Amanda Flávio de Oliveira*

José Américo Azevedo**

Volta e meia algum analista de fatos da contemporaneidade nos adverte para a “complexidade” inédita de um fenômeno qualquer. Da forma como avaliam fenômenos atuais, alguns intelectuais parecem crer que as relações econômicas, contratuais, sociais aparentemente sempre foram muito simples, e a vida vai se complicando com o tempo.

O enredo é trágico: se as coisas da vida vão se tornando sempre cada vez mais complexas, aonde é que vamos parar? Mas geralmente esses analistas sempre têm também uma solução para nos propor, enfrentando fatos mais complexos do que nunca com saídas que eles próprios nos indicam com base na “razão”.

Thomas Sowell, em Os Intelectuais e a Sociedade, faz uma ácida crítica contra esses pensadores, que privilegiam a suposta “razão” em detrimento da experiência, “permitindo que tenham uma impetuosa confiança em assuntos sobre os quais têm pouco ou mesmo nenhum conhecimento ou experiência[1].” Segundo Sowell, chavões como “os tempos mais simples de outrora” são expressões típicas dessa parcela de intelectuais.

As Big Techs se tornaram, nos dias atuais, alvo preferencial a esse título, sobretudo no campo jurídico. É que, conforme se diz corriqueiramente, nunca houve um poder econômico com essas características, o que significa dizer que há uma complexidade inédita a ser enfrentada, e esse enfrentamento é dever do Estado.

Defina-se, a princípio, o que se entende por bigtechs, essas empresas “contemporâneas” desenvolvedoras de produtos com grande adesão pela população em geral. Bigtechs podem ser consideradas grandes empresas com alta sofisticação tecnológica, responsáveis pela criação e desenvolvimento de produtos e/ou serviços inovadores, que alcançaram parcela significativa do mercado nos últimos anos. São empresas líderes, que em certa medida têm ditado tendências, criado protagonismos e determinado orientações.

Aderindo à advertência de Sowell para considerar a “experiência” no trato dos fatos atuais, convém analisar outras fases históricas tentando compreendê-las a partir do seu tempo: e logo se percebe que empresas com parcelas consideráveis de mercado, inovadoras, fornecedoras de produtos ou serviços essenciais para aquele tempo, com sofisticação e tecnologia de ponta para o momento em que surgiram são uma constante da história do mundo capitalista. Ou seja, os tempos de outrora parecem não ter sido tão simples assim.

Se hoje se fala em Amazon, uma bigtech de logística de bastante projeção, que iniciou suas atividades em 1994 com vendas e distribuição online de livros e hoje tem seu principal negócio na entrega de produtos ao consumidor final, certamente que as ferrovias do século XVIII cumpriam esse propósito, especialmente nos EUA.

A expansão ferroviária americana iniciou-se a partir de 1827, quando foi fundada a Baltimore and Ohio Railroad, que inaugurou seu primeiro trecho em 1830. Nas décadas de 1850 e 1860, o transporte ferroviário viveu seu apogeu naquele século, tendo como principal expoente Cornelius Vanderbilt (1794-1877) que, ao morrer, era considerado o homem mais rico do mundo, com uma fortuna avaliada em cerca de 2,5 bilhões de dólares em valores atualizados. Na década de 1860, o empresário Jay Gould (1836-1892) se interessou pelo mercado ferroviário, avançando de forma hostil sobre o controle acionário da ferrovia, no episódio que ficou conhecido como Erie War. Embora Gould tenha adquirido a liderança, por meio de disputas judiciais e procedimentos pouco ortodoxos de ambas as partes, Vanderbilt entregou a ele uma empresa descapitalizada e depauperada. A partir daí, Gould iniciou uma estratégia de captação de mercados e clientes, por meio de uma política agressiva de tarifas e de procura de novos territórios e outras ferrovias. Nesse cenário, erigiu um império que controlava as rotas para oeste da Pennsylvania e metade das linhas de conexão da New York Central. Em 1869, Gould se viu envolvido em um escândalo gigantesco, conhecido como Gold Corner, por ter tentado interferir de maneira fraudulenta no mercado de ouro norte-americano, o que comprometeu, irreversivelmente, sua reputação e sua posição na economia do país. Anos mais tarde, Gould ressurgiu das cinzas comandando a Union Pacific, uma das maiores ferrovias americanas e atuando em sua ocupação predileta: avançar sobre o mercado, especialmente atacando a família Vanderbilt, desta vez tendo como antagonista o filho Willian, que assumiu os negócios com a morte do pai em 1877. Gould continuou atuando até seu falecimento em 1892. Os herdeiros dos impérios assumiram o setor com a morte de Gould e de Willian Vanderbilt. Mas, à essa altura, o mercado ferroviário já estava consolidado e pujante.

As empresas de telégrafos de outrora talvez possam ser considerados os “avós” das empresas de internet de hoje em dia, todos vocacionados a permitir a comunicação em grande escala e distância. Se hoje Facebook, Google, Apple e outras assustam por seu “poder”, em 1881, a Western Union Telegraph Company, responsável por permitir, àquele tempo, uma comunicação sem precedentes entre a Europa e a América, passou por um processo de fusão com a Atlantic and Pacific Telegraph Company, criando uma monopolista do setor. Vale dizer que a Western Union existe até hoje, evidentemente sob outros moldes, sendo atualmente uma empresa multinacional que oferece serviços financeiros e de comunicação.

No setor financeiro, as recentes fintechs e crescentes criptomoedas encantam ao passo que amedrontam atualmente pelo “novo” que representam: nos EUA, John Pierpont Morgan (1837-1913) e sua família detiveram incontestável poder e influência nesse e em outros mercados, por um longo período. A influência exercida por Morgan no setor ferroviário o levou a ser conhecido como o “banqueiro das ferrovias” – ele por diversas vezes chegou a interferir no setor, a ponto de impedir, em uma ocasião, a continuidade da construção da linha West Shore, mesmo após vários trechos já estarem adiantados, inclusive com túneis e viadutos concluídos, jogando por terra muitos milhões de dólares de investimento. Além disso, o banco Morgan chegou a patrocinar a General Eletric de Thomas Edison, cuidou da venda da empresa de telégrafos Baltimore & Ohio e tinha uma vaga no conselho administrativo da Western Union de Jay Gould. Na siderurgia, depois de financiar a criação da Federal Steel Company, providenciou a fusão com a Carnegie Steel Company, em 1901, formando a U.S. Steel Co. que chegou a possuir dois terços do market share do setor. Ele deteve participação parcial ou total em empresas dos setores da construção civil, equipamentos agrícolas, bebidas, transporte aquaviário, dentre outras. O poderio de Morgan foi tamanho que ele chegou a protagonizar uma intervenção direta nas finanças do governo americano em duas ocasiões. A primeira, quando uma alienação excessiva dos papéis ferroviários lastreados em ouro causaram um crash da Bolsa em 1893, comprometendo as reservas do governo. Morgan organizou a venda de títulos americanos, inclusive com aporte pessoal de cerca de 10 milhões de dólares, debelando a crise. O segundo momento, em 1907, quando uma queda repentina e descomunal do índice Dow Jones – até hoje a segunda maior da história – fez o mercado entrar em pânico. Morgan foi chamado para, pessoalmente, coordenar as ações interagindo entre o mercado e o governo para o afastamento do colapso.

Para além dos paralelos entre as empresas consideradas “bigtechs” hoje em dia e suas possíveis antecessoras, convém destacar que muitas outras empresas com poder econômico considerável e importância central na vida do momento já se fizeram presentes na história da humanidade: relembre-se de Andrew Carnegie (1835-1919), criador da Carnegie Steel Inc., empresa cuja estratégia de negócios propiciou o surgimento da maior siderúrgica do mundo, responsável pela metade da produção britânica e um quarto da americana.

Recorde-se, também, de John D. Rockefeller (1839-1937), que, juntamente com Henry Flager (1830-1913), fundaram a Standard Oil Co., que se transformou na maior empresa petrolífera do mundo e uma das primeiras e maiores multinacionais da história. A partir de sua criação, Rockefeller iniciou um incisivo processo de verticalização das atividades, atuando desde a extração e produção, refino, transporte e comercialização de petróleo. O tamanho e a importância da Standard Oil causou preocupação a ponto de, em 1911, a Suprema Corte dos Estados Unidos, baseando-se no Sherman Act, de 1890, determinar a que a Standard Oil fosse dividida em 34 novas empresas, a fim de diminuir o monopólio da corporação original. Interessante notar que após essa decisão, os valores das ações das empresas separadamente tiveram uma alta significativa, trazendo enormes lucros adicionais. Segundo estimativas, a fortuna pessoal de Rockefeller era equivalente a 1,53% do PIB anual total dos Estados Unidos na época. Até hoje, sob as mais diversas formações e nomenclaturas remanesce parte do conglomerado.

Tudo isso nos mostra que a história está repleta de antecedentes tão “complexos” quanto os que hoje se apresentam no que se refere ao tema do poder econômico privado. Tudo isso também nos leva a admitir que há já uma experiência acumulada no tratamento pelo Estado dessas realidades – e suas consequências, boas e ruins, já podem ser avaliadas com sobriedade.

Grandes corporações existem há muito e estratégias variadas já foram empregadas para o atingimento desse estágio. Medidas variadas para “contê-las” ou não também já foram experimentadas. Se se considera “bigtech” como um agente econômico que se vale de tecnologia e se transforma, por alguma razão, em um player dominante em um segmento de mercado, será preciso admitir que elas já povoam a economia mundial há quase dois séculos.

Não há nada de tão novo assim, não é preciso desenvolver saídas novas, tendo por justificativa a ideia de que seria mais complexa a realidade atual. O que urge é resgatar o valor da experiência, evitando-se cometer os mesmos erros, mais uma vez. É que a história nos indica que por vezes, no afã de conter estruturas aparentemente perigosas para o bem-estar social, o Estado se atrapalhou, e prejudicou o seu objetivo final.

Por fim, uma palavra precisa ser dita sobre o valor das instituições. Não por acaso, estruturas empresariais disruptivas nascem e se desenvolvem nos EUA… antes como agora. Inevitável tentar entender o que leva o país a ser um incubador da inovação. Sabe-se que a obsessão pela eficiência é um dado cultural americano, somado à valorização da liberdade econômica e à existência de instituições estáveis, além de um federalismo real e não fictício. Ao invés de nos preocuparmos com os instrumentos a serem desenvolvidos com base na razão para o enfrentamento dos grandes agentes econômicos, talvez o foco de nossos pensadores deveria se voltar para o estabelecimento de condições para o desenvolvimento, por aqui, de empresas inovadoras e disruptivas. Para isso, a experiência aponta caminhos seguros[2].

[1] SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. São Paulo: Realizações Editora, 2011, p. 59.

[2] Para entender um pouco mais do efervescente cenário americano no séc. XIX, duas obras são indicadas: o livro Os Magnatas[2], de Charles Morris; e a série/documentário de TV “The men who built America”[2], dirigida por Patrick Reams e Ruán Magan. Neles, pode-se perceber o impacto que certas invenções causaram na sociedade da época: e perceber, igualmente, como as instituições interagiram com essas formas econômicas.

* AMANDA FLÁVIO DE OLIVEIRA. É professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB).

** JOSÉ AMÉRICO CAJADO DE AZEVEDO. É graduado em Engenharia Civil pela Universidade de Uberaba e em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP. Atualmente é consultor na empresa Dynatest Engenharia Ltda. e voluntário na Defensoria Pública do Distrito Federal. Possui experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, tendo atuado na área de licitações, contratos e concessões públicas por empresas privadas e pelo Governo, fazendo parte, inclusive, de Comissões de Licitações.

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