Lucia Helena Salgado*

Professora Titular de Ciências Econômicas da UERJ

Neste mundo sacudido por turbulências e dilemas de toda ordem, observa-se um raríssimo consenso, a unir no mesmo entendimento lideranças e analistas da China, Europa e Estados Unidos. Refiro-me à constatação de que algo precisa ser feito para deter o poder econômico das Big Tech, que na última década vem revelando efeitos nefastos sobre bem-estar. Extrema concentração de renda, precariedade de condições de trabalho, injustiça tributária, ameaça à estabilidade do poder político (às democracias no Ocidente e na versão chinesa, ao poder do Partido Comunista Chinês), a lista de danos é portentosa.

            Chama atenção a similaridade entre as questões que afligiam sociedades de ambos os lados do Atlântico há cem anos e as presentes hoje na agenda; naquele tempo, preocupava a concentração de poder econômico nos setores mais dinâmicos da economia: energia, transportes, metalurgia, quando o dinamismo hoje é representado pela economia digital, a precarização das condições de trabalho e a apropriação do excedente por um conjunto diminuto de empresas e seus acionistas.

            Naquele tempo, a insatisfação manifestada em greves, protestos, organização de partidos radicais e pressão sobre legisladores, punha sob ameaça o sistema econômico e social assentado sobre o mercado e a busca de lucro, razão porque, de um lado e de outro do Atlântico, foram arquitetadas inovações institucionais que apaziguassem ânimos e gerassem estabilidade social[1].

            Nos EUA, a inovação marcante do antitruste, na Inglaterra, e não menos marcante introdução do imposto de renda progressivo, na Alemanha a previdência social, além do paulatino reconhecimento de direitos trabalhistas requeridos pelos sindicatos nas economias industriais[2].

            Um século depois, além de uma pandemia equivalente em tragédia a que se espalhou pelo mundo ocidental após a então denominada Grande Guerra, os mesmos problemas de extrema concentração de renda, condições de trabalho e remuneração precárias e concentração de poder econômico sobrepondo-se ao poder político ameaçam romper o tecido social em vários pontos do planeta.

            A questão central que se propõe para reflexão é: serão os mesmos instrumentos criados naquele período para evitar o acirramento de conflitos sociais nas nações capitalistas suficientes para acomodar interesses e apaziguar ânimos?

            Respeitando os limites desta curta nota, vamos ater a discussão aos instrumentos desenvolvidos na colaboração da Economia com o Direito para a análise antitruste. A metodologia padrão de identificação e mensuração de poder de mercado, por mais que tenha evoluído significativamente com a inclusão do instrumental de teoria dos jogos e da econometria, instrumental esse potencializado pelo crescente acesso a microdados e capacidade computacional para operacionaliza-los, não parece adequada para dar conta de mercados de múltiplos lados, onde os principais agentes são mediadores entre oferta e demanda e variáveis típicas da análise econômica – como preços, custos e elasticidades – parecem ausentes da economia de plataformas.

            Nas duas décadas deste século, a dificuldade em aplicar o instrumental analítico disponível para identificar, mensurar e simular a concentração de poder de mercado na economia digital, somada ao perfil predominantemente conservador[3] do Judiciário norte-americano, redundou no reduzido número de firmas que hoje dominam o espaço virtual onde cidadãos ao redor do planeta interagem, informam-se, movem-se e realizam transações econômicas.

            A Comissão Europeia não se rendeu a essa realidade e, mesmo diante da dificuldade para lidar com operações de aquisição de potenciais rivais pelas Big Tech ocorridas nos EUA, tem sido incansável no combate nos anos recentes a abusos de posição dominante por parte dessas empresas em seu território; foram três, na última década, as investigações concluídas contra a Google por práticas abusivas, redundando em multas da ordem de € 10 bilhões. Tais processos, contudo, não foram capazes de induzir qualquer mudança no modo de operação da companhia. Atualmente a Comissão Europeia investiga a tecnologia de publicidade da Google, assim como suas práticas de coleta de dados; os sistemas de pagamento da Apple em sua loja de aplicativos; a coleta de dados pelo Facebook e seu sistema de monetização de publicidade, assim como as práticas da Amazon em seu marketplace.

             Mudança significativa é a lei proposta pela Comissão Europeia em 2020 e que agora em 2022 entra em vigor na Europa – Digital Markets Ac (2020/0374)[4]; vem a ser inovação institucional intensamente debatida nos anos recentes, que pode se assemelhar em impacto às inovações lançadas há coisa de um século: a lei Sherman (1890), seguida da lei Clayton e do FTC (1914). A nova lei incorpora elementos regulatórios: restrições e orientações ex ante, fortalecendo a função preventiva da Comissão Europeia como autoridade antitruste, reconhecendo a baixa eficácia da intervenção ex post (repressiva).

            Em outros pontos do planeta, a leniência com relação ao acúmulo de poder por parte das grandes empresas da economia digital parece também ter ficado no passado: enquanto na Europa se debatia a introdução de uma lei com instrumentos híbridos (ex ante e ex post), reforçando a autoridade da Comissão Europeia, também nos Estados Unidos o Congresso comandava investigação, que redundou em portentoso relatório sobre a concorrência em mercados digitais, concluindo com propostas de fortalecimento dos instrumentos antitruste do Poder Executivo. O governo Biden abraçou esse conjunto de propostas para fortalecer os mecanismos de combate à monopolização dos mercados digitais no Decreto[5] publicado em julho de 2021.

            Em uníssono, a autoridade antitruste chinesa multou a gigantesca empresa de comércio eletrônico Alibaba no montante equivalente a US$ 2.8 bilhões por requerer exclusividade dos comerciantes operando em sua plataforma (proibindo-os de vender em plataformas rivais). Acordos de exclusividade da Tencent (conglomerado de tecnologia) assinados com gravadoras globais de música foram proibidos, assim como foi bloqueada a aquisição pretendida pelo conglomerado dos dois maiores sites de streaming de jogos na China, Huya e DouYu[6]. Em paralelo, o governo chinês trabalha no reforço de regras antitruste para conter a expansão das empresas na economia digital. O recado tem sido claro: nenhuma empresa pode ousar concentrar poder econômico a ponto de desafiar o poder político, enquanto este encontra-se firmemente atado ao compromisso de longo prazo de garantir o compartilhamento dos frutos do progresso entre todos, compromisso esse denominado “prosperidade comum”[7].

            As iniciativas europeia e chinesa, assim como a disposição do governo norte-americano, reforçada pelo legislativo (onde a desconfiança acerca do poder acumulado pelas Big Tech encontra eco republicanos e democratas) deverá levar a mudanças no modelo de negócios nas plataformas digitais, abrindo espaço para novas soluções de mercado que, com maior transparência, devolvam poder de decisão e barganha tanto a consumidores  como a trabalhadores. Certo é que o pressuposto da eficiência econômica (redução de custos) como motivação das operações de fusão e aquisição de concorrentes (e potenciais rivais em mercados adjacentes), um mantra hipnótico consagrado pela Escola de Chicago[8], já não detém a hegemonia que manteve por décadas entre autoridades antitruste, políticos e a acadêmicos. Espera-se que o que Anu Bradford, professora da Columbia Law School, denominou “o efeito Bruxelas”[9] somado ao “efeito China” despertem do torpor induzido pela hipnose “chicaguista” também os tomadores de decisão no Brasil, para que consumidores e trabalhadores brasileiros não fiquem para trás nesse ambiente econômico global que se redesenha.


[1] A respeito, vale a pena consultar o recente trabalho de Matt Stoller, Goliath – The 100-Year War Between Monopoly Policy and Democracy, Simon & Schuster Paperback, New York 2020, que refaz em detalhes o surgimento e a evolução do antitruste nos EUA e recupera seu significado para aquela nação.

[2] Sobre a inovação institucional denominada Previdência Social, recomendo a leitura do capítulo 1 de O Estado do Bem-Estar Social na Idade da Razão de Celia Lessa Kerstenetzky, Campus, Rio de Janeiro 2012. Sobre o imposto de renda progressivo, Thomas Picketty reconta sua gênese e evolução em vários países, em Capital and Ideology, Harvard University Press, 2020 (versão em inglês do original em francês). Vale lembrar que essas inovações institucionais tinham como contraponto as lutas operárias que levaram à  revolução bolchevique em 1917.

[3] Cuidadosamente desenhado, desde o governo Reagan, por administrações republicanas com a indicação à Corte Suprema e às Cortes Recursais de juízes treinados no modelo da Escola de Chicago, avesso à intervenção estatal sobre negócios.

[4] A respeito leia-se o Press Realease de 24/03/2022 do Parlamento Europeu “Deal on Digital Markets Act: EU rules to ensure fair competition and more choice for users” (Press Releases IMCO 24-03-2022 – 23:24).

[5] Executive Order on “Promoting Competition in the American Economy” de 09/07/2021, disponível em www.whitehouse.gov

[6] Anu Bradford, “A Reckoning for Big Tech” in Project Syndicate, Reckonings: The Year ahead, 2022, 2021 p 86-89.

[7] Note-se que, mais do que uma iniciativa isolada do governo comunista chinês, o compromisso “prosperidade comum: encontra raízes milenares na cultura chinesa, na qual a legitimidade do poder estatal repousa no compromisso deste com o bem-estar da sociedade. Darus Acemoglu e James Robinson descrevem na obra State, Society and the Fate of Liberty (Penguin Group, 2019) como o Estado na China sempre deteve poder absoluto sobre a sociedade, mas a contrapartida do reconhecimento do “Mandato vindo dos Céus” do Imperador era a confiança de que seus poderes seriam empregados em favor do bem-estar dos súditos. Ao longo da milenar história chinesa, quando isso não ocorreu, houve revoltas e deposição de governos. Os preceitos morais de Confúcio, na busca da harmonia social, longe de serem substituídos por novos preceitos a partir de 1949, seguem profundamente arraigados na relação entre Estado e sociedade. Acentuam os autores que, conforme dita a filosofia confuciana, a conduta moral do governante o obriga a ter como parâmetro de suas decisões o bem-estar de seus súditos.

[8] Nas conhecidas leituras de Posner, Stigler, Bork, Eastenbrook e seguidores.

[9] The Brussels Effect: How the European Union Rules the World – Anu Bradford, Oxford University Press, 2020.

* LÚCIA HELENA SALGADO. Professora Titular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ. 

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