Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça*

A lógica antitruste desenvolvida por Louis Brandeis no final do século XIX, o julgamento dos casos “Standard Oil Company e U.S. Steel Coorporation” pela Suprema Corte norte-americana e a criação da primeira lei antitruste no mundo pelo Senador John Sherman em 1890 nos Estados Unidos da América (assim chamada “Sherman Act”), tinham por finalidade evitar a formação de monopólios com a concentração do poder econômico e garantir o livre mercado, tendo como expoentes, à época, John D. Rockefeller e John Pierpont Morgan. Constituiu-se o primeiro movimento contra os “trusts”, daí chamar-se de “anti-trust”, momento em que se vivia num período de modificação paradigmática com a revolução industrial.

Um pouco mais de um século após, a humanidade está diante de uma nova revolução paradigmática – da tecnologia da informação -, cuja “nova” organização da sociedade em redes provoca burburinhos sobre o novo movimento “populista”, “neobrandesiano” ou “hipster” da atualidade”.[1]Tais mudanças também espraiam seus efeitos no antitruste do século XXI e já provocam, em grande parte do mundo, reflexões sobre o “fim da concorrência como a conhecemos”[2], dada a necessidade premente de repensá-la.

Relatório das autoridades de concorrência Alemanha-França chama à atenção para a distinção entre a mera interação dos computadores, o que pode até causar o paralelismo de preços e a incerteza da comunicação entre os algoritmos, discutindo frequentemente a autoaprendizagem das black boxes.[3] O mencionado relatório faz recomendações a serem seguidas no contexto antitruste, seja no controle de estruturas seja no controle de condutas.[4]

No entanto, importante registrar que há autores contrários e favoráveis a uma adaptação à legislação antitruste. Juliana Domingues traz uma revisão da literatura colacionando autores favoráveis e contrários a alguma adaptação no modelo adotado. Autores como Hovenkamp, Orbach, Rebling, Whrigt e Ginsburg defendem não apenas as premissas da Escola de Chicago e as orientações a partir de Bork, mas também a manutenção de uma análise baseada em critérios mensuráveis e objetivos, onde o “tamanho das empresas” – too big – não deve ser o fio condutor da análise.” Por outro lado, também reporta autores da linha “neo-brandesiana”, como Pitofsky, Bogus, Wu, Khan entre outros que defendem novos paradigmas.[5]

Apesar dos posicionamentos doutrinários divergentes, é certo que a extraordinária concentração econômica vivida na era digital em diversos setores da economia mundial associado à eficácia irracional dos dados[6] acendeu um novo alerta sobre a gravidade da concentração do poder econômico e sobre os efeitos desses monopólios e oligopólios para os consumidores, na medida em que o poder econômico dessas empresas associado ao acesso privilegiado de dados e informações privadas, agora geridos por máquinas dotadas de inteligência artificial, permitem a discriminação de preços de primeiro grau, cobrando de cada cliente o preço máximo (preço de reserva) que ele está disposto a pagar. Nesse caso, o vendedor maximiza seus lucros pela captura de todo o excedente do consumidor.”[7]

A combinação entre o desenvolvimento tecnológico e a detenção de informações sobre os consumidores acabaram por permitir que as empresas que detém os robo-sellers possam fazer a precificação dos produtos, conforme a utilização das informações de consumo detidas pelas black boxes algorítmicas[8], praticando a cobrança pelo preço de reserva dos indivíduos e não pelo preço de equilíbrio, capturando o excedente do consumidor e modificando a lógica da concorrência perfeita.

É fato que os robôs formulam os preços de forma imediata e autônoma, assim como não resta dúvidas de que toda a responsabilidade antitruste e toda a estrutura de enforcement prevista nas legislações nacionais e internacionais (art. 36 da Lei nº 12.529/2011, art. 101 TFEU e arts 1º e 2º Sherman Act) somente alcançam os seres humanos. Também parece indubitável que o fato de um robô “abaixar” imediatamente o preço de um produto quando ciente de que o seu concorrente rival o diminuiu, em última ratio, fará com que não haja quaisquer incentivos em se diminuir os preços dos produtos por quaisquer dos concorrentes. A tendência natural, se não houver qualquer intervenção por parte da autoridade de defesa da concorrência, é a de que os preços fiquem cada vez mais distantes dos preços competitivos, haja um aumento excessivo dos lucros por aqueles que se beneficiam da ação dos robôs e que se aumente expressivamente a desigualdade social entre ricos e pobres.

No âmbito desse contexto, surge a infração à ordem econômica de discriminação de preços, onde se extrai o excedente do consumidor, na medida em que os algoritmos, baseados nas informações dos consumidores (big data), conseguem processar e alcançar o preço de reserva do consumidor.

Parece inegável, portanto, que as mudanças tecnológicas operadas pela revolução digital nas economias mundiais exigirão, num futuro não tão longínquo, a atualização das legislações antitruste, do ponto de vista material e processual, a fim de permitir que a colusão operada via robôs possa ser efetivamente punida pelas autoridades concorrenciais.

A questão não está, a princípio, na previsão de tipos legais de infração à ordem econômica, mas na combinação entre o exercício abusivo do poder econômico via precificação dos algoritmos com a identificação da responsabilidade antitruste, seja de quem criou o algoritmo seja de quem se beneficia da cobrança do preço de reserva, extraindo o excedente do consumidor.

Desse modo, nos parece que o grande desafio do antitruste do século XXI, pois, é o de identificar se a inteligência artificial e as machine learnings, de fato, provocam um dano ao consumidor[9]; em segundo momento, verificar como a precificação por algoritmos (lineares ou black boxes) tem a potencialidade lesiva de causar danos ao consumidor com  a cobrança do preço de reserva ou de preços semelhantes aos praticados por monopolistas, em terceiro lugar, avaliar quais seriam os caminhos ou as possibilidades para se evitar ou contornar essa prática e, em um quarto momento, analisar se a legislação antitruste poderia prever a responsabilização daqueles que, de fato, se beneficiam da captura do excedente de recursos cobrados pelo preço de reserva ou equivalentes aos preços de monopólio. Há muito trabalho pela frente.


[1] Como escreveu o sociólogo Manuel Castells, a “revolução a tecnologia da informação” representa um raro intervalo na história da vida entendendo-a como “uma série de situações estáveis pontuadas em intervalos raros por eventos importantes que ocorrem com grande rapidez e ajudam a estabelecer a próxima era estável”. Prossegue, aduzindo, que “(…) no final do século XX estamos vivendo um desses raros intervalos da história. Um intervalo cuja característica é a transformação de nossa ‘cultura material’ pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação. A Sociedade em Rede/Manuel Castells; tradução: Roneide Venâncio Majer; – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 49.

[2] ATHAYDE, Amanda; GUIMARÃES, Marcelo. Bumblebee Antitruste? A Inteligência Artificial e seus impactos no direito da concorrência in Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade/coordenação Ana Frazão; Caitlin Mulholland – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019, pp. 433-455.

[3] Algorithms and Competition. November 2019. Autorité de la concurrance e Bundeskartellamt. Disponível em https://www.autoritedelaconcurrence.fr/sites/default/files/algorithms-and-competition.pdf. Acesso em: 27 mai 2021.

[4]Disponível em  https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/A-9-2020-0022_PT.html em 27/05/2021Adaptar a concorrência à era digital:  (…) 23. Exorta a Comissão a rever as regras relativas às fusões e aquisições e a reforçar a ação «antitrust», bem como a ter em conta os efeitos do poder de mercado e da rede associados aos dados pessoais e financeiros; insta, em particular, a Comissão a tratar o controlo desses dados como um indicador da existência de poder de mercado em conformidade com as suas orientações sobre o artigo 102.º do TFUE; convida a Comissão a retirar ensinamentos da fusão entre o Facebook e o WhatsApp e a adaptar os seus critérios em conformidade; propõe, por conseguinte, que todas as concentrações no mercado desses dados estejam sujeitas a uma declaração informal prévia; 24. Solicita à Comissão que reveja o conceito de «abuso de posição dominante» e a doutrina das «infraestruturas essenciais» para garantir que cumpram a sua finalidade na era digital; sugere que se efetue uma análise mais ampla do poder de mercado no que se refere aos efeitos de conglomerado e de guardião do acesso, para combater o abuso de posição dominante dos grandes operadores e a falta de interoperabilidade; insta a Comissão a realizar uma consulta das partes interessadas para refletir sobre a evolução da economia digital, incluindo a sua natureza multifacetada;

[5] DOMINGUES, Juliana; GABAN, Eduardo (2019). Direito Antitruste e Poder Econômico: o movimento populista e “neo-brandeisiano” in, Revista Justiça Do Direito33(3), 222-244. Disponível em: https://doi.org/10.5335/rjd.v33i3.10429. Acesso em: 24 mai 2021.

[6] FRAZÃO, Ana et all. Black Box e o direito face à opacidade algorítmica in Direito Digital e Inteligência Artificial: diálogos entre Brasil e Europa / A. Barreto Menezes Cordeiro… [et al.]; coordenado por Felipe Braga Netto… [et al]. – Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 29.

[7] ATHAYDE, Amanda; GUIMARÃES, Marcelo. Bumblebee Antitruste? A Inteligência Artificial e seus impactos no direito da concorrência, cit., 2019, p. 449.

[8] [a]s black boxes algorítmicas são o resultado da aplicação crescente da tecnologia de inteligência artificial combinada ao tratamento de grande volume de dados in FRAZÃO, Ana et all. Black Box e o direito face à opacidade algorítmica in Direito Digital e Inteligência Artificial: diálogos entre Brasil e Europa / A. Barreto Menezes Cordeiro… [et al.]; coordenado por Felipe Braga Netto… [et al]. – Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 32.

[9] Isso porque as práticas de geopricing e geoblockin violam o princípio da neutralidade da Internet. Por essa prática – geoprincing – tem se entendido que “[a]s empresas de tecnologia da informação se valem dos algoritmos para processar grande quantidade de dados, sendo certo que a estrutura de código dos algoritmos contém instruções programadas para que a tecnologia facilite a disponibilidade das ofertas adequadas aos consumidores conforme seu perfil. Já o geoblocking é definido como o conjunto de práticas comerciais que impedem que determinados consumidores possam acessar e/ou comprar determinados bens ou serviços oferecidos por intermédio de uma interface online, com fundamento na localização on line do cliente.[9]

* RACHEL PINHEIRO DE ANDRADE MENDONÇA. Doutoranda em direito pelo IDP, mestre em direito público pela UNB, pós-graduada em direito econômico e regulatório pela  PUC-RIO, pós-graduada pela EMERJ, advogada, sócia fundadora do Mendonça Advocacia e sócia fundadora da WebAdvocacy.

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