Sociedade digital brasileira

Adriana da Costa Fernandes

Do que se fala ultimamente no mundo, especialmente desde a Pandemia, é de um tempo de maior abertura a mudanças e da quebra de profundos paradigmas.

A sociedade brasileira vem enfrentando novamente um momento de ruptura de padrões comportamentais e, sem que sequer se perceba muito claramente, cabe a todos uma reflexão cautelosa agora acerca de, afinal, que legado este “grupamento geracional momentâneo” (se é que entendem, essa “galera do aqui e agora”) pretende deixar para as gerações que virão a seguir.

             É importante que se entenda que o tempo de agir sem se importar tanto assim com a consequência dos atos (o amanhã eu vejo isso) e sem a compreensão exata dos efeitos (eu não quero pensar nisso), mais do que ficou para trás. Já não é aceitável.

             Seja isto em razão da extrema agilidade do transcurso das informações nos meios de comunicação atuais, seja pelo impacto cada vez mais imediato das ações no seu entorno, na vida prática e socialmente. Tudo e todos estamos conectados, o tempo todo. Efeito dominó.

             Entretanto, lamenta-se ora o recado, mas o planeta está doente.

             E, neste contexto, o homem, grande ator no palco da vida, está em profunda agonia, porém, anestesiado, vivendo desventuras em série.

             Entretanto, note que não se pode considerar apenas um homem usual, mediano, e que vive nas Capitais como Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e lá vai. Isso só demonstra que, ainda, que não se perceba, a divisão, a qual já é conhecida e abrupta no campo político, está também igualmente presente em praticamente todos os outros campos, como no cultural, educacional, religioso, financeiro, familiar e, até mesmo, no emocional coletivo hoje.

             Todos no mesmo barco, porém, divididos. Separados por cores. Guerreando tecnologicamente. Mas, ainda assim, ansiosamente em busca de alguma ressignificação.

             Neste dilema, algumas palavras e atos simplesmente modificam completamente rotas e vidas de pessoas que vinham seguindo, até então, em um dado sentido. Tantos considerando dadas cores durante toda uma vida e passando, de uma hora para outra, simplesmente, a se sentirem órfãos entre patéticos antagonismos que não fazem sequer o menor sentido.

             São grupos inteiros, tantos uns de alta capacidade, sapiência e envergadura e que passaram completamente a carecer urgentemente de outros tipos de significado diários e de existência nos campos da vida. Outros que, lamentavelmente, apenas seguem e com nada disto se preocupam. Apenas são usados enquanto meros factoides de massa, descartáveis a partir da próxima estação.

             Num retrato mais apurado, das nuances, lá estão os mais velhos que se sentem usados, se ressentem de nada entenderem e de nada reconhecerem acerca do que viveram logo ali atrás.

             Também estão os bem mais novos. Tantos deles já tentando sobreviver, ajudar as famílias e outros apenas se mantendo alijados de tanto e de tudo. Vivendo em ilhas digitais e de grupo muito próprias, com o intuito de se protegerem ou, apenas, não se aborrecerem.

             E no meio, ah, no meio, os mariscos. Apanhando fortemente, entre o mar e o rochedo. De lá, de cá, lá vamos nós. Segura a força aí, Yemanjá!

             Que se saiba, o país se transforma mais e mais como a Índia e suas castas.

             A crise de saneamento básico e de segurança só se agravam.

             E a sociedade segue separada cada vez menos sutilmente por regras de conduta, postura, convivência, moradia e a velha norma implícita do tempo de Carlota Joaquina do “Quem conhece quem”. Se já era assim antes, agora ainda mais.

             O grupo nega e veta Maria.

             Dizem que ela é ótima, mas tem a pele meio assim ou assado.

             – Ih, isso é crime! É racismo.

             – “Tá”, mas, não é por isso.

             Ela mora lá e aqui não pode frequentar. É competente ao extremo, mas estudou acolá e aqui não pode trabalhar. Se veste assim, pensa de tal forma e tem a ousadia de dizer o que pensa.

             – Ah, ih! É mulher ainda por cima.

             Banca o seu corpo, resolveu ser mais gordinha, tem tatuagem, usa piercing, óculos grande e estranho, cabelo curto, às vezes longo, cacheado, ruivo, com mecha, não importa.

             O que importa, mesmo, é criticar e dizer que ela é “ousada, folgada e abusada”, não é mesmo?

             Afinal ela é mesmo diferente de nós e não se quer lidar com isso.

             – Sai para lá, Maria, sua louca, bipolar, doente.

             Afinal, o que é mesmo isso? Eu que nem sei… Do jeito que nem sei tantas coisas.

             O Brasil continua sendo patriarcal, pouquíssimo plural, (cada um no seu grupo é mais legal), assumindo um rumo digital estranho (ô), insensível com os idosos e deixando que se desgaste um de seus maiores e melhores sistemas legais, o Consumerista, justamente por questões de Cibercrime. Segue adotando tantas vezes, estranhamente, julgamentos jurisdicionais questionáveis, por serem até suaves na proteção do que se aqui debate e por estabelecer regras internas confusas, às vezes até opostas, em alguns campos.

             Isto tudo simplesmente porque os brasileiros, de uma forma geral, perdidos no meio deste mundo B.A.N.I. (frágil, ansioso, não linear e não compreensível) estão, mais do que nunca, confusos e precisando, francamente, de um grande basta social e digital.

             Uma sociedade convulsionada apresenta uma profusão de assuntos diários a serem debatidos e todos acabam por desaguar no mesmo lugar: no quanto os recursos tecnológicos estão sendo mal utilizados pela maioria.

             E assim, quem tem a possibilidade de bem explorá-los, ainda acaba por pouco esclarecer a quem não conhece nada ou quase nada. Isso ao invés de compreender que ganha mais se a sociedade como um todo alavancar. Afinal, essa é a responsabilidade dos grandes. Fazer com que os pequenos compreendam realmente que precisam destes novos recursos para melhorar sua vida, sua lógica, seu bem-estar.

             Não dá para ninguém mais ficar sentado esperando que um idoso, alguém com pouco recurso financeiro ou quem nada compreende do que se trata, bata na porta e peça suporte. A “responsa” é coletiva.

             As políticas públicas, as parcerias público-privadas, a iniciativa empresarial independente, sejam do tamanho que forem, devem fazer isso, ir ao encontro do outro, seja este outro, especialmente o mais frágil. E buscar o interlocutor, comunicar, publicizar. Esta é a lógica, inclusive, do novo Decreto de Cibersegurança Federal.

             Isto dito e posto, Brasil, que se aja, que se inicie, de fato, esta tarefa de todos nós (Bora?)

             Que caminhemos juntos, coletivamente. Ainda que por meio de pequenos e singelos passos em nosso mais simples cotidiano.

             Adelante, caminhantes!

As contratações anticompetitivas das agências de publicidade

Fernando de Magalhães Furlan

Ao longo dos anos, tem sido prática comercial reiterada das agências de publicidade o desvirtuamento da competição por projetos de produção audiovisual (filmes publicitários), dentro de campanhas publicitárias, ao oferecerem tais serviços por meio de produtoras próprias, relacionadas ou parceiras, utilizando informações privilegiadas.

Além disso, o mercado de serviços de publicidade é altamente concentrado no Brasil, denotando posição dominante da parte de meia dúzia de mega agências, que, utilizando a sua influência econômica, desviam projetos de produção audiovisual para produtoras parceiras, fechando assim o mercado para as produtoras independentes.

Tal conduta das agências pode, potencialmente, caracterizar o chamado tying (venda casada, isto é, condicionar a venda de produto/serviço à aquisição de outro) ou o bundling (estratégia de venda de vários produtos ou serviços em conjunto, com supostos benefícios de aquisição para o cliente, em termos de preço e/ou funcionalidade)[1]. Além disso, essa atitude das agências de publicidade denota comportamento antiético[2], além de contrário à ordem econômica e à livre concorrência.

Além do tying (venda casa) e bundling[3] (venda em pacote), que se caracterizam por condutas unilaterais, o comportamento das grandes agências de publicidade também pode configurar condutas concertadas como o bid-rigging
(licitação fraudulenta) e a fixação de preços[4].

Aliás, a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça (DoJ) dos Estados Unidos da América investigou, durante os anos de 2016 e 2018, as agências de publicidade daquele país sobre o uso de unidades de produção internas para a manipulação de licitações e fixação de preços, chamando a atenção para práticas há muito reclamadas por produtoras independentes e estúdios de efeitos/produções visuais.

O DoJ investigou se as agências de publicidade distorcem o processo de licitação privada, utilizando informação privilegiada[5], em favor de suas próprias unidades de produção interna, forçando empresas independentes de produção e pós-produção a aumentar os seus preços e, consequentemente, perder a competição/licitação privada.

Nos Estados Unidos, aliás, a questão das unidades de produção interna e as práticas anticompetitivas é algo que a Associação de Editores de Criação Independentes – AICE (Association of Independent Creative Editors), por exemplo, vem trabalhando há algum tempo. Em 2014, a AICE emitiu uma declaração oficial destacando as preocupações com questões de transparência, neutralidade e a prática de “verificar licitações”, isto é, “convidar empresas independentes a fazer propostas irrealistas, um processo que pode custar a essas empresas milhares de dólares de uma só vez, simplesmente para fazer aumentar os números em um campo que eles não podem ganhar[6].

A investigação esteve focada no mercado estadunidense, mas também chamou a atenção para a tensão mais ampla entre unidades de produção internas e fornecedores independentes em mercados ao redor do mundo.

Em Londres, a Associação dos Produtores de Publicidade (Advertising Producers’ Association – APA) respondeu à revelação com um memorando aos seus membros. A declaração diz que a APA defende que seus membros não façam licitações (processos seletivos) contra produtoras independentes e que os clientes sejam mais questionadores, exigindo transparência.

A investigação do DoJ, ou de qualquer outra autoridade antitruste, deve também se concentrar em averiguar se o dinheiro dos clientes (anunciantes) está sendo efetivamente gasto da maneira a mais robusta e rigorosa possível, com os melhores talentos disponíveis, a fim de entregar o melhor resultado; ou se, ao contrário, é mera solução conveniente, para suportar um fluxo previsível e confortável de receita para as agências.

A questão, portanto, vai além da manipulação de licitações privadas para o fornecimento de serviços de audiovisual, por exemplo, favorecendo produtoras internas/associadas das próprias agências de publicidade. Pois, ao cortarem o orçamento automaticamente, as unidades de produção internas das agências não estão dando aos clientes acesso aos melhores talentos e maior valor ao seu dinheiro. Pelo contrário, estão se apropriando de um bem-estar que deveria ser do anunciante/cliente (consumidor).

Apesar de a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos Estados Unidos haver arquivado/encerrado a investigação[7] de 2 anos sobre possível fraude a licitações e fixação de preços, de parte das agências de publicidade, para favorecerem unidades de produção internas, merece ser ressaltado que permanece em aberto investigação do Federal Bureau of Investigation – FBI sobre transparência entre anunciantes e agências de compra de mídia[8].

Em 10 de outubro de 2018, a Associação de Anunciantes Nacionais (ANA) notificou os seus membros de que o FBI lhe havia solicitado que informasse a seus membros sobre a investigação e pedisse que cooperassem, caso eles acreditassem que pudessem ter sido fraudados por suas agências de publicidade. Assim, o tema continua sob investigação, agora criminal, por parte das autoridades estadunidenses.

Além disso, o enforcement das autoridades antitruste estadunidenses, em relação ao setor publicidade, continua firme. Recentemente, em abril de 2022, a Comissão Federal de Comércio (Federal Trade Commission – FTC) e a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos EUA (DoJ) realizaram outra fase de sua “turnê de audição” (listening tour), com foco na indústria de mídia e entretenimento. Como nos fóruns anteriores, a FTC e o DOJ promoveram a discussão para permitir que participantes menores do mercado – como artistas, criadores de conteúdo, jornalistas e o público em geral – expressassem as suas opiniões sobre os efeitos da consolidação na indústria de mídia e entretenimento.

A presidente da FTC, Lina Khan, abriu o fórum destacando as mudanças significativas do mercado na indústria de mídia e entretenimento na última década. Kahn observou uma quantidade significativa de consolidação vertical entre empresas nos últimos anos e expressou preocupação de que, atualmente, apenas um punhado de empresas controla a maior parte da cadeia de suprimentos de entretenimento.

Essas mudanças levaram a uma preocupação semelhante por parte dos observadores e estudiosos da indústria da publicidade, de que essas entidades integradas exerceriam o seu poder de mercado contra criadores de conteúdo e limitariam a diversidade de conteúdo que chegaria aos consumidores. Em suma, Kahn alertou que a consolidação descontrolada na indústria de mídia e entretenimento pode permitir “poder descomunal sobre como a informação é distribuída” afetando, em suas palavras, o “sangue vital” da democracia.

Ao que se vê, a FTC e o DOJ estão perfeitamente sintonizados em relação ao impacto da consolidação na indústria de mídia e entretenimento nas condições econômicas[9].

Vejamos, por exemplo a “Nota de Esclarecimento”[10] da Associação dos Produtores Comerciais Independentes – AICP, dos Estados Unidos da América, sobre a operação de unidades de produção e pós-produção internas de muitas holdings e agências de publicidade, que geralmente são listadas sob nomes não relacionados. A AICP criou uma lista de unidades internas de agências conhecidas para referência de suas associadas e as aconselha a verificar a lista ao considerar uma solicitação de licitação de uma agência para determinar se está licitando contra uma empresa independente ou uma agência e/ou entidade pertencente a uma holding.

No Brasil,por meio da Nota Técnica nº 11/2016/CGAA4/SGA1/SG/CADE, no Processo Administrativo nº 08012.008602/2005-09, a Superintendência Geral do CADE assim se manifestou, em sua “Avaliação final” dos efeitos anticompetitivos (item 2.1.10.4) sobre conduta concertada e fixação de preços da parte das agências de publicidade e do Conselho Executivo de Normas-Padrão (CENP):

Parágrafo 461. Foram analisadas também as condutas de fixação de porcentagem uniforme da comissão de veiculação, o desconto padrão de agência, e de fixação de limites para o repasse de parte do desconto padrão de agência aos anunciantes. Concluiu-se que as condutas também são potencialmente anticompetitivas, já que excluem a possibilidade de concorrência por preços entre as agências, induzindo à uniformização de práticas comerciais e vedando ao consumidor dos serviços publicitários a possibilidade de optar por veicular publicidade com preços mais baixos”.

O próprio Conselho Executivo das Normas-Padrão (CENP), isto é, o fórum de autorregulação do mercado publicitário no Brasil, assim se posicionou, por meio da Comunicação Normativa No. 016, de setembro de 2010, sobre a Certificação de Agências de Publicidade, em seu artigo 6º:

O CENP não certificará, por considerar atividades incompatíveis com as de Agência de Publicidade, as pessoas jurídicas que tenham em seu contrato social, ou não o tendo, comprovadamente, exerçam atividades de comércio de qualquer natureza, representação de Veículos de Comunicação, locação de espaço publicitário, produção de audiovisual ou material gráfico, comércio de brindes, editoração, pesquisa de mercado, pesquisa de opinião, consultoria empresarial, marketing político, licenciamento de marcas e patentes, captação de recursos, impressão gráfica, desenvolvimento de sistemas, cursos, palestras, treinamento, montagem de feiras e estandes, locação de mão de obra e tudo o que se relacionar a atividade de indústria e comércio de bens e serviços;” (grifos).

Ou seja, o próprio ente autorregulador dos serviços publicitários no país considera a produção audiovisual incompatível com as atividades de uma agência de publicidade. Isto é a produção audiovisual deve, obrigatoriamente, ser terceirizada/subcontratada por empresa independente, não relacionada à agência.

Ao agir de outra maneira, as agências de publicidade no país estão potencialmente praticando condutas ilícitas, nefastas à concorrência, fazendo incidir as hipóteses previstas no art. 36, caput, da Lei 12.529/11, seus incisos, parágrafos e alíneas, conforme abaixo:

– Limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; e

– Exercer de forma abusiva posição dominante.

Além disso, podem configurar as seguintes hipóteses previstas no § 3º do artigo 36, da LDC, sem prejuízo de outras:

I – acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma:

  1. os preços de bens ou serviços ofertados individualmente;

b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços;

c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos;

d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação (…);

II – Promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes;

III – limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;

IV – criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;

V – impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;

VIII – Regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar (…) a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição;

X – discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços; e XVIII – subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem.


[1] “A consensus has emerged that a necessary condition for anticompetitive harm arising from allegedly exclusionary agreements is that the contracts foreclose rivals from a share of distribution sufficient to achieve minimum efficient scale (“MES”). This foreclosure concern is inextricably intertwined with the RRC paradigm and is applied by courts and agencies in cases involving allegedly exclusionary agreements of all kinds, including exclusive dealings, market share discounts, shelf space share agreements, category management arrangements, refusals to deal, tying, and bundling (…)”. RRC theories require an analytical link to be established between the allegedly exclusionary agreement and the MES of production. Joshua D. Wright, Moving Beyond Naïve Foreclosure Analysis, 19 GEO. MASON L. REV. 1163, 1163–64 (2012).

[2] CENP – Fórum de Autorregulação do Mercado Publicitário. Comunicação Normativa No. 016 (set/2010). Certificação de Agências de Publicidade (Objeto Social):  (…) “Art. 6º – O CENP não certificará, por considerar atividades incompatíveis com as de Agência de Publicidade, as pessoas jurídicas que tenham em seu contrato social, ou não o tendo, comprovadamente, exerçam atividades de comércio de qualquer natureza, representação de Veículos de Comunicação, locação de espaço publicitário, produção de audiovisual ou material gráfico, comércio de brindes, editoração, pesquisa de mercado, pesquisa de opinião, consultoria empresarial, marketing político, licenciamento de marcas e patentes, captação de recursos, impressão gráfica, desenvolvimento de sistemas, cursos, palestras, treinamento, montagem de feiras e estandes, locação de mão de obra e tudo o que se relacionar a atividade de indústria e comércio de bens e serviços; (…)”. (Grifos).

[3] Venda de diferentes itens (bens ou serviços) em conjunto, como um pacote.

[4] WRIGHT, Joshua – Simple but Wrong or Complex but More Accurate? The Case for an Exclusive Dealing-Based Approach to Evaluating Loyalty Discounts. Bates White 10th Annual Antitrust Conference. Washington, DC 3 June 2013 -https://www.ftc.gov/sites/default/files/documents/public_statements/simple-wrong-or-complex-moreaccurate-case-exclusive-dealing-based-approach-evaluating-loyalty/130603bateswhite.pdf “Improving foreclosure analysis to align more closely with the raising rivals’ cost framework and thereby to focus more intensely upon the ultimate competitive effects of the contracts at issue would significantly improve the existing legal framework. For example, I have suggested elsewhere that measuring the foreclosure attributable to the defendant’s conduct in loyalty discount cases – and all cases alleging contracts create market power via the raising rivals’ cost mechanism – should require a “counterfactual” analysis of the degree of foreclosure without the contracts in question”.

[5] Limites orçamentários do cliente contratante dos serviços, interesses estratégicos dos clientes etc.

[6] Disponível em: https://www.lbbonline.com/news/us-probe-into-agency-in-house-production-bid-rigging-sends-shockwaves-round-industry. Acesso em: 31/07/2023.

[7] Disponível em: https://www.clubedecriacao.com.br/ultimas/departamento-de-justica-dos-eua/. Acesso em: 10/07/2023.

[8] Disponível em: https://www.adotat.com/2018/11/fbi-initiates-media-buy-fraud-investigation/. Acesso em: 10/07/2023.

[9] Disponível em: https://www.hklaw.com/en/insights/publications/2022/05/media-and-entertainment-industry-gets-a-turn-in-doj-ftc-antitrust. Acesso em: 31/07/2023.

[10] Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.aicp.com/assets/editor/Agency_InHouse_List_Final_March2018.pdf. Acesso em: 31/07/2023.

Signos linguísticos – o direito conceitual e direito comparado

Fabio Luiz Gomes

1.Signo Linguístico

O significado das palavras é um fato linguístico[1], ou seja, um fato semiótico, dessa forma não há significado sem signo, portanto, o signo é pressuposto de algum significado.

O significado de um signo não é mais que sua tradução para outro signo que lhe pode ser substituída e o torne inteligível.

 Segundo Santo Agostinho: “…que o nome significa a si mesmo junto com os outros nomes que significa..”[2], e conclui:

“Chegamos, portanto, àqueles sinais que significam a si mesmos e, com inteira reciprocidade, um significa o outro, ou seja, os seus significados reciprocamente se significam, de forma que o que este significa também aquele significa e vice-versa, diferenciando-se entre si apenas pelo som…”

Esse signo representa uma proposição de uma situação possível, uma representação de um pensamento, uma relação projetiva com o mundo.[3] Assim, essa proposição é articulada, exprimem fatos, uma expressão[4], deve estabelecer de forma lógica a realidade.

Observa-se que a semiótica estabelece o estudo de teias de significados,  uma análise profunda da compreensão de diversos fenômenos comunicativos e das diversas formas de linguagem.

Portanto, a semiótica serve de orientação científica ao estudar a noção de signo, análise das relações sociais, tipos de discurso (epistemologia, antropologia etc), poética, estética nas artes, imagens naturais ou imaginárias.

Quando o destinatário do signo for um ser humano vai solicitar uma atividade interpretativa deste.[5]

Todo esse processo exige a existência de um código, consistindo o mesmo em um sistema de significação[6], neste sentido estabelece-se um nexo de causalidade entre o que representa e o representado.

A comunicação entre seres humanos, seja biológica ou artificial sempre terá como pressuposto uma significação própria pré-determinada, portanto, os signos como marco de uma vida social.

Uma investigação crítica dos processos de criação dos signos e seus significados estabelecem o elemento constitutivo nuclear da criação humana no mundo, atribuindo dinamismo a estruturar as experiências humanas e interação destes com o seu ambiente em cadeias neurais subjacentes entre si, ou em processo criativo transcendente.

Esse processo de transformação e interação comunicativa se rearticula constantemente a percepção conceitual do discurso, da ética, da ideologia, o humano ou não humano, o natural ou criado pelo homem.

Desde as formas mais rudimentares da relação do homem com o objeto e do homem com o homem, a formação dos signos somente se desenvolveu na medida em que essa interação foi transmitida para si mesmo ou compartilhada com os outros.

Um aperfeiçoamento progressivo dos signos, se preservada toda cadeia,  expansivo e sujeito a outros significados na medida em que essa cadeia cria outros braços, seja interno (dentro de si mesmo) ou compartilhado com outras pessoas.

O corte histórico no desenvolvimento humano expõe isso: a idade da pedra lascada, essa pedra poderia ser usada como meio de abrir frutos, ou cortar carnes, ou mesmo como arma, mas esse conhecimento fora transmitido e assim foi se desenvolvendo uma cultura.

Destarte, poderíamos analisar a descoberta do fogo, a idade do bronze, ou mais recentemente as descobertas espaciais.

Os conhecimentos de significados vão se agregando e esquadrinhado suas associações e composições racionais.

Obviamente não poderia se dissociar a forma com que se desenvolveu essa cultura dos fatores externos, como o clima, a geografia etc.[7]

As relações do homem-ambiente compõe comportamentos e aprimoramentos de signos decorrentes dessa interação, p. ex., noção do que seja frio ou calor de acordo com o lugar em análise.

Uma vez extraído o objeto, este deve ser analisado tanto no nível social, mas também no nível funcional, desempenhando uma função significante.[8]

Vale também constatar que o estudo da semiótica poderá esbarrar no princípio da indeterminação, afinal, estabelecer significados e comunicar-se são funções sociais, contudo, o enfoque semiótico do intérprete de estabelecer o limite, isto é, focar no que a situação permite, portanto, a busca investigativa de ser uma interpretação crítica daquele objeto.

Observa-se, portanto, que a amplitude da comunicação busca intrinsecamente sua base em um sistema de significação.

2. Semiótica e as normas jurídicas

Numa interpretação semiótica[9] deve ser levada em consideração a figura do leitor por constituir a busca da “intentio operis”, isto é, daquele destinatário da norma.

As normas jurídicas estabelecem padrões de comportamento atribuindo-lhes valor, onde esses comportamentos são qualificados como obrigatórios ou permitidos. Dessa forma, aos destinatários da norma são exigidos observância, pois a linguagem inclui-se entre as instituições humanas resultantes da vida em sociedade.

Observa-se, portanto, que os sistemas jurídicos utilizam uma linguagem constitutiva ou mesmo declaratória comportamental.

Além disso, esses comportamentos intersubjetivos estabelecidos nessas normas aqui consideradas não podem prescindir da ética nem da moral.[10]

Neste sentido, os estudos da semiótica estabelecida em normas jurídicas permitem a adequação dessas normas ao princípio da confiança para os destinatários desta norma jurídica.

3. Semiótica dos conceitos jurídicos, direito comparado e a dignidade da pessoa humana

Os conceitos estabelecidos em normas jurídicas devem ter como fundamento o princípio da adequação à realidade[11] – o caráter dimensional dessa norma, e, ainda, estar de acordo (familiarizado) com a sociedade a que se destina.

Dessa forma, a interpretação de qualquer norma jurídica encontra muitas dificuldades na definição dos conceitos jurídicos.

Agrava-se a situação se considerarmos que o intérprete produz decisões individuais.

Os conceitos de signo utilizados pelo direito privado podem servir como diretriz de aproximação das normas jurídicas, pois além da tradição – origem romana, estar-se-ia mais próximo da realidade do intérprete e, portanto, mais adequado.

Esses conceitos podem ser, portanto, um ponto de partida de um interprete que pretenda analisar sistemas jurídicos.

Afinal, se assim não o fizer, as variáveis restariam indetermináveis quanto mais distantes daquele a quem se destina essa norma, isto é, o receptor dessa norma.

Por essa razão, o interprete deve estabelecer um limite cognitivo interpretativo, com isso esse parâmetro fixaria um campo de gravitacional que permitiria a interpretação racional.

Os conceitos jurídicos, sejam eles mais abstratos ou concretos, devem ser fixados o nexo causal entre a emissão e a recepção, de modo a identificar na cartela de significados qual a interpretação deve ser utilizada.

Ressaltando que o trabalho do intérprete torna-se quanto mais difícil se a norma for mais abstrata, portanto, os fatores externos a própria norma irá permitir a sua interpretação, isto é, as delimitações sociais (cultural, religiosa, política etc).

Nos países ocidentais, a cultura espelhada pelo Império Romano veio a consolidar diversos conceitos consubstanciados no direito privado, esses conceitos formaram signos perfeitamente inteligíveis pelo receptor da norma, p. ex., contratos de compra e venda.

Esses conceitos muitas vezes chegam a integrar o plano constitucional, que por vezes fala em propriedade, liberdade etc.

Portanto, se os signos em análise fizerem parte de Estados ocidentais esses conceitos herdados do Império Romano acabam por permitir um estudo com maior precisão.

Contudo, ainda que se considerem diversos princípios universais, a mesma norma poderá espelhar perspectivas com maior ou menor amplitude, dependendo dos fatores externos às normas, os signos possuíram significados diferentes.

Diante disso, o direito internacional poderá exercer um papel primordial no desenvolvimento humano, na medida em que puder aproximar esses conceitos entre os povos, e, na medida do possível aproximar ou harmonizar.

 Lembrando que por mais próximos que estejam, os aspectos culturais sempre influenciarão na forma que se interpretam as normas, por conseguinte os signos.

Portanto, o estudo dos conceitos jurídicos entre os povos envolve sempre o direito comparado e a interpretação semiótica torna-se um elemento essencial para uma comparação mais precisa.

Observa-se que uma comparação meramente formal das normas entre os povos perde o elemento essencial substantivo que subjaz qualquer comparação.

O resultado interpretativo semiológico pode servir de substância primordial para uma maior precisão normativa.

Dentro dessa perspectiva, as normas jurídicas devem buscar com justificativa e fundamento o próprio homem como resultado indissociável de formatação do conhecimento jurídico.

Portanto, a integração entre os povos deve ser através de normas jurídicas que tangenciam fronteiras, que não seja somente através de uma realidade formal, mas antes voltado para o ser humano destinatário daquelas normas.

Deve-se retirar qualquer véu interpretativo dos conceitos jurídicos, não excluindo a tradição, mas revisitando a possibilidade de mudança de paradigmas, os horizontes cognitivos não devem excluir o sol, mas antes buscar nessa linha descobertas, que possam significar conquistas ao ser humano.

O compromisso histórico compõe um componente primordial para a compreensão daquele signo, portanto, o significante e significado busca inicialmente como foi desenvolvido determinado conceito jurídico, seja por uma tradição no direito romano, ou anglo-saxónica, ou mesmo em países com tradições orientais.

Observa-se que o diálogo conceitual entre os povos acerca de determinada norma jurídica deve lançar um olhar que permita a dogmática jurídica estar preparada para os desafios do século XXI.

A interdisciplinaridade também compõe uma marca interpretativa da semiótica, contudo o caminho para o resultado pode ser reforçado com outros elementos científicos, mas o seu delineamento deve ser a dignidade da pessoa humana, dessa forma não seria o signo somente um elemento de apoio científico, mas o protagonista para o resultado humano normativo.

Dessa forma, a semiótica transcende um significado formal normativo, mas acrescenta a compreensão de mundo, tanto no ambiente natural, como também, o ser humano na sua vida social e de que forma subjetiva se desenvolveram essas normas em análise comparativa, de tal maneira que os direitos humanos possam ser o discurso legislativo a ser seguido.

O aspecto humano do direito torna o interprete mais autoconsciente dessa delimitação, envolve, portanto, não só a cultura formativa do direito, mas um liame entre a norma e o homem, verdadeiro titular desse direito, com essa função integrativa cognitiva.

A humanização do direito permite que seja ultrapassado o conteúdo vernacular da norma, mas também impõe limites à interdisciplinaridade que desconsidere o ser humano com titular desse direito, portanto, se estabelece o verdadeiro significado normativo.

Portanto, a superação do positivismo, que não esteja enraizada a insegurança jurídica, deve conceber o mundo cosmopolita com uma visão humana do direito e a entre comparação do direito, o melhor aproveitamento exige uma visão conscienciosa humana do acúmulo do conhecimento entre os povos e o melhor aproveitamento em benefício de todos.

Com essa compreensão humana do direito, os processos globais de integração entre as pessoas permitirá o desenvolvimento e a aproximação conceitual dos limites do significado jurídico, a identidade de desafios comuns entre os povos, portanto, a construção de elementos de conexão comuns como grande desafio delimitador das fronteiras dialogais com os conhecimentos normativos produzidos pelo homem.


[1] Termo utilizado por Roman Jakobson, Linguística e Comunicação.  Cultrix, São Paulo, 1970, p. 63.

[2] Santo Agostinho. “De Magistro”. RM, 11, 4ª Edição, pp. 305 e ss.

[3] Cf. Ludwig Wittgenstein.  Tractatus Lógico-Philosophicus. Biblioteca Universitária – Série – Filosofia, Vl. 10. Tradução e Apresentação de José Arthur Giannotti. Companhia Editora Nacional – Editora da Universidade de São Paulo: São Paulo, 1961, p. 62.

[4] Wittgenstein esclarece:“A expressão é tudo que, sendo essencial para o sentido da proposição podem ter em comum entre si.” Tractatus…, p. 65.

[5] Vide Umberto Eco, Los limites de La Interpretación…., pp. 24/25.

[6] Cf. Umberto Eco, Los limites de La Interpretación…, p. 25.

[7] A cultura não é só comunicação e significação, mas em uma análise mais ampla poderia entendê-la melhor através da semiótica.

[8] Cf. Umberto Eco. Los limites de La Interpretación….p. 52.

[9] Umberto Eco distingue a interpretação semântica ou semiósica e interpretação semiótica:

“La interpretación semântica o semiósicaeselresutadodel processo por elcual destinatário, ante lamanifesción lineal del texto, lallena de significado.  La interpretacióncrítica o simiótica es, en cambio, aquella por la que se intenta explicar por quérazonesestructuralesel texto puedeproducir essas (u otras, alternativas) interpretaciones semânticas.”

Los limites de laInterpretacion. Umberto Eco. GruppoEditorialeFalbi, Bompiciani: Milán, 1990.

[10] TIPKE, Klaus. Moral. Mora Tributaria del Estado y de loscontribuyentes (BesteuerungsmoralundSteuermoral).  Tradução Pedro M. Herrera Molina.  Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S. A.: Madri e Barcelona: 2002, pp. 25 e ss.

[11] TIPKE, Klaus.  Moral Tributaria do Estado….., p. 30.


Fabio Luiz Gomes. Doutor em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca. Mestre em  Ciências Jurídica-Comparatísticas pela Faculdade de Direito pela Universidade de Coimbra.

Mercado de crédito privado: financiando o crescimento do agronegócio brasileiro

Leandro Oliveira Leite

O ano de 2023 ficou marcado pelo notável crescimento e avanço do setor agrícola brasileiro, destacando sua robustez e importância para a economia nacional. Em meio aos desafios enfrentados, os resultados expressivos na balança comercial evidenciaram o papel fundamental desempenhado pelo agronegócio, representando 49% da receita cambial do Brasil, com mais de US$166 milhões em exportações.

Um dos principais impulsionadores desse crescimento foi o recorde na safra nacional de cereais, fibras e oleaginosas, que alcançou um volume impressionante de 319,8 milhões de toneladas durante o período de 2022/2023. Essa produção em larga escala não apenas fortaleceu a segurança alimentar do país, mas também contribuiu significativamente para o abastecimento global de alimentos.

Além disso, o setor de proteínas animais apresentou um desempenho sólido, com aumentos na produção de carne bovina, de frango e suína nos nove primeiros meses de 2023 em comparação com o ano anterior. Esses números refletem a eficiência e a competitividade do setor pecuário brasileiro, que continua a expandir sua presença nos mercados nacional e internacional, contribuindo para a balança comercial do país.

O Crescimento do Mercado de Títulos de Crédito Privado no Agronegócio

Diante desse contexto favorável, é importante analisar o papel crescente do mercado de títulos de crédito privado no financiamento do agronegócio brasileiro. Segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), esse mercado tem experimentado um crescimento significativo nos últimos anos, representando uma alternativa importante para o financiamento do setor.

Os títulos de crédito privado permitem que produtores rurais e empresas do agronegócio acessem recursos financeiros de forma ágil e eficiente, especialmente em um cenário em que os recursos oficiais subsidiados do crédito rural estão se tornando mais seletivos e direcionados. Isso contribui para o desenvolvimento e a expansão das atividades agrícolas e agroindustriais, promovendo o crescimento econômico e a geração de empregos e renda no país.

Tabela 1. Valor do Estoque de títulos e Patrimônio dos Fiagro

Fonte: B3, CERC, CRDC, CVM e Anbima

Elaboração: Boletim de Finanças Privadas do Agro[1] (jan/2024) do MAPA/SPA/DEFIN/CGMF

Segundo dados do Boletim de Finanças Privadas do Agro de janeiro de 2024, os principais instrumentos de captação privada de recursos para o financiamento das cadeias produtivas do agronegócio (CPR[2], LCA[3], CDCA[4], CRA[5] e Fiagro[6]) vêm tendo bons e significativos desempenhos nos últimos anos, movimentando ao todo quase R$ 1 trilhão.

Regulação e Atuação governamental

O Banco Central e o Ministério da Agricultura desempenham papéis fundamentais na garantia da estabilidade e do desenvolvimento do mercado de títulos de crédito privado no agronegócio brasileiro. O Banco Central atua como regulador e supervisor do sistema financeiro nacional, estabelecendo normas e diretrizes para as operações financeiras, incluindo as relacionadas ao mercado de capitais e aos títulos de crédito privado. Já o Ministério da Agricultura formula e implementa políticas públicas voltadas para o desenvolvimento do agronegócio, promovendo programas e incentivos que estimulam investimentos no setor.

Benefícios e Atrativos dos Títulos de Crédito Privado

Uma das vantagens dos títulos de crédito privado é a diversificação de fontes de financiamento que proporcionam, reduzindo a dependência do crédito rural oficial e permitindo uma alocação mais eficiente de recursos. Além disso, esses títulos oferecem flexibilidade em termos de prazos, taxas de juros e garantias, permitindo que os produtores escolham a modalidade de financiamento mais adequada às suas necessidades e características específicas de cada projeto ou atividade agrícola.

A participação crescente das Agtechs[7] e AgFintechs[8] tem impulsionado ainda mais o mercado de títulos de crédito privado, oferecendo soluções inovadoras e tecnológicas para o setor agrícola. Essas empresas facilitam o acesso ao crédito e otimizam os processos relacionados ao financiamento no campo, contribuindo para a modernização e a competitividade do agronegócio brasileiro.

Perspectivas Futuras

Diante do cenário promissor, é fundamental que as políticas públicas e regulatórias acompanhem o crescimento do mercado de títulos de crédito privado, criando um ambiente propício ao seu desenvolvimento. Regulações claras e incentivos adequados são essenciais para garantir a sustentabilidade e a segurança das operações de financiamento no agronegócio, promovendo assim o crescimento econômico e a competitividade do setor.

Em suma, o mercado de títulos de crédito privado tem se consolidado como uma importante fonte de financiamento para o agronegócio brasileiro, contribuindo para o fortalecimento e a expansão das atividades agrícolas e agroindustriais. Com sua crescente relevância e potencial de crescimento, esse mercado desempenha um papel fundamental no apoio ao desenvolvimento econômico e social do país.


[1] O Boletim de Finanças Privadas do Agro, com publicação mensal, é desenvolvido pela Coordenação-Geral de Instrumentos de Mercado e Financiamento, do Departamento de Política de Financiamento ao Setor Agropecuário, da Secretaria de Política Agrícola, do Ministério da Agricultura e Pecuária.
https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/politica-agricola/boletim-de-financas-privadas-do-agro acesso em 19/02/2024.

[2] Cédula de produtor rural

[3] Letra de Crédito do Agronegócio

[4] Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio

[5] Certificados de Recebíveis do Agronegócio

[6] Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais

[7] AgTechs, ou Agricultural Technologies, são empresas que utilizam tecnologia para desenvolver soluções inovadoras no setor agrícola, combinando conhecimentos em agricultura, Ciência de dados, Inteligência Artificial (IA) e Internet das Coisas (IoT) para melhorar a eficiência, a produtividade e a sustentabilidade nas atividades agropecuárias

[8] Agfintech é um termo que representa a convergência entre a agricultura e a tecnologia financeira (fintech). Essa combinação busca aplicar soluções financeiras inovadoras e tecnologicamente avançadas para atender às necessidades do setor agrícola

Opções Reais e o Novo Modelo de Compartilhamento de Riscos da ANTT

Reflexões sobre o Leilão Vazio da BR 381/MG

Katia Rocha

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e o Ministério dos Transportes anunciaram, recentemente, a perspectiva de realização de 13 novos leilões de concessões rodoviárias para 2024, perfazendo um total de R$ 110 bilhões em investimentos, valor em linha ao previsto no Novo PAC para novas concessões e concessões existentes, com capital privado.

A iniciativa tem o desafio de aumentar os investimentos no setor, conhecido por ensejar uma considerável lacuna de investimentos da ordem de 1,8% PIB ano, praticamente a metade da lacuna total de infraestrutura do país.

Faz parte de uma agenda maior para integração das estradas do país num sistema de transporte multimodal abrangente (que inclui os eixos ferroviários, hidroviários, portuários) de forma a melhorar a infraestrutura logística e aumentar a nossa produtividade e competitividade global.

A ANTT administra atualmente 24 concessões de rodovias, totalizando aproximadamente 13.000 km. Corresponde a apenas 13% da malha rodoviária federal total. Desse total, praticamente um terço apresenta, há tempos, problemas relacionados a obras paradas, processos de devolução ou relicitação[1].

É fato que o setor de transportes, enseja, em diversos países, um grande número de incidências em renegociações de contratos. Entre as melhores práticas internacionais para mitigação desse problema, a necessidade de uma matriz de alocação de riscos previsível e eficiente é fundamental, sendo, inclusive, parte das recomendações estruturais para Governança da Infraestrutura da OCDE.

Outras iniciativas contemplam: i) avanços na qualidade regulatória e no ambiente institucional; ii) melhor estruturação e modelagem dos projetos; iii) leilões de maior outorga ou híbridos em contraposição aos de menor tarifa; iv) indicadores de performance e regulação por incentivos; v) incentivos a concorrência e leilões competitivos; vi) arcabouço regulatório previsto em lei; vii) efetividade de governança, segurança jurídica, controle e responsabilidade; e viii) concessões de menor porte/trechos[2].

 No Brasil, inúmeras divergências interpretativas e indefinições sobre matriz de risco tem sido reportado como determinante de diversos conflitos judiciais, arbitrais e administrativos, em especial, a cada revisão, onde diversos pleitos de recomposição de equilíbrio econômico financeiro são requeridos.  

Como forma de tratar essa questão, a ANTT aprovou, ao final de 2023, o relatório final de encerramento da Audiência Pública nº 013/2022, cujo objetivo foi destinado a aprimoramentos regulatórios no que tange ao novo modelo proposto de alocação de risco nos contratos de concessão de infraestrutura rodoviária no âmbito da ANTT, a ser aplicada nos Contratos da 5ª Etapa de Concessão de Rodovias Federais.

Diversas estruturas de compartilhamento de riscos entre Poder Concedente e concessionária foram endereçadas na proposta. Relacionam-se às receitas e aos custos da concessão e abrangem o risco de demanda (tráfego), risco geológico, licenciamento ambiental, desapropriação e desocupação, custo de insumos e risco cambial. A possibilidade de compartilhamento foi vinculada à conclusão de grande parte das obrigações de investimentos e obras pela concessionária.

Regra geral, o racional tratou de diminuir as incertezas dos fluxos de caixa da concessão, com estabelecimentos de determinados intervalos ou bandas em torno das receitas requeridas esperadas (função da demanda pelo tráfego) ou regras para variações nos custos projetados em decorrência de riscos geológicos, desapropriações etc; no decorrer da vida útil do contrato.

Realizações dentro do intervalo dessa banda (em torno de 15% da receita esperada) são alocados exclusivamente à concessionária, e, fora deste intervalo, ou nos demais casos de riscos que afetam os custos do investimento, seriam alocados ou compartilhados com o Poder Concedente, em determinado montante, a depender do tipo específico e momento de ocorrência (como exemplo a alocação dos riscos geológicos ao Poder Concedente nos primeiros 2 anos da concessão, entre outros).

Dessa forma, o aprimoramento regulatório introduziu uma espécie de seguro (hedge) no contrato de concessão, no que tange às variáveis críticas incertas. Abordou, igualmente, a questão de incentivos e alinhamento do contrato, no sentido que o acesso ao seguro é condicional à conclusão de grande parte das obrigações de investimentos pela concessionária (90% do Capex).

O conceito de estruturas de compartilhamento de risco para viabilizar decisões de investimento tem relação direta com os preceitos da Teoria das Opções Reais[3]. São modelos baseados no apreçamento de derivativos financeiros[4], aplicados a investimentos em ativos reais, como as concessões. Descrevem o comportamento do agente (investidor) na sua decisão de investimento e participação no certame, sob condições de incerteza. Ajudam o formulador de política pública no sentido de desenhar os incentivos adequados para maximizar e alinhar os objetivos pretendidos.

Tais modelos estabelecem uma relação (não-linear) entre a decisão de investimento (participação no certame e exercício da opção mediante desembolso do Capex/strike price) e as diversas incertezas embutidas nos fluxos de caixa da concessão (tráfego, risco geológico, desapropriação, etc).

Identifica critérios ótimos de decisão como a “cunha de investimento” (relação entre as receitas e os custos do investimento) a partir da qual deve-se prosseguir com o investimento. Nesses modelos, regras baseadas nas métricas de Valor Presente Líquido (VPL) ligeiramente positivos são inadequadas e insuficientes. É comum em diversos casos práticos, a “cunha de investimento” ser da ordem de 2, 3 ou mais para que o investimento se viabilize[5].

Uma concessão com custos de investimentos e obras estimados em R$ 10 Bilhões – a exemplo da BR 381/MG – pode muito bem requerer montantes de receitas bem superiores a esse valor para tornar a concessão atrativa e viável, a depender das incertezas existentes. De fato, mesmo com previsão de receitas tarifárias, da ordem de R$ 22 Bilhões[6] – “cunha de investimento” de 2,2 – o leilão da BR 381/MG em novembro de 2023 foi frustrado e não encontrou interessados. Foi dessa forma adiado e sujeito a reavaliações.

É possível que uma “cunha de investimento” maior fosse necessária. Há que se calcular. Os modelos existentes de opções reais são excelentes candidatos para se estabelecer este valor, sendo igualmente úteis para a análise de eventuais desenhos complementares de compartilhamento de riscos, e, para a própria análise de impacto regulatório (AIR).

Quanto maior a incerteza, seja nas receitas (demanda por tráfego), quanto nos custos de investimentos (risco geológico, desapropriação, etc) maior a “cunha de investimento” exigida[7]. Dessa forma, alocações de riscos que diminuam as incertezas (volatilidade) dos fluxos de caixa da concessão, seja através do estabelecimento de bandas de receita (ou tráfego), ou de estruturas de riscos que afetam os custos do investimento (compartilhamento de riscos geológicos etc), diminuem efetivamente essa “cunha”, e aumentam a atratividade da concessão.

Importante ressaltar que enquanto tais estruturas de compartilhamento de risco possibilitam maior atratividade (melhor relação de risco x retorno) para a concessão, possibilitando, inclusive, potencial de maiores deságios tarifários, implicam, igualmente, num aumento da distribuição do custo percebido pelo Poder Concedente, em igual montante ao seguro oferecido. Essa questão é levantada no Acórdão TCU 1142/2023, e será objeto de coluna posterior.

Em termos gerais, o desafio do formulador de políticas públicas consiste, portanto, em viabilizar concessões não atrativas ao menor custo possível desse seguro, tendo em conta todas externalidades positivas geradas pelo investimento, seja em termos do bem estar do usuário final, mas também, em termos de aumentos na produtividade, competitividade e desenvolvimento econômico.

Concluindo, o aperfeiçoamento regulatório apresentado pela ANTT é mais que meritório e endereça recomendações estruturais já debatidas na academia e nas melhores práticas internacionais, com efeitos positivos sobre o programa de novos leilões de concessões e sobre toda a agenda da infraestrutura logística do país, com vistas a aumentar a nossa produtividade, competitividade, crescimento econômico e social.


[1] Cabe menção aos contratos da terceira etapa do programa de concessão de rodovias federais (Procrofe) em 2013/2014, cujas estimativas de demanda foram frustradas, a partir da crise econômica de 2014/2016

[2] Enquanto a média de trechos concedidos em leilões nos últimos 5 anos no Brasil foi de 410 km com 1 a 2 grupos participantes nos certames, na Colômbia essa média foi de 220 km com participação de 3 a 4 grupos nos certames. Ver detalhes em: https://ppi.worldbank.org/en/ppi

[3] Ver Trigeorgis (1996).

[4] Ver Black e Scholes (1973) e Merton (1973).

[5] Ver Dixit and Pindyck (1994).

[6] Ver Acordão TCU 1142/2023.

[7] A lógica é similar ao efeito da volatilidade em uma opção (grega vega).


Katia Rocha é Pesquisadora do IPEA. katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

Desatando o nó de jacarandá

Marco Aurélio Bittencourt

Muitos se perguntam qual a saída para o Brasil, tendo como certo e acertadamente que a nossa situação social, econômica e política é predatória. O pessimismo toma conta de quase todos. Mas nós, economistas, gastamos tempo e muita energia para entender a situação sob o ângulo técnico que se desdobra em diversos tipos de abordagem. Todas elas, em sua grande maioria, quer sejam economistas ou não, nos levam a um caminho só.  O x da questão é político, e é pela política que encontraremos a saída a nos libertar de todos os entraves que estancam recorrentemente o caminho duradouro para o desenvolvimento do país. Eu sou otimista, e isso facilitou meu entendimento para o rompimento das amarras. Mas antes de chegar na questão básica da luz no fim do túnel, é necessário fazer um resumo do quadro político desde 1946.

O modelo político que apontava para a inserção política do cidadão estava presente em Getúlio Vargas. Como já disse alhures, Getúlio era uma figura complexa e aqui falo apenas no contexto político do período democrático. Os dois partidos-chave para o destino do país seriam o PTB e o PSD. O primeiro, criado por iniciativa do próprio Vargas, tendo sua filha como fundadora. O PSD seria fundado por simpatizantes do Getúlio. A UDN seria a oposição sistemática às políticas de Getúlio. Apareceriam mais dois partidos que buscavam o poder federal, mas que se consolidavam principalmente na esfera estadual: O PSP (Partido Social Progressista) que tinha em Ademar de Barros seu líder natural, na tentativa de simular um padrão getulista, nos termos do baronato paulista. O outro partido importante em termos de aliança, mas pouco expressivo como era o PSP, foi o Partido Republicano, PR. Temos ainda o Partido Comunista, PCB que era importante pelo seu potencial de atrair a juventude e intelectuais. Mas, atingido de morte pelo contexto da guerra fria, acaba sendo alijado do processo político partidário e só retornaria ao cenário partidário com a Constituição de 1988. Restou como opção pseudo radical o Partido Socialista Brasileiro, mas de pouca expressão.

O Quadro político imaginado por Getúlio Vargas seria basicamente o seguinte: o PTB serviria como canal para a expressão popular, ocupando, na órbita federal, preferencialmente os cargos de deputados federais, e o PSD como canal de expressão da elite dirigente, ocupando a Presidência da República, Senado e os Governos Estaduais. No entanto, o projeto nacionalista de Getúlio sofreu ataques profundos, sendo a UDN o leme dessa opção que imaginava chegar ao poder a qualquer custo, além dos habituais traidores da causa.

A tentativa de derrubada do projeto nacionalista de Getúlio e seu grupo seria bem-sucedida, já em 1954, com provável afastamento e prisão de Getúlio. Mas, o inesperado acontece e Getúlio deu o troco à UDN com a sua autoimolação, deixando o país em situação política confusa. Seu vice-presidente, Café Filho, plantado ali pelo astuto Ademar de Barros, assume a Presidência da República e intenta um golpe com a intenção de não deixar assumir a Presidência da República e a Vice-Presidência a chapa vencedora Juscelino Kubistchek (JK) e João Goulart (Jango) – este último como vice-presidente. JK era do PSD e Jango do PTB (sob a constituição de 1946 o vice-presidente também era eleito diretamente pelo voto popular). O golpe foi frustrado pela ação do Ministro da Guerra, Marechal Henrique Lott (Lott), que fora deposto por cumprir sua obrigação constitucional de punir o coronel porta-voz do golpe que alardeou a ameaça de que os eleitos à Presidência e Vice-Presidência da República não assumiriam. Lott revidou e garantiu o retorno à normalidade democrática do país, tomando posse em seus cargos os eleitos JK e Jango.

O que esse quadro já mostra? Que o projeto nacionalista estaria sendo atacado por todos os flancos. Os partidos políticos imaginados por Varga, em cumprimento às diretrizes e projetos nacionalistas, já estavam contaminados por interesses que se assemelhavam aos mesmos do período pré-Vargas, embora a oposição liderada pelo PTB ainda produzisse efeito prático na política do dia a dia. O fato é que JK implementou projeto próprio e de característica não nacionalista, firmando pactos com o baronato industrial e empreiteiras. A indústria nacional iria a reboque das multinacionais. A Agricultura já tinha seus interesses arraigados e de pouca monta foi a mudança que já vinha sido trilhada. O destaque está na Constituição de 1946 que permitia desapropriação para fins de reforma agrária, embora não mais explicitasse o que de bom tinha na constituição de 1937 como, por exemplo, em seu Art. 148 que permitia a prática do usucapião em terras de até dez hectares. O tripe da elite estava formado. Mas a agitação política era intensa e o legado de JK no flanco interno e externo exigiam ajustes rápidos e certeiros. A eleição que sucedeu a JK trouxe a esperança com Lott e Jango; Lott candidato filiado ao PSD, galgado a chapa presidencial, com Jango pelo PTB como vice-presidente. Lott não contou nem com o apoio de parte da esquerda que não lhe depositava confiança para levar adiante as reformas de base que o PTB esboçava e menos ainda com o apoio esperado de JK. O objetivo era neutralizar Lott e para isso urdiram a candidatura Jânio Quadros (Jânio), sob aliança com a UDN. Para que tirassem a força do Marechal como candidato, insuflaram marotamente a chapa Jânio-Jango. Para ele, o Marechal, e para nosso azar, a estratégia deu certo e deixaram o vice como esperança ineficaz, na aposta da mudança de rumo com Jânio.

A estratégia do baronato parecia ter dado certo. Mas os problemas na área econômica herdados do período JK não encontraram um caminho de solução fácil. Jânio, alegando pressão de forças ocultas que não o deixavam governar, renúncia em tentativa, talvez, de voltar ao poder nos braços do povo. Não foi isso o que aconteceu e sua renúncia se consolidou. Mas deixou um defunto político para ser enterrado: seu vice, Jango. As forças ocultas que mostraram a cara tentaram impedir a posse de Jango como Presidente da República. E novamente estava ali presente o Marechal Lott que denunciava o golpe, motivando a ação de Leonel Brizola que resultou em sucesso, porém parcial. À Lott lhe custou 15 dias de cadeia.

Jango acatou o acordo costurado com Tancredo Neves, o mesmo que ficara ao lado de Getúlio até o último momento de sua autoimolação, na condição de ministro à época, se oferecendo para assumir o Ministério da Guerra para conter os golpistas. Nesse novo episódio da história política brasileira, Tancredo Neves, mesmo sem ter sido eleito governador de Minas Gerais no pleito de 1960, mas apoiado pela cúpula do PSD e contando com a simpatia de diversos políticos, foi indicado para costurar o acordo com Jango e o convenceu a aceitar um sistema parlamentarista como solução. Jango tomou posse e Tancredo Neves foi guindado ao cargo de primeiro-ministro, inaugurando o sistema parlamentarista que teve breve período de duração.

Mas o PSD que já tinha sido contaminado pela força política de JK que se distanciava do modelo nacionalista de Getúlio/Jango pouco fez para apoiar as políticas pretendidas pelo PTB já que sua bancada estava em grande parte apontando para outro lado do espectro nacionalista. A força da oposição e a decisão tardia de Jango em assumir um lado do embate político feroz o deixou enfraquecido e, quando o fez, o circo do golpe já estava armado.  Um general com tradição rebelde e fama de maluco assume a ponta militar para a derrubada do governo e já não poderíamos mais contar com a força reparadora de Lott que já teria seus passos políticos controlados, dificultado ainda pelo apoio popular da classe média ao movimento golpista, em razão das atabalhoadas políticas de Jango que acenava claramente o envolvimento de forças radicais da esquerda. Veio o golpe e o fim do modelo político arquitetado por Vargas. Muitas foram as traições. A esperança foi na aposta da eleição indireta para a escolha a presidente entre Castello Branco (sem partido), Dutra (PSD) e Juarez Távora (PDC – Partido Democrata Cristão). Dificilmente a chapa Castello Branco seria batida, dada as manobras estratégicas do núcleo duro do golpismo militar. JK agora trai o PSD original e renega a candidatura Dutra do PSD, juntamente com a quase totalidade dos eleitores (Dutra, 2 votos; Távora, 3 votos e Castello 361 votos).  Inicia-se assim, a era do regime militar com esse rebotalho de parlamentares.

Vamos chegar a era do bipartidarismo: a Arena, partido da situação óbvia e MDB, partido criado para mimetizar uma oposição. Os nacionalistas ainda existiam aos montes, mas o objetivo de toda a oposição legítima era derrubar o regime militar, misturando-se todos os oponentes com matizes ideológicas diversas num único partido; o MDB. Nesse embate, surge na legislatura de 1970 um grupo de deputados do MDB que, em seu início poderia ser contado em mais de 60 deputados, já ressabiados com as cassações individuais sem respaldo político na legislatura anterior, optaram por um trabalho de oposição legítima, porém mais coordenado. No famoso encontro do MDB em Recife em junho de 1971 já lá lançaram a proposta da constituinte. Foram boicotados por figuras da cúpula que envolvia Ulysses Guimaraes, Tancredo Neves e Thales Ramalho que se opuseram a essa tese original. Falo da turma autêntica do MDB – termo cunhado pelo jornalista Evandro Paranaguá http://youtu.be/NPdj6N82A2w .

Foram esses deputados briosos do MDB que moldaram a cara de oposição verdadeira ao regime militar que infelizmente foi apropriada por figuras como Jáder Barbalho. Cito os, segundo meu entendimento, os mais importantes desse grupo dos Autênticos do MDB (https://www.youtube.com/watch?v=JFxJKe8qKg4&t=17s): Chico Pinto, Alencar Furtado, Lysâneas Maciel, Marcos Freire e Fernando Lyra. Outros deputados foram também importantes nesse momento; até mesmo da Arena como Pedroso Horta ou outros que militavam na oposição e de alto valor cívico como Alceu Collares que, no momento decisivo para o grupo em denunciar a eleição fajuta do Geisel, roeu a corda, atendendo pressões da turma do Brizola. O fato é que esses políticos valorosos poderiam trazer novamente o sonho nacionalista de Getúlio. Muitos provaram seu valor com a sua própria cassação pelo regime militar, como os três primeiros citados do flanco dos Autênticos do MDB. Foi uma medalha no peito dessa turma; totalmente diferente do que se dá hoje em dia.

Mas o que aconteceu com esse grupo? Isso tem a ver com a estratégia do Golbery de batida em retirada dos militares do poder. Trata-se do retorno do pluripartidarismo. Com isso, os Autênticos se diluíram em distintas legendas. Para piorar, trataram os homens de valor que teriam eleição certa de permanecerem na linha de ataque de continuar sua batalha por mudanças institucionais, mas se descuidaram do comando dos partidos. O resultado foi a perseguição pelos caciques dos partidos a esses homens briosos, com a grande maioria já na legislatura de 1990 não conseguindo mais ascender politicamente. O fato é que todos os partidos têm dono e os utilizam para seu benefício. A moral, a ética e os valores básicos de um patriotismo desejável simplesmente sumiram do mapa político. Essa realidade até o cidadão comum percebe e se indigna. Mas o que fazer? Qual a mudança fundamental a ser perseguida?

A resposta é simples: mudar a regra do jogo fundamental para ferir de morte a supremacia dos caciques políticos: eleição para quaisquer cargos eletivos sem que se tenha necessariamente vinculação partidária.

Essa regra é fundamental e necessária para abrir as portas a opções legítimas de mudança.  Para se perceber a importância dessa estratégia, basta considerar a situação do ex-presidente Trump. Na eleição que o elegeu, foi ameaçado pelo grupo republicano que também lá dirige o partido de não obter a legenda para disputa nas primárias americanas. Trump retrucou: sairei como candidato independente. Claro, dada a polarização política acima e abaixo dos trópicos, muitos, em arroubos autoritários, poderiam achar esse exemplo bastante contraditório à tese da candidatura independente. O exemplo tem que servir à tese e não às ideologias ou preferências que são subjetivas.

A candidatura independente de vinculação partidária abre espaço para homens de valor almejarem a Presidência da República. Não é por outra razão que candidaturas esperadas como as de Joaquim Barbosa e Sérgio Moro não prosperaram. Homens de valor que não aceitaram a manobra dos caciques das legendas que intentavam representar. Se houvesse a possibilidade da candidatura independente, teriam colocado em corner esses partidos.

Claro que essa mudança é a luz no fim do túnel, mas trilharia o caminho da solução política rapidamente e de forma indolor. O difícil é ver deputado jovem como a Tábata Amaral se colocando frontalmente contra a candidatura independente. Evidentemente, uma solução melhor seria o parlamentarismo; tarefa mais complexa do ponto de vista político. Já a candidatura independente teria uma maior chance de aprovação parlamentar.

Feito o consertamento político, resta o econômico. Este é mais simples ainda. Basta adequar a trajetória da dívida pública e deixar o orçamento concebido pela Constituição de 1988 funcionar em seus próprios termos, livre de leis como as da responsabilidade fiscal e outras amarras castradoras. Sou otimista. Pela candidatura independente!

Caixinhas de telecom 2021

Adriana da Costa Fernandes

O noticiário setorial de telecomunicações é forte e completo. Desta forma, nem se pretende aqui competir ou criar um novo canal de acompanhamento diário detalhado similar. Este veículo, em verdade, possui um outro propósito. É formado por experts voluntários de diversas áreas, apaixonados pelo que sempre fizeram, e que mais do apenas interessados em fomentar o debate dos temas relevantes que acompanham, de fato, possuem verdadeiro amor pela literatura técnica e pelo contato com as matérias que estudam cotidianamente.  Assim sempre foi, igualmente, com esta autora, acerca do Direito Regulatório e do contexto de Telecomunicações Nacional e até Internacional, ainda que tenha seguido por outros mercados.

             O texto de hoje fala basicamente de concorrencial com impacto consumerista, com foco contributivo ao belo trabalho que o atual Conselho Diretor da Anatel vem realizando.

             A Agenda Regulatória 2024 da Anatel já foi montada e bem estruturada de forma aderente aos temas que vinham sendo tratados. Devidamente publicizada ao mercado, até mesmo por meio de 3 (três) ótimas reportagens da plataforma Teletime.[i]

             Dos necessários pontos elencados, destacando-se aqui como itens relevantes: (i) revisão do regulamento de segurança cibernética aplicada ao setor de telecomunicações, aprovado pela Resolução nº 740, de 21 de dezembro de 2020 (R-Ciber); (ii) análise da proposta de simplificação da regulamentação e dos serviços de telecomunicações; (iii) regulamentação da aplicação de ferramentas de IA no setor de telecomunicações; (iv) regulamentação do uso de postes – desdobramentos e (v) GAPE e conectividade nas escolas; ao certo que não poderia passar despercebido, o ponto (vi) propostas para se ampliar a competividade do mercado, após a saída da Oi do SMP (Serviço Móvel Pessoal).

             De fato, o consumidor questiona a pouca opção entre apenas, praticamente, 3 (três) grandes operadoras no mercado atualmente. Estas muitas vezes engessadas, com a mesma gama de serviços, preços, ofertas, padrão de atendimento, nível segurança, problemáticas mercadológicas e sistêmicas, qualidade técnica e o mesmo patamar de avanço tecnológico pari passu.

                O mercado esperava bem mais em inovação, disrupção e diferenças entre elas. A expectativa quando surgiram os ditos “combos”, a franquia ilimitada, a fibra, outros produtos e ideias era a de que uma espécie de mundo novo se abrisse em termos de consumo, oportunidades aos usuários e real competição.

             Entretanto, quem conhece um pouco do mercado concorrencial latu sensu e da economia brasileira, em verdade, entende que praticamente tudo o que se projeta para dado prazo, leva bem mais tempo do que o esperado. Os mercados precisam minimamente errar um tanto e amadurecer. Quem sabe seja esta a hora da virada e o Brasil finalmente venha a se projetar em efetivo na vanguarda? Sonhar não custa nada.

             Este texto busca trazer a recordação de tempos das equipes que festejavam grandes conquistas de metas arrojadas pós Reforma do Estado, dos primeiros anos das Concessões e  Autorizações, quando se vivia a divisão do país em 3 (três) regiões de STFC (Serviço de Telefonia Fixa Comutado), em reverência ao primeiro grande carro chefe das Teles e que hoje chega ao fim. Serviço à época instituído em regime de Concessão e, então, o primeiro modo de descentralização de serviços públicos estatais.

             Foi a mesma época da unificação das antigas outorgas estatais herdadas pelas empresas, em cada uma destas regiões e, a seguir, de mais metas ousadas, para que cada operadora pudesse atuar nacionalmente.

             Em paralelo, se firmava o SMP (Serviço Móvel Pessoal) que ainda era considerado para poucos, com seus aparelhos apelidados de “tijolões” e cujas baterias não duravam praticamente nada até o surgimento dos menores aparelhos utilizados no 2G, 3G e finalmente do 4G. A conversa sobre o 5G é outra. Fica para outro artigo.

             Entretanto, foi quando se travava a guerra entre SMP e SME (Serviço Móvel Especializado), o qual já mantinha um quiosque em cada shopping center de esquina, que, finalmente, o consumidor brasileiro começou a entender que poderia usufruir um pouco mais da telefonia do que imaginava, com o tanto que já pagava. E assim, também as empresas compreenderam que precisavam tratar este consumidor de uma forma diferenciada para fielmente mantê-lo. Tempo este onde, ainda, existiam as 7 (sete) operadoras móveis principais e alguns mercados regionais um tanto aquecidos, o que, de certa, se perdeu.

             Diante de todas estas memórias, o que se pretende ponderar é do eventual renascimento do interessante instituto constitucional, diga-se igualmente, administrativo-regulatório, da Permissão. Em verdade, reativando a figura das Permissionárias país afora. Das conhecidas empresas espelho ou “espelhinhos” do sistema STFC (fixa) daquele tempo. Um instituto idealizado justamente prevendo a viável oxigenação concorrencial mercadológica na área da Concessionária, onde aquelas empresas detinham menos obrigações que a principal e eram apresentadas como alternativas ao consumidor, fosse pontual, temporariamente ou não tanto.

             Em verdade, o legislador constituinte abordou o instituto da Permissão, tanto na tipificação dos serviços e bens, onde prestação e exploração são passíveis de delegação à iniciativa privada, quanto no art. 175 da Constituição Federal de 1988, definindo assim as diretrizes gerais do regime jurídico de concessões e permissões de serviços públicos.

             A Lei 8.987, 1995, anterior à de Telecomunicações, foi que estabeleceu propriamente o regime previsto no art. 175 da Constituição Federal de 1988, indicando, dentre outros aspectos, que a formalização deverá ocorrer mediante contrato de adesão, segundo as demais normas pertinentes e as do edital de licitação, inclusive quanto à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente. [ii]

             A Lei 9.472, 1997, em seu art. 118, conferiu ao instituto da Permissão contornos de ato administrativo, enquanto contrato em caráter transitório, para a prestação de serviço em regime público (serviço de interesse coletivo), e apenas em caso de situação excepcional comprometedora do funcionamento do serviço, e até sua normalização. Restringindo, em verdade, sua possibilidade de utilização. Ainda que, alguns doutrinadores, entendem que os efeitos da natureza jurídica da Permissão, genericamente possua, de fato, natureza contratual,[iii] conforme o ditame e previsão constitucional.

             Ou seja, em caso de suposto entendimento acerca de sua viabilidade de reutilização e interesse mercadológico, alguma previsão ou alteração há de ser viável por via legislativa. Sendo, inclusive, importante para o atendimento a determinadas regiões onde possam ocorrer ganhos de conectividade. Da mesma forma, mais à frente em tempos de 5G mais bem implantado e de IoT.

             Ao certo, ressalvas sejam feitas sobre a importância da proteção eficaz de dados e da atenção aos ditames da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD.

            De todo modo, cabe asseverar sobre o mercado SMP (móvel) que, assim como no caso de outros, os consumidores ainda esperam que muito seja feito diante da expectativa que era tão alta. Vale lembrar que telecom foi o case de sucesso nacional em privatizações, portanto, este consumidor não pode ser decepcionado jamais.

             Se aguardavam revoluções efetivas das outorgas por meio de seus parâmetros e de combinações realmente diferenciadas, unindo, por exemplo, a prestação do serviço entre 2 (duas) ou até mais empresas de serviços SMP, Banda Larga, TVs / Streaming e Satélites, inclusive com grupos internacionais que acabaram não chegando ou não ficaram. É fato, ainda não foi possível, de todo, chegar lá, mas a caminhada se faz.

             Noutra toada, surgiram as MVNOs (que, explicando de forma leiga, revendem o serviço das operadoras), nunca se imaginou que as OTTs tomassem o espaço que ao fim conseguiram e que os serviços de mensagens instantâneas ameaçassem tanto assim a voz sobre o IP.

             Por fim, não se vislumbrava na época que, diante de tantas promessas, atualmente seria o mercado de SMP (móvel) que estaria numa situação passível à adoção de algum tipo de mecanismo regulatório-concorrencial que venha novamente a fomentar uma temporada de quebra de silos e promover o impulsionamento da criatividade exponencial para além das “caixinhas já quadradas”, como aconteceu no tempo daquele executivo ex-aviação que rompeu os, então, paradigmas vigentes.

             Porém, a realidade dominante é que os antigos Presidentes e Diretores, em sua grande maioria se foram ou estão indo em breve. Os mais jovens, Ys e Zs estão chegando e quem já saiu do mercado observa com olhos atentos a nova configuração que vem se desenhando pelas mãos dessa geração que pensa completamente diferente da X anterior (ótimos consultores atuais) e dos boomers que, em sua maioria, comandavam o mercado na época em que tudo isto acontecia.

             E é isto… Tudo muda, o tempo todo, toda hora no mundo, no seu, no nosso. Sem muita previsão do que, de fato, acontecerá. O resiliente sobreviverá.


[i] https://teletime.com.br/01/02/2024/perspectivas-regulatorias-para-a-anatel-em-2024-parte-1/

[ii] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8987cons.htm

[iii] https://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/7/art20160715-08.pdf

A Nova Indústria Brasil (NIB), o FMI e a Nova Onda de Políticas Industriais no Mundo

César Mattos

Foi lançada no Brasil pelo Governo Federal mais uma estratégia de política industrial, a “Nova Indústria Brasil” (NIB), que é a quinta deste século. A NIB contém elementos de política ambiental e até de simplificação de ambiente de negócios, dentre outros, que são positivos para os novos desafios do desenvolvimento e já vinham sendo desenvolvidos nos governos Temer e Bolsonaro. No entanto, a NIB também retoma/reforça instrumentos mais antigos de política industrial meramente protecionista, com relação negativa com a produtividade.

Neste breve artigo, apenas vamos contrapor um argumento utilizado numa lista de “fakes e fatos”[1] do próprio governo federal, trazendo o que seria um artigo bem recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) para validar a estratégia da NIB. Conforme o Governo Federal “os mecanismos de compras públicas, margem de preferência e conteúdo local são importantes indutores do desenvolvimento industrial e são largamente utilizados em todo o mundo, em todas as políticas industriais. Um relatório recente (publicado agora em janeiro de 2024) do FMI mostra justamente isso: a volta das políticas industriais com fortes incentivos dos países, entre eles o mecanismo de compras públicas” (grifos nossos).

Na verdade, Evenett, Jakubik, Martin e Ruta (2024)[2] lançaram neste janeiro um banco de dados do que seria um “observatório das novas políticas industriais” (NIPO – New Industrial Policy Observatory), documentando “os padrões emergentes de intervenção de políticas durante 2023 associados ao retorno das políticas industriais”. Conforme o abstract deste artigo: “Os dados mostram que a onda recente de atividade de política industrial está sendo implementada primariamente pelas economias avançadas, e que os subsídios constituem o instrumento mais empregado. Restrições de comércio nas importações e exportações são mais frequentemente utilizadas por economias em desenvolvimento e de mercados emergentes. A competitividade estratégica seria o motivo dominante dos governos para justificar estas medidas, mas outros objetivos como mudança climática, resiliência e segurança nacional também são utilizadas.  .Em regressões exploratórias, achamos que as medidas implementadas são correlacionadas com o uso de medidas passadas por outros governos no mesmo setor, apontando para a natureza tit-for-tat da política industrial. Além disso, fatores de economia política doméstica e condições macroeconômicas se correlacionam com o uso das medidas de política industrial. Nós desejamos que o Novo Observatório de Política Industrial – (New Industrial Policy Observatory – NIPO) se torne um recurso disponível para o público para ajudar a monitorar a evolução e os efeitos das políticas industriais”.

Assim, primeiro, o objetivo do artigo do FMI NÃO é validar as novas políticas industriais, mas sim de identificar porque elas estão surgindo, sem discutir se elas são positivas ou negativas.

Segundo, SIM, conforme o texto do FMI é verdade que há uma onda de novas políticas industriais no mundo todo.

Mas, terceiro, NÃO, não se pode afirmar que o FMI confirmou que “são importantes indutores do desenvolvimento industrial”.

Quarto, o FMI constata que a principal motivação das novas políticas industriais é o “Tit-for Tat”[3] para políticas em outros países nos mesmos setores. Isto é uma forma elegante de afirmar que a razão real é se defender/retaliar das/as políticas protecionistas de outros países.

Quinto, os “fatores de economia política doméstica” seriam basicamente eleitorais, ou seja, mais uma forma também elegante de indicar motivação política de curto prazo e não estratégia de desenvolvimento de longo prazo.

Os autores afirmam, ao contrário da interpretação benigna do governo federal, que “a relevância de todos estes fatores sugere que os governos deveriam ter cuidado no uso de políticas industriais”. Em outras palavras, políticas industriais podem ser um tiro no pé, ainda que indique, como todo trabalho responsável deve fazer, que “trabalhos adicionais são necessários para avaliar o sucesso ou fracasso das políticas industriais cobertas em alcançar seus objetivos declarados, tanto econômicos como não econômicos, além das implicações macroeconômicas domésticas.” Isso inclusive chama a atenção para a necessidade da NIB ser sistematicamente avaliados para decidir por sua continuidade ou não.

De qualquer forma, o texto do FMI claramente levanta muito mais preocupações com os possíveis aspectos negativos dessas novas políticas industriais do que o oposto. Daí afirmam que o banco de dados criado por eles “poderia servir de base para medir distorções nos padrões de comércio, mudanças na alocação de recursos entre setores e implicações de natureza fiscal. Os impactos nos parceiros comerciais não são de menor interesse por trazerem distorções diretas à competição e ao equilíbrio geral de bem estar”.

Nessa mesma linha de apontar os impactos negativos das novas políticas industriais no mundo, o texto do FMI levanta a questão de “se as regras atuais de comércio multilateral e seus mecanismos de enforcement estariam adequadas para o desafio de conter os efeitos de transbordamento (spillovers) negativos destas políticas”. Aqui, o FMI sugere que os mecanismos existentes podem não ser suficientes para coibir este tipo de protecionismo, requerendo sua atualização dada a “proliferação deste novo estilo de política industrial”. 

Ou seja, além das consequências negativas para o próprio país que adota as novas políticas industriais, o FMI está alertando para os transbordamentos negativos para outros países e para todo o sistema de comércio internacional baseado na Organização Mundial do Comércio (OMC). Nesse contexto, aponta que as regras atuais de defesa contra o protecionismo no mundo precisarão se atualizar para evitar os impactos ruins sobre o bem estar global. No limite, uma nova arquitetura do sistema de promoção e defesa do comércio.

Definitivamente, buscar este texto do FMI para apoiar a NIB não nos parece adequado. Fake News!

Por fim, todos podemos ficar tranquilos: o FMI ainda não se “heterodoxizou” neste assunto.


[1] https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/o-que-e-fato-e-o-que-e-fake-sobre-a-nova-industria-brasil-o-programa-de-politica-industrial-do-pais

[2] Evenett, S.; Jakubik, Martin,F. e Ruta, M.: “The Return of Industrial Policy in Data”. International Monetary Fund. WP/24/1. Jan 2024. 

[3] O TIt for Tat é uma estratégia em teoria dos jogos que, em geral se revela bastante aplicável para desnudar o comportamento de agentes econômicos, países ou mesmo na biologia. Compreende o agente sempre cooperar na primeira jogada de um jogo repetido, sendo que da segunda rodada em diante, ele coopera se os outros agentes cooperaram na jogada anterior e não coopera caso contrário.  Ver Axelrod, Robert (1984), The Evolution of Cooperation, Basic Books, Ver também Axelrod, Robert (1997), “The Complexity of Cooperation: Agent-Based Models of Competition and Collaboration”, Complexity, Princeton University Press,

STJ definirá se cabe multa em agravo interno que trata sobre a aplicação incorreta de precedente qualificado

Gabriela Pimenta R. Lima

Está pendente de julgamento no Superior Tribunal de Justiça o Tema Repetitivo 1201, que trata sobre importante controvérsia que se ampara no artigo 1.021, §4º, do CPC, o qual estabelece que “Quando o agravo interno for declarado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação unânime, o órgão colegiado, em decisão fundamentada, condenará o agravante a pagar ao agravado multa fixada entre um e cinco por cento do valor atualizado da causa”.

Antes de chegar ao STJ, a vice-presidência do TJSC admitiu o REsp 2.043.826, o REsp 2.043.887, o REsp 2.044.040, o REsp 2.043.860 e o REsp 2.044.143 como representativos da controvérsia, com fundamento no artigo 1.036, §1º, do CPC, por discutirem a aplicação do entendimento firmado no Tema Repetitivo 434/STJ, “O agravo interposto contra decisão monocrática do Tribunal de origem, com o objetivo de exaurir a instância recursal ordinária, a fim de permitir a interposição de recurso especial e do extraordinário, não é manifestamente inadmissível ou infundado, o que torna inaplicável a multa prevista no art. 557, §2º, do Código de Processo Civil”.

Por se tratar de recursos selecionados como representativos da controvérsia na origem, quando chegaram ao STJ, o então Presidente da Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, determinou a aplicação do rito previsto nos artigos 256[i] ao 256-D do RISTJ[ii].

A Procuradoria-Geral da República posicionou-se favoravelmente à afetação. As partes, apesar de intimadas, não se manifestaram, e os autos retornaram ao Ministro Sanseverino, que concluiu pela submissão do recurso à sistemática dos repetitivos, salvo entendimento diverso pelo relator, sob o fundamento de que se trata de controvérsia jurídica multitudinária ainda não submetida ao rito qualificado, com relevante impacto jurídico, visto que busca a correta interpretação de norma processual passível de atingir milhares de processos em fase recursal, além de impactar diretamente na efetividade das teses fixadas em sede de precedentes qualificados.

O Ministro Sanseverino ressaltou que o Tema Repetitivo 434/STJ, de relatoria do Ministro Campbell, se deu durante a vigência do CPC de 1973, por essa razão, seria necessário esclarecimento acerca da sua aplicação, considerando-se as disposições do CPC de 2015, consideravelmente importante para a concretização do princípio da segurança jurídica.

Em razão da prevenção, o caso foi distribuído ao Ministro Campbell, para análise da Corte Especial, que em sessão virtual realizada entre os dias 07/06/2023 a 13/06/2023, por maioria de votos, decidiu por afetar o REsp 2.043.826 ao rito dos recursos repetitivos, cuja controvérsia ampara-se no artigo 1.021, §4º, do CPC. Também por maioria, a Corte suspendeu a tramitação de processos com recurso especial e/ou agravo em recurso especial interposto que tratam sobre os temas, em tramitação na segunda instância e/ou no STJ.

Para o relator, a proposta de afetação constitui desdobramento do Tema Repetitivo 434/STJ, mas que tem como peculiaridade a aplicação ou não da tese referida quando o acórdão recorrido se baseia em precedente qualificado. Além disso, que se impõe a ponderação acerca do cabimento da multa quando se alega, em sede de agravo interno, a indevida ou incorreta aplicação da tese firmada em sede de precedente qualificado.

Segundo o Ministro Campbell, é certo que os juízes e tribunais devem observar os precedentes qualificados, especialmente, os acórdãos proferidos em incidente de assunção de competência (IAC) ou de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, conforme previsto no artigo 927, III, do CPC, no entanto, ponderou que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial (seja ela interlocutória, sentença ou acórdão) que se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos, nos termos do artigo 489, §1º, V, do CPC.

Nesse contexto, concluiu que a questão jurídica central deve ser cindida em duas partes, as quais delimitou da seguinte forma:

1) Aplicabilidade da multa prevista no § 4º do art. 1.021 do CPC quando o acórdão recorrido baseia-se em precedente qualificado (art. 927, III, do CPC);

2) Possibilidade de se considerar manifestamente inadmissível ou improcedente (ainda que em votação unânime) agravo interno cujas razões apontam a indevida ou incorreta aplicação de tese firmada em sede de precedente qualificado.

É fundamental compreender os aspectos gerais da discussão acerca do Tema Repetitivo 1201/STJ, e é esse o objetivo do presente artigo.

O §4º do artigo 1.021 prevê que quando o agravo interno for declarado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação unânime, o órgão colegiado, em decisão fundamentada, condenará o agravante a pagar ao agravado multa fixada entre um e cinco por cento do valor atualizado da causa.

De acordo com o dispositivo para que a multa seja aplicada, deve-se observar o preenchimento cumulativo dos requisitos previstos, (1) o recurso ser manifestamente inadmissível ou improcedente; (2) por votação unânime; e (3) a necessidade de decisão fundamentada sobre a aplicação da multa.

O item 1 da questão submetida a julgamento apresenta uma nova hipótese para o cabimento da multa, que é quando o acórdão recorrido se basear em precedente qualificado, nos termos do artigo 927, III, do CPC, contudo, não estão claros os parâmetros para a aplicação dessa nova modalidade.

Em uma primeira leitura, pode-se dizer que bastaria que o acórdão recorrido apenas se baseasse em precedente qualificado para que a multa seja aplicada de forma automática.

E o item 2 apresenta a possibilidade de se considerar manifestamente inadmissível ou improcedente, ainda que em votação unânime, o agravo interno que apontar como razão de seu recurso a discordância da aplicação de precedente qualificado.

Da leitura desse item, poderia se dizer que quando a decisão recorrida se basear em precedente qualificado, o agravo interno por si só já seria manifestamente inadmissível ou improcedente.

Ocorre que o advento do artigo 932 do CPC, as decisões monocráticas passaram a ter mais especificações legais, entre elas, as previstas nos incisos  IV e V, nas quais cabe ao relator julgar monocraticamente com base no enquadramento da situação fático-jurídica recursal em uma matéria anteriormente já julgada em sede de precedente qualificado, como súmula do STF, do STJ ou do próprio tribunal, acórdão proferido pelo STF ou pelo STJ em julgamento de recursos repetitivos e entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência. Essas decisões são classificadas como definitivas ou resolutivas, pois o relator ultrapassa os requisitos de admissibilidade, passando à análise do mérito para negar (inciso IV) ou dar provimento (inciso V) ao recurso[iii].

Apesar de o próprio artigo 932 ter ampliado os poderes do relator, dispensando a análise do órgão colegiado em hipóteses específicas previstas em seus incisos, é direito do jurisdicionado recorrer de qualquer decisão monocrática da qual não concorde por meio do agravo interno, conforme o princípio do acesso à Justiça, garantindo-se a possibilidade de análise recursal pelo colegiado[iv].

Presentes os requisitos indispensáveis à admissibilidade do agravo interno, passa-se a análise do mérito. Nesse ponto, é importante delimitar os termos manifestamente inadmissível e manifestamente improcedente.

Com relação à admissibilidade, o agravo interno não pode ser inadmitido de pronto apenas em razão do argumento da existência de precedente qualificado. A inadmissibilidade somente ocorrerá pelo não preenchimento dos requisitos intrínsecos (cabimento, legitimidade, interesse recursal e inexistência de fato impeditivo ou extintivo) e dos requisitos extrínsecos (tempestividade, regularidade formal, preparo). Além desses, no caso do agravo interno é pressuposto de admissibilidade a impugnação específica de todos os fundamentos da decisão agravada.

Observa-se que os requisitos de admissibilidade não se relacionam à aplicação de precedente qualificado. Por isso, não seria correto presumir como manifestamente inadmissível o agravo interno cujas razões apontam a indevida ou incorreta aplicação de tese firmada em sede de precedente qualificado.

Superada a parte de admissibilidade, passa-se ao mérito do agravo interno, no qual se analisa sua procedência ou improcedência. Penso que no mérito do agravo interno é que se analisaria a aplicação de precedente qualificado ao caso concreto, sendo manifestamente improcedente aquele que sustenta tese contrária a enunciado de súmula ou precedente jurisprudencial qualificado que demonstrar adequadamente as peculiaridades do caso concreto que justifiquem o distinguishing, ou sem evidenciar o overruling.

Portanto, o agravo interno, como mecanismo recursal, ao afastar precedente qualificado aplicado de forma equivocada ao caso concreto não pode ser “manifestamente inadmissível”, em razão da técnica processual, conforme explicado anteriormente, e nem “manifestamente improcedente”, pois é necessário que o julgador analise os argumentos apresentados pelo agravante para depois concluir se aquele precedente se aplica ou não ao caso concreto.

 O fato de existir precedente qualificado não é argumento suficiente para se concluir pela inadmissibilidade ou improcedência do agravo interno, aplicando-se a multa de forma automática.

Sobre esse ponto, esta Corte já proferiu entendimento segundo o qual “a aplicação da multa prevista no § 4º do art. 1.021 do CPC⁄2015 não é automática, não se tratando de mera decorrência lógica do não provimento do agravo interno em votação unânime”, concluindo que a “condenação do agravante ao pagamento da aludida multa, a ser analisada em cada caso concreto, em decisão fundamentada, pressupõe que o agravo interno mostre-se manifestamente inadmissível ou que sua improcedência seja de tal forma evidente que a simples interposição do recurso possa ser tida, de plano, como abusiva ou protelatória”[v].

Inclusive, a análise de novos argumentos que apontem para a incorreta aplicação de precedente qualificado é fundamental para o desenvolvimento do sistema de precedentes, garantindo a segurança jurídica a partir do fortalecimento de teses jurídicas firmadas em precedentes qualificados em razão da devida análise da ratio decidendi.

A condenação do agravante ao pagamento da multa deve ser analisada em cada caso concreto e por meio de decisão fundamentada, nos termos do artigo 489, §1º, V, do CPC, segundo o qual não se considera fundamentada qualquer decisão judicial (seja ela interlocutória, sentença ou acórdão) que se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.

Por um lado, é ônus o agravante apresentar em seu recurso a adequada dialeticidade entre o caso concreto e o precedente qualificado, como um pleito de revisão de tese e/ou superação de precedente utilizado. Por outro, é ônus do julgador analisar tal distinção e proferir decisão fundamentada quanto a aplicação do precedente qualificado, e não simplesmente aplicar a multa porque no mérito do agravo interno se discute a (in)aplicabilidade de precedente qualificado.

É inegável a importância da discussão do Tema Repetitivo 1201/STJ, haja vista que o STJ precisará definir a forma como se dará a aplicação da multa prevista no §4º do art. 1.021 do CPC, quando o acórdão recorrido se basear em precedente qualificado, pois pode se tratar de limitação ao direito recursal do jurisdicionado de boa-fé de acesso à decisão colegiada. Também não podemos deixar de mencionar que se trata de uma importante ferramenta para o aprimoramento do sistema de precedentes, quanto à distinção e superação de precedentes, evitando-se o engessamento do direito e garantindo-se a segurança jurídica.


1 Art. 256. Havendo multiplicidade de recursos especiais com fundamento em idêntica questão de direito, caberá ao presidente ou ao vice-presidente dos Tribunais de origem (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal), conforme o caso, admitir dois ou mais recursos especiais representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando os demais processos, individuais ou coletivos, suspensos até o pronunciamento do STJ.

2 Art. 256-D. Caso o Presidente do STJ admita o recurso especial, determinará a distribuição dos autos nos seguintes termos: I – por dependência, para os recursos especiais representativos da controvérsia que contiverem a mesma questão de direito; II – de forma livre, mediante sorteio automático, para as demais hipóteses.

3 LEMOS. Vinicius Silva. Recursos e Processos nos Tribunais. 5 ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021, p. 448-449.

4 LEMOS. Vinicius Silva. Recursos e Processos nos Tribunais. 5 ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021, p. 450.

5 STJ, AgInt nos EREsp n. 1.120.356/RS, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 24/8/2016, DJe de 29/8/2016.

Um olhar especial sobre o modelo brasileiro

Marco Aurélio Bittencourt

Falar sobre desenvolvimento inclui, necessariamente, um mesmo olhar sobre crescimento econômico. Já sabemos os contornos para o crescimento econômico: capital físico e humano, população, tecnologia, progresso tecnológico e Instituições. Mas ligar esses elementos de tal sorte que desabroche o modelo de desenvolvimento tem sido o esforço dos economistas. Tarefa até o momento inglória, por conta principalmente do item instituições que é difícil medi-la adequadamente para o teste sempre necessário. Por essa razão, o apelo às narrativas (também etapa necessária na condução científica do assunto) tem sido empregado a rodo.

Particularmente, não me adequo a nenhuma das versões, embora abrace a ideia do rent seeking (Caçador de rendas). O que esboçarei tem um pé nessa ideia de rent seeking e instituições (Veja Democracy and Growth in Brazil, Marcos Lisboa e Zeina Latif).

Meu modelo começa com a chamada hipótese de Domar que, ao analisar a escravidão, coloca a hipótese de que não podem conviver conjuntamente classe ociosa, terra livre e trabalhador livre. Para a existência de classe ociosa, necessariamente tem-se trabalhador não livre ou terra não livre. Isso retrata bem o que aconteceu no Brasil em tempos imperiais. A elite brasileira (classe ociosa) já tinha em conta que, desde o segundo quartel do século XIX 1830-1840, a escravidão teria fim. A experiência inglesa de libertação dos escravos em suas colônias em 1883 feita gradualmente até 1840 era o espelho que se refletiria à América do Sul. Por conta disso trataram de inverter um dos elementos da hipótese de Domar: trocaram terra livre e trabalhador não livre, por terra não livre e trabalhador livre. Isso se deu com a lei das terras em 1850, mas a transição foi totalmente diferente das colônias inglesas. Durou quase 40 anos.

O que esse esquema da hipótese de Domar revela? Simples. Se deixarem as portas das oportunidades de negócios abertas, não poderá haver classe ociosa. Evidentemente que essa hipótese é cristalina quando se analisa a escravidão. Fica mais complexo, num contexto sem escravidão. Falta agora identificar os elementos que substituam a terra não livre. Faço um esforço especulativo e adianto as seguintes quebras estruturais.

  1. Derrubada do Império
  2.  Acordo de Taubaté e acordo dos governadores
  3. Revolução de 1930
  4. Derrubada do modelo nacionalista com a morte de Getúlio Vargas e ascensão de JK
  5. Ditadura militar e aprofundamento dos acordos com a elite
  6. Redemocratização e nova república
  7. Plano Real

Para esse fim, usarei como referência básica o gráfico abaixo que retrata o salário-mínimo em termos de poder de compra de 1 jornal, O Estadão. Para o período Imperial, usaremos uma referência estimada do equivalente ao salário-mínimo.

Fácil ver que estaríamos melhor com o Imperador do que com a república. Tivemos um período exitoso: Getúlio Vargas.

As quebras estruturais indicadas representam os marcos importantes para referência sobre desenvolvimento ou subdesenvolvimento brasileiro. O período imperial pode ser caracterizado, no padrão da Hipótese de Domar, como terra livre, trabalhador não livre e classe ociosa. Os destaques seriam: lei das terras de 1850 e construção das ferrovias. No final do período teríamos, então, terra não livre, trabalhador livre e classe ociosa, destacando-se a política imigratória que teria duas ramificações: a colonização do sul e o setor de cafeicultura – política essa de colonização do sul que se mostra exitosa e duradoura ao olharmos o padrão de vida dessa região e em especial o de Santa Catarina.  

No segundo período que corresponde a velha república, o modelo prossegue no compasso terra não livre, trabalhador livre e classe ociosa. O destaque seriam os acordos de Taubaté (1906) e a modernização destruidora. O acordo de Taubaté garantiu a renda dos plantadores de café e a extinção gradual dos acordos de cooperação no campo, com o aumento da concentração de renda no campo. A modernização destruidora abriu espaço para a especulação imobiliária que modificou para pior o padrão urbanístico do país. Fácil ver que, fazendo uma avaliação simples, a construção de um edifício de 10 andares com 40 apartamentos de 140 m2 cada um poderia dar um lucro, em preço atual, de cerca de 20 milhões. História não contada ainda pelos pesquisadores sobre cidades brasileiras. Certamente, fonte de recursos para outros empreendimentos. A destruição urbanística significa ausência de plano diretor consistente e duradouro nas cidades importantes. Era um modelo que tinha sua força de crescimento, mas concentradora e provavelmente traria um achatamento salarial pela dominância de um estilo de modelo escravocrata sem escravos, mas com oportunidades restritas às pessoas analfabetas e de visão negocial quase nula. Acrescente-se também o fortalecimento da indústria, no contexto protetivo.

No terceiro período, a reação a um modelo concentrador e ausente de políticas publicas reparadoras. Veio a revolução de 1930 com Getúlio Vargas na liderança. Figura complexa do ponto de vista histórico, mas que deixou marcas de mudanças sociais relevantes tanto na educação, quanto na economia propriamente dita. Seu rumo era um nacionalismo que se identificava com o espectro político da direita e não com a esquerda, embora as fantasias políticas indicassem exatamente o contrário. O fato é que foram criadas instituições relevantes que deram conta dos códigos de água, do subsolo e das empresas públicas estratégicas e outros empreendimentos relevantes para a economia do país, em destaque para o setor industrial e mineral. Getúlio tinha claro a moralidade e o sentido público dos seus atos. Clamava pelos empresários brasileiros por investimentos que geralmente pediam favores, traduzidos em proteção e dinheiro fácil. Criou a siderúrgica nacional, a fábrica nacional de motores e tantas outras empresas que modernamente seriam consideradas eixo de políticas industriais. Mas ele era o empecilho para que o sistema político que fecha as portas das oportunidades aos mais pobres voltasse retumbante. Foi-se Getúlio e veio outra figura carismática, Juscelino Kubitscheck (JK), mas de compromisso com o povo em outra dimensão prática.

Chegamos ao quarto período: JK e seus acordos políticos com a elite. Primeiro foi com a construção civil embalada pela mesma modernidade que fechou o Império. Veio Brasília e acordos industriais de peso. Trata-se da indústria automobilística, com a garantia às multinacionais do mercado interno, em troca da franja das autopeças ao baronato paulista.  Com a desordem orçamentaria, iniciou-se uma redução efetiva do poder de compra dos trabalhadores, embora sustentasse uma taxa de crescimento satisfatória. Mas estava aqui o retorno ao poder do grupo baronato, retomando as rédeas políticas. Sua herança política foi trágica: Jânio que tentou um retorno liberal, mas não nos moldes de Getúlio Vargas e, por artimanha própria, viu-se obrigado a renunciar. Veio Goulart que acenava um retorno às estratégias socioeconômicas de Vargas. Não conseguiu e sucumbiu ao golpe militar de 1964.

Chegamos, então, a quinta quebra estrutural: o modelo estatizante e manutenção dos pactos com o baronato. Esse é um período complexo, mas preso aos acordos prejudiciais à população e de moldura política ainda pouco desvendada, embora haja material jornalístico de peso para fundamentar uma análise robusta: Ver o acervo do jornalista Carlos Castello Branco. (um dos maiores analistas do sistema político brasileiro e que serviu de ponte de comunicação entre políticos civis e o grupo duro dos militares  www.carloscastellobranco.com.br ). Mas a lógica do poder militar não é difícil de perquirir. O rodízio do poder estava amarrado a grupos privados e o lugar-tenente era o comando do SNI. Independentemente da filiação do General-Presidente ao seu grupo de interesse, os demais grupos não eram açodados pelo grupo privilegiado. Pelo contrário, sempre dividiram o butim. O fato relevante para a derrocada do regime militar se deu com Geisel que estava associado ao grupo da petroquímica alavancado por sua política de combustível. Veio a crise do petróleo e o próprio Geisel, com a estratégia amalucada do todo poderoso Mario Henrique Simonsen (um péssimo policymaker!) de endividar o país, decretou que o modelo estaria falido. A desordem orçamentária tomou conta do processo político e a batida em retirada foi arquitetada por Golbery: escantear o grupo nacionalista e catapultar o grupo conivente com a ditadura. Chegamos a nossa sexta quebra estrutural: a nova república.

O grupo político que chega ao poder com o fim da ditadura militar vai ser representado pelo mesmo grupo que já bajulava o circo do poder após a morte de Getúlio Vargas. Com o desequilíbrio interno e externo passamos por um período inflacionário sem precedentes. Nada de novo foi feito e mantivemos os mesmos pactos que começaram a ser desfeitos em pequena escala pelo governo Collor – mas não por razões nacionalistas e sim por interesse próprio do grupo palaciano em participar do grupo das autopeças – a franja industrial cedida ao baronato paulista, em troca da reserva de mercado às multinacionais. O desiderato desse período foi a entrega do Plano Real pelo Presidente Itamar Franco.

Isso nos leva á última quebra estrutural: O Real. Nada de novo acontece após o real que poderia, em seu início, resolver definitivamente o nó orçamentário e acatar em plenitude a Constituição de 1988. Mas o caminho escolhido pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso foi outro totalmente distinto.  Chegava ao poder a esquerda leopardo: tudo muda para nada mudar!

O gráfico indicado sugere essas quebras: a herança do período Imperial é salutar, mas a primeira república reduz o patamar do poder aquisitivo do populacho. Veio o período de Getúlio Vargas que sopra uma esperança nacionalista refletida na montanha russa que chega ao limite e começa a definhar com JK que ainda entrega um patamar de poder aquisitivo razoável. Veio a ditadura que não consegue devolver sequer o patamar final do governo JK. Inicia-se um período de deterioração do poder aquisitivo que se prolonga com a chegada ao poder do grupo bajulador. A transmissão do poder à esquerda brasileira tupiniquim continua com a derrocada do poder aquisitivo, só inflexionada pela mesma esquerda tupiniquim, mas sob o comando de outro marinheiro: Lula. O fato auspicioso é que, com exceção do período nacionalista de Getúlio, toda mudança estrutural rebaixa o patamar do salário real e ainda não conseguimos recuperar o patamar Imperial. Que volte o Imperador!