Fabíola Vianna Morais

Esfera pública, em Habermas, e julgamento virtual nos Tribunais Superiores: a importância da democracia participativa

Fabíola Vianna Morais

A esfera pública para Habermas constitui o âmbito onde os problemas transparecem na pressão social exercida pelo sofrimento que se reflete no espelho de experiências pessoais de vida. É a rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posições e opiniões. É o canal para a legitimidade do Direito, exercendo influência no complexo parlamentar.

               Ressalta-se que estamos num momento pós-pandêmico, embora nunca queiramos recordar essa palavra, tampouco seus acontecimentos, mas por causa da pandemia, nos vemos tomados pelas novas necessidades que ela impôs; ao mesmo tempo temos a necessidade de colocar em ordem tudo que a pandemia desordenou e de certa forma absorver o novo e retomar ao que parece obsoleto, mas não o é, porque foram as circunstâncias que impuseram novas formas de agir e interagir, não fomos nós que escolhemos esse caminho, ele se impôs.

               Os julgamentos virtuais, embora não sejam novidade decorrente da pandemia do Coronavírus, foram por ela alavancados e se tornaram parte do cotidiano do advogado e do sistema de justiça de um modo geral.

               Ocorre que junto da automação processual tem se notado o afastamento de atos essenciais à boa administração da Justiça e principalmente indispensáveis ao asseguramento das garantias processuais constitucionais, que são os elementos que alicerçam a atividade jurisdicional e que legitimam a entrega da tutela jurisdicional. São os casos da proibição de sustentação oral[1], das sustentações orais enviadas por áudio ou vídeo[2] e a ausência de acompanhamento, por parte dos advogados e partes, em tempo real das sessões virtuais[3].

               Estar online, e não fisicamente, em qualquer situação, nos retira muito do poder comunicacional, que demanda interação entre as pessoas muito além da fala. É esse poder comunicacional que permite aos seres humanos o verdadeiro entendimento do emissor e do receptor, muitas vezes com conseqüências para terceiros.

               Por outro lado, no âmbito do sistema de justiça, o seu funcionamento online pode permitir maior celeridade processual na entrega da tutela jurisdicional e maior acesso à Justiça. No entanto, o Código de Processo Civil vigente prima por uma tutela jurisdicional efetiva, de qualidade[4].

               Associa-se ao estado atual, o uso da inteligência artificial, que é uma ferramenta útil, mas também tem poder destrutivo, a depender de como os algoritmos são desenvolvidos pode haver discriminação de todas as ordens. Lembra-se de um caso não muito divulgado, ocorrido na Holanda há cerca de uns dez anos atrás, no âmbito da Administração Fiscal Holandesa, em que diversas pessoas foram penalizadas por mera suspeita de fraude com base nos indicadores de risco do sistema de algoritmos que traçavam perfis de risco de contribuintes baseados em dupla nacionalidade ou baixa renda[5]. Esse fato causou irreparáveis à vida e dignidade dos contribuintes, levou o governo holandês a alterar os algoritmos e representou uma situação paradigmática para a Comissão Europeia, que estabeleceu os requisitos essenciais para a aplicação da inteligência artificial, nomeadamente que as máquinas têm que ter intervenção humana, que o uso dos algoritmos deve ser transparente, a não discriminação de dados inseridos na inteligência artificial e a responsabilização dos danos relativos à utilização da inteligência artificial[6].

               Mas tudo isso que venho dizer é para afirmar a importância da presença física das pessoas nas relações que estabelecem. Em se tratando da relação com o Estado, em que se está, nomeadamente nos Tribunais, na posição de jurisdicionado, mas antes, de uma pessoa que é anterior ao Estado e à sociedade, e que é a razão de existir do Estado e a quem o Estado serve, como a todas as demais pessoas, no sentido de que o Estado desempenha as funções que as pessoas lhe atribuem através do exercício democrático.

              E quando se chega a essa conclusão, lembra-se também que toda pessoa é digna, ou seja, é dotada de valores que se impõem ao Estado. E a dignidade da pessoa é o fundamento do Estado e do Direito, e é isso que nos diz a nossa Constituição da República logo no seu art. 1º e também o Código de Processo Civil no seu art. 8º [7].

              Em outras palavras, por mais que se queira garantir a celeridade processual, é preciso antes garantir a tutela jurisdicional de qualidade e mais ainda a dignidade da pessoa humana, no caso, do jurisdicionado. E isso fica bastante prejudicado quando não se estabelece o processo comunicacional que iniciei acima. O processo comunicacional visa também à estabilidade social e à solução de litígios, uma vez que permite o debate, que as vozes das pessoas, dos cidadãos, sejam ouvidas.

               É o que preconiza Habermas através da sua teoria da razão comunicativa, na qual a racionalidade se estabelece por meio de um procedimento discursivo, argumentativo, através do debate entre os argumentos que vão servir de alicerce para as estruturas normativas. É essa atividade dialogal que garante a legitimidade das normas, uma vez que advindas do exercício democrático da liberdade de expressão e manifestação no sentido de determinar os rumos do Estado Democrático.

               Desta forma é que os concernidos participam das decisões políticas, sendo responsáveis pela direção da coisa pública, cujo escopo é o aprimoramento do regime democrático e de cada um como pessoa e cidadão inerente e indispensável ao processo democrático.

               Habermas afasta a visão exclusivamente representativa da democracia para agregar a ideia de uma democracia participativa no sentido de se estabelecer uma esfera pública onde os debates a respeito das decisões políticas e normativas ocorram entre todos os concernidos. Com isso, afasta qualquer teoria de auto-reprodução do ordenamento jurídico, que incentiva uma administração burocratizante e automatizadora do Direito.

               Diante de todos os desafios que se apresentam, nomeadamente num cenário pós-pandêmico e em que a inteligência artificial avança, não existe solução mágica para superar as dificuldades que enfrentamos como jurisdicionados ou como advogados, mas certamente todos os impasses que se apresentam no novo modo de atuar nos Tribunais Superiores demandam uma participação efetiva por parte de todos os concernidos na elaboração das normas que conduzem esse novo modo de atuar nos Tribunais Superiores como verdadeiro exercício da democracia.


[1] Veja-se a manifestação da OAB Nacional a respeito do Regimento Interno do STF e o Estatuto da OAB, o CPC e a CRFB: Regimento Interno do STF não se sobrepõe a direito constitucional, diz OAB, de 9/11/2023.

[2] Ao exemplo do art. 184-B, 1º, do Regimento Interno do STJ.

[3] Embora o Regimento Interno do STJ preveja no seu art. 184-B, caput, que as sessões virtuais devem estar disponíveis para acesso às partes e aos seus advogados, o que se vê são apenas os votos dos Ministros que lá são dispostos, mas não o julgamento em tempo real.

[4] Art. 4º, in fine e art. 6º, in fine, todos do Código de Processo Civil.

[5] HEIKKLÃ, Melissa. Escândalo holandês serve de alerta para a Europa sobre riscos do uso de algoritmos.POLITICO, de 29/3/2022.

[6] Carta Europeia de Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial em Sistemas Judiciais e seu ambiente

adotada pela CEPEJ na sua 31.ª reunião plenária, Estrasburgo, 3 e 4 de dezembro de 2018.

[7] Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.


Fabíola Vianna Morais. Advogada. Doutora em Direito no Programa de Pós-graduação em Direitos, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense, na linha de pesquisa sobre o Saneamento Básico. Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra.