Colegialidade e formação de precedentes na busca por segurança jurídica

Maria Augusta Sampaio Ferraz

Antes de falarmos sobre o tema principal do presente artigo, qual seja, colegialidade e precedentes, faz-se necessário um breve resumo histórico do sistema jurídico brasileiro, que tem sua origem na tradição romano-germânica, também denominado como civil law. O referido sistema tem origem na Europa continental, no século XIII e, durante sua evolução, podemos dividi-lo em períodos.

O primeiro período tem início com o estudo do direito romano nas universidades, que durante os séculos foi se adaptando às necessidades da sociedade, tornando-se um direito sistematizado. Posteriormente, nos séculos XVII e XVIII, há uma renovação da ciência do direito, onde a legislação se torna a principal fonte do direito romano e do sistema civil law.

Anos mais tarde, a Revolução Francesa representa um marco histórico para consolidação do civil law, na medida em que, com a ascensão da burguesia ao poder, houve a ruptura com o Estado absolutista e a criação de um sistema que limitasse a atuação dos juízes, ainda aliados ao regime monárquico.

Na França, o juiz era proibido de interpretar a norma, pois imaginava-se que a legislação seria tão clara que não haveria margem para interpretação. O responsável por criar o direito (leis) seria o Parlamento, o que se mantem até os dias atuais.

Nesse sentido, o positivismo decorreu da Revolução Francesa e a lei tornou-se a principal fonte do direito, com o objetivo de garantir segurança jurídica e previsibilidade nas decisões judiciais.

O direito brasileiro, que tem como ascendência o direito português, também se filia, em sua origem, ao sistema civil law, e, portanto, adotou como lei sua principal fonte. Contudo, com o passar dos séculos, a evolução da sociedade e o aumento desenfreado de conflitos, percebeu-se que a lei já não era mais capaz de prever soluções para todas as situações apresentadas ao Judiciário.

Após séculos de um direito positivista, o direito brasileiro começou a introduzir ao seu sistema – até então fortemente positivista – alguns institutos originários de outro sistema jurídico (common law, que será tratado posteriormente), como os precedentes.

Assim, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, o papel dos precedentes no direito brasileiro ganhou mais importância. A criação de um sistema de precedentes no cenário jurídico reforça a necessidade e o objetivo de uma prestação jurisdicional que entregue segurança jurídica, estabilidade e previsibilidade nas decisões judiciais, de forma que haja redução na judicialização e uma melhor e mais célere prestação jurisdicional.

Nesse sentido, o CPC de 2015 dispõe expressamente sobre a importância dos precedentes, no sentido de que os tribunais devem manter seus entendimentos uniformes para o alcance da almejada segurança jurídica, conforme disposto no seu artigo 926:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

Apesar de o direito brasileiro ser oriundo do sistema civil law, ou seja, de um sistema que tem como principal fonte do direito a lei, percebemos que, diante de toda evolução, a busca pela estabilização de entendimentos sobre questões constitucionais e federais traz o precedente como novo elemento. Ainda que o sistema brasileiro de precedentes seja próprio e não uma mera cópia do sistema common law, é importante entender a origem do instituto e suas principais características.

Os precedentes têm sua origem no sistema common law, onde vigora a doutrina da observância das decisões judiciais tais como postas nos casos pretéritos (doctrine of stare decisis), isto é, as decisões são proferidas observando o que já foi decidido em um caso anterior que tenha semelhanças com o caso a ser julgado.

Mesmo com origens e fonte do direito distintas, percebe-se que há uma aproximação entre os sistemas, de modo que a lei passa a ter maior importância no commom law e os precedentes maior importância no civil law.

As disposições trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015, além de darem grande importância e força normativa às decisões proferidas pelos tribunais, mostram que, apenas a Lei como fonte de decisão (civil law), não é suficiente para garantir estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica ao sistema. Luiz Guilherme Marinoni diz nesse sentido:

[…] Se no civil law imaginou-se que a segurança e a previsibilidade poderiam ser alcançadas por meio da lei e da sua estrita aplicação pelos juízes, no common law, por nunca ter existido dúvida de que os juízes podem proferir decisões diferentes, enxergou-se na força vinculante dos precedentes o instrumento capaz de garantir a segurança de que a sociedade precisa para se desenvolver.[1]

Diante deste cenário, a introdução dos precedentes judiciais no sistema brasileiro tem como objetivo a garantia de maior estabilidade do que é decidido pelo Judiciário. No Brasil, a força do precedente decorre de Lei. O exemplo principal do dispositivo legal que traz tal determinação é o artigo 927 do CPC, que dispõem sobre a necessidade de observância às decisões das Cortes Supremas.

Apesar dessa diferença, a matriz ideológica dos precedentes, em ambos os sistemas, é a busca por isonomia, segurança jurídica, estabilidade e previsibilidade das decisões judiciais.

Os precedentes reforçam o papel das Cortes Supremas (STF e STJ) de determinar como deve se dar a interpretação da legislação constitucional e federal, e, nesse sentido, é de extrema importância essas Cortes exercerem a sua colegialidade, que desempenha um papel crucial na garantia da segurança jurídica e refere-se à prática de tomar decisões judiciais por um grupo de magistrados. Essa abordagem colaborativa promove a discussão, a troca de ideias e a revisão cuidadosa dos casos, garantindo uma maior qualidade e consistência nas decisões.

Um órgão colegiado requer que cada membro aja de forma coordenada. Em outras palavras, é necessário que cada membro leve em consideração o trabalho dos outros membros, e o resultado final depende diretamente dessa abordagem. A colegialidade compartilha semelhanças com o trabalho em equipe, uma vez que ambos envolvem colaboração e deliberação entre seus integrantes. Essa interação é de extrema importância, já que o resultado obtido é o produto resultante desse processo.

Nesse contexto, uma decisão proferida como sendo do Tribunal, e não de um de seus membros, enfatiza a natureza impessoal, independente e imparcial dos julgadores, com o propósito de evitar a atribuição de responsabilidade a um único magistrado (despersonalização). Além disso, a colegialidade atua como um mecanismo de contenção do arbítrio individual, ou seja, como uma forma de impedir a concentração excessiva de poder em um único indivíduo – o próprio julgador. Portanto, a contenção do arbítrio individual visa, sobretudo, proteger os interesses das partes envolvidas no processo judicial e a qualidade das decisões judiciais, uma vez que incentiva o magistrado a adotar uma postura neutra, contribuindo assim para a uniformidade das decisões tomadas por todos os julgadores.

Nas Cortes Supremas brasileiras, como o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, a colegialidade é um princípio fundamental. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, discutiu a possibilidade do Plenário da Corte passar a construir decisões que condensem um voto majoritário e dessa forma reflitam a opinião da Corte como um todo.

Assim, a colegialidade contribui para a formação de precedentes sólidos e consistentes, uma vez que as decisões são tomadas por um coletivo de juízes com base em debates e argumentações e reflitam a posição do Tribunal. Isso reforça a previsibilidade e a uniformidade no direito, fortalecendo a confiança dos cidadãos no sistema judicial.

Assim, o julgamento colegiado que resulte em um posicionamento da Corte desempenha um papel fundamental no fortalecimento dessas instituições e na garantia da segurança jurídica. Algumas características demonstram a importância da colegialidade:

  1. Maior Consistência e Uniformidade Jurídica: A colegialidade ajuda a promover a consistência e a uniformidade nas decisões judiciais. Isso é crucial para garantir que casos semelhantes sejam tratados de maneira semelhante, o que é um princípio fundamental para a segurança jurídica. A aplicação consistente do direito constrói bons precedentes, evita arbitrariedades e garante que as decisões judiciais sejam previsíveis.
  2. Evita Concentração de Poder em um Único Juiz: Ao tomar decisões colegialmente, as Cortes Supremas evitam a concentração de poder em um único juiz. Isso é especialmente relevante em questões de grande importância, como as que são decididas pelo STF e STJ e formam precedentes. A dispersão do poder entre os juízes contribui para a proteção contra decisões unilaterais e subjetivas que podem ser influenciadas por preferências pessoais.
  3. Legitimidade e Aceitação Pública: A colegialidade também fortalece a legitimidade das decisões das Cortes Supremas. Quando um grupo de juízes chega a um consenso ou votação majoritária sobre um caso, isso aumenta a aceitação pública das decisões. Os cidadãos têm mais confiança nas decisões tomadas de maneira transparente e democrática do que em decisões individuais.
  4. Resistência a Pressões Externas: A colegialidade pode ajudar a proteger os tribunais de pressões políticas ou externas. Quando os juízes decidem em conjunto, é mais difícil influenciar um tribunal por meio de influências indevidas. A independência judicial é fortalecida pela tomada de decisões colegiais.
  5. Desenvolvimento do Direito: Os debates e discussões durante o processo colegial podem levar a um desenvolvimento mais rico do direito, o que é fundamental para a formação de precedentes. A jurisprudência resultante de tais debates tende a ser mais abrangente e aprofundada, contribuindo para a evolução do sistema jurídico.

Em suma, tanto os precedentes judiciais quanto a colegialidade nos tribunais superiores são elementos essenciais para a segurança jurídica no sistema jurídico. Eles trabalham em conjunto para garantir que o direito seja aplicado de maneira consistente e previsível, promovendo a estabilidade, confiabilidade e razoável duração do processo.


[1] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2016, p. 53.


MARIA AUGUSTA SAMPAIO FERRAZ. Advogada especialista em processo civil e em processos nas Cortes Superiores. Mestranda em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atua há 15 anos perante as Cortes Superiores (STF e STJ), com larga experiência e expertise na área.


André Lara Resende, Stiglitz e James Galbraith: suas contribuições relevantes ao debate sobre políticas públicas

Marco Aurélio Bittencourt

O seminário Estratégias de Desenvolvimento Sustentável, patrocinado pelo BNDES, contribuiu de forma contundente para a posição já bem conhecida de André Lara Resende sobre o desempenho do nosso Banco Central. Em especial sua ênfase sobre uma política de juros equivocada, iniciada no final de 2022, com uma escalada nos juros até chegar ao nível absurdo de quase 14% a.a, frente a uma inflação de no máximo 6%. Essa estratégia entrega a economia brasileira uma taxa de juros real por volta de 8%. – a maior do planeta.

No vídeo que está disponível na Internet – https://www.youtube.com/watch?v=HXsbSiOH8bE -, encontramos as falas dos três economistas. Faço, aqui, uma síntese sobre o ponto de vista dos três participantes.

André Lara Resende destaca que esperava um crescimento da economia mais robusto após o sucesso do Plano Real. Não foi o que aconteceu de lá até hoje, com crescimentos episódicos. Ele esclarece o motivo. Primeiro, destaca que o investimento cresceu muito pouco; o investimento público colapsou – caiu abaixo de 2% do PIB. Frisa que bem sabemos a causa.  Na tentativa de conter as despesas públicas com o teto dos gastos, as despesas obrigatórias correntes cresceram em demasia, espremendo as despesas com investimento, chegando à situação de nem sequer se investir para cobrir a depreciação da infraestrutura do País.

O Brasil tem uma carga fiscal alta (34% do PIB), mesmo se comparada com as dos países desenvolvidos. O País tem também taxas de juros extraordinariamente altas. O Banco Central fixou a taxa básica de juros (Selic) em quase 14%. Com a inflação próxima a 6%, chegamos a uma taxa de juros real de 8%. É a taxa de juros mais alta do mundo.  Sabe-se que sem investimento não há crescimento. A explicação dominante que ampara o Banco Central é que, como o Executivo não equilibra suas contas, isso gera um risco fiscal que o obriga a manter taxas de juros altas. Isso leva o professor Lara Resende a achar o assunto curioso. O Brasil não tem uma relação dívida/PIB elevada, ressaltando que se deve considerar a dívida líquida que colocaria essa razão em torno de 43%. Lembra ainda que essa dívida é integralmente doméstica, em moeda nacional e detidas por residentes em sua grande maioria (93%).  Por isso, portanto, não temos uma restrição que justifique essa política de juros.

Lara Resende, então, expõe sua tese: a relação pode ser inversa. Em vez da dívida levar a um aumento dos juros, são os juros muito altos que aumentam o próprio custo da dívida. Essa situação de juros altos leva, por sua vez, a um cumprimento do serviço da dívida que chega a 8,5 % do PIB, que se reflete em aumento de impostos e cortes nos gastos públicos. Em síntese, temos uma combinação perversa de juros e impostos muito altos e mesmo assim temos déficits nominais. A visão convencional quer que isso se resolva com geração de superávits primários, mesmo que tenha um custo social e econômico elevado. Essa estratégia trava o crescimento da economia, tanto pelo efeito no setor privado quanto no estatal.

Fala Lara Resende da inconsistência teórica dos modelos que o Banco Central tem se valido para justificar a taxa de juros no patamar exagerado em que ela se encontra. As preleções do atual Presidente do Banco Central apontam para o risco fiscal como uma de suas causas, mas dizem pouco sobre o risco que a própria política de juros altos acarreta à política fiscal. Nesse particular, André Lara Resende reflete sobre a necessidade de coordenação das políticas fiscal e monetária e que uma aritmética da dinâmica da dívida pública mostra que, se a taxa de juros estiver abaixo da taxa de crescimento da economia, a relação dívida/PIB decresce com o tempo e, portanto, converge para algum patamar de estabilidade. Se a taxa de juros estiver acima, o contrário acontece.

Lara Resende fez ainda a observação importante sobre essa razão dívida/PIB, que deve incorporar no seu numerador a dívida líquida. Nesse caso, tal razão estaria ao redor de 43%, ou seja, não temos um problema fiscal insanável. Ressalta que a coordenação de políticas é importante, porque juros da dívida pública são parte importante do orçamento e assim, se onerosos, o trava, fazendo encolher gastos em investimento, educação, saúde, etc. Essa redução necessariamente compromete o crescimento da economia. Em outras palavras, o próprio Banco Central exacerba o risco fiscal! E o lógico seria procurar cumprir a aritmética da dívida na sua formulação favorável, ou seja, juros abaixo da taxa de crescimento ou nessa direção. Não o contrário.

Essa lógica do Banco Central, que segue a macroeconomia dominante, foi posta em xeque a partir das crises financeiras, e por isso merece ser revista. Os dois palestrantes americanos são expoentes na crítica à macroeconomia dominante que sustenta a ideia de estabilização com superávits primários, pois são contraproducentes. A ideia de austeridade laissez-faire, com impostos e juros altos, está sob severas críticas mundo afora. Para cumprir o que propõe o atual governo como meta – crescimento sustentável e inclusivo -, é necessária a compreensão dessa armadilha que nos envolve há décadas.

O Estado é parte da solução do problema. Não é possível ter aumento de produtividade sem a participação do Estado. Não existe dinamismo na economia sem a participação de um Estado competente. O Estado tem que usar os recursos de forma eficiente, não ser burocrático e muito menos atrapalhar os negócios, criando dificuldades. Sem um Estado competente não há produtividade, não há crescimento. Assim, segundo Lara Resende, ao concluir sua exposição, as considerações dos palestrantes americanos nos ajudarão a cumprir o papel de suporte para quem apoia a ideia de crescimento sustentável e inclusivo, objeto desse seminário.

Ambos os economistas americanos corroboraram a exposição de Lara Resende e criticaram o nosso modelo de Banco Central por excessiva independência. Banco Central ater-se apenas à questão inflacionária não é mais um modus operanti aceito.

Stiglitz fala sobre diversos itens. Valho-me aqui de suas ideias expressas alhures, pois ajuda a encaixar os assuntos debatidos. Comecemos pela desigualdade de renda. Ele é voz atuante contra a ideia de que, se fazendo o bolo crescer, a desigualdade diminui com o tempo. Cita Lucas (outro prêmio Nobel) como um dos defensores dessa tese tempos atrás. Stiglitz se opõe a ela frontalmente. É preciso políticas públicas que garantam oportunidades aos mais pobres, concomitantemente às de crescimento.

Stiglitz fala sobre o tamanho do Estado. A turma dos liberais prega a tese de Estado mínimo e afrouxamento na regulação. Stiglitz mostra que essa foi exatamente a política de Reagan, mantida por bom tempo. Resultado: crises financeiras, concentração de renda e aumento do poder de mercado para vários segmentos. O economista defende mais Estado. Aqui é bom uma ressalva: isso não autoriza ninguém a concluir sobre mais estatais e regulamentação geral do mercado. Ele prega a sempre e bem difundida ideia expressa nos livros texto que ações de governo são necessárias, quando ocorrem falhas nesse mecanismo de autorregulação eficiente dos mercados pelo sistema competitivo de preços. Isto ocorre na presença de bens públicos, bens comuns, bens semipúblicos, externalidades, mercados não perfeitamente concorrenciais, informação assimétrica e desemprego dos fatores de produção. A regulação é necessária para combater então essas falhas de mercado. Uma boa política pública amplia a matriz competitiva e não privilegia conglomerados; o funcionamento do mercado se dá sob a égide de políticas públicas que promovam uma economia competitiva, além de instituições que gerem os incentivos corretos e garantam o funcionamento do mecanismo de mercado para alocação de recursos.

Quanto à privatização, ele sugere analisar caso a caso.

Sobre política de juros, Stiglitz fala o óbvio: juros na dimensão do Brasil são sufocantes ao investimento e deprime a economia.  Juros altos e política de austeridade não faz sentido econômico. É o crescimento da economia que, mesmo na presença de déficit do governo, irá reduzir a razão dívida/PIB.  O investimento é a causa motora do crescimento, junto com inovações e oportunidade de emprego para ampla faixa da população. Principalmente investimento público em infraestrutura e pesquisa. Para piorar, como os credores da dívida pública são em sua grande maioria os mais ricos, o pobre, em suas compras cotidianas ou em seus empréstimos habituais, é que arcarão com grande parte desse ônus financeiro, piorando o quadro da distribuição de renda. Evidentemente, tem reflexo no próprio serviço da dívida que fatalmente exigirá cortes em investimentos, educação e saúde, reduzindo ainda mais a trajetória de crescimento.

Quanto à solução do déficit público, o economista se opõe às políticas recessivas. A melhor política para estabilizar a razão dívida/PIB é aquela que privilegie os investimentos, inclusive o público, pois levará ao crescimento e assim poderá reduzir essa razão dívida/PIB. Isso se acrescenta a necessidade de se reduzir os juros da dívida pública. 

Stiglitz é favorável a políticas industriais e cita o caso dos Estados Unidos do estímulo à produção de chips e elogia o BNDES. Reconhece que há falhas na implementação de políticas públicas pelo BNDES e diz que as falhas representam um processo de aprendizagem. E, na sua palestra no BNDES, foi cortês: lembrou que conhecia os erros recentes e lançou a esperança de que teríamos aprendido com eles. Uma visão otimista é sempre bem-vinda. O ponto central do BNDES seria sua conexão com políticas industriais que devem ser desenhadas adequadamente. Não entrou em detalhes, mas citou o exemplo americano que criou lei de incentivos às empresas locais para produção de chips. Bem diferente da nossa estratégia que foi a criação de uma empresa estatal, alvo de um processo de liquidação iniciado em 2021.

Sobre o Banco Central, dá uma aula sintética e bem resumida. O nosso Banco Central é excessivamente independente. Nos EUA, o Banco Central é independente, mas o senso democrático dos seus ocupantes é que faz a diferença (mais uma vez cortês). Outros objetivos além da inflação ocupam a sua agenda, tais como desemprego, crescimento e estabilidade financeira.  O senso de responsabilidade é também explicitado nos depoimentos do presidente do Banco Central ao Congresso, justificando sua política. Stiglitz defende a necessidade de se ter representantes da sociedade na direção do Banco Central, como sindicatos e outros, porque seriam afetados por decisões de política financeira ou monetária.  Complementando esse quadro, aborda regras de governança, citando a que impede pessoas do mercado financeiro ocuparem posição de comando nos Bancos Centrais.

Por fim, fala também sobre tributação dos mais ricos e do sistema financeiro, objetivando dirigir os recursos dos poupadores para investimentos produtivos e ajuste na matriz energética, em busca de uma política verde. A tributação deveria ajudar a formatar a economia. Daí a inclusão dos chamados impostos verdes que desencorajariam o uso de combustíveis fósseis. No sistema financeiro, a tributação deveria objetivar reduzir a volatilidade. Enfim, impostos que possam ajudar no crescimento da economia pelos incentivos que poderiam gerar. Nessa linha de estimular o crescimento, fala sobre impostos reduzidos para empresas que se engajam em investimento produtivo.

Quanto ao Professor Galbraith, sua exposição foi sintética e direta. Falou do Banco Central e fez referência aos agregados relevantes: razão dívida/PIB e inflação. Confirmou os dados de André Lara Resende e apontou que a inflação estaria mais associada aos problemas de oferta agregada. Trouxe à baila a questão da taxa de juros e ressaltou que taxas reais altíssimas, como as que estão sendo praticadas, teriam efeitos profundos sobre a distribuição de renda, aumentando a riqueza dos que já a tem e tornando mais onerosa as dívidas dos mais pobres ou mesmo suas compras cotidianas.

Além disso, segundo o professor, taxas altas aumentam a própria despesa do governo, retraem o investimento público e privado e aumentam os custos dos empresários. Conclui o mesmo que André Lara Rezende e Stiglitz: a política adequada seria mais crescimento e mais inclusão, refletidos pelo padrão de investimentos adequados para essas finalidades. E mais: a situação de autonomia financeira que o Brasil desfruta, juntamente com os ativos que sustentam as operações do Banco Central, garantem uma retaguarda razoável para as mudanças aqui propostas.

Nada a opor sobre a posição teórica dos eminentes professores. Muito pelo contrário. A concordância é plena. O problema surge na aplicação de suas ideias ao Brasil. Não que expressem ideias erradas e desconheçam nossas falhas. Mas, olhando pelo retrovisor que leva ao passado e ao farol baixo que ilumina o presente, torna difícil acreditar que os erros foram aprendidos e não se repetirão. Tudo vai depender do arranjo político que se desenrolará.  E conforme expressa Stiglitz, o caráter resiliente do sistema é importante no encaminhamento da solução. Esse é o ponto!

No caso das políticas industriais e o papel do BNDES, é crucial que não se repita a estratégia de promover mais aumento de poder de mercado ao financiar grandes grupos econômicos que apenas aumentaram o seu patrimônio, incorporando o de terceiros ou investindo no exterior. Os casos caricatos são os da AMBEV e JBS. A nossa atuação equivocada sobre política industrial é crítica, diferentemente do que prega Stiglitz que estabelece incentivos dirigidos ao setor privado e não pela criação de estatais.

Não sei se Stiglitz tem notícia, por exemplo, da nossa experiência traumática do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada – estatal que produziria chips.  Ela apresentava recorrentes prejuízos e seus gestores não conseguiram provar que ela se justificaria do ponto de vista social e o Governo Bolsonaro iniciou um processo de liquidação que foi revertido pelo governo Lula. A governança sobre as instituições estatais é simplesmente crítica e favorece o corporativismo, com o inchaço salarial e de postos de trabalho. Evidentemente, esse inchaço não é generalizado e localiza-se mais na estrutura administrativa e nas estatais lucrativas. Vale lembrar a ênfase de Lara Resende sobre a gestão pública: o governo deve ser competente!

Certamente, Stiglitz deve conhecer a experiência bem-sucedida da ditadura militar que foi a criação da Embrapa. Do ponto de vista social, a Embrapa é altamente superavitária, como se depreende do seu Balanço Social. Com toda justiça, Lula a trata melhor do que todos os outros presidentes eleitos, principalmente aos seus técnicos, como o faz para as demais instituições do Executivo, abonando-os com reajustes salariais merecidos que acontecem sempre depois de algum jejum salarial imposto por governos anteriores. Novamente, esse é o caso e novamente Lula assume o prejuízo político. O problema aqui é que a estrutura salarial do setor governamental é bastante superior à do setor privado, o que fará aumentar a animosidade contra os servidores públicos, abrindo espaço político para a sua fragilização.

Quanto à independência do nosso Banco Central, fazem os palestrantes críticas acertadas. O problema é que a mídia tradicional as abafa e sempre faz parecer tonto quem ouse criticar o Banco Central. Sempre bom ouvir um arrazoado coerente, responsável e sério.

Hoje, com o retorno do PT ao poder, estamos num compasso de espera, porque o básico do primeiro ano de qualquer mandato presidencial é fruto do governo anterior. Ponto importante. As agendas microeconômicas não têm sido atacadas em grande escala; o que é muito bom. Outra exceção importante está nos exageros da privatização que provavelmente Stiglitz concordaria (eu também), como a idéia tosca de se privatizar os Correios; questão resolvida pelo governo atual.

De qualquer sorte, o caráter resiliente de que tanto fala Stiglitz em suas palestras, tudo indica, cai bem em Lula. Até agora, constatamos o ensaio de políticas industriais de auxílio às multinacionais automobilísticas com aproveitamento da classe média mais abastada, manutenção da tributação excessiva e rearranjo político com ocupação política das instituições públicas e ressurgimento de empresas estatais como a dos chips que poderiam e devem ser conduzidas pelo setor privado com o devido apoio estatal. Se no governo Bolsonaro, o seu quadro técnico não mudou significativamente, por que teria que mudar agora?

Feitas as minhas considerações, fico aqui com o otimismo de Stigler e faço a reprodução das palavras finais de André Lara Rezende que resumem bem as palestras dos economistas americanos. Assim, o fez:

  1. Claramente, taxa de juros excessivamente altas são injustificáveis, tanto na presença de déficit público ou de uma dívida pública alta. É injustificável para combater a inflação quando ela não é de demanda. Mais do que injustificável, taxas altas podem ser contraproducentes, ter efeitos perversos, contrários do que se pretende. Inviabilizam o crescimento. Podem agravar a inflação; agravam o déficit público, pioram a relação dívida/PIB. Adicionalmente, têm efeitos negativos na distribuição de renda. Taxa de juros elevadas é uma política profundamente equivocada.
  2. O Banco Central pode ter autonomia operacional para executar as metas definidas democraticamente, mas não pode ser um quarto poder, sem prestar contas e responsabilidade aos poderes democraticamente constituídos.
  3. A ideia de uma política industrial em nome de uma referência de investimentos e direção ao País é fundamental em todos os momentos e especialmente hoje com necessidade de reorganização da matriz energética, descarbonização da economia. O crescimento econômico não necessariamente engloba todo mundo. A política de crescimento tem que adicionalmente contar com medidas outras para aqueles que ficam fora do crescimento produzido por esse esforço de investimento publico e rearranjo das políticas em direção ao crescimento.
  4.  O Brasil está numa situação relativamente privilegiada no mundo; nós é que erramos com uma política equivocada nas últimas décadas, especialmente a monetária de juros, e uma adoção impensada do neoliberalismo com essa visão equivocada de que Estado deve ser suprimido ao mínimo, amordaçado e impedido de ter políticas. Isso nos levou à estagnação nesses últimos anos. Temos tudo para sair disso.

MARCO AURÉLIO BITTENCOURT. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Bem-aventurados os setores escolhidos para a desoneração da folha de pagamentos, pois deles serão os benefícios da política

Editorial

Esta semana o Senado Federal aprovou o projeto de lei (PL 334/2023)[1] que prorroga por mais quatro anos a desoneração da folha de pagamentos para 17 setores da economia que mais empregam[2]. Segundo o projeto aprovado, a prorrogação irá até o dia 31 de dezembro de 2027.

A desoneração da folha de pagamentos já é uma velha conhecida do Brasil, uma vez que vigora no país desde 2011, com a publicação da Lei nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011. Esse incentivo fiscal atua sobre a carga tributária com a contribuição patronal à previdência e o objetivo é o de reduzir o custo de contratação dos empregadores.

Originalmente, a política consistiu na substituição da contribuição previdenciária patronal (CPP), que representava 20% da folha de pagamentos das empresas, por uma contribuição equivalente a 1% ou 2% sobre o faturamento bruto com as vendas.

O projeto de lei aprovado prevê até 31 de dezembro de 2027: (i) a ampliação do prazo previsto nos arts. 7º e 8º da Lei nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011; (ii) o acréscimo de 1 (um) ponto percentual as alíquotas da Cofins-Importação de que trata este artigo[3]; (iii) a alteração de 20% para 8% da alíquota da contribuição para os Municípios com até 142.632 habitantes[4] até 31 de dezembro de 2027; (iv) uma alíquota da contribuição sobre a receita bruta  de 1% para as empresas de transporte rodoviário coletivo de passageiros, com itinerário fixo, municipal, intermunicipal em região metropolitana, intermunicipal, interestadual e internacional enquadradas nas classes 4921-3 e 4922-1 da CNAE 2.0; e (v) o monitoramento dos empregos afetados nos setores beneficiados pelo Poder Executivo.

É de ver que os setores agraciados com a política serão bem-aventurados, pois deles serão todos os benefícios, inclusive os de ampliar o emprego de mão-de-obra nas suas funções de produção.

Bem, então está tudo certo!! Geração de emprego e renda para os setores escolhidos.

Não!! Não está tudo certo. E os setores não escolhidos, como ficam?

O que está em questão não é a política do ponto de vista orçamentário-financeiro, mas sim o privilégio de alguns setores em detrimento de outros.

É preciso lembrar que a desoneração de folha de pagamento é classificada com uma renúncia fiscal (art. 14, §2º, da Lei de Responsabilidade Fiscal -LRF)[5] e, como tal, exige contrapartidas rígidas para a sua execução (art. 14, I e II, da LRF)[6].

Também é preciso lembrar que política industrial boa é aquela que oferece, na medida do possível, os mesmos incentivos para todos os setores da economia e não incentivos para alguns em detrimento de outros, sob pena de gerar abundância de empregos nos setores agraciados e escassez nos demais.

Mas não é só o deslocamento do emprego hoje que prejudica os setores não agraciados, são todos efeitos reais e potenciais de política continuada sobre a estrutura geradora de empregos ao longo do tempo. É preciso lembrar que esta é uma política que já dura 12 anos, que os setores agraciados são praticamente os mesmos e que os ganhos em termos de emprego são no mínimo questionáveis.


[1] COMISSÃO DIRETORA (senado.leg.br)

[2] Os 17 setores são: Confecção e vestuário; calçados; construção civil; call center; comunicação; couro; empresas de construção e obras de infraestrutura; fabricação de veículos e carroçarias; máquinas e equipamentos; projeto de circuitos integrados; proteína animal; têxtil; TI (Tecnologia da Informação); TIC (Tecnologia de Comunicação); Transporte metroferroviário de passageiros; Transporte rodoviário coletivo; e Transporte rodoviário de cargas

[3] Alteração do caput do § 21 do art. 8º da Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004.

[4] Art. 4º O art. 22 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, passa a vigorar acrescido do seguinte § 17: “Art. 22. ……………………………………………………………………………………..

§ 17. A alíquota da contribuição prevista no inciso I do caput deste artigo será de 8% (oito por cento) para os Municípios enquadrados nos 2 coeficientes inferiores a 4,0 (quatro inteiros) da tabela de faixas de habitantes do § 2º do art. 91 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.” (NR)

[5] § 1o A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

[6] Art. 14.A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:                (Vide Medida Provisória nº 2.159, de 2001)        (Vide Lei nº 10.276, de 2001)       (Vide ADI 6357)

I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

Prova antecipada no direito concorrencial administrativo sancionador brasileiro

Mauro Grinberg

Não há memória de medidas antecipadas de produção de prova no direito concorrencial administrativo brasileiro. Todavia, em se tratando de direito administrativo sancionador. Deveria haver, tal a sua importância. Há situações em que a prova pode e deve ser antecipada, sobretudo tendo em vista a possibilidade do seu perecimento. Podemos mencionar algumas dessas situações (a primeira é clássica): (i) oitiva de testemunha com doença terminal, degenerativa ou de qualquer forma inabilitante (inclusive pelo possível prejuízo da memória), (ii) oitiva de testemunha em vias de transferência para o exterior, sobretudo em locais de comunicação difícil (inclusive zonas de guerras), (iii) perícia em instalação que precisa de reforma para sua utilização normal, (iv) perícia em máquina cuja configuração deve mudar, (v) verificação (tecnicamente inspeção) em pontos de venda para constatação da presença de produtos importados (para definição do mercado relevante geográfico), (vi) provas (sobretudo documentais) em poder de terceiros, com risco de sua perda, (vii) manutenção de documentos contábeis que de outra forma podem ser inutilizados (de acordo com as regras tributárias), etc.

Obviamente há limites para a produção antecipada de prova, a começar pelo que consta do Tema Repetitivo 455 da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no art. 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo”. Vejamos a redação do artigo mencionado: “Se o acusado, citado por edital, não comparecer nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes (…)”.

Não há limites para o tipo de prova a ser produzida, como bem esclarece Cândido Rangel Dinamarco: “Tanto a prova testemunhal comporta produção antecipada, quanto a pericial, o depoimento pessoal, a inspeção judicial ou mesmo a documental”[1]. Ao rol exemplificativo de Cândido Rangel Dinamarco devem ser acrescentadas a exibição de documento ou coisa, a prova econômica, enfim toda a gama de provas possíveis.

Com a sua proverbial clareza, diz José Rogério Cruz e Tucci que “trata-se, portanto, de expediente processual apto a constituir prova para eventualmente, no futuro, ser incorporada em outro processo (…) como mecanismo eficaz para que seja aferida a viabilidade de potencial e sucessiva investida judicial”.[2] Assim, uma das vantagens da produção antecipada de prova é evitar demandas ao se verificar, antecipadamente e se for o caso, que a prova é débil; trata-se claramente de uma medida de economia processual, ao se evitar possíveis demandas nas quais a prova não para em pé.

Os óbices à aplicação da matéria processual penal no direito administrativo sancionador devem desde logo ser desconsiderados, uma vez que tanto um como o outro são vertentes do direito sancionador. Como diz Alexandre Cordeiro, “o direito administrativo sancionador e o direito penal originam-se da mesma base, seja o direito administrativo originado do próprio direito penal ou ambos do Poder Punitivo Estatal. Para os Unitaristas o poder sancionador do Estado é um só, do qual nasce todo o poder repressivo do Estado”[3].

Mais ainda, a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (CPC) prevista no art. 115 da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC) deve também nos remeter ao art. 381 do CPC e seus três incisos, para os quais “a produção antecipada da prova será admitida nos casos em que” “haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação”, “a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito” e “o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação”.

Quanto à aplicação subsidiária do CPC, Gabriela Reis Paiva Monteiro pondera que “dada a sua aplicação subsidiária e supletiva, novos dispositivos do CPC/2015 poderão incidir sobre o processo administrativo sancionador de competência do Cade, seja para (i) completar suas lacunas ou omissões legais (função integrativa subsidiária) ou para (ii) complementar ou otimizar os seus dispositivos processuais (função integrativa supletiva)”[4]. Isso nos leva a entender que a medida de produção antecipada de prova no processo administrativo sancionador concorrencial é integrativa da LDC, preenchendo uma clara lacuna pois a prova obviamente não pode perecer e consequentemente prejudicar os legitimamente interessados.

Curioso é o fato da produção antecipada de prova não ter sido tratada no CPC como medida de tutela de urgência, como bem demonstram Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery[5]. Mas também é importante salientar que a produção antecipada de prova se esgota em si mesma, como estabelece o § 2º do art. 382 do CPC: “O juiz não se pronunciará sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas”. Fica claro que a prova, ainda que antecipada, só será tratada na ação – no caso o processo administrativo sancionador – que se lhe suceder, se for o caso.

Trata-se de uma forma de cognição sumária, “cunhada, inicialmente, para retratar um estado de coisas excepcional, em que a gravidade da situação , por si, exigia atuação imediata, se preciso à margem ou mesmo em violação dos meios ordinários”, segundo Leonardo Faria Schenk[6]. Para Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, um dos objetivos da cognição sumária é “assegurar a viabilidade da realização de um direito ameaçado por perigo de dano iminente”[7], restando claro que aqui se enquadra a produção antecipada de prova.

Com efeito, já decidiu a 3ª Seção do STJ, no Recurso em Habeas Corpus (portanto em matéria penal, embora aqui aplicável, como visto acima) 64.086-DF, julgado em 23/11/2016, sendo Relator o Ministro Rogério Schietti Cruz, que “se, por um lado, a jurisdição penal tem o dever de evitar que o acusado seja processado e julgado à revelia, não pode, a seu turno, ter seus resultados comprometidos pelo tardio depoimento de pessoas que, pela natureza de seu ofício, testemunham diariamente a prática de crimes, cujo registro mnemônico se perde com a sucessão de fatos similares e o decurso do tempo”. Poder-se-á dizer que esse tipo de crime não alcança o direito concorrencial; todavia, podemos fazer a equivalência da atividade de contadores, que diuturnamente processam informações contábeis, muitas vezes sensíveis e/ou confidenciais.

Para a produção antecipada da prova, de acordo com o art. 381 do CPC, “o requerente apresentará as razões que justificam a necessidade de antecipação da prova e mencionará com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair”. Quanto à participação de outras partes neste procedimento, estabelece o § 1º do mesmo artigo que “o juiz determinará, de ofício ou a requerimento da parte, a citação de interessados na produção da prova ou no fato a ser provado, salvo se inexistente caráter contencioso”. Aqui há uma característica interessante do processo administrativo sancionador concorrencial, constante do § único do art. 1º da LDC, segundo o qual “a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei”.

A consequência aparenta (apenas aparenta) ser óbvia pois, se a coletividade é a parte, e se, no processo administrativo sancionador concorrencial, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é não apenas o acusador como também o julgador, deveria o Cade ser a única parte interessada. Obviamente o Ministério Público Federal (MPF), como fiscal da lei, deve fazer parte do procedimento pois não se pode falar de interesse público sem a sua participação. Mas não é possível deixar de lado, na produção antecipada de prova, os possíveis terceiros interessados, cuja gama é extremamente difícil de condensar mas cuja consideração a autoridade concorrencial não pode evitar.

Normalmente a consideração deverá levar em conta, por exemplo, os participantes do mesmo mercado relevante, cujo interesse pode ser claro. Se a prova antecipada for a oitiva de testemunhas, toda a gama de interessados pode comparecer, fazer (se for o caso) a contradita e perguntas, sob pena da prova não valer contra quem foi chamado. Mas deve ficar evidente que a produção antecipada de prova deve ser feita pela autoridade concorrencial, em aplicação subsidiária da legislação processual civil.

O desafio é grande mas não pode a autoridade concorrencial deixar de enfrenta-lo se e quando houver o pedido. Este, contudo, deve ser claro não só quanto à prova que quer ver produzida antecipadamente e quanto aos motivos da antecipação, mas também quanto às partes que podem ser interessadas, uma vez que qualquer uma delas poderá impugnar a produção da prova quando esta for usada.  Por exemplo, na prova testemunhal, um interessado poderá alegar que ela não vale contra si porque, não tendo sido chamado, não pode fazer a contradita nem perguntas à testemunha.

Vale continuar a trazer o STJ, no Agravo Regimental no Habeas Corpus 557.840-TO, julgado em 05/03/2020, Relator o Ministro Ribeiro Dantas: “A produção antecipada de provas, que visa à garantia da efetividade da prestação jurisdicional em razão do risco de seu perecimento, deve ser justificada em elementos concretos dos autos. Demais disso, o ato deve ser realizado com a presença de membro do Ministério Público e de defesa técnica, preservando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa”.

Falar em contraditório e ampla defesa em matéria de produção antecipada de prova traz aparentemente uma contradição com o § 4º do art. 382 do CPC: “Neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso (…)”. Explica, entretanto, Maria Elizabeth de Castro Lopes: “Ao prever a citação dos interessados (§ 1º) a lei está possibilitando seu ingresso nos autos para arguir matéria de conteúdo processual ou descumprimento, pelo autor, dos requisitos da petição inicial, notadamente os requisitos para a antecipação”[8]

Finalmente, e ainda com o STJ, deve ser trazido o Recurso Especial 2.037.088-SP, julgado em 07/03/2023, Relator o Ministro Marco Aurélio Bellizze, que “a disposição legal contida no art. 382, § 4º, do Código de Processo Civil não comporta interpretação meramente literal, como se no referido procedimento não houvesse espaço algum para o exercício do contraditório, sob pena de se incorrer em grave ofensa ao correlato princípio processual, à ampla defesa e ao devido processo legal”. Donde se deve observar que a defesa possível em casos de produção antecipada de prova é meramente procedimental, ou seja, dirigida apenas à possibilidade ou impossibilidade de sua realização, não se podendo entrar no mérito e na consequência da prova antecipadamente produzida.

De tudo o que se encontra acima exposto, é forçoso concluir que o Cade não deve se esquivar da produção antecipada de prova, não só em decorrência da aplicação subsidiária do CPC mas sobretudo em razão da importância do instituto. Não há dificuldade legal pois o CPC autoriza, sendo que o Ricade (Regimento Interno do Cade) pode ser alterado pelo próprio órgão – de acordo com o art. 9º, XV, da LDC – para acomodar legalmente a situação. O que não se pode é perder provas que podem se desfazer em decorrência do decurso do tempo.


[1] “Instituições de Direito Processual Civil”, Vol. III, Malheiros, SP, 2017, pág.112

[2] “Produção antecipada de prova e o devido processo legal”, Consultor Jurídico, 11/08/2023

[3] “Teoria normativa da culpabilidade no direito antitruste”, Jota, 09/08/2017

[4] “O Novo CPC Entrou em Vigor. E Agora? Considerações Iniciais sobre a Aplicação Subsidiária e Supletiva do CPC/2015 no Processo Antitruste Sancionador”, Revista de Defesa da Concorrência, Vol. 4pát., nº 2, 2016, pág. 158)

[5] “Código de Processo Civil Comentado”, RT, São Paulo, 2021, pág. 989

[6] “Cognição Sumária”, Saraiva, São Paulo, 2013, pág. 136

[7] “Prova e Convicção”, RT, São Paulo, 2015, pág. 83

[8] “Comentários ao Código de Processo Civil”, org. de Cassio Scarpinella Bueno, Saraiva, São Paulo, 2016, pág. 271


Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, ex-Presidente e atual Conselheiro do Ibrac, Mestre em Direito, advogado especialista em Direito Concorrencial, sócio de Grinberg Cordovil Advogados


Os fantasmas se divertem

As aparições espectrais da Análise Econômica do Direito no Antitruste

Angelo Prata de Carvalho

Esta coluna retorna após uma pausa mais longa do que o esperado – devida à imperiosa conclusão de minha tese de doutorado –, porém a tempo das celebrações do Halloween, com direito a fantasias criativas e alguns filmes de terror. O título deste artigo de retorno do umbral em que me encontrava é uma homenagem ao clássico filme de Tim Burton, que retrata o dilema de um casal recém-desencarnado que se vê às voltas com seu novo papel de almas penadas. Ao verificarem a dificuldade do cotidiano além-túmulo, o casal de assombrações invoca o espectro ancestral conhecido como Beetlejuice, que surge para resolver problemas com grande habilidade quando seu nome é pronunciado por três vezes.

Beetlejuice é a solução para problemas de difícil resolução que, porém, pode ser invocado muito facilmente – basta pronunciar três vezes o seu nome. No entanto, uma vez invocado, Beetlejuice dificilmente irá embora, ainda que suas soluções não sejam as mais adequadas para os problemas concretos (até porque Beetlejuice não é deste mundo). Isso porque Beetlejuice apenas conhece o mundo dos mortos, surgindo para o mundo dos vivos apenas quando invocado. Em Os fantasmas se divertem, porém, chama a atenção a visão de Lydia, que, apesar de estar viva, por ter lido um “Manual para os recém-falecidos”, consegue enxergar a interagir também com os fantasmas que assombram sua casa.

Assim como Beetlejuice aguarda ansiosamente para que alguém pronuncie seu nome por três vezes, a Análise Econômica do Direito tem se apresentado como um conjunto de estruturas analíticas aparentemente bem construídas que parecem surgir sempre que alguém menciona o Direito da Concorrência (e uma vez só já basta). Até por se tratar de ramo do Direito Econômico, não são raras as alusões ao Direito da Concorrência como o espaço por excelência da aplicação da Análise Econômica do Direito – que, por mais que batalhe constantemente pela sua consagração nas demais disciplinas jurídicas, estaria relacionada de maneira quase óbvia com o Antitruste, já que, no fim e ao cabo, estamos lidando com a economia e precisamos socorrer-nos de análise econômica.

Por um conjunto de acidentes históricos, o Direito da Concorrência passou a ter a sua metodologia associada diretamente a abordagens econômicas de inspiração neoclássica, tributárias da chamada Escola de Chicago, como se a análise da legalidade pudesse ser reduzida a cálculos de eficiência, assim abandonando qualquer outro parâmetro valorativo diverso da alocação eficiente de recursos (não raro ocultada por detrás do argumento do bem-estar do consumidor, fábula articulada inicialmente por Robert Bork). Esta compreensão, porém, é marcada pela sua fantasmagoria, na medida em que não deixa de ser uma reverberação do Antitruste norte-americano – que parte de premissas teóricas, metodológicas e jurídico-culturais radicalmente distintas – puxando os pés do Direito da Concorrência brasileiro durante o sono.

A substituição de análises jurídicas por análises econômicas – de tal forma que esta última verdadeiramente passa a arrogar-se de juridicidade, requisito necessário para que a decisão econômica se torne imperativa – é, na verdade, manifestação do ectoplásmico caso Sylvania (1977), exemplo lapidar (que insiste em deixar sua lápide) da adoção, pela Suprema Corte dos Estados Unidos, da distribuição eficiente de recursos como parâmetro de juridicidade no Antitruste. Nos Estados Unidos, a adoção das metodologias da Escola de Chicago veio acompanhada da consagração de ideologias econômicas fundadas na valorização do big business e da própria concentração dos mercados, que não demorou a redundar em efeitos econômicos deletérios dificilmente exorcizáveis da realidade concreta, na medida em que serviram para consolidar posições dominantes praticamente inquebrantáveis.

Evidentemente que não se está aqui pontificando a extirpação de dados econômicos das metodologias do Direito da Concorrência ou mesmo do fechamento do direito a abordagens multidisciplinares – posição que seria um verdadeiro contrassenso até mesmo diante da ideia de ordem econômica constitucional. O que se combate é a identificação da análise quanto à legalidade de condutas de agentes econômicos à luz do Direito da Concorrência com análises econômicas centradas na noção de eficiência. Isso porque não é a eficiência o valor fundamental que orienta a aplicação do Direito da Concorrência no contexto brasileiro, que encontra fundamento constitucional nos incisos do art. 170 da Constituição Federal. Verificar se uma conduta ou um ato de concentração é eficiente não pode, nesse sentido, consistir no fim da análise jurídica, mas em um dentre vários elementos a serem levados em consideração para a verificação da legalidade da conduta ou do ato.

Mais enganosa ainda é a compreensão de que o emprego de análise econômica, notadamente sob perspectiva ortodoxa, teria o condão de emprestar ao direito caráter de tecnicidade e, por conseguinte, de correção. Tal ilusão se coloca especialmente diante da frequente tentativa dos porta-vozes da análise econômica do direito de diminuir a importância das metodologias tipicamente jurídicas, não raro reduzindo-as a meros expedientes retóricos sem qualquer conteúdo técnico, na medida em que operam por intermédio da análise hermenêutica de um ordenamento com textura aberta.

Em que pese a diversidade dos sistemas jurídicos, o recrudescimento da Escola de Chicago nos Estados Unidos e a propagação das conclusões do caso Sylvania exerceram grande influência sobre o Direito da Concorrência brasileiro, que comumente replica as mesmas premissas lá adotadas para um ordenamento pautado em uma ordem econômica constitucional dotada de valores próprios. Produz-se, com isso, uma ideologia ainda mais arraigada na exploração de dados econômicos e de cálculos de eficiência como se fossem a própria análise jurídica, na medida em que os parâmetros de controle de legitimidade aplicáveis ao caso Sylvania (isto é, a superação do precedente e a rediscussão de suas premissas) e mesmo a superação de entendimentos antigos não parecem aqui reverberar com proporcional intensidade.

O entendimento padrão passa a ser – para manter as referências ao Dia das Bruxas – transilvânico, tendo por principal presa os valores que orientam a ordem econômica constitucional brasileira. No entanto, ao transpormos as finadas compreensões norte-americanas a respeito dos propósitos e mesmo das metodologias aplicáveis ao Direito da Concorrência, nem teremos o potencial de replicar algum resultado econômico positivo (para quem quer que seja) que possa ter resultado da difusão dos ideais de Chicago nos Estados Unidos, e muito menos seremos capazes de dar concretude aos objetivos da Constituição de 1988, assim perenizando a nossa dependência. Com isso, o mencionado entendimento transilvânico pode até mirar em Drácula ou Lestat, mas invariavelmente acerta em Bento Carneiro, o Vampiro Brasileiro, que vem do aquém do além, da donde veve os mortos.


ANGELO PRATA DE CARVALHO. Advogado sócio de Ana Frazão Advogados. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de Brasília. Professor voluntário na Faculdade de Direito da UnB. Vice-líder do Grupo de Estudos Constituição, Empresa e Mercado (GECEM/UnB).


Para onde vai a Argentina?

Editorial

No último domingo os argentinos foram às urnas em primeiro turno para eleger o novo mandatário. Os três principais candidatos foram: Sérgio Massa, atual Ministro da Economia da Argentina; Patricia Bullrich, ex-presidente do partido Mauricio Macri (PRO); e Javier Milei, líder do partido A Liberdade Avança. O resultado do primeiro turno apontou Sérgio Massa com 36,1% dos votos e Javier Milei com 30,18%.

A disputa do primeiro turno apresentava o peronismo de um lado, com Sérgio Massa, e o liberalismo de outro, representado por Patricia Bullrich e Javier Milei, sendo a primeira uma liberal conservadora e o segundo um ultra-liberal ou, melhor dizendo, um libertário.

E agora? Para onde vai a Argentina?

Bem, a possível vitória de Sérgio Massa representa “mais do mesmo” para a Argentina, o que significa dizer que se alguma coisa acontecer não será para melhor, pois, como diz a célebre frase de Giuseppe Di Lampedusa “para que tudo continue como está é preciso que tudo mude”. Logo, se nada muda, então o que está ruim pode piorar!!!

E a possível vitória de Milei é a mudança que fará com que tudo continue como está?

Bem, essa resposta não é trivial. As mudanças recentes ocorridas nas eleições majoritárias argentinas não lograram êxito, antes pelo contrário, pioraram consideravelmente a já difícil vida dos argentinos.

Não é preciso ir longe. Há exatos 9 anos o liberal Maurício Macri vencia as eleições na Argentina, sendo o seu adversário o candidato do kirchnerismo Daniel Scioli, linha política que estava no poder havia 12 anos.

De natureza liberal, o governo de Maurício Macri tentou implementar uma agenda pró-mercado e os resultados foram bem diferentes de suas promessas de campanha: (i) a pobreza chegou a 33% no seu mandato; (ii) a inflação alcançou 47% no último ano do seu governo; (iii) e os investimentos estrangeiros não ingressaram na Argentina conforme desejado.

Bem, a mudança do receituário desenvolvimentista do kirchnerismo para o liberalismo de Macri não manteve tudo como estava, na verdade, o efeito foi às avessas. Tudo ficou muito pior!!

Ué!! Agora ficou mais confuso ainda!! Sair do desenvolvimentismo em direção ao liberalismo não era a solução?

Pois é!! Pelo visto não!! Talvez o Maurício Macri não fosse tão liberal assim!!! Vai saber!!

A verdade é que essa mudança deu “água”, assim como deu muito mais do que “água” o retorno ao poder do kirchnerismo com Alberto Fernandes e Cristina Krisner em 10 de dezembro de 2019.  Os resultados estão ai para que ninguém duvide: inflação argentina de três dígitos ao ano e pobreza em patamares de quase 50% da população.

Aqui também o efeito foi às avessas. Tudo ficou muito pior novamente!!

A manutenção do atual grupo político não apresenta surpresas, já temos uma ideia onde isso vai dar. Mas e a possível vitória de Milei nas eleições?

Para onde vai a Argentina?

Evolução, Inovação e Concorrência no Mercado Financeiro 

Leandro Oliveira Leite

O sistema financeiro é a espinha dorsal de qualquer economia, funcionando como um mecanismo crucial de intermediação entre aqueles com recursos excedentes e aqueles com necessidade de capital. Esse papel fundamental coloca o sistema financeiro no centro do crescimento econômico e da estabilidade. Ao longo do tempo, o sistema financeiro evoluiu e mudanças tecnológicas, institucionais e regulatórias impactaram significativamente a concorrência e a eficiência dos mercados bancários e de pagamentos. 

A Importância da Estabilidade 

O sistema financeiro é um pilar de estabilidade econômica, desempenhando um papel crítico na promoção do crescimento e da eficiência. As relações entre agentes econômicos baseiam-se em transações financeiras, tornando a estabilidade financeira essencial para a segurança das interações econômicas. Nesse contexto, as instituições financeiras, em particular, os bancos comerciais, são tradicionalmente os intermediários financeiros. Eles recebem depósitos, efetuam pagamentos, descontam títulos e fornecem crédito. 

Entretanto, para que o sistema financeiro desempenhe seu papel de financiador do consumo e do investimento, é fundamental que exista segurança para os poupadores, instituições financeiras robustas e espaço para inovações em produtos e serviços. 

O Impacto da Inflação no Sistema Financeiro Brasileiro 

Assim como acontece atualmente com a Argentina, até meados da década de 1990, a economia brasileira viveu um período de inflação crônica, com alta indexação. Este cenário, ao contrário de outros contextos históricos, não levou ao colapso do sistema financeiro brasileiro, mas, surpreendentemente, permitiu que o setor financeiro prosperasse. As instituições financeiras brasileiras demonstraram grande habilidade na implementação de inovações financeiras e na exploração de oportunidades regulatórias. Isso não apenas permitiu que sobrevivessem em um ambiente hostil à atividade econômica, mas também garantiu o crescimento, absorvendo uma parte específica do imposto inflacionário. 

Durante esse período, as atividades financeiras foram sustentadas pelos recursos de trânsito (floating)1 e pelo financiamento do desequilíbrio das contas públicas, com foco em operações de curto prazo. A inflação criou um desequilíbrio na distribuição de renda, favorecendo os segmentos mais organizados e, ao mesmo tempo, permitindo que os bancos sobrevivessem independentemente de sua capacidade de competir. A qualidade dos serviços também não era uma prioridade, uma vez que as receitas dependiam da existência de diferentes indexadores de passivos e ativos. 

O Plano Real e as Mudanças no Sistema Financeiro 

Com a implementação do Plano Real em 1994, a economia brasileira passou por uma mudança significativa. Medidas para estabilização e reestruturação econômica foram adotadas, incluindo maior abertura ao comércio internacional, mudanças na política industrial e redução de subsídios para setores produtivos. Essas iniciativas alteraram radicalmente o cenário em que as instituições financeiras atuavam. A estabilidade da moeda criou condições para a desintermediação financeira, levando a uma redução da participação do sistema financeiro no PIB. 

Essa transição revelou a fragilidade de algumas instituições financeiras brasileiras, que não conseguiram se adaptar ao novo ambiente econômico. As autoridades governamentais, por meio do Banco Central do Brasil (BCB), adotaram medidas de reestruturação, criando programas como o PROER e o PROES2 de saneamento e fusões de bancos, bem como criou-se o Fundo Garantidor de Crédito (FGC) na proteção aos correntistas, poupadores e investidores contra falência ou liquidação de instituições financeiras3

A experiência demonstrou que a presença de bancos estrangeiros no Brasil e a participação acionária do capital externo em instituições financeiras foi benéfica ao sistema financeiro nacional, em especial porque os serviços bancários que prestam ao público têm sido classificados com elevados índices de qualidade. A entrada de capital externo, seja através da constituição de novas instituições ou do reforço de capital das já existentes, contribuiu para preencher uma importante lacuna da economia brasileira, na medida que se apresenta como complemento da disponibilidade interna necessária ao desenvolvimento do País. Outrossim, a presença de capitais externos no sistema financeiro nacional justifica-se pela colaboração que representa ao processo de abertura da economia brasileira no sentido de maior integração do país na economia mundial, com a consequente redução do chamado Risco Brasil4 e maior globalização do setor financeiro. 

A entrada de capitais externos na economia nacional, especialmente no setor bancário, não somente resulta em reforço financeiro para o País, representado pela captação de poupança externa e acréscimo nas reservas internacionais, mas sobretudo, em ganhos econômicos decorrentes da introdução de novas tecnologias de gerenciamento de recursos e inovações de produtos e serviços possibilitando maior eficiência alocativa na economia brasileira. Devido à eficiência operacional e capacidade financeira detida pelos bancos estrangeiros, seu ingresso traz maior concorrência ao sistema, com reflexos positivos nos preços dos serviços e no custo dos recursos oferecidos à sociedade. 

O Papel das Mudanças Tecnológicas 

As mudanças tecnológicas desempenharam um papel crucial na evolução do sistema financeiro. O aprendizado de máquina e o big data5 permitem aprimorar a avaliação de risco, personalizar produtos financeiros e prevenir fraudes. Além disso, a inteligência artificial melhorou o atendimento ao cliente e a análise de dados, tornando os serviços mais eficientes e acessíveis. 

A rápida expansão das fintechs6 está revolucionando o setor, introduzindo novos modelos de negócios e aumentando a competição. Fintechs são ágeis e inovadoras, soluções mais eficientes e inovadoras. No entanto, a entrada de grandes empresas não financeiras nesse mercado exige um acompanhamento atento para garantir a equidade concorrencial. 

Mudanças Regulatórias 

O BCB tem criados incentivos para promover a concorrência, seja com (i) a segmentação regulatória financeira7, (ii) o Sandbox Regulatório8 e (iii) o Laboratório de Inovações Financeiras Tecnológicas (LIFT). Este último tem-se oferecido um ambiente tecnológico controlado para que as empresas testem novas ideias e produtos financeiros. Isso permitiu que novas empresas concorram com os bancos tradicionais e tragam inovação e benefícios para os consumidores. 

Ao mesmo tempo, regulamentações que visam a prevenção de crimes financeiros, como lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, são igualmente importantes. A precisão é encontrar um equilíbrio entre a promoção da inovação e a segurança do sistema financeiro. 

Assim, as mudanças regulatórias desempenharam um papel fundamental na definição do ambiente financeiro. O Open Banking, o Cadastro Positivo e as centrais de informações sobre garantias são exemplos de regulamentações que buscam aumentar a concorrência e melhorar o acesso aos serviços financeiros. 

Conclusão 

A evolução do sistema financeiro brasileiro foi marcada por desafios significativos, incluindo períodos de alta inflação, mudanças macroeconômicas e inovações tecnológicas. Essas mudanças impactaram a concorrência e a eficiência do sistema financeiro, afetando os consumidores e a economia em geral. 

Hoje, o sistema financeiro brasileiro é mais estável e orientado para o consumidor, com entrada de fintechs e novos modelos de negócios. No entanto, a regulamentação continua sendo crucial para garantir a segurança e a concorrência justa no setor. 

Em resumo, as mudanças tecnológicas, institucionais e regulatórias estão remodelando o mercado bancário e de pagamentos. Elas incentivam a concorrência, impulsionam a inovação e melhoram a eficiência dos serviços financeiros, com benefícios para consumidores e empresas.  

REFERÊNCIA: 

– Site do Banco Central do Brasil: Evolução do Sistema Financeiro Nacional 

https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/legado?url=https:%2F%2Fwww.bcb.gov.br%2Fhtms%2Fdeorf%2Fr199812%2Ftexto.asp%3Fidpai%3Drevsfn199812  

Não incidência de honorários sucumbenciais no incidente de desconsideração da personalidade jurídica: alguns aspectos relevantes sobre o tema à luz de recente precedente da 3ª Turma do STJ

André Santa Cruz & Jaylton Lopes Jr.

Com a edição da lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), o Código Civil reforçou ainda mais a autonomia patrimonial das sociedades – e de todas as demais pessoas jurídicas –, ao receber em seu corpo normativo o acréscimo do art. 49-A.

1. Personalidade jurídica e autonomia patrimonial

No âmbito do direito empresarial, a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é sempre destacada como uma importante ferramenta de incentivo ao exercício de atividades econômicas, na medida em que assegura aos empreendedores responsabilidade subsidiária e limitada – esta a depender do tipo societário adotado – pelas obrigações sociais, o que permite um cálculo mais seguro e previsível do risco empresarial.

O Código Civil, na sua redação original, já consagrava a autonomia patrimonial das sociedades em seu art. 1.024, segundo o qual “os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”.

Com a edição da lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), o Código Civil reforçou ainda mais a autonomia patrimonial das sociedades – e de todas as demais pessoas jurídicas –, ao receber em seu corpo normativo o acréscimo do art. 49-A, que assim dispõe em seu caput e no seu parágrafo único:

Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.

Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.

A inserção dessa regra foi de suma importância para deixar claro que o respeito à autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, especialmente as sociedades empresárias, deve ser visto como algo positivo e imprescindível para o bom funcionamento do mercado[1].

2. Abuso de personalidade jurídica e desconsideração dos seus efeitos

A despeito da importância da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, não se pode considerá-la um princípio ou uma regra de natureza absoluta, sob pena de serem chanceladas situações em que a pessoa jurídica é usada, de forma ilegítima, como meio para que seus criadores se esquivem de seus credores, blindando seus ativos contra atos constritivos/expropriatórios.

A fim de evitar esse uso indevido das pessoas jurídicas, principalmente as sociedades, construiu-se há bastante tempo, na doutrina e na jurisprudência, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, fundada na ideia de coibição do abuso de direito.

No ordenamento jurídico brasileiro, a desconsideração da personalidade jurídica teve sua primeira previsão legal em 1990, com a edição da lei 8.078 (Código de Defesa do Consumidor), que foi seguida pela lei 8.884/94 (Lei Antitruste) e pela lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais).

Em 2002, a desconsideração da personalidade jurídica deixou de ser prevista apenas em microssistemas legislativos específicos e passou ter uma regra geral, constante do art. 50 do Código Civil, cujo texto atual, modificado e ampliado pela lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), tem a seguinte redação:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e

III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.

Apesar de o Código Civil ter trazido para o nosso ordenamento jurídico uma norma geral importante sobre a desconsideração da personalidade jurídica, faltava ainda a sua disciplina processual, o que só veio a ocorrer com a edição do Código de Processo Civil de 2015, que em seus arts. 133 a 137 criou um incidente processual específico para tratamento da matéria:

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.

§ 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

§ 1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.

§ 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

§ 3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º.

§ 4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.

Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.

Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.

Sobre essa disciplina procedimental da desconsideração da personalidade jurídica, algumas questões polêmicas já estão sendo debatidas pelo Superior Tribunal de Justiça, e uma delas é justamente a que se refere ao cabimento (ou não) de condenação ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais no referido incidente processual.

3. Honorários advocatícios: causalidade e sucumbência

Nos termos do art. 22 da lei 8.906/94, “a prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência”.

Os honorários de sucumbência são devidos pela parte vencida ao advogado da parte vencedora, nos termos do art. 85 do CPC (“a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”).

Embora o referido artigo tenha se referido a “sentença”, não é a natureza do pronunciamento judicial que definirá o cabimento (ou não) dos honorários sucumbenciais, mas sim o conteúdo da decisão e o tipo de procedimento, de modo que serão fixados honorários sucumbenciais, por exemplo, na decisão interlocutória que resolve parte do mérito (art. 356 do CPC) e na decisão interlocutória que acolhe preliminar de ilegitimidade passiva de um dos litisconsortes (art. 354, parágrafo único do CPC).

A fixação de honorários sucumbenciais decorre de dois princípios: princípio da sucumbência e princípio da causalidade. Pelo primeiro, será condenada a parte que foi derrotada no processo. Pelo segundo, será condenada a parte que deu causa à propositura da ação.

A inter-relação entre esses dois princípios é importante, porque nem sempre o vencido (princípio da sucumbência) será condenado ao pagamento da verba honorária. É o que ocorre, por exemplo, na denunciação da lide quando o denunciado, mesmo sendo derrotado, não tenha se insurgido quanto à denunciação[2]. Nesse caso, o princípio da causalidade se sobrepõe ao princípio da sucumbência.

4. Honorários advocatícios no IDPJ

A 3ª Turma do STJ, em 2020, firmou entendimento no sentido de que no incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) não são devidos honorários advocatícios sucumbenciais. Vejamos a ementa do julgado:

RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DESCABIMENTO. ART. 85, § 1º, DO CPC/2015. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. Não é cabível a condenação em honorários advocatícios em incidente processual, ressalvados os casos excepcionais. Precedentes.

2. Tratando-se de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o descabimento da condenação nos ônus sucumbenciais decorre da ausência de previsão legal excepcional, sendo irrelevante se apurar quem deu causa ou foi sucumbente no julgamento final do incidente.

3. Recurso especial provido.

(REsp 1.845.536/SC, rel. ministra Nancy Andrighi, rel. p/ acórdão ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª turma, julgado em 26.05.20, DJe 09.06.20)

Para a ministra relatora, o não cabimento dos honorários sucumbenciais, no caso julgado, decorreria do fato de que a executada foi quem deu causa à instauração do IDPJ, porque não pagou a dívida e promoveu a dissolução irregular da sociedade (princípio da causalidade). Assim, mesmo tendo sido julgado improcedente o incidente, entendeu-se que a exequente (requerente do incidente) não poderia ser condenada ao pagamento dos honorários sucumbenciais.

Tal fundamento, contudo, não foi o prevalecente. Embora a conclusão dos demais julgadores tenha sido a mesma (não cabimento de honorários sucumbenciais no IDPJ), prevaleceu o fundamento expendido no voto divergente, no sentido de que é dispensável a perquirição acerca do princípio da causalidade ou mesmo da sucumbência, tendo-se em vista a ausência de menção ao IDPJ no rol do artigo 85, caput e § 1º do CPC.

O fundamento do voto vencedor é o que, de fato, melhor se coaduna com a sistemática do atual CPC, o qual se alinhou, em parte, à jurisprudência do STJ firmada ainda na vigência do CPC de 1973.

De início, faz-se necessário estabelecer uma importante distinção entre incidente processual e processo incidente.

No incidente processual, uma nova relação jurídica processual nasce de um processo pendente e nele se acopla, tornando-o mais complexo. Há um único processo, mas com duas ou mais relações jurídicas processuais (relação processual do processo e relação processual do incidente). São exemplos de incidente processual: (a) intervenção de terceiros, incluindo-se o IDPJ (arts. 119 a 138 do CPC); (b) incidente de suspeição ou impedimento do juiz (art. 146 do CPC); e (c) incidente de arguição de inconstitucionalidade (arts. 948 a 950 do CPC).

Já no processo incidente, uma nova relação jurídica processual nasce em razão de um processo pendente, porém não se acopla a ele e também não o torna mais complexo. O processo incidente é autônomo em relação ao processo principal, porém produz efeitos que o atingem. São exemplos: (a) embargos de terceiro (arts. 674 a 681 do CPC); (b) oposição (arts. 682 a 686 do CPC); (c) embargos à execução (arts. 914 a 920 do CPC); e (d) reclamação (arts. 988 a 993 do CPC)[3].

O processo incidente, por ser autônomo, se desenvolve como qualquer outro processo. Seu mérito é julgado por sentença (ex.: embargos de terceiro) ou acórdão (ex.: reclamação)[4]. Logo, haverá condenação da parte vencida ao pagamento dos honorários sucumbenciais, à luz dos princípios da sucumbência e da causalidade (art. 85 do CPC).

A Corte Especial do STJ, no julgamento do EREsp 1.366.014/SP, que ocorreu em 29.03.17 e teve como relator o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, firmou entendimento no sentido de que “a melhor exegese do § 1º do art. 20 do CPC/73 não permite, por ausência de previsão nele contida, a incidência de honorários advocatícios em incidente processual ou recurso”.

Ocorre que o atual CPC, no § 11 do seu art. 85, dispôs que “o tribunal, ao julgar recurso, majorará os honorários fixados anteriormente levando em conta o trabalho adicional realizado em grau recursal, observando, conforme o caso, o disposto nos §§ 2º a 6º, sendo vedado ao tribunal, no cômputo geral da fixação de honorários devidos ao advogado do vencedor, ultrapassar os respectivos limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º para a fase de conhecimento”. Assim, quanto ao não cabimento de honorários sucumbenciais em sede de recursos, o entendimento da Corte Especial do STJ encontra-se superado.

Em contrapartida, no tocante aos incidentes processuais, o legislador – ao que parece, conscientemente – não os contemplou no rol das situações ensejadoras de honorários sucumbenciais. Isso porque, conforme § 1º do art. 85 do atual CPC, “são devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente”. Quisesse o legislador de 2015 admitir a incidência de honorários sucumbenciais no julgamento de incidentes processuais, teria feito previsão expressa no supracitado dispositivo.

O IDPJ tem natureza de incidente processual e seu julgamento se realiza, como regra, por decisão interlocutória (art. 136 do CPC).

Embora o referido incidente tenha mérito próprio (ocorrência ou não de abuso da personalidade), este não se relaciona diretamente com o mérito do processo[5], razão pela qual é equivocado pensar que a decisão interlocutória que resolve o IDPJ equivale a uma decisão parcial de mérito (art. 356 do CPC).

Destarte, a conclusão e o fundamento prevalecente do acórdão proferido pela 3ª turma do STJ no REsp 1.845.536/SC está em consonância com a sistemática atualmente prevista no CPC.

Ademais, não se pode perder de vista que é plenamente possível que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica seja julgado na própria sentença. Isso ocorrerá quando o pedido de desconsideração for requerido na petição inicial (hipótese que dispensa a instauração do incidente – art. 134, § 2º do CPC) ou quando o próprio incidente for decidido na sentença (a sentença julga, ao mesmo tempo, o incidente e o processo). Seja como for, não haverá condenação ao pagamento de honorários sucumbenciais em razão do julgamento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica.

No entanto, julgado recente da 3ª Turma do STJ parece contrariar essa lógica: o REsp 1.925.959/SP. No caso, o juízo de 1°grau não fixou honorários sucumbenciais, alegando serem indevidos “por ser mero incidente”. Dessa decisão foi interposto agravo de instrumento pelo curador especial nomeado para a parte executada, eo TJSP deu provimento ao recurso, arbitrando R$ 1.500,00 a título de honorários advocatícios sucumbenciais.

Interposto recurso especial ao STJ, este rejeitou a pretensão da recorrente, por maioria, para manter a fixação da verba honorária sucumbencial.

Confira-se a ementa do julgado:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. NATUREZA JURÍDICA DE DEMANDA INCIDENTAL. LITIGIOSIDADE. EXISTÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DE SUCUMBÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. FIXAÇÃO. CABIMENTO.

1. O fator determinante para a condenação ao pagamento de honorários advocatícios não pode ser estabelecido a partir de critérios meramente procedimentais, devendo ser observado o êxito obtido pelo advogado mediante o trabalho desenvolvido.

2. O CPC de 2015 superou o dogma da unicidade de julgamento, prevendo expressamente as decisões de resolução parcial do mérito, sendo consequência natural a fixação de honorários de sucumbência.

3. Apesar da denominação utilizada pelo legislador, o procedimento de desconsideração da personalidade jurídico tem natureza jurídica de demanda incidental, com partes, causa de pedir e pedido.

4. O indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo.

5. Recurso especial conhecido e não provido.

(REsp n. 1.925.959/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 22/9/2023.)

O relator para o acórdão, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, destacou em seu voto que, “considerando a efetiva existência de uma pretensão resistida, manifestada contra terceiro(s) que até então não figurava(m) como parte, penso que a improcedência do pedido formulado no incidente, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide – situação que se equipara à sua exclusão quando indicado desde o princípio para integrar a relação processual –, mesmo que sem a ampliação do objeto litigioso, dará ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo, como vem entendendo a doutrina”.

Ademais, o Ministro pontuou que, “em caso de deferimento do pedido de desconsideração (direta ou inversa), […] o eventual sucumbimento destes somente poderá ser aferido ao final, a depender do juízo de procedência ou improcedência da pretensão contra eles direcionada”.

O Ministro Moura Ribeiro, em seu voto-vogal, aduziu o seguinte: “em que pese a decisão de resolução do IDPJ não ter natureza de sentença, nem tampouco estar presente no rol do art. 85, § 1º do CPC, não pode ser ignorado o fato de que a necessidade de pagamento das verbas honorárias decorre da existência de sucumbência de uma das partes, e não da natureza jurídica da decisão”.

Por fim, é importante mencionar que foi citado precedente da Primeira Seção (REsp 1.358.837/SP), de relatoria da Ministra Assusete Magalhães, julgado sob o regime dos recursos repetitivos em 10/3/2021, no qual se fixou a seguinte tese: “observado o princípio da causalidade, é cabível a fixação de honorários advocatícios, em exceção de pré-executividade, quando o sócio é excluído do polo passivo da execução fiscal, que não é extinta”.

Parece, desse modo, que caberá à Segunda Seção resolver a controvérsia, dada a existência de precedentes contrários ao cabimento de honorários advocatícios no incidente de desconsideração da personalidade jurídica na 4ª Turma do STJ[6]. Certamente, a questão será resolvida por meio dos embargos de divergência[7]. Esperamos que isso aconteça o quanto antes, de forma que a insegurança e a incerteza não prevaleçam em uma questão tão relevante como essa.

André Santa Cruz é advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do Centro Universitário IESB, em Brasília, e ex-diretor do DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração. Autor de diversas obras jurídicas na área do Direito Empresarial.

Jaylton Lopes Jr. é ex-Juiz de Direito do TJDFT, e atualmente advogado inscrito na OAB/DF, sócio do escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia. Professor nas áreas de Direito Imobiliário, Direito das Sucessões, Direito de Família e Direito Processual Civil.


[1] “Observe-se que ao Estado interessa essa permissão de formação de entes independentes inconfundíveis com a figura humana, principalmente na sociedade capitalista, entendida essa no sentido preconizado por Max Weber, ou seja, uma sociedade que busca o lucro renovado por meio da empresa permanente, capitalista e racional” (NAHAS, Thereza Christina. Desconsideração da pessoa jurídica. São Paulo: Atlas, 2004. p. 143).

[2] Nesse sentido: REsp 142.796/RS, Rel. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, 3ª turma, julgado em 04.05.04, DJ 07.06.2004, p. 215.

[3] Cf. DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil: parte geral e processo de conhecimento. 17ª edição. Salvador: JusPodivm, 2015, v. 1, p. 476-477.

[4] Impende ressaltar que se houver julgamento parcial de mérito, o pronunciamento judicial não será uma sentença, mas sim uma decisão interlocutória (art. 356 do CPC).

[5] Aliás, todo incidente processual terá um mérito próprio. A título de exemplo, o mérito do incidente de suspeição do juiz é a existência de uma das hipóteses do art. 145 do CPC.

[6] Vejam-se, por todos, AgInt nos EDcl no REsp 2.017.344/SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 20/3/2023, DJe de 23/3/2023 e AgInt no AREsp n. 2.326.010/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 21/8/2023, DJe de 28/8/2023.

[7] CPC

Art. 1.043. É embargável o acórdão de órgão fracionário que:

I – em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo os acórdãos, embargado e paradigma, de mérito;

O Novo Arcabouço Fiscal e o efeito pró-cíclico do Resultado Primário

Elvino de Carvalho Mendonça

Já falamos neste espaço que o Novo Arcabouço Fiscal é uma regra fiscal de teto gastos, assim como o era o indicador criado pela Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016[1], popularmente conhecido por Teto de Gastos.

Também já apresentamos que a nova regra fiscal (Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto de 2023[2]) adiciona à correção das despesas do ano anterior pela inflação (IPCA) o componente de renda real, que acrescenta 70% da variação da receita do ano anterior as despesas se a meta de resultado primário acrescida de uma banda (0,25% do PIB para cima e para baixo) for cumprida e 50% de variação da receita do ano anterior se a meta de resultado primário não for cumprida.

Só não nos debruçamos sobre o que significa cumprir a meta dentro da banda em torno da meta que configura o componente de renda real do Novo Arcabouço Fiscal e o que significa não cumprir a meta.

Comecemos pelo começo!!

A meta de resultado primário como observamos hoje foi instituída pela Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar nº 101/2001) e é apurada a partir da diferença entre as receitas primárias e as despesas primárias da União, Distrito Federal, Estados e Municípios, sendo as primeiras estimadas nos termos do Capítulo III da LRF e as segundas fixadas em conformidade com Capítulo IV da mesma lei.

A experiência de 21 anos de vigência da meta permitiu constatar a existência de dois gatilhos para o seu cumprimento: (i) limitação de empenho e de movimentação financeira ao longo do exercício; e (ii) alteração da própria meta via proposição legislativa de autoria do Poder Executivo.

A limitação de empenho e de movimentação financeira é implementada por meio de Decreto Presidencial[3] sempre que a programação orçamentária e financeira identificar, em relatório consubstanciado (RARDP[4]), que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais[5], conforme previsto no caput do Art. 9º da LRF[6]. Neste caso, em resposta ao realizado das receitas primárias, ajusta-se a despesas primárias de maneira a cumprir a meta estabelecida (frustação na receita implica contingenciamento de despesas e vice-versa).

A alteração da meta de resultado primário, por seu turno, é realizada por meio da publicação de proposição legislativa encaminhada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional.

Bem, a meta de resultado primário foi cumprida em todos os 22 anos. Em 21 desses 22 anos, aponta Barbosa (2022)[7] que a meta foi alterada por proposição legislativa em 8 deles[8], o que perfaz uma probabilidade 55% de se alterar a meta (12/22) para o período completo e uma probabilidade de 50% se considerarmos apenas o período em que o Teto de Gastos vigeu[9].

Não se está aqui a questionar a metodologia de cumprimento da meta e nem as razões pelas quais as metas foram alteradas[10][11], o que se está a mostrar é que o processo orçamentário financeiro envolve uma série de contingências e a fixação de uma meta de resultado primário um ano antes do exercício possui uma elevada probabilidade de não se verificar conforme o planejado.

Bem, planejado ou não o fato é que a meta sempre foi cumprida, e a justificativa estava no fato de que as LDOs e a LRF impunham, até a entrada em vigor do Novo Arcabouço Fiscal, o ajuste das despesas primárias por meio de mecanismo de contingenciamento sempre que houvesse frustração de receita e, em último caso, a formalização de alteração da meta pelo Poder Executivo via proposição legislativa.

Ué!! Isso mudou? Como fica esse processo orçamentário na vigência do Novo Arcabouço Fiscal, uma vez que a Lei que a deu origem prevê que, sob certas condições[12], o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário não resulta em infração à LRF?

Acalmemos os nossos corações!!! O processo orçamentário-financeiro previsto na LRF continua o mesmo. Nada mudou no acompanhamento bimestral das receitas e despesas primárias e o contingenciamento e a solicitação de alteração de meta do resultado primário pelo Poder Executivo continuou como dantes.

O que muda, então?

Duas são as coisas que mudam em relação ao Teto de Gastos: (i) o cumprimento da meta ocorre dentro do intervalo de tolerância; e (ii) há a possibilidade de não cumprimento da meta.

Entender o cumprimento da meta dentro de um intervalo de tolerância é simples, basta imaginar que a meta de resultado primário virou o centro da meta e o intervalo de tolerância virou a banda em que esta meta pode oscilar. Difícil é fazer uma interpretação única se cumprir a meta é atingir o centro da meta ou qualquer ponto dentro do intervalo de tolerância. Mas isso é assunto para outro editorial!!!

Entender o que significa o não cumprimento da meta na nova regra é um pouco mais confuso, pois o não cumprir também tem que ser cumprido, ou seja, segundo a Lei o não cumprimento somente pode acontecer até o limite de 25% das despesas discricionárias. Estando dentro desta condição e da condição de que o agente responsável lançou mão dos instrumentos do processo orçamentário-financeiro apresentados anteriormente, o descumprimento da meta de resultado primário não descumpre a LRF.

Sem esquecer que cumprir o não cumprimento implica restrições para a administração, pode-se afirmar que a criação da banda em torno da meta e a engenharia em torno do cumprimento do não cumprimento da meta, abriu uma margem de manobra considerável para a administração.

Elaboração do autor

No Teto de Gastos (figura 1), a meta sempre tinha que ser cumprida, quer fosse por meio do processo orçamentário-financeiro previsto na LRF quer fosse por alteração da meta via proposição legislativa do Poder Executivo.

No Novo Arcabouço Fiscal (figura 2), no entanto, além de haver a possibilidade do cumprimento da meta dentro de um intervalo de tolerância, abre-se a possibilidade de não cumprimento desta regra fiscal de resultado até um limite para o cumprimento do descumprimento.

Portanto, enquanto no Teto de Gastos não havia possibilidade fora do cumprimento da meta, no Novo Arcabouço Fiscal as despesas primárias serão obtidas tanto cumprindo quanto não cumprindo a meta e ficarão acrescidas de 70% da variação da receita no primeiro caso ou de 50% da variação da receita no segundo caso.

Mas o que isso significa em termos de efeito pró-cíclico da meta de resultado primário?

Vale lembrar que a maior crítica da literatura à medida de resultado primário é que ela é uma medida pró-cíclica, que diz que em tempos de bonança econômica as despesas aumentam e em tempos de recessão elas ficam comprometidas, tendo em vista que há uma queda forte na receita primária.

Com o Novo Arcabouço Fiscal, os períodos de bonança econômica gerarão uma despesa primária superior àquela obtido com o Teto de Gastos, pois sobre a correção da despesa do ano anterior será colocado 70% da variação da receita primária líquida, ao passo que em períodos de recessão a despesa primária corrigida do ano anterior será acrescida de 50% da variação da receita, o que garante uma despesa primária pelo Novo Arcabouço Fiscal superior àquela obtida com o Teto de Gastos.

Há dois pontos importantes: (i) a despesa mais elevada na bonança econômica gera despesa intertemporal; e (ii) o corte nas despesas primárias em períodos de recessão é superior àqueles que seriam realizados se não houvesse o intervalo de tolerância e menos qualificado.

A geração de gastos intertemporais na bonança econômica torna as despesas primárias do ano mais apertadas em períodos de recessão, pois as despesas feitas em anos de bonança ocupam o local das despesas que precisam ser feitas nos períodos de recessão, o que faz com que o efeito pró-cíclico seja potencializado sobre as despesas anuais.

Lembrem-se que incentivos bons e ruins são como paixão e ódio, o que os separa não é nada mais do que uma tênue linha.


[1] Emenda Constitucional nº 95 (planalto.gov.br)

[2] Lcp 200 (planalto.gov.br)

[3] Esses Decretos Presidenciais dispõem sobre a programação orçamentária e financeira do exercício.

[4] Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias – Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (RARDP) – 2022 – 2° Bimestre — Tesouro Transparente

[5] Mensagem nº (planalto.gov.br)

[6] Art. 9oSe verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.

[7] 21 anos de meta de resultado primário | Blog do IBRE (fgv.br)

[8] De acordo com Barbosa (2022), no ano 2001 a meta foi alterada por medida provisória (MP); nos anos de 2007, 2009, 2010 e 2013 a 2017 a meta foi alterada por meio da publicação de Projetos de Lei Complementar (PLC); e nos anos de 2020 a 2021 a meta foi alterada por Projetos de Emenda à Constituição (PEC)

[9] Dos 6 anos de existência do Teto de Gastos, em 3 deles a meta teve que ser alterada por encaminhamento de proposições legislativas pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional

[10]  Borges e Pires (2020) apresentam a evolução histórica do cumprimento da meta de resultado primário no Brasil.

BORGES, Bráulio; PIRES, Manoel. Meta de resultado primário: descanse em paz. Blog do Ibre. FGV. 17 de abril de 2020. Disponível em: Meta de resultado primário: descanse em paz | Blog do IBRE (fgv.br). Acesso em: 01 de outubro de 2023.

[11] É preciso olhar com lupa os anos 2020 a 2022. A pandemia da Covid-19 exigiu decretação de estado de calamidade pública e, com ele, o cumprimento das metas fiscais excepcionadas.

[12] A LCP prevê no art. 7º que o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário não resulta em infração à LRF desde que o agente responsável tenha adotado as medidas de limitação de empenho e pagamento, preservado o nível mínimo de 75% (setenta e cinco por cento) das despesas discricionárias do valor autorizado na lei orçamentária anual, necessárias ao funcionamento regular da administração pública.

Medidas Preventivas no processo administrativo sancionador do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)

Mauro Grinberg

Medidas preventivas fazem parte da lei e são com frequência invocadas no Cade. Todavia, nem a Superintendência Geral (SG) nem o próprio Conselho têm, até o momento, um histórico amplamente encorajador de emissão de medidas preventivas, não obstante a redação clara do art. 84 da Lei 12.599/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC): “Em qualquer fase do inquérito administrativo para apuração de infrações ou do processo administrativo para imposição de sanções por infrações à ordem econômica, poderá o Conselheiro-Relator ou o Superintendente-Geral, por iniciativa própria ou mediante provocação do Procurador-Chefe do Cade, adotar medida preventiva, quando houver início ou fundado receio de que o representado, direta ou indiretamente, cause ou possa causar ao mercado lesão irreparável ou de difícil reparação, ou torne ineficaz o resultado final do processo”.

O Regimento Interno do Cade – que, para o próprio órgão, tem força de lei, segue redação quase idêntica no seu art. 252, com o acréscimo de “legítimo interessado” ao Procurador-Chefe do Cade como capaz de provocar o Conselheiro-Relator e/ou o Superintendente-Geral; a relevância destes empoderados é relativa pois o simples fato da autoridade poder agir de ofício torna qualquer pessoa capacitada para a reclamação.

“Na medida preventiva, determinar-se-á a imediata cessação da prática e será ordenada, quando materialmente possível, a reversão à situação anterior, fixando multa diária, nos termos do art. 39 desta Lei” (LDC, art. 85, § 1º) e “da decisão que adotar medida preventiva caberá recurso voluntário ao Plenário do Tribunal, em 5 (cinco) dias, sem efeito suspensivo” (LDC, art. 85, § 2º).

No cenário internacional, encontramos o texto denominado Interim Measures in Antitrust Investigations, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que traz: “Interim measures are granted by public authorities or courts with a protective and corrective objective, i.e. providing temporary relief pending the outcome of a case. In general, interim measures are only granted in exceptional circumstances. They typically require meeting two key conditions: the likelihood of success on the merits (fumus boni iuris) and the urgency to prevent harm (periculum in mora) (pág. 6).

O mesmo texto sugere algumas hipóteses de aplicação de medidas preventivas: “refusal do supply, exclusive dealing and predatory pricing cases (…) alleged anticompetitive agreements, in particular vertical agreements and decisions of associations of undertakings recommending prices or limiting supply” (pág. 10). Obviamente o texto é apenas exemplificativo.

Embora essas duas expressões latinas – fumus boni iuris e periculum in mora – sempre tenham sido associadas à ideia de medidas cautelares, até mesmo como suas justificativas, nem o Código de Processo Civil de 1973 (CPC 1973) nem o atual Código de Processo Civil (CPC) as estampam.

Estabelecia o CPC 1973, no art. 798 que “(…) poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação”. Já o CPC, após dividir as tutelas provisórias em urgência e evidência (art. 294), dispõe no art. 300: “A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”. Não é preciso muito para concluir que aquelas duas expressões latinas são mais do que atuais.

Sidney Sanches esclarece que, “se houver probabilidade de que a demora inevitável no ajuizamento da ação principal, ou no seu processamento e julgamento, venha a causar prejuízo ao autor da ação cautelar, terá ele preenchido o primeiro requisito: o do periculum in mora. Sobre o fumus boni iuris, “consiste na probabilidade da existência do direito invocado pelo autor da ação cautelar. Direito a ser examinado aprofundadamente, em termos de certeza, apenas no processo principal já existente, ou, então a ser instaurado”[1].

O mesmo autor aponta ainda as características da medida cautelar: “acessoriedade” (“o processo cautelar depende sempre do resultado do processo principal”), “preventividade” (“prevenir a ocorrência de danos”), “sumariedade” (“quanto à própria profundidade da cognição do direito, que nele é superficial”), “provisoriedade” e “instrumentalidade hipotética” (“porque o processo cautelar visa a tutelar o processo principal”)[2].

A medida cautelar é concedida mediante uma instrução sumária (embora sumária, deve ser convincente), muitas vezes apenas com documentos que demonstrem os requisitos, sendo que o perigo na demora muitas vezes é intuitivo e parte de um conhecimento geral da sociedade e da autoridade. Como diz Luiz Guilherme Marinoni, “as tutelas antecipada e cautelar são incompatíveis com o aprofundamento do contraditório e da convicção judicial, uma vez que estes demandam porção de tempo que impede a concessão da tutela de modo urgente”[3]

Assim, é de extrema importância que o Cade, seja através de seus Conselheiros e Conselheiras, seja através de sua Superintendência-Geral, atentem para a importância das medidas preventivas para salvaguarda do próprio direito da concorrência.

Mas há aqui uma diferença fundamental do processo civil. Aplicando-se o § único do art. 1º da LDC (“A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei”), é forçoso concluir que tanto a probabilidade da existência do direito quanto o perigo na demora de sua implementação devem ser relativos a um direito da coletividade e não de uma pessoa individualizada.

Utilizando um dos exemplos fornecidos pela OCDE, podemos imaginar uma medida cautelar contra uma negativa de fornecimento; mas aqui deverá ficar provado que essa negativa exclui um concorrente do mercado a jusante e que essa exclusão afeta o mercado permitindo comportamentos concorrenciais prejudiciais ao mercado. Mais ainda, em determinados mercados existem contratos de fornecimento de longo prazo que regem a programação da produção.

Outro exemplo fornecido pela OCDE é o dos preços predatórios, em que um concorrente com alto poder de mercado baixa seus preços até o nível do prejuízo para eliminar concorrentes. Esta é uma infração pouco tratada, até porque a penalidade seria uma condenação para aumentar os preços, o que parece uma situação bizarra. Mas, ainda assim, uma eventual medida preventiva deveria ser resultante de ameaça ao equilíbrio do mercado.

Contratos de exclusividade – continuando com os exemplos da OCDE – também podem ser objeto de medidas cautelares, sendo que vale aqui o mesmo raciocínio usado no caso da recusa de venda.  

Assim, chegamos à grande diferença entre a tutela de urgência do processo civil e a medida cautelar do direito concorrencial: neste os interesses protegidos são da coletividade e naquele de uma ou mais pessoas específicas, reiterando-se aqui que o art. 84 da LDC fala em lesão ao mercado.


[1] “Poder cautelar geral do Juiz”, RT, São Paulo, 1978, pág. 43

[2] Obra citada, págs. 29/30

[3] “Tutela de urgência e tutela de evidência”, RT, São Paulo, 2016, pág. 130


Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional (aposentado), Mestre em Direito, advogado especializado em Direito Concorrencial, sócio de Grinberg Cordovil.