra especial de responsabilidade dos administradores (art. 158, II, Lei n. 6.404/76)”.

[6] Nesse sentido: “Sempre me pareceu que o tratamento dos atos que extrapolassem os limites do objeto social deveria se dar à luz da teoria da aparência, com o escopo de proteção aos terceiros que, de boa-fé, realizam negócios jurídicos com a sociedade, que não pode descurar-se do dever de zelar pelos atos praticados por seus administradores, não lhe sendo lícito, pois, alegar ignorância. O administrador que o praticasse, como regra geral, vincularia a pessoa jurídica perante os terceiros de boa-fé e, dessarte, responderia civilmente diante da sociedade, na via de regresso” (Sérgio Campinho, em texto publicado nas suas redes sociais após a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC). No mesmo sentido, pode-se mencionar o Enunciado 11 das Jornadas de Direito Comercial: “A regra do art. 1.015, parágrafo único, do Código Civil deve ser aplicada à luz da teoria da aparência e do primado da boa-fé objetiva, de modo a prestigiar a segurança do tráfego negocial. As sociedades se obrigam perante terceiros de boa-fé”. Ainda no mesmo sentido, merece menção o seguinte precedente do STJ: “Direito comercial. Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Garantia assinada por sócio a empresas do mesmo grupo econômico. Excesso de poder. Responsabilidade da sociedade. Teoria dos atos ultra vires. Inaplicabilidade. Relevância da boa-fé e da aparência. Ato negocial que retornou em benefício da sociedade garantidora. (…) 3. A partir do CC/2002, o direito brasileiro, no que concerne às sociedades limitadas, por força dos arts. 1.015, § único e 1.053, adotou expressamente a ultra vires doctrine. 4. Contudo, na vigência do antigo Diploma (Decreto n.º 3.708/19, art. 10), pelos atos ultra vires, ou seja, os praticados para além das forças contratualmente conferidas ao sócio, ainda que extravasassem o objeto social, deveria responder a sociedade. 4. No caso em julgamento, o acórdão recorrido emprestou, corretamente, relevância à boa-fé do banco credor, bem como à aparência de quem se apresentava como sócio contratualmente habilitado à prática do negócio jurídico. 5. Não se pode invocar a restrição do contrato social quando as garantias prestadas pelo sócio, muito embora extravasando os limites de gestão previstos contratualmente, retornaram, direta ou indiretamente, em proveito dos demais sócios da sociedade fiadora, não podendo estes, em absoluta afronta à boa-fé, reivindicar a ineficácia dos atos outrora praticados pelo gerente” (REsp 704.546/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 01.06.2010, DJe 08.06.2010).

[7] Vaz, M. R. M. A nova Lei de Ambiente de Negócios e a extinção da teoria ultra vires societatis. Consultor Jurídico, 2021. Acessado em 28.11.2021 – https://www.conjur.com.br/2021-out-07/vaz-lei-ambiente-negocios-ultra-vires-societatis.

[8] Excluindo-se de nossa análise, portanto, as relações havidas com vulneráveis/hipossuficientes, tais como as relações de consumo ou as relações trabalhistas.

[9] Forgioni, P. Contratos Empresariais – Teoria Geral e Aplicação. SP: Revista dos Tribunais, 2018, 3ª Ed. pp. 269-70.

[10] No mesmo sentido: “Parece, portanto, à luz do ordenamento jurídico vigente, que a melhor orientação é aquela que apoia e valoriza a teoria da aparência e a boa-fé objetiva para, como regra, vincular a sociedade ao negócio celebrado por seu administrador, caracterizador de ato ultra vires. Cabe a ela provar o conhecimento do terceiro do contrato social ou do estatuto para eximir-se da responsabilidade do ato derivada, ou demonstrar circunstancialmente que, em razão das condições e da natureza da negociação e pela qualidade profissional do contratante, cabia a ele diligenciar para ter acesso e conhecimento do seu objeto social. Vinculada a sociedade ao ato ultra vires, abre-se-lhe o ensejo de regressivamente responsabilizar o administrador que atuou com o excesso por ela não ratificado e que lhe causou prejuízo” (Sérgio Campinho, em texto publicado nas suas redes sociais após a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC).


[*] Procurador Federal. Doutor em direito empresarial pela PUC-SP. Professor de direito econômico e empresarial do Centro Universitário IESB-DF.

[**] Sócio de Henrique Arake Advocacia Empresarial. Doutor em análise econômica do direito. Professor de direito empresarial do UniCEUB, do IDP e do IBMEC. Associado à Association of Certified Fraud Examiners (ACFE), Conselheiro Consultivo da Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados (CNTU) e Conselheiro Fiscal do Instituto Brasiliense de Direito Empresarial (IADE).

Perícia no Processo Administrativo do CADE

Mauro Grinberg

Nos processos administrativos que correm na Superintendência-Geral (SG) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) tem sido constante, ao decidir sobre pedidos de produção de prova pericial, o despacho de indeferimento sob o fundamento de que existem meios menos custosos para provar o mesmo que se quer provar com a perícia.

Há, todavia, determinadas situações em que a perícia é a prova melhor que se pode apresentar. Vejamos algumas situações, desde logo começando com a definição de mercado relevante. Se temos uma acusação de cartel entre indústrias químicas, é imperioso que se esclareça quais os produtos que concorrem entre si para saber se o suposto cartel inclui todos os produtores e/ou se o suposto cartel tem (ou não) qualquer influência no mercado. Ou se essa acusação for relativa a medicamentos, é de fundamental importância saber se existem medicamentos que podem substituir aqueles cujos produtores estão em conluio.

Essas informações, aqui em meras hipóteses, necessariamente devem ser produzidas por peritos, eis que o julgador médio não deve ter conhecimentos específicos das áreas em questão. Não se espera que o Superintendente-Geral ou os Conselheiros do Cade – ou, se em Juízo, os Juízes, os membros do Ministério Público e os Desembargadores e Ministros – conheçam as composições dos produtos químicos ou as fórmulas dos medicamentos. Essa informação, todavia, é fundamental pois, para saber se uma determinada ação empresarial incide na eliminação total ou parcial da concorrência, é necessário saber quais empresas fazem parte dessa concorrência.

Em outra hipótese que tem sido discutida recentemente, fala-se em punir os praticantes de condutas anticoncorrenciais com base na vantagem auferida de cada um deles. Há alguns métodos para chegar a esse valor mas todos eles chegam a um número que não passa de uma possibilidade, não sendo possível conferir a este número o caráter de realidade ou verdade. Ou seja, o infrator deve ter auferido uma determinada vantagem, mas tais métodos, supostamente neutros, não levam à certeza de que o infrator auferiu realmente tal vantagem. Para se chegar a esse número real, a única possibilidade é a perícia.

Nos exemplos acima, vê-se que a decisão deve ser balizada em determinados conhecimentos técnicos que os julgadores médios não têm, inexistindo motivo razoável para a recusa da perícia. Leve-se em conta, todavia, que a Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC) é lacônica quando às provas que poder produzidas, pois seu art. 72 estabelece apenas que “a Superintendência-Geral, em despacho fundamentado, determinará a produção de provas que julgar pertinentes, sendo-lhe facultado exercer os poderes de instrução previstos nesta Lei”.

Ante a falta de definição dos meios de prova na LDC, recorre-se ao Código de Processo Civil (CPC), cuja aplicação subsidiária – juntamente com a da Lei 9.784/1999, conhecida como Lei do Processo Administrativo (LPA) – decorre do disposto no art. 115 da própria LDC. Ali encontramos o § 1º do art. 464 dispondo que “o Juiz indeferirá a perícia quando” “I – a prova do fato não decorrer de conhecimento especial de técnico”, “II – for desnecessária em vista de outras provas produzidas” e “III – a verificação for impraticável”. São esses os únicos fundamentos permitidos para negar a produção de prova pericial. Por sua vez, a LPA, em seu art. 38, estabelece que “o interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias (…)”. Ou seja, a lei concede à parte acusada o direito à prova pericial. Mais ainda, o seu eventual indeferimento constitui violação do princípio da ampla defesa.

O argumento mais utilizado pela autoridade para negar a perícia estaria contido no inciso II do art. 464 do CPC. Este – importa esclarecer aqui – não fala em outras provas a produzir mas sim em outras provas (já) produzidas. O art. 472 do CPC é mais específico: “O juiz poderá dispensar prova pericial quando as partes, na inicial e na contestação, apresentarem, sobre as questões de fato, pareceres técnicos ou documentos elucidativos que considerar suficientes”. Esta justificativa não pode ser considerada para o processo administrativo do Cade pois uma das partes está na posição dupla de parte e julgadora e não faz sentido que ela julgue suficiente um parecer por ela produzido.

É certo que as partes acusadas no processo administrativo do Cade podem apresentar pareceres de especialistas por elas convidados mas, como esclarecem Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, isso “não é prova pericial (…). Prova pericial é a determinada pelo juiz, com nomeação de perito de sua confiança e facultando às partes a indicação de assistente técnico”[1]. É exatamente aqui que resta a diferença entre os pareceres apresentados pelas partes e a perícia: esta é uma prova oficial, determinada pela autoridade que dirige o processo e sem o condão de gerar qualquer tipo de desconfiança quanto à sua origem.

Há vários depoimentos doutrinários a respeito da imperiosidade da perícia. Diz Michele Taruffo que, “no contexto da admissão das provas, ter o direito de provar um fato significa estar a parte autorizada a apresentar todos os meios de prova relevantes e admissíveis para apoiar a sua versão dos fatos em litígio”[2]. Em matéria de processo administrativo, Irene Patrícia Nohara e Thiago Marrara dizem que “as análises químicas da substância ou do produto que constitui objeto do processo administrativo em que se discute, por exemplo, um registro de medicamento ou a aplicação de uma sanção, são objeto de um laudo”[3]. A jurisprudência vai no mesmo sentido, conforme decisão no AgRg no AREsp 184.563-RN, Segunda Turma, sendo Relator o Ministro Humberto Martins: “Em se tratando de matéria complexa, em que se exige o conhecimento técnico ou científico, a perícia deve ser realizada”.

As dificuldades inerentes à realização da perícia também não podem ser opostas ao pedido da parte, sendo aqui legitimamente alegável o princípio da ampla defesa que, por ser constitucional, encontra-se acima dos ditames legais. Mas tem a autoridade à sua disposição, em determinadas situações, a possibilidade de perícia simplificada, constante do § 2º do art. 464 do CPC: “De ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade”, sendo que, conforme dispõe o parágrafo seguinte, “a prova técnica simplificada consistirá apenas na inquirição de especialista, pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que demande especial conhecimento científico ou técnico”. A prova pericial é mais um instrumento para que a SG e o Tribunal do Cade emitam decisões bem fundamentadas no seu exercício de tutelar a livre concorrência. Por isso, ela não pode ser indeferida a não ser nas hipóteses previstas na lei. Repita-se aqui que seu eventual indeferimento constitui violação do princípio da ampla defesa


[1] “Comentários ao Código de Processo Civil”, RT, São Paulo, 2015, pág. 1.083

[2] “A Prova”, Marcial Pons, São Paulo, 2014, pág. 54

[3] “Processo Administrativo”, RT, 2018, pág. 337

Os Embargos de Declaração no Processo Administrativo do CADE

Mauro Grinberg

Introdução

Os embargos de declaração, aplicáveis ao processo administrativo sancionador do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) estão previstos em norma infralegal. Com efeito, estabelece o art. 219 do Regimento Interno do Cade (Ricade): “Das decisões proferidas pelo Plenário do Tribunal, poderão ser opostos embargos de declaração, nos termos do art.1.022 e seguintes do Código de Processo Civil, no prazo de 5 (cinco) dias, contados de sua respectiva publicação em ata de julgamento, em petição dirigida ao Conselheiro-Relator, na qual o embargante indicará a obscuridade a ser esclarecida, a contradição a ser eliminada, omissão a ser suprida quanto a ponto ou questão sobre o qual o Tribunal devia se pronunciar de ofício ou a requerimento, ou o erro material a ser corrigido na decisão embargada”.

Aplicação a todas as decisões

Desde logo vê-se que os embargos de declaração são aplicáveis, se limitados à norma infralegal mencionada, somente em relação às decisões do Plenário do Cade, ficando logicamente excluídas as decisões tomadas anteriormente. Mas não deve ser assim. Com efeito, a lei – art. 1.022 do Código de Processo Civil (CPC), invocada inclusive pela norma infralegal mencionada – prevê que “cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial”. Assim, não de deve excluir quaisquer decisões, sejam elas inclusive monocráticas e/ou interlocutórias, proferidas no processo administrativo sancionador do Cade. Vale aqui lembrar que as leis estão acima das normas infralegais, estando o CPC, ainda que aplicado subsidiariamente de acordo com o art. 115 da Lei de Defesa da Concorrência (LDC), acima dos regimentos.

Deve aqui ficar claro que um regimento interno é uma norma que regulariza o funcionamento de um determinado grupo ou de uma entidade; isso vale sobretudo para os tribunais. Vale como norma, embora de hierarquia mais baixa. Portanto, é o que se passa com o Ricade: é norma mas é inferior à lei. Consequentemente, o CPC, ainda que aplicado subsidiariamente, é lei e como tal é superior hierarquicamente ao Ricade. As próximas linhas deste artigo tomam por base esta constatação.

Esclarece Teresa Arruda Alvim que “as tendências contemporâneas predominantes só permitiriam entender que este direito estaria realmente satisfeito sendo efetivamente garantida ao jurisdicionado a prestação jurisdicional feita por meio de decisões claras, completas e coerentes” [1]. É claro que todas as decisões devem seguir estas qualificações, razão pela qual não se pode excluir da embargabilidade quaisquer decisões, aqui fazendo referência específica às decisões anteriores àquelas proferidas pelo Tribunal do Cade. Com efeito, qualquer decisão pode sofrer dos males que os embargos de declaração têm por objetivo sanar.

Efeito suspensivo

O art. 222 do Ricade estabelece que “os embargos de declaração não possuem efeito suspensivo (…)”. Recorrendo-se ao CPC, vê-se que a redação do caput do art. 1.026 é igual. Mas o respectivo § 1º é eloquente: “A eficácia da decisão monocrática ou colegiada poderá ser suspensa pelo respectivo juiz ou relator se demonstrada a probabilidade de provimento do recurso ou, sendo relevante a fundamentação, se houver risco de dano grave ou de difícil reparação”. Mais uma vez prevalece a lei sobre o regimento.

Um bom exemplo de decisão que deve merecer efeito suspensivo é dado por Teresa Arruda Alvim ao falar da “real impossibilidade de a decisão ser cumprida porque contem obscuridade, contradição ou omissão que realmente comprometam a sua inteligibilidade” [2]. Isso significa claramente que o Relator do processo no Tribunal do Cade – e bem assim qualquer autoridade da autarquia que profira decisões embargadas – pode conceder efeito suspensivo aos embargos de declaração sempre que as condições o exigirem. Ainda segundo a mesma autora, “a doutrina, nesse início de vigência do NCPC, classificou como hipóteses para concessão de efeito suspensivo aos Embargos de Declaração os mesmos requisitos para concessão da tutela de evidência e a tutela de emergência”[3].

Assim, havendo fumaça do bom direito e perigo na demora, o prolator da decisão embargada deve conceder o efeito suspensivo aos embargos de declaração porque o CPC assim o prevê e o sistema só resta completo se visto em sua maior abrangência, não importando o fato de que o Ricade não estabeleça tal efeito, se o CPC, que lhe é hierarquicamente superior, contenha tak previsão.

Efeito infringente

Tem-se colocado como regra a impossibilidade dos embargos de declaração não poderem ser recebidos com efeito infringente, já que a sua função é (i) esclarecer obscuridade, (ii) eliminar contradição, (iii) suprir omissão ou (iv) corrigir erro material. De fato, o efeito infringente não existe aprioristicamente; se, por exemplo, no recurso de apelação o objetivo é tornar procedente o que é improcedente ou improcedente o que é procedente, o mesmo não ocorre nos embargos de declaração. Todavia, é possível que o acolhimento dos embargos de declaração implique, ainda que como resultado secundário e/ou subsequente, na necessidade de reconhecimento do efeito infringente. Isso fica claro ante a leitura do art. 1.024 do CPC: “Caso o acolhimento dos embargos de declaração implique modificação da decisão embargada (…)”.

A exemplificação não é complexa. Num processo resultante de acidente de trânsito, o Juiz decidiu que o culpado foi o condutor do veículo A pois ele é azul e as marcas do acidente no veículo B eram azuis; todavia, se, nos embargos de declaração, for reconhecido erro material pois o veículo A é vermelho, resulta clara a necessidade de aplicação do efeito infringente. O erro material obviamente também pode ocorrer no direito concorrencial pois uma decisão condenatória pode ter por base o fato da empresa condenada ter 90% do mercado; se, nos embargos de declaração, for reconhecido o erro material e ficar claro que a empresa condenada tinha apenas 9% do mercado, também resulta clara a necessidade de aplicação do efeito infringente.

Conclusão

Os embargos de declaração no processo administrativo do Cade (i) podem ser opostos contra qualquer decisão e não apenas contra aquelas proferidas pelo Plenário do Cade, (ii) podem ter efeito suspensivo e (iii) podem ter efeito infringente.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, advogado especializado em Direito Concorrencial e sócio fundador do escritório Grinberg e Cordovil.


[1] “Embargos de declaração”, RT, São Paulo, 2017, págs. 15/16

[2] Obra citada, pág. 52

[3] Obra citada, pág. 53

A Superintendência-Geral (SG) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e suas duas funções

Mauro Grinberg

A importante e nobre função das autoridades concorrenciais – e aqui é feita referência específica à SG – é de investigar e, se for o caso e com base na sua expertise, recomendar ao Tribunal do Cade a punição dos autores de infrações contra a ordem econômica. Entretanto, no cumprimento do seu dever, a SG tem exercido os papéis de acusadora e julgadora; obviamente essa mistura decorre do texto da lei e não da vontade da SG, razão pela qual a ideia deste artigo é encontrar um meio de cumprir a lei (o que é óbvia obrigação da SG) e ao mesmo tempo separar suas funções. Assim, o cumprimento concomitante de suas duas funções requer uma série de cuidados que não podem nem devem ser desprezados.

Examinemos essas funções. A primeira função da SG é a de promover os processos administrativos sancionatórios e, como tal, atua de maneira equivalente à do Ministério Público no processo penal. A outra função, equivalente à de um juizado de instrução, é a de, recebendo as defesas, ordenar e produzir ou deferir a produção das provas. Ao final, examinando essas provas, a SG envia o processo para o Tribunal do Cade para julgamento, sempre com a sua recomendação, seja para arquivamento, seja para condenação. A SG não emite o julgamento final mas decide não só pela abertura do processo mas também com relação à produção de provas, podendo deferi-las ou indeferi-las. A

Expõe Rafael Munhoz de Mello[1]: “Nos processos em que a Administração Pública figure também como parte, além de órgão julgador, sua situação é, evidentemente, desigual em relação ao particular. A Administração ocupa duas posições na relação processual, juiz e parte, peculiaridade que coloca em risco a imparcialidade que se exige do órgão julgador. O particular contende com uma parte que, ao final do processo, proferirá a decisão (…)”.

Mas não é necessário que seja assim, podendo cuidados de separação de órgãos ser tomados em favor de uma posição mais equidistante da acusação e da defesa, ainda que a acusação e o julgamento sejam feitos pelo mesmo órgão público. A ideia da imparcialidade deve ser levada à mais alta potência, sob pena de se ter julgamentos parciais e viciados. Uma comparação talvez grosseira é a do defensor público livre na sua manifestação mas que, ao fim e ao cabo, é remunerado pelo mesmo ente estatal que remunera o promotor que acusa. 

Na sequência, encontramos o recente pensamento de Michel Reiss e Daniel Sternick[2], em matéria penal mas inteiramente aplicável ao direito administrativo sancionatório: “Portanto, é somente ao visualizar o acusador de maneira desconectada de qualquer resquício de modelos inquisitivos de processo penal, como a exigência punitiva ou o direito de supremacia, que se torna viável delimitar substancialmente o campo destinado a cada um dos sujeitos processuais, incluindo o próprio Estado-juiz”.

Ou seja, o Estado-juiz tem que se deparar com polo acusatório desvinculado dos poderes estatais, estes concentrados no poder de julgar imparcialmente, desconsiderando o fato de que o polo acusador também é estatal. O que se nota é que, de todos os modos, a atividade acusatória deve ser desvinculada da autoridade julgadora, ainda que o julgamento seja limitado, como é o caso da SG, às medidas preliminares e à produção de provas (que já guardam substancial importância para os destinos dos processos.

E nem se alegue que o Tribunal do Cade tem (e de fato tem) o poder de ordenar novas provas pois o art. 76 da Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011) estabelece que “o Conselheiro-Relator poderá determinar diligências (…)”. Quando o texto legal diz “poderá”, está claro que não tem obrigação de fazê-lo; esta obrigação é da SG e não do Tribunal do Cade e o eventual indeferimento de pedidos das partes pode constituir cerceamento de defesa. Por isto, a SG tem o mais completo dever de imparcialidade, mesmo sendo uma das partes.

De fato, deve-se considerar que a prova deve ser feita na fase em que o processo está na SG. Para o Tribunal do Cade segue o processo possivelmente ou tentativamente pronto para a decisão. As discussões idealmente devem versar sobre o mérito a ser decidido. Mas nada impede que o Tribunal do Cade determine a produção de novas provas, o que, todavia, deve ser considerado subsidiário (até porque o poder de deferir inclui o poder de indeferir) em relação às provas já produzidas na SG.

Ao trabalhar na produção de provas, a SG não pode alegar a presunção de veracidade dos atos do Poder Público, até porque ela mesma faz parte do Poder Público. Figurando a SG como acusadora e julgadora da instrução, a alegação dessa presunção fere os princípios do contraditório e da ampla defesa. Não é possível presumir que uma parte diz a verdade quando se está em um processo sancionador em que esta mesma parte é julgadora. A valer, apenas em tese, o princípio da presunção de veracidade da Administração Pública, a própria defesa seria dispensável, jogando-se por terra os princípios do contraditório e da ampla defesa, já que a acusação estaria sempre certa.

Acusar e julgar, como funções da mesma autoridade, parece um contrassenso, lembrando que no juizado de instrução há um poder decisório, ainda que limitado. Pode ocorrer, por exemplo, da SG entender que determinada prova não é necessária, até porque sua convicção já está formada. Mas é preciso sopesar a convicção da autoridade com o legítimo interesse que a parte acusada tem de apresentar suas provas. Isso fica ainda mais evidente ao se considerar que um dos princípios do processo administrativo é a busca da verdade material, o que deve levar a autoridade a, independentemente de requerimento da parte, procurar a prova e construir a verdade material.

Estamos obviamente diante de um impasse. Mas como esse impasse decorre totalmente da aplicação da lei, não se pode atribui-lo à SG. Mas é possível mostrar que ele pode e deve ser contornado para que não haja prejuízo da parte e bem assim negativa de aplicação do princípio da ampla defesa. Rafael Munhoz de Mello[3] apresenta uma sugestão: “Deve-se abrandar a inevitável situação com a divisão das atividades próprias da Administração-parte das típicas da Administração-juiz entre órgãos distintos: um órgão administrativo deve ser competente para praticar os atos próprios da parte; outro, os atos próprios de condutor do processo e julgador”.

Ou seja, enquanto a mesma divisão ou câmara ou coordenação da SG defere ou indefere, determinando ou não a produção de provas, e ao mesmo tempo, pronuncia-se a favor do arquivamento ou da condenação (ainda que a decisão final não seja sua), da parte que contende com a Administração, estamos diante de uma confusão entre a Administração-parte e a Administração-Juiza. É importante que os as normas infralegais da SG cuidem detalhadamente desta divisão de poderes, separando a Administração-parte da Administração-juiza, eliminando assim a confusão.


[1] “Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador”, Malheiros, São Paulo, 2007, pág. 231

[2] “Os Pressupostos do Devido Processo Penal no Estado Democrático de Direito”, em VirtuaJus, Belo Horizonte, v. 6, n. 10, 2021, pág. 79

[3] Obra e página citadas