Vertentes de impunidade

Adriana da Costa Fernandes

O ano começa, de fato, no Distrito Federal. A celebração do susto e tristeza do 8 de janeiro de 2022 já ficou para trás. A reconstrução já se fez. A consciência ficará. Ao menos deverá. Deveria, em cada democrata brasileiro. No dia 22 último, acabou o recesso do Judiciário e os prazos voltaram a correr, assim como a vida de muitos.

O novo Ministro da Justiça e da Segurança Pública e o novo Ministro do Supremo Tribunal Federal, como se sabe, o antigo responsável pela Justiça e Segurança, já entraram em fase transição de pastas. A primeira grande reunião já aconteceu, onde a pauta de prioridades já foi devidamente anunciada. Os principais responsáveis do primeiro Ministério já foram definidos.

E assim o país caminha, começando 2024.

Entre negativas orçamentárias, batalhas para a redução de nababescos salários, num cenário de fortes chuvas, desastres, sofrimento de famílias que perderam tudo, criminalidade nas alturas e assassinatos ao ar livre, a notícia hot spot até agora, foi a de que, segundo um levantamento da empresa de soluções de cyber segurança Fortinet, com base nos dados do FortiGuard Labs, o Brasil foi considerado, no ranking da América Latina e Caribe, o 2° (segundo) país com maior número de ataques cibernéticos, contando com 103,1 bilhões de tentativas, considerado um aumento de 16,1% quando comparado ao ano de 2021.

Destaque-se que no México, o país que lidera o mesmo ranking, rememorando até a caótica situação nacional em relação ao crime organizado, foram computados 187 bilhões de tentativas de ataque no mesmo no ano de 2022.

Ainda que se compare a extensão territorial entre os dois países, os números não fazem qualquer sentido. Em especial, quando considerados o contexto e a proximidade de México e Estados Unidos e, ainda, a questão cultural tão diferenciada entre Brasil e México, sem que se pretenda aprofundar aqui este último tópico.

Ressalte-se outros aspectos gritantes, alguns fatos nacionais inesquecíveis, tais como os 67,8 milhões de pessoas que vivem na pobreza e os 12,7 milhões na extrema pobreza, estes considerados os que vivem com menos de US$ 2,15, segundo parâmetros do Banco Mundial, no ano de 2022, em um país continental absolutamente rico em biomas, solo, criatividade, inovação, cultura e vastidão. O que há de errado, afinal?

Tudo isto motivo de choque absoluto. Causando comoção, impacto, dor e transtorno para quem vive, de fato, acordado no dia a dia e não em bolhas. Horror e medo, ainda que intrínseco, em crianças, adolescentes e idosos.  

E ainda, ocasionando receio em trabalhadores que, por exemplo, não contam hoje mais com as antigas estruturas de TI das determinadas empresas, atuando em home office. Muitos lidando com o filho que grita, o marido que fala alto, o cachorro que late, a televisão aos berros, a cadeira ruim, a panela no forno. Isto pelo fato de que maioria das empresas remotas não se preocupa em bem-estar e montar uma estação de trabalho adequada ao colaborador.

Da mesma forma, boa parte destes funcionários, em geral terceiros temporários, precisa conviver com equipamentos ruins, usualmente frágeis em segurança, pois, muitas empresas, até mesmo as governamentais, exigem que se use seu próprio equipamento pessoal, computadores e até mesmo os telefones celulares, mesmo que o salário a receber nem seja tão bom. E o pior vem daí, no dia a dia, com a problemática constante dos equipamentos, o que acaba por exigir a intervenção das áreas de TI terceirizadas, com alta rotatividade de Profissionais. O acesso normalmente é efetivado por meio de acesso remoto, entretanto, lembrando que o dito equipamento pessoal, normalmente da família, possui dados sensíveis, segundo a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, e questões como, Declarações de Imposto de Renda, fotografias, textos e histórias de toda uma história. Ou seja, seres humanos absolutamente vulneráveis, a sei lá quem, sei lá como.  

Alguém dirá: – Ah, simples, coloque tudo isso num HD Externo e formate a máquina.

Parabéns para você que entende e sabe como fazer isso, mas se recorde que este não é um panorama nacional.

Seja bem-vindo à realidade do trabalho 4.0. Da mesma forma, que do voluntariado 4.0. Caos. Virou política.

Entender atualmente sobre cyber defesa é a alma do negócio. Compreender o que é trojan, phishing, que não se pode mais compartilhar o cabo do carregador com ninguém, pois ele armazena informações, nem o mouse (reverse shell), nem o carregador, de forma geral, até no transporte de aplicativo. Por favor, lamento. Prepare-se para antes de sair ter carga celular suficiente e sempre se manter em paz.

Para quem não entende nada sobre teletrabalho, leis trabalhistas atuais e as mudanças ocorridas, TI, telecomunicações, instalações técnicas mínimas, algo de segurança cibernética, a sugestão é buscar conhecimento básico na internet, em sites confiáveis. E, minimamente, manter um pequeno fundo de reserva e o contato de um profissional de real confiança da área. Da mesma forma, o contato de um Advogado Generalista que, quando não puder apoiar, possa lhe indicar bons Especialistas na hora certa. E seguir sempre! Com foco, fé e paciência.

O curioso destes momentos de transição de eras é perceber que ao Ser Humano caberia, ao entrar numa fase de maior maturidade da vida, uma de maiores conquistas e facilidades, como essa em que o mundo está vivenciando, agir com profunda e maior sabedoria, o que já deveria ter adquirido até aí. Ainda que se mantenha sendo testado e enfrentando determinadas situações cotidianas desafiadoras, consideradas ajustes, para finalmente auferir seu real grau de amadurecimento, face obter a permissão efetiva de sua entrada em seu no novo patamar evolutivo. Porém, não é o que se percebe. Lamentavelmente, muitos sequer entenderão.

Nestes momentos, é esperado do homem um maior grau de humanidade e de consciência, seja quanto ao mérito das situações, seja acerca de seus propósitos, seja quanto a ambos. Não se tem visto isto.

Esta é exatamente a fase em que o Brasil se encontra agora, de amadurecimento social e democrático, quando todos se olham por dentro. Afinal, quem é cada brasileiro atualmente?

Do que se trata aqui, ao fim, é da esperada postura social, humana, fática e ética pessoal. Do como cada indivíduo nacional tende a se portar, pensar e se sentir no Brasil de hoje, olhando para si no espelho e ao outro.

Será que isto é conhecido em termos de macro governança? Como cada um pensa detalhadamente, por exemplo, do que importa aqui, acerca de segurança, corrupção e transparência?

Note, a questão é tão relevante, acerca do tema “corrupção”, impactando diretamente em “segurança”, que em dezembro de 2023, a Transparência Internacional, publicou o livro “Democracia e Políticas Públicas Anticorrupção”, reunindo artigos de especialistas compreendendo que este é um dos maiores obstáculos para a estabilidade no Brasil e no mundo. O entendimento do trabalho é o de que comprometer as políticas públicas sobre democracia impacta fundamentalmente no desenvolvimento do país e na busca pela justiça social, minando a confiança dos cidadãos nas instituições nacionais e sendo relevante atuar mais fortemente pela melhoria do monitoramento e da regulação destas políticas.[i]

Entretanto, é entendido, ainda, como necessário que cada cidadão, individualmente, compreenda seu papel essencial nesta rede instalada. Herança cultural ou não, o fato é que a consciência se instalou e o tempo de reposicionamento coletivo nacional já urge.

No mesmo ano passado, em setembro, o Grupo de Trabalho Antissuborno da OCDE (WGB, em inglês) publicou um relatório acerca da 4ª (quarta) fase da avaliação sobre o cumprimento pelo Brasil da Convenção Antissuborno da OCDE, o qual foi aprovado após sabatina da delegação brasileira acerca de seus resultados, o que ocorreu em sua na sede em Paris.

O documento aborda, ainda, a independência efetiva dos Agentes da Lei, expressando severas preocupações com o dito “efeito inibidor” (chilling effects) decorrente da combinação da ampliação da Lei de Abuso de Autoridade, de recentes ações disciplinares e de medidas cíveis e criminais contra Procuradores em casos de corrupção.

Da mesma forma, sobre o viés político interno, no que diga respeito aos patamares diários sobre os quais, não somente as Autoridades precisam lidar, mas cada Brasileiro, parece que a vida se tornou muito mais difícil cotidianamente neste início de era digital. Tornando, assim, cada pequena tarefa e ação uma espécie de pequena missão. Não era para ser assim. A tecnologia existe para transformar vidas, facilitar contextos e deixar o homem mais livre e tranquilo.

Em verdade, a sociedade digital brasileira ainda está criando e aprendendo a lidar com seus próprios códigos de conduta.

E em linha geral, os cidadãos já estão até um tanto cansados de lidar com certas empresas que se dizem digitais, sem, de fato, carregarem a digitalização em seus DNAs ou culturas assumidamente. Apenas apelando, no discurso, para não perderem seus consumidores e errando muito e sem solução. A era digital é a de User Experience – UX, dotada de uma lealdade escolhida e derivada de uma excepcional experiência, jamais por falta de opção. Como deve ser na vida.

Do que se espera é que com a chegada dos novos Ministros de peso e relevância, tudo em breve melhore significativamente, inclusive, acerca da revisão e amadurecimento do impacto das leis penais e probatórias pró “hackeado” e automaticamente, pró consumidor digital e pró funcionários em tele trabalho. Talvez venham decisões em efeito cascata. Como prever?

Por fim, se reclamar por direitos legítimos se tornou um suplício ao consumidor; e se, da mesma forma, as delegacias de cyber segurança, lotadas de denúncias e com pouca qualificação efetiva, estão praticamente exigindo explicações muito detidas, ainda via formulários, de quem vai pedir socorro pessoalmente, às vezes de bengala; e se os boletins de ocorrência não caminham no tempo efetivo dos acontecimentos, dificultando a avaliação fática do ocorrido; o ponto chave que cabe ao cidadão brasileiro é não desistir jamais. Afinal, desistir não é viável, não é possível e não é uma opção a ninguém neste país. Há muito a ser feito.

O Brasil precisa realmente aprender a exercer seus direitos com efetividade, clareza e ética.

Sigamos! Juntos.


[i] www.transparênciainternacional.org.br;  – “LIVRO DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS ANTICORRUÇÃO” – outubro de 20223;

Ônus da prova no processo administrativo do CADE

Distribuição dinâmica do ônus da prova

Mauro Grinberg

Todos os processos, de quaisquer categorias, necessitam de provas, ressalvadas determinadas hipóteses de confissões. Os julgadores julgam os processos de acordo com as provas existentes nos autos, ressalvados os fatos notórios. Mas é muito importante saber quem tem o ônus de fazer a prova ou até mesmo quem ganha e quem perde com a prova.

Em primeiro lugar, vejamos que o ônus da prova não é uma obrigação e sim uma faculdade, um direito. Artur Thompson Carpes bem expõe que “o ônus da prova impõe à parte onerada, portanto, a opção entre cumprir e não cumprir o encargo probatório”[1]. Ou seja, a parte incumbida tem o direito de fazer a prova e o não uso desse direito obviamente terá consequências quando da prolação da decisão pelo julgador.

O Código de Processo Civil (CPC) – aplicável ao processo administrativo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), de acordo com o art. 115 da Lei 12.529/2011, no seu artigo 373, incisos I e II, estabelece que “o ônus da prova incumbe” “ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito” e “ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”.

Ou seja, levando a dúvida para o campo do processo administrativo sancionador do Cade, que é aberto pela autoridade concorrencial, deve-se prever que os atos e/ou fatos – que constituem a infração da ordem econômica cuja sanção é objeto do processo – devem ser provados pela mesma autoridade, sendo que, se o acusado tem como demonstrar que aqueles atos e/ou fatos não constituem infração da ordem econômica, tem o direito à produção da prova.

Como explicam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhardt, “a regra do ônus da prova é um indicativo para o juiz se livrar do estado de dúvida e, assim, julgar o mérito e colocar fim ao processo”[2]. Como o julgador não pode deixar de julgar (art. 48 da Lei 9.784/1999: “A Administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência”). A regra do ônus da prova serve para por ordem na instrução, inclusive no processo administrativo sancionador do Cade (considerando aqui as partes como Representante e Representado).

Todavia, o parágrafo 1º do art. 373 do CPC apresenta uma possibilidade de alteração da norma principal: “Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”.

Antes de falar sobre o que se convencionou chamar de distribuição dinâmica do ônus da prova, é importante mostrar que o texto legal trata de “oportunidade” de provar e não em obrigação de provar, o que se coaduna com o princípio penal (aqui também aplicável) de não obrigação de fazer prova contra si mesmo.

Há diversas possíveis situações que se encaixam na distribuição dinâmica do ônus da prova. Uma parte acusada sabe que em certo órgão público há documentos que podem constituir “fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito” do Representado. Como ele não tem acesso legítimo àquele órgão público, pode pedir que o Representante envie ofício com o pedido de fornecimento dos documentos em questão. Havendo vários Representados, um pode ter o interesse legítimo de que outro forneça documentos e/ou informações de que é possuidor. E há a hipótese muito frequente no Cade de requisição de documentos e informações contábeis do Representado. É claro que a exemplificação pode ser bem extensa.

Mesmo antes da promulgação do CPC, a distribuição dinâmica do ônus da prova já era praticada, como é exemplo o item 2 da ementa da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Relator o Ministro Luis Felipe Salomão, no Recurso Especial 619.148-MG, julgado em 20.05.2010: “Ademais, à luz da teoria da carga dinâmica da prova, não se concebe distribuir o ônus probatório de modo a retirar tal incumbência de quem poderia fazê-lo mais facilmente e atribui-la a quem, por impossibilidade lógica e material, não o conseguiria”.

Também o item 7 da ementa da decisão do STJ nos Embargos de Declaração no Recurso Especial 1.268.704-SP, Relatora a Ministra Nancy Andrighi: “Embora não tenha sido expressamente contemplada no CPC, uma interpretação sistemática da nossa legislação processual, inclusive em bases constitucionais, confere ampla legitimidade à aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, segundo a qual esse ônus recai sobre quem tiver melhores condições de produzir a prova, conforme as circunstâncias fáticas de cada caso”.

Assim, o parágrafo 1º do art. 373 do CPC só veio normatizar o que, por força da jurisprudência interpretativa, já se aplicava. Todavia, deve-se levar em conta que, como diz Vítor de Paula Santos, “as soluções de atribuir supostamente um ônus da prova para a parte (…) são inidôneas para o fim de obter uma busca da verdade com maior qualidade”[3]. O mesmo autor explica: “Isso porque não servem de verdadeiros estímulos jurídicos para que a parte produza uma prova quando esta lhe é desfavorável (…) sendo o advogado (e a própria parte, como o próprio nome sugere) um sujeito parcial, não tem (e nem pode ter) preocupação direta com a busca da verdade”[4].

Essa desobrigação da busca da verdade não se aplica, todavia, à autoridade administrativa e, em especial, à autoridade concorrencial, que deve obedecer ao princípio da legalidade, que consta tanto do art. 2º da Lei 9.784/1999 quanto (e principalmente) no art. 37 da Constituição Federal, tendo, no parágrafo único do artigo desta lei, os critérios, por exemplo, de “atuação conforme a lei e o Direito”, “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé” e outros. Mas a busca da verdade deve ser seu objetivo maior. Não se está a dizer aqui que a parte pode atuar sem probidade, sem decoro e com má-fé. Mas a autoridade é que personifica a pessoa maior, ou seja, o Estado.

O que se encontra não só na prática mas também na doutrina é a obrigação da autoridade de provar a materialidade e a autoria de qualquer infração da ordem econômica que resulte na abertura de processo administrativo sancionador, lembrando-se o que prescreve o parágrafo 2º do art. 373 do CPC, segundo o qual a distribuição diversa do ônus da prova “não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil”.

A autoridade, assim, exerce função central na atividade pronbatória. A obrigação estatal está sempre presente, como esclarecem Irene Patrícia Hohara e Thiago Marrara, segundo os quais, “mesmo em processos administrativos destinados a viabilizar o exercício de seus direitos ou interesses individuais (…), seu ônus probatório não exclui o dever de a Administração colaborar com a produção de provas”[5].

Confirma Egon Bockmann Moreira: “O fato de o particular ter pleiteado a produção de prova específica, e caso sua produção lhe seja atribuída, isso não derroga o dever administrativo de realizar atividade probatória (desde que essencial à discussão travada nos autos”[6].

De tudo o que vai acima exposto, tem-se que, no processo administrativo sancionador do Cade, a autoridade concorrencial tem o dever de fazer a prova da infração que quer sancionar, podendo, em situações nas quais é muito mais fácil para o Representado o cumprimento desse ônus, atribui-lo ao Representado – desde que não seja acarretado ônus excessivo – que, todavia, tem o direito de não fazer prova contra si mesmo. O ônus maior é sempre da autoridade.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, Mestre em Direito, advogado especializado em Direito Concorrencial, sócio de Grinberg Cordovil Advogados


[1] ”Onus da Prova no Novo CPC”, RT, São Paulo, 2017, pág. 33

[2] “Prova e Convicção de Acordo com o CPC de 2015”, RT, São Paulo, 2015, pág. 194

[3] “Ônus da Prova no Processo Civil”, RT, São Paulo, 2015, pág. 95

[4] Obra e página citadas

[5] “Processo Administrativo”, RT, São Paulo, pág. 294

[6] “Processo Administrativo”, Malheiros, São Paulo, pág. 366

A Nova Indústria Brasil: Os problemas passados justificam a estratégia da não-ação?

Cristina Ribas Vargas

Na data de 22 de janeiro de 2024 o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) entregou à Presidência da República o documento que pauta a nova política industrial brasileira, o NIB – Nova Indústria Brasil. Serão R$ 300 bilhões para o financiamento da industrialização, denominada de neoindustrialização, até 2026. A gestão dos R$ 300 bilhões ficará a cargo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). O montante será disponibilizado via linhas específicas, não reembolsáveis ou reembolsáveis, e recursos por meio de mercado de capitais, dentro da estratégia de promover a indústria no país. Dentre os principais pontos do documento estão: Concessão de linhas de crédito para projetos de inovação sob condições facilitadas (TR + 2% a.a.), e decretos que determinam que compras públicas concedam margens ou preferências para produtos nacionais.

O documento apresenta seis missões cujo prazo para serem atingidas é 2033:

  1. Missão 1: Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética: a meta prevista para ser atingida é “aumentar a participação do setor agroindustrial no PIB agropecuário para 50% e alcançar 70% de mecanização dos estabelecimentos de agricultura familiar, com o suprimento de pelo menos 95% do mercado por máquinas e equipamentos de produção nacional, garantindo a sustentabilidade ambiental”. Um dos principais mecanismos de financiamento a ser utilizado nesta missão é o sistema de crédito não reembolsável.
  2. Missão 2 – Complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde: Os principais instrumentos para viabilizar essa missão são: prioridades de financiamento à inovação com linhas de recursos não reembolsáveis, racionalização do custo regulatório referentes a compras governamentais, propriedade intelectual e infraestrutura.
  3. Missão 3 – Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades: a meta é reduzir o tempo de deslocamento de casa para o trabalho em 20%, e aumentar em 25 pontos percentuais o adensamento produtivo na cadeia de transporte público sustentável. Os nichos industriais previstos a serem desenvolvidos são: eletromobilidade, cadeia produtiva de bateria, construção civil digital e de baixo carbono, e indústria metroferroviária.
  4. Missão 4 – Transformação digital da indústria para ampliar a produtividade: tem como missão aspiracional “Transformar digitalmente 90% das empresas industriais brasileiras, assegurando que a participação da produção nacional triplique nos segmentos de novas tecnologias.” Os principais nichos a serem desenvolvidos são indústria 4.0, produtos digitais e semicondutores.
  5. Missão 5 – Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as gerações futuras: tem como meta “promover a indústria verde, reduzindo em 30% a emissão de CO2 por valor adicionado da Indústria, ampliando em 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes e aumentando o uso tecnológico e sustentável da biodiversidade pela indústria em 1% ao ano”. Os principais segmentos a serem incentivados são bioenergia, equipamentos para a geração de energia renovável, e cosméticos.
  6. Missão 6 – Tecnologias de interesse para a soberania e defesa nacionais: o objetivo é obter autonomia na produção de 50% das tecnologias críticas para a defesa. As áreas a serem desenvolvidas para esse fim são energia nuclear, sistema de comunicação e sensoriamento, sistema de propulsão, veículos autônomos e remotamente controlados.

Em todas as missões objetivadas listadas acima são instrumentos para sua viabilização: financiamentos não reembolsáveis, alterações em instrumentos regulatórios, procedimentos de contratações públicas e direitos de propriedade intelectual.

O documento vem na esteira de um sentimento de salvaguarda da democracia, em que o setor produtivo privado e o governo brasileiro o apresentam como o resultado de um diálogo fortalecido entre as partes. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) elogiou a nova política industrial como sendo o centro estratégico para o desenvolvimento do país.  Na mesma linha, para a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o lançamento da nova política industrial é a demonstração de que o governo federal reconhece a importância da indústria de transformação para colocar a economia brasileira entre as maiores do mundo. Para a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs)os objetivos previstos no programa estão corretos e em sintonia com o trabalho realizado pelo Grupo de Política Industrial da entidade”.

Os críticos logo apontaram os déficits públicos, a incapacidade do governo de escolher os segmentos econômicos corretos a serem incentivados, e a corrupção a que estará sujeita o país na execução desses projetos. Termos como “politização da indústria’, favorecimentos aos amigos do rei, investimentos em um “parque industrial ultrapassado” já podem ser ouvidos nos meios de comunicação. Há que se reconhecer dois pontos: as metas são ambiciosas para serem atingidas em dez anos. Investimentos em inovação, pesquisa e desenvolvimento podem levar várias décadas até serem alcançados, mesmo em países em estágio de desenvolvimento mais avançados do que o Brasil. Além disso, os instrumentos a serem utilizados para alavancar esse novo processo de industrialização carecem de maior segurança jurídica-institucional. Quando falamos de crédito não reembolsável, é preciso considerar que há instituições públicas que ainda discutem internamente as regras de cobrança de créditos concedidos há mais de três décadas, por exemplo, ou ainda, quanto às contratações públicas, quais dispositivos da Lei de licitações poderão estar em conflito com a proposta de contratações preferenciais. São aspectos que dizem respeito aos procedimentos de execução diária da administração pública, e cuja implementação demora algum tempo até que possam ser operacionalizados.

Contudo, apesar de todas as críticas mencionadas acima, é preciso reconhecer que a neoindustrialização deriva do esgotamento do modelo neoliberal em conduzir a economia brasileira a maiores patamares de participações na indústria global. Enquanto anos 1980 o Brasil representava em torno de 3% de participação na formação do valor adicionado global, na década de 2010 essa contribuição caiu para pouco mais de 1%. Os investimentos feitos pelo Estado são necessários, desde que resultem em entregas de qualidade à sociedade, e estejam de fato vinculados a geração de empregos, inovação e aumento de produtividade. A não-ação não é uma estratégia de desenvolvimento nacional aceitável. Para que isso que ocorra, é necessário cada vez mais uma fiscalização ativa da população. É imperioso que as metas e detalhamento dos projetos de industrialização estejam ao alcance e conhecimento de todos, para que seu cumprimento seja acompanhado durante seu período de execução, e não percamos a metroferrovia da história.

https://jornalggn.com.br/analise/o-brasil-e-o-desafio-da-reindustrializacao-por-andre-cunha-e-alessandro-miebach/

https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/brasil-ganha-nova-politica-industrial-com-metas-e-acoes-para-o-desenvolvimento-ate-2033

https://www.portaldaindustria.com.br/cni/

https://www.fiergs.org.br/

https://www.fiesp.com.br/

Novo arcabouço legal para as avaliações de interesse público em medidas de defesa comercial

Fernanda Manzano Sayeg

A avaliação de interesse público é um mecanismo presente em diversos países, incluindo Brasil, Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido, que permite que uma medida antidumping ou compensatória seja suspensa se for verificado que os efeitos da medida na economia são mais prejudiciais do que os benefícios gerados com sua aplicação.

No Brasil, a avaliação de interesse público é um processo administrativo conduzido pelo Departamento de Defesa Comercial (DECOM), da Secretaria de Comércio Exterior (SECEX) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). O instrumento tornou-se muito popular nos últimos anos. Atualmente, os seguintes direitos antidumping encontram-se suspensos por questões de interesse público: direito antidumping aplicado às importações de aço GNO da China, Coreia do Sul, Taipé Chinês e Alemanha; direito antidumping aplicado às importações de fios texturizados de poliéster da China e da Índia; e direito antidumping aplicado às importações de vidros para eletrodomésticos da linha fria da China.

Em 17 de novembro de 2023, foi publicada a Portaria Secex nº 282, que trouxe novos parâmetros e procedimentos para as avaliações de interesse público no Brasil a partir de 1º de janeiro de 2024. As alterações são significativas.

O novo arcabouço legislativo limitou o âmbito de aplicação das avaliações de interesse público ao estabelecer que apenas poderá ocorrer a suspensão de medida antidumping ou compensatória, por razões de interesse público nas seguintes situações: (i) se for demonstrado que os efeitos negativos da medida antidumping ou compensatória sobre os agentes econômicos pertencentes à cadeia de produção, distribuição, venda e consumo serão maiores do que os efeitos positivos da medida; ou (ii) se tiver ocorrido a interrupção significativa (total ou parcial) da fabricação e do fornecimento do produto doméstico similar.

Da mesma forma, a Portaria Secex nº 282 limitou o rol de partes que podem solicitar ou participar da avaliação de interesse público. De acordo com o novo arcabouço legislativo, poderão requerer o início de avaliações de interesse público apenas (i) as partes nacionais que foram consideradas como interessadas no último procedimento de defesa comercial; (ii) os setores industriais nacionais usuários do produto sujeito à medida de defesa comercial; (iii) os fornecedores de matérias-primas e insumos para a sua fabricação; e (iv) os usuários nacionais cujos interesses sejam adversamente afetados pela medida. Anteriormente, não havia limitação expressa à participação de empresas e associações de classe estrangeiras.

Uma outra alteração importante consiste no fato de que as avaliações de interesse público passam a ser realizadas a posteriori, isto é, após a publicação da medida de defesa comercial, por solicitação formal das partes interessadas ou por interesse do governo brasileiro. O prazo para o protocolo da petição é de 45 dias após aplicação, prorrogação ou alteração da medida de defesa comercial. Nas situações de interrupção (total ou parcial) da fabricação e do fornecimento por produtora nacional do produto similar, foi estabelecido um novo procedimento expedito, ainda mais simplificado, que poderá ocorrer a qualquer momento durante a vigência da medida de defesa comercial. Note-se que, segundo o regulamento anterior, a investigação de defesa comercial e a análise de interesse público eram concomitantes.

A Portaria Secex nº 282 também reduziu os prazos da avaliação de interesse público para 3 ou 4 meses, tornado esse processo muito mais célere. Na regulação anterior, em regra, uma avaliação durava o mesmo tempo que um processo de defesa comercial, de 12 a 18 meses.

Adicionalmente, foi criada uma nova etapa na qual é realizado o juízo de admissibilidade da petição que requer a abertura da avaliação de interesse público. Ao término do período para apresentação de informações, haverá juízo de sua admissibilidade, que só será positivo caso os dados apresentados pela empresa ou entidade que solicitar a abertura da avaliação de interesse público sejam efetivamente demonstrados ou comprovados. Isso significa que a nova legislação aumentou o rigor em relação às informações apresentadas pelas partes para comprovar o impacto econômico-social da medida de defesa comercial.

Em resumo, observa-se que o novo arcabouço legal busca garantir que a suspensão das medidas de defesa comercial por interesse público ocorra de forma excepcional e equilibrada. Nada mais justo. Afinal, uma investigação para a aplicação de direito antidumping ou de medida compensatória é um processo extremamente complexo e técnico, que dura de 12 a 18 meses a partir de sua abertura (sem contar o período de coleta de dados, preparação e análise da petição), no qual as partes interessadas podem exaustivamente exercer o direito ao contraditório e apresentar documentos comprobatórios e evidências.

Observa-se, ainda, que a nova regulação sobre avaliações de interesse público tenta diminuir o ônus das partes interessadas ao instituir uma análise ex post. Nesse sentido, só haverá dispêndio de recursos em uma avaliação de interesse público ser houver efetivamente a aplicação da medida de defesa comercial e o se juízo de admissibilidade da avaliação de interesse público for positivo. Sem uma avaliação de admissibilidade, muitas avaliações de interesse público não possuíam sequer mérito preliminar o uso pouco racional de recursos humanos, haja vista que as medidas de defesa comercial poderiam sequer ser aplicadas. Com as alterações adotadas, as partes poderão concentrar melhor seus esforços em cada processo. Essa situação mostrou-se ainda mais danosa no passado, quando as avaliações de interesse público eram obrigatórias em todas as investigações antidumping e de subsídios.

Embora as alterações propostas tenham sido bem fundamentadas e resultem no aprimoramento da avaliação de interesse público, resta saber se, na prática, será possível ter uma análise mais adequada dos possíveis efeitos negativos e positivos da medida de defesa comercial na economia.


Fernanda Manzano Sayeg. Doutora e Mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (2014 e 2009). Especialista em Direito do Comércio Internacional pela Faculdade de Direito pela Universidade de Buenos Aires (2006). Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (2003).


Requisitar dados não é suficiente para a proteção da privacidade. É preciso tratar a assimetria de informação.

Elvino de Carvalho Mendonça & Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

A disruptura digital pelo qual passa o mundo não tem sido sem dor. As “maravilhas” da tecnologia materializadas nos smartphones cobram o seu preço e esse preço é o ataque frontal a privacidade e a liberdade do ser humano.

Estas pequenas “maravilhas” transferem dados pessoais a cada acesso ou transação para as Big techs, que, a partir de infinitos acessos e/ou transações realizadas por cada detentor de smartphone, são capazes de construir bases de dados gigantescas com informações pessoais as mais variadas possíveis e em um nível de detalhe tão pequeno quanto se possa imaginar.

O passo seguinte é a utilização destas informações pela empresa para fazer negócios sem o consentimento do ser humano, na medida em que captam, armazenam, classificam, precificam e alienam os comportamentos, pensamentos e sentimentos de cada ser humano sob o manto de um “capitalismo de vigilância”, cujos reais interessados nesse grande mercado de predição de comportamentos futuros são as empresas de marketing e publicidade e o real valor desse modelo de negócios não são mais os usuários e sim os seus comportamentos, pensamentos e sentimentos.

Segundo Shoshana Zuboff:

“o capitalismo de vigilância reivindica de maneira unilateral a experiência humana como matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais. Embora alguns desses dados sejam aplicados para o aprimoramento de produtos e serviços, o restante é declarado como superávit comportamental do proprietário, alimentando avançados processos de fabricação conhecidos como “inteligência de máquina” e manufaturado em produtos de predição que antecipam o que um determinado indivíduo faria agora, daqui a pouco e mais tarde. Por fim, esses produtos de predições são comercializados num novo tipo de mercado para predições comportamentais que chamo de mercados de comportamentos futuros. Os capitalistas de vigilância têm acumulado uma riqueza enorme a partir dessas operações comerciais, uma vez que muitas companhias estão ávidas para apostar no nosso comportamento futuro.” [1]

Prossegue a Autora Shoshana Zuboff aduzindo que,

“[p]or enquanto, digamos que os usuários não são produtos, e sim que são  as fontes de suprimento de matéria-prima.” [2]

 No entanto, o que é ainda mais grave é a utilização destas informações para atuar em um nível abaixo da consciência humana, fazendo com que o ser humano seja induzido/manipulado digitalmente a consumir não o que deseja, mas sim aquilo que a empresa deseja. Neste ponto, vale citar Byung-Chul Han que, parafraseando Walter Benjamin, aduz ao inconsciente óptico a seguinte estrutura:

“Os pensamentos de Benjamin sobre o inconsciente óptico podem ser transpostos ao regime da informação. Big Data e inteligência artificial constituem uma lupa digital que explora o inconsciente, oculto ao próprio agente, atrás do espaço da ação consciente. Em analogia ao consciente óptico, podemos chamá-lo de inconsciente digital. O Big Data e a Inteligência Artificial levam o regime de informação a um lugar em que é capaz de influenciar nosso comportamento em um nível que fica embaixo do liminar da consciência.”[3]

A proteção de dados no Brasil se encontra tratada na Lei Geral de Propriedade de Dados (LGPD)[4], diploma legal que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural (art. 1º) e que cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), autarquia de natureza especial, dotada de autonomia técnica e decisória, com patrimônio próprio e com sede e foro no Distrito Federal (art. 55-A).

E um dos requisitos para o tratamento dos dados previstos na LGPD para fazer a proteção de dados individuais está previsto no caput do art. 9º, que pugna que [o] titular tem direito ao acesso facilitado às informações sobre o tratamento de seus dados, que deverão ser disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva acerca de, entre outras características previstas em regulamentação para o atendimento do princípio do livre acesso.

A garantia de acesso aos dados pelo usuário é uma condição necessária, mas não suficiente para que o tratamento de dados individuais atinja o objetivo da privacidade, principalmente porque há uma abissal assimetria de informação[5] entre a big tech e o usuário, assimetria que é potencializada pelo fato de que transparência dos dados para o usuário não pode ultrapassar a proteção dos segredos de empresa e industriais, conforme postula o art 6º, inciso VI[6], da mesma lei.

Acertadamente, a LGPD atribui à ANPD a competência para articular-se com as autoridades reguladoras públicas para exercer suas competências em setores específicos de atividades econômicas e governamentais sujeitas à regulação (art. 55-J, inciso XXIII) e a competência para que [a] ANPD e os órgãos e entidades públicos responsáveis pela regulação de setores específicos da atividade econômica e governamental coordenem as suas atividades, nas correspondentes esferas de atuação, com vistas a assegurar o cumprimento de suas atribuições com a maior eficiência e promover o adequado funcionamento dos setores regulados, conforme legislação específica, e o tratamento de dados pessoais, na forma desta Lei (art. 55-J, § 3º).        

A atuação conjunta da ANPD e das agências reguladoras permite chamar à atenção para o real problema que envolve a proteção de dados, que é a assimetria de informação existente entre as empresas (Big techs) que captam os dados, os usuários, as agências reguladoras setoriais e a ANPD, conforme mostra a figura 1.

Figura 1. O problema do agente-principal na proteção de dados

No modelo exposto na figura 1, verifica-se que embora o usuário detenha a propriedade do dado, quem o utiliza e desenvolve políticas comerciais sem que o usuário tenha como identificá-las é a empresa. Da mesma forma, ainda que a agência reguladora, em parceria com a ANPD, detenha alguns instrumentos para a obtenção dos dados e dos sistemas de mineração de dados, o core da informação obtida é o segredo do negócio da empresa e ela tem incentivos econômicos para não revelar a nenhum agente, sobretudo ao Estado.

Conforme expresso anteriormente, a LGPD garante ao usuário o acesso a todas as suas informações, bastando, apenas, que o usuário as solicite à empresa. No entanto, o dado é só o insumo e tem pouca serventia se não vier acompanhado das informações geradas por ele e, sobretudo, de como a empresa utilização essa informação no mercado de predição de comportamentos futuros, com altíssimo lucro.

Portanto, é exatamente o que e como as Big techs utilizam os dados dos usuários que é o “X” da questão da proteção de dados. Solicitar dados, algoritmos e outras coisas que o valham não soluciona o problema da privacidade dos usuários, pois o abuso do direito de privacidade por parte das empresas não está no dado, mas na informação gerada por este dado, e se essas empresas não estão dispostas a informá-las, a razão é que ela detém muito mais informações a respeito do seu negócio que o regulador.

O caminho para fazer com que as Big techs respeitem o direito de privacidade do usuário passa por fazer com que o retorno financeiro da empresa em respeitar o direito seja superior ao retorno financeiro de não respeitá-lo. Um caminho possível é gerar incentivos sobre o gerador do benefício para a empresa[7], que é o usuário.

A obrigação de apresentar dados não é suficiente para fazer com que a empresa pare de avançar sobre a privacidade dos usuários, pois repassar os dados para o usuário não altera o retorno esperado da empresa.

No entanto, é preciso que o usuário seja beneficiado pela agência reguladora (Estado) através de um mecanismo em que a big tech seja obrigada a revelar informações que não desejaria para o regulador. Esse é o árduo trabalho que deverá ser enfrentado pela regulação econômica envolvendo as agências reguladoras e a ANPD.


[1] ZUBOFF, Shoshana.  A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução George Schlesingerr. Rio de Janeiro: Intrínseca, p. 23.

[2] [2] ZUBOFF, Shoshana.  A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução George Schlesingerr. Rio de Janeiro: Intrínseca.

[3] HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Editora Vozes. 2022, p.23.

[4] L13709 (planalto.gov.br)

[5] VARIAN, HALL. Intermediate Microeconomics: A Modern Approach. Fifth Edition. W. W. Norton. 1999.

[6] Art. 6º As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios:

VI – transparência: garantia, aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial;

[7] Um exemplo importante a se considerar diz respeito a nota legal. Neste caso, ao colocar o CPF nas suas compras o consumidor fica automaticamente habilitado a participar de sorteio realizado pela Secretaria de Estado de Fazenda, onde são oferecidos descontos no pagamento de impostos (ex. IPVA), entre outras coisas. Ao solicitar que o consumidor solicite a inserção do seu cpf na nota fiscal, o estabelecimento comercial fica automaticamente obrigado a emitir a nota fiscal e, com isso, fica obrigado a recolher os impostos devidos. A obrigação de emitir nota fiscal por si só não é suficiente para fazer com que o comerciante de fato a emita, mas a oferta de benefício para o consumidor obriga a emissão da nota fiscal por parte do comerciante.

A Importância da Utilização de Evidências do Mundo Real na Tomada de Decisão em Saúde no Brasil

Andrey Vilas Boas de Freitas

O crescente interesse na utilização das evidências do mundo real reflete uma mudança no paradigma da pesquisa clínica, que reconhece a necessidade de dados obtidos fora dos ensaios clínicos randomizados para informar de maneira mais abrangente as decisões em saúde. No contexto brasileiro, em que as políticas de saúde são moldadas por uma diversidade de fatores, incluindo características da população, limitações de recursos e vieses ideológicos, a utilização das evidências do mundo real pode ser um divisor de águas para uma tomada de decisão mais contextualizada e eficaz.

As evidências do mundo real (RWE, na sigla em inglês) derivam da análise de dados do mundo real, compreendendo informações obtidas durante a prática clínica rotineira, em contraste com os tradicionais ensaios clínicos randomizados. AS RWE incluem dados de estudos observacionais retrospectivos ou prospectivos, bem como registros observacionais. Ao contrário dos ensaios clínicos randomizados, nos quais a seleção de tratamentos é rigidamente controlada, os estudos de mundo real refletem as escolhas reais de pacientes e médicos, proporcionando uma visão mais alinhada com a prática clínica diária.

Embora as evidências do mundo real proporcionem uma visão inestimável da eficácia e segurança dos tratamentos em ambientes do mundo real, não se deve ignorar os desafios inerentes a essa abordagem. Questões relacionadas à incerteza sobre a validade interna, registro impreciso de eventos de saúde e a possibilidade de viés na literatura são preocupações legítimas que exigem abordagens proativas para garantir a credibilidade e utilidade desses dados.

A validade interna de estudos baseados em evidências do mundo real muitas vezes é questionada devido à falta de controle estrito sobre variáveis que podem confundir a análise. Ao contrário dos ensaios clínicos randomizados, em que as condições são altamente reguladas, os estudos de mundo real enfrentam o desafio de capturar uma ampla gama de fatores que influenciam as decisões de tratamento na prática clínica. Essa variabilidade pode introduzir incertezas nos resultados, levando a dúvidas sobre a robustez e confiabilidade dos dados.

Ao abordar essa incerteza, os pesquisadores devem empregar métodos estatísticos avançados, como ajustes de propensão e modelagem de causalidade, para minimizar o impacto de variáveis de confusão. Além disso, a transparência na divulgação das limitações e do escopo dos estudos é crucial para que os decisores entendam a extensão da incerteza associada aos resultados apresentados.

Outro desafio enfrentado nas evidências do mundo real reside no registro impreciso de eventos de saúde. Diferentemente dos ensaios clínicos randomizados, nos quais os eventos adversos são monitorados de perto em um ambiente controlado, os estudos de mundo real dependem muitas vezes de registros médicos e sistemas de saúde, que podem não capturar completamente todos os eventos relevantes. Esta lacuna pode levar a uma subestimação ou superestimação da segurança dos tratamentos.

Para abordar essa preocupação, é fundamental implementar estratégias que melhorem a qualidade dos dados de saúde utilizados nos estudos de mundo real. Isso pode envolver a integração de sistemas de informação, aprimoramento da padronização nos registros médicos e, quando possível, a validação cruzada de eventos de saúde por meio de diferentes fontes de dados. Além disso, os pesquisadores devem ser transparentes sobre as limitações nos dados de eventos de saúde e destacar as medidas tomadas para mitigar essas limitações.

Além disso, a possibilidade de viés na literatura é uma inquietação legítima, especialmente considerando preocupações sobre “data dredging” (realização de múltiplas análises até encontrar um resultado desejado) e a preferência das revistas por publicar resultados positivos. Esse viés pode distorcer a percepção dos tratamentos e influenciar indevidamente a tomada de decisões em saúde.

Para mitigar essa preocupação, um passo significativo na promoção da confiança nas evidências derivadas de estudos de mundo real é a implementação de boas práticas procedimentais como, por exemplo:

  1. a pré-especificação clara de hipóteses, protocolo e plano de análise, seguido pela publicação desses documentos antes da condução do estudo para reduzir o viés de publicação;
  2. a diferenciação entre estudos exploratórios e estudos de avaliação de hipóteses de eficácia (HETE) para uma compreensão clara dos objetivos do estudo;
  3. a publicação dos resultados do estudo com uma declaração contendo informações detalhadas sobre conformidade ou desvio do plano de análise original oferece uma visão honesta e completa do estudo, melhorando a confiabilidade e transparência;
  4. a criação de oportunidades para a replicação do estudo por outros pesquisadores sempre que possível, promovendo a transparência e confiabilidade;
  5. a realização de estudos HETE em fontes e populações diferentes daquelas usadas para gerar as hipóteses, quando viável;
  6. a produção de respostas a críticas metodológicas pelos autores do estudo original, promovendo a discussão pública e o aprimoramento contínuo do estudo;
  7. o envolvimento de partes interessadas (stakeholders) que sejam essenciais para o design, a condução e a disseminação do estudo, para garantir relevância e aplicabilidade.

Ao abordar proativamente essas preocupações, é possível otimizar a utilização das evidências do mundo real para aprimorar a tomada de decisões em saúde no Brasil. Os desafios não devem ser vistos como obstáculos intransponíveis, mas como áreas que demandam constante aprimoramento e inovação. A transparência, a colaboração entre stakeholders e o compromisso com práticas metodológicas robustas são os pilares para transformar os desafios em oportunidades.

À medida que o Brasil busca aprimorar suas políticas de saúde, a incorporação de evidências do mundo real na tomada de decisões emerge como uma estratégia vital. Ao seguir boas práticas procedimentais, é possível promover não apenas a transparência, mas também a confiança necessária para utilizar plenamente essas evidências. Essa abordagem, combinada com a consideração das nuances locais, promete uma tomada de decisão em saúde mais informada e alinhada com as necessidades específicas da população brasileira.

O caminho para a integração bem-sucedida das evidências de mundo real  às políticas de saúde do Brasil exige um esforço colaborativo de pesquisadores, decisores políticos e outros stakeholders para impulsionar uma mudança positiva em direção a práticas mais eficazes e contextualizadas.

Ao reconhecer e enfrentar os desafios inerentes às evidências do mundo real, o Brasil pode construir uma base sólida para decisões em saúde mais informadas, eficazes e alinhadas com a realidade dos cuidados médicos diários. A busca pela excelência na utilização de evidências de mundo real é uma jornada contínua, mas os benefícios potenciais para a saúde da população brasileira são inestimáveis.

Barriga de Aluguel (Surrogacy) e o Mercado de Reprodução Assistida: chegou a hora de regular?

Vanessa Vilela Berbel 

Kim Jong-Un chorou em discurso no qual pedia para  as norte-coreanas terem mais bebês. Para o líder político, dar à luz a filhos é motivo de patriotismo, mas, para as norte-coreanas, que ocupam cerca de 20% do efetivo das forças armadas do país e vem sendo integradas massivamente ao mercado de trabalho, os arquétipos de mulheres figurados em doramas contrabandeados da  vizinha Corea do Sul parecem muito mais atraentes. Do mesmo modo, o país fronteiriço, democrático e capitalista, também não é o exemplo mais encorajador de mudança da taxa de natalidade, apresentando a mais baixa delas: 0,78% por sul-coreana, em 2022.  

Na China, por outro lado, o que causou bulício nas notícias de 2023 foram os rumores  de que Fu Xiaotian, apresentadora de televisão e suposto par romântico do ex-Ministro das Relações Exteriores, Quin Gang, teria contratado uma barriga de aluguel nos Estados Unidos da América, prática proibida em seu país. Depois disso, Quin Gang foi exonerado, seus registros apagados dos canais de comunicação do governo chinês e, até o momento, não se tem notícias de seu paradeiro. 

O que se nota de tudo isso é que muitas mulheres não querem mais carregar sozinhas as externalidades negativas do trabalho gestacional, pelo que a terceirização acende como alternativa para algumas delas. Não só, assim também agem casais homoafetivos do sexo masculino, pessoas solteiras e mulheres que, ainda que almejassem gestar, por razões médicas não lograram êxito. Apesar de parecer que apenas Kim Kardashian e Paris Hilton são optantes da barriga de aluguel, há uma grande quantidade de pessoas comuns do povo que oneram seus rendimentos, fazem dívidas bancárias e se submetem aos mais rígidos protocolos de saúde para alcançar a maternidade. Abomináveis?  

Abrimos o ano de 2024 com essa polêmica! Papa Francisco, líder da Igreja Católica Apostólica Romana, em 08 de janeiro, causou rebuliço nas redes sociais ao ser veiculado seu discurso sobre o “estado do mundo”, em que descreveu a “barriga de aluguel” como “deplorável”, justificando sua posição pelo fato de que ‘uma criança deveria ser um presente e nunca a base de um contrato comercial’, que decorreria “da exploração das necessidades materiais da mãe”.  

O discurso do líder religioso vai ao encontro das posições de muitas outras feministas, como Silvia Frederici, que denuncia há anos a venda sexual do corpo feminino como uma situação econômica histórica.  

Enfim, se de um lado algumas não querem ou não podem fazer a tarefa, de outro há mulheres dispostas a realizar, mas, muitas vezes, mediante retribuição. Se não devemos esperar do padeiro e do açougueiro nosso almoço, ainda devemos aguardar dessas mulheres gestos de benevolência e caridade? sob quais condições a prática pode ser permitida ou proibida? 

Apesar dos reclames de muitos para seu banimento, fato é que a  infertilidade está a emergir como um problema grave nos âmbitos sociais, econômicos e culturais. Como resultado, a barriga de aluguel aumentou em todo o mundo e vem sendo compreendida como alternativa para muitos. O mercado de barrigas de aluguel, que em 2022 correspondeu a mais de US$ 14 bilhões, poderá, até 2032, ultrapassar US$ 129 bilhões, de acordo com um novo relatório de pesquisa da Global Market Insights Inc. 

Apesar deste mercado ser um fato que ninguém poderá negar, ainda é, na maioria dos países, simplesmente não regulado. 

Não existe regulamentação internacional sobre a barriga de aluguel e as legislações variam  consideravelmente ao redor do globo entre países que: (i) proíbem absolutamente o ato; (ii) autorizam se houver gratuidade e/ou vinculo afetivo/parental entre os envolvidos; (iii) simplesmente não regulam o procedimento, sendo, nestes casos, tratado como um contrato privado que poderá ou não envolver contraprestação.  

Ainda assim, países conhecidos por não reprimirem o procedimento vem anunciando seu banimento ou drásticas restrições em suas diretrizes. A Geórgia, país para o qual grande parte da demanda da Ucrânia migrou, anunciou, em setembro de 2023, a intenção de aprovar lei que vetará a surrogacy para estrangeiros, havendo expressa advertência no site da embaixada do país aos problemas jurídicos que poderão ser causados aos eventuais contratantes1.  

Os Estados Unidos da América, conhecidos também por serem destinos daqueles que podem arcar com os altos custos do procedimento, possuem legislações esparsas  e diversas em cada estado federado2. Há, inegavelmente, insegurança jurídica neste mercado que insiste em existir, causando prejuízos não apenas econômicos.  

No Brasil,  conforme Resolução Federal de Medicina nº 2.320/2022, é permitida apenas gestação por substituição no regime altruísta  (sem contraprestação), desde que exista condição que impeça ou contraindique a gestação e, ainda, que a cedente temporária do útero (i) tenha ao menos um filho vivo; (ii) pertença à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos) ou, na impossibilidade de atender ao quesito anterior, seja autorizado pelo Conselho Regional de Medicina (CRM). 

Apesar das condições dispostas pela Resolução do Conselho de Medicina, vale lembrar que estamos falando de um instrumento infralegal, de duvidoso caráter constitucional; tanto é assim que, se pegarmos as disposições subsequentes deste instrumento, há previsão de autorização para a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, em absoluto desacordo com a jurisprudência dominante sobre o tema. 

A pergunta que coloco aos leitores é: quem ganha com a ausência de regulamentação deste mercado? Ignorá-lo e deixa-lo à livre estipulação das partes, a maioria delas desprovidas de conhecimento jurídico suficiente para sopesar os riscos, é de fato a melhor maneira do Estado gerenciar suas contingências? Parece-me que a resposta é negativa e que urgem pesquisas para uma melhor compreensão do tema e regulação das práticas.  


Referências  

Brandão P, Garrido N. Commercial Surrogacy: An Overview. Rev Bras Ginecol Obstet [Internet]. 2022Dec;44(12):1141–58. Available from: https://doi.org/10.1055/s-0042-1759774 

Global Market Insights Inc. Surrogacy Market – By Type (Gestational Surrogacy, Traditional Surrogacy), By Technology (Intrauterine Insemination (IUI), In-vitro Fertilization (IVF)), By Age Group, By Service Provider & Forecast, 2023-2032. Disponível em: https://www.gminsights.com/pressrelease/surrogacy-market 

Turconi PL. Assisted Regulation: Argentine Courts Address Regulatory Gaps on Surrogacy. Health Hum Rights. 2023 Dec;25(2):15-28. PMID: 38145139; PMCID: PMC10733767. 

O Mercado Financeiro: Uma Visão Abrangente 

Leandro Oliveira Leite

O ano de 2023 testemunhou uma série de transformações notáveis no cenário financeiro brasileiro, impulsionadas pela evolução tecnológica do próprio mercado e pelas ações regulatórias. Além disso, diversos eventos e estudos apresentados por entidades de destaque, como o Banco Central (BC), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e associações de classe, oferecem uma visão abrangente das mudanças e desafios que moldaram o setor.  

Desde 1º de dezembro de 2023, em uma oportunidade de o país colocar em pauta assuntos que considera prioritários, o Brasil passou a presidir o G20, fórum de cooperação econômica internacional que reúne dezenove das principais economias do mundo, além da União Europeia e alguns convidados eventuais. A presidência do G20 representa uma plataforma única para o Brasil influenciar e contribuir para decisões econômicas globais, refletindo o comprometimento com a sustentabilidade socioambiental e a estabilidade financeira. Nesse ínterim, o BC tem destacado o seu compromisso em sempre estar inovando e manter a inflação controlada para impulsionar o crescimento econômico sustentável e melhorar a qualidade de vida do cidadão. 

O Papel do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) na Evolução Financeira 

Primeiramente, no âmago dessa evolução está o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), uma criação do BC. Esta infraestrutura vital possibilita uma variedade de operações financeiras, desde transações cotidianas, como o Pix, até operações mais complexas, como investimentos e comércio exterior. A reestruturação do SPB, realizada duas décadas atrás, foi revolucionária para o sistema financeiro brasileiro, introduzindo segurança e eficiência às operações, reduzindo riscos sistêmicos e tornando-se um modelo referencial internacional. 

A transferência eletrônica instantânea, notadamente através do Pix, trouxe mudanças perceptíveis para os usuários. Além disso, a reestruturação impulsionou a competitividade no mercado financeiro, reduzindo concentrações no Sistema Financeiro Nacional (SFN) e ampliando a concorrência. Inovações como o Open Finance e Drex refletem a busca contínua por segurança, eficiência e novas possibilidades no mercado financeiro brasileiro. 

Maior número de pessoas bancarizadas 

Durante a pandemia do Covid-19, ampliou-se o número de cidadãos com relacionamento com o SFN, tanto pela concessão de auxílio emergencial quanto pela expansão das instituições financeiras ditas digitais.  

Segundo o BC, após o fim do pagamento do Auxílio, o Brasil viu crescer o número de tomadores de crédito e o percentual de endividados de risco desde o segundo semestre de 2021, principalmente em decorrência do maior comprometimento de renda com dívidas e da maior inadimplência por parte dos brasileiros.  

O BC atualizou os números sobre o endividamento de risco no Brasil, conforme divulgado na nova edição da “Série Cidadania Financeira”. Em março de 2023, o número de tomadores de crédito atingiu 105 milhões de pessoas, um aumento de 20 milhões desde março de 2021.  

Bancarização Aumentada e Desafios Pós-Covid-19 

O período da pandemia de Covid-19 trouxe uma maior bancarização, com mais cidadãos se envolvendo com o SFN, impulsionados tanto pelo Auxílio Emergencial quanto pela ascensão das instituições financeiras digitais. No entanto, após o término do Auxílio, observou-se um aumento no número de tomadores de crédito e no percentual de endividados de risco desde o segundo semestre de 2021, atribuído ao maior comprometimento de renda e à inadimplência. 

De acordo com o BC, em março de 2023, o número de tomadores de crédito atingiu 105 milhões de pessoas, um aumento notável de 20 milhões desde março de 2021. O endividamento de risco, caracterizado por critérios como inadimplência e comprometimento mensal de renda acima de 50%, cresceu, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, entre a população feminina, idosos e pessoas de menor renda. 

A “Série Cidadania Financeira” do BC, iniciada em 2020, é uma parte crucial dos esforços para promover o gerenciamento adequado de recursos financeiros pelos cidadãos, abordando temas como inclusão financeira, educação financeira e proteção do consumidor de serviços financeiros. 

Inovações do Banco Central e Empoderamento Financeiro 

O Banco Central introduziu mudanças significativas, incluindo uma versão unificada do Relatório de Empréstimos e Financiamentos (SCR). Essa atualização simplifica a apresentação de informações, tornando-as mais acessíveis para os cidadãos, e está disponível gratuitamente no site do BC. 

Outra contribuição notável à sociedade é o Sistema de Valores a Receber, permitindo que cidadãos e empresas verifiquem se têm dinheiro esquecido em bancos e instituições fiscalizadas pelo BC. Além disso, o Registrato, parte integrante desse movimento, agora requer acesso exclusivamente por meio da conta gov.br, fortalecendo a segurança das informações pessoais. 

Cade e a Análise Profunda do Mercado Bancário e de Seguros 

No âmbito da concorrência, o Cade lançou a vigésima edição da série “Cadernos do Cade”1, focando no estudo dos mercados de serviços bancários e seguros. Esse estudo, dividido em quatro seções, analisa detalhadamente diversos segmentos, incluindo concessão de crédito, gestão de recursos, câmbio, distribuição de títulos, seguros, entre outros. Reconhecendo a importância econômica desses mercados, o estudo destaca o papel crucial dos bancos e seguradoras para a economia do país, fornecendo condições para investimentos, consumo e poupança. O avanço da economia digital, com o surgimento de fintechs e insurtechs, tem gerado desafios que exigem uma abordagem conjunta das autoridades regulatórias e de defesa da concorrência. 

O ambiente de inovação desafia as autoridades regulatórias e de defesa da concorrência, evidenciando a necessidade de cooperação entre entidades como Banco Central do Brasil e Cade. A série “Cadernos do Cade” tem o objetivo de consolidar, sistematizar e divulgar a jurisprudência do Cade em mercados específicos, contribuindo para o conhecimento técnico e acadêmico em temas relacionados à defesa da concorrência. O estudo também destaca a importância dos seguros e a variedade de serviços prestados por bancos e seguradoras, com foco na concentração nesses setores e nas análises de atos de concentração e condutas anticompetitivas. 

Competição e Inovação na Economia Digital 

A Associação Brasileira de Instituições de Pagamentos (ABIPAG) desempenha um papel ativo na promoção da competição e inovação. O evento “Concorrência no Mercado Financeiro: Desafios da Nova Economia Digital” destaca os esforços do setor para abordar tanto os aspectos regulatórios quanto os concorrenciais. Medidas governamentais, notadamente do BCB e Cade, ao encerrar relações de exclusividade, abriu espaço para a entrada de novos participantes, fomentando a competição, incentivaram o setor de meios eletrônicos de pagamento, proporcionando maior diversidade de modelos de negócios e atendendo às necessidades dos usuários finais. 

Presidência do G20 e Compromissos Globais 

Por fim, é importante destaca que o Brasil organizará mais de cem reuniões e conferências que culminarão na 19ª Cúpula em novembro de 2024. A Trilha de Finanças, liderada pelo BC, desempenhará um papel crucial, abordando temas macroeconômicos estratégicos em colaboração com o Ministério da Fazenda. O G20 está organizado em duas trilhas, a de financeira2 e a de Sherpas3, cada uma com grupos técnicos temáticos. 

Durante as reuniões do G20, o BC abordará também questões de inovação e avanços nos sistemas de pagamentos rápidos, mas o principal papel do Brasil no G20, desde sua participação em 2008 e, nos planos do Banco Central para 2024, estará focando na luta contra a pobreza e desigualdade como centrais para a estabilidade financeira.  

Assim, a parceria entre o Ministério da Fazenda e o BC no G20 visa melhorar a coordenação entre as trilhas financeira e de Sherpas. O compromisso com a sustentabilidade socioambiental é destacado, com o BC sendo reconhecido por implementar medidas alinhadas à agenda global de sustentabilidade. 

A agenda do BC no G20 terá oportunidade de abordar os impactos das inovações digitais no sistema financeiro, priorizando discussões sobre a tokenização de ativos, solução de finanças descentralizada (DeFi) e Inteligência Artificial (IA). Segundo o BC, será destacada a importância de compreender tanto os benefícios quanto os riscos das inovações digitais. 

Perspectivas e Desafios Futuros 

A evolução notável do mercado financeiro brasileiro em 2023 reflete não apenas avanços tecnológicos, mas também uma adaptação a um ambiente dinâmico e competitivo. A convergência contínua de tecnologias, como Pix, Drex e Open Finance, continuará a moldar o setor, posicionando o Brasil na vanguarda dos sistemas de pagamento. No entanto, desafios persistem, especialmente na gestão das complexidades da economia digital e na garantia de uma concorrência saudável para o benefício dos consumidores. 

O diálogo contínuo entre entidades reguladoras, instituições financeiras e outros stakeholders será crucial para enfrentar esses desafios e promover uma evolução positiva e sustentável no mercado financeiro brasileiro. A cooperação entre o Banco Central do Brasil, Cade e outros órgãos demonstra a importância da abordagem conjunta para garantir a estabilidade e a inovação nesse setor vital para a economia nacional. 

Os desafios da precificação de terapias avançadas no Brasil

Andrey Vilas Boas de Freitas

A indústria farmacêutica enfrenta um desafio complexo ao precificar terapias avançadas. A busca pela inovação e o desenvolvimento de tratamentos de ponta demandam altos investimentos em pesquisa, ensaios clínicos e produção, custos muito significativos que são considerados ao determinar o preço final do produto.

Além disso, a indústria busca refletir o valor terapêutico inovador das terapias avançadas ao estabelecer preços. Isso inclui considerações sobre as evidências de eficácia e os benefícios clínicos dessas terapias, bem como a segurança e o impacto que a terapia tem na qualidade de vida do paciente.

Nas estratégias de precificação, a indústria ainda leva em conta as políticas de reembolso e as barreiras de acesso ao mercado. Preços excessivamente altos podem limitar o acesso dos pacientes, enquanto preços muito baixos podem afetar a sustentabilidade financeira da empresa. Nesse sentido, o desenvolvimento de modelos alternativos de pagamento, como acordos de pagamento por desempenho ou modelos de pagamento baseados em resultados, além de parcerias com sistemas de saúde, tem sido uma estratégia para garantir o acesso e a viabilidade financeira.

Vale dizer que é preciso ainda considerar, nesse cálculo, questões éticas e sociais, especialmente porque o desenvolvimento de terapias avançadas tem estado associado a condições graves ou raras. Nesse aspecto, a forma como a terapia é comercializada e comunicada ao público, aos médicos e aos pagadores de saúde desempenha um papel na percepção do valor do produto, o que pode impactar as estratégias de precificação.

Por fim, à medida que a disseminação de terapias avançadas torna esse tipo de produto o “novo normal”, é fundamental considerar a concorrência nesse mercado como um fator decisivo na precificação. Quanto maior a quantidade de alternativas para tratamento de questões diversas por meio de terapias avançadas, maior a pressão para redução de preços desses produtos.

Por outro lado, as operadoras de planos de saúde se deparam com a necessidade de equilibrar a acessibilidade aos tratamentos com a sustentabilidade financeira do plano. Em um ambiente no qual as terapias avançadas frequentemente apresentam preços elevados, as operadoras buscam negociar valores mais baixos para garantir que esses tratamentos sejam acessíveis aos beneficiários do plano. O debate se foca não apenas na eficácia clínica, mas também na relação custo-benefício dessas terapias para a saúde financeira de longo prazo do plano.

Essa perspectiva decorre do fato de que as operadoras de planos de saúde estão preocupadas com a sustentabilidade financeira a longo prazo. Elas buscam controlar os custos médicos para garantir que os prêmios sejam acessíveis e não se tornem proibitivos para os participantes dos planos. Nesse sentido, para cobrir determinada terapia, as operadoras de planos de saúde buscam evidências robustas de eficácia e custo-efetividade. Elas avaliam se os benefícios clínicos justificam os custos associados à terapia.

Com base nessa análise, as operadoras consideram como a terapia trará valor tangível para os participantes dos planos. Isso inclui avaliar se a terapia resolverá condições significativas, reduzirá a necessidade de tratamentos futuros e melhorará a qualidade de vida. Elas também avaliam o impacto financeiro da inclusão de uma terapia no pool de riscos do plano de saúde. Uma terapia muito cara pode afetar a distribuição dos custos entre os membros do plano.[1]

Nessa perspectiva, os altos valores atribuídos às terapias avançadas já autorizadas a serem comercializadas no Brasil serviram como incentivo ao debate sobre a necessidade de buscar acordos de compartilhamento de riscos entre as operadoras de planos de saúde e as empresas farmacêuticas, nos quais o custo da terapia está vinculado ao desempenho e aos resultados dos pacientes.

Os conflitos entre as perspectivas da indústria farmacêutica e das operadoras de planos de saúde surgem de suas prioridades e objetivos distintos. Enquanto a indústria enfatiza a inovação, os custos de pesquisa e a justificativa do valor com base em benefícios clínicos, as operadoras focam na acessibilidade, na eficácia comprovada e no controle de custos.

Esses pontos de conflito incluem a divergência entre custos elevados e acessibilidade, o debate sobre evidências de eficácia versus critérios de cobertura, além da negociação de preços. Enquanto a indústria busca lucratividade e aceitação no mercado, as operadoras buscam limitar custos médicos e proteger seus beneficiários contra encargos financeiros excessivos. A busca por um terreno comum entre essas perspectivas muitas vezes representa um desafio, requerendo um equilíbrio delicado entre inovação, acessibilidade e sustentabilidade financeira.

Esse embate precisa ser mediado pelos reguladores. O regramento atual de precificação de medicamentos no Brasil grita por atualização. Esse debate precisa avançar rapidamente, não apenas para estabelecer parâmetros efetivos de precificação de terapias avançadas, mas também para permitir nova racionalidade para todo o mercado de medicamentos.

Aliado a essas mudanças, é urgente rever critérios para que a incorporação das terapias avançadas no sistema de saúde suplementar no Brasil ocorra dentro de condições que viabilizem o acesso, preservem a estabilidade econômico-financeira das operadoras e garantam a segurança dos beneficiários. Parece ser o catalisador ideal para um debate de aprimoramento das interfaces entre os sistemas público e privado, seja para a coleta de informações sobre desfechos (essencial para assegurar a eficácia dos tratamentos), seja para a negociação das condições de pagamento pelos tratamentos, que podem ser mais benéficas para os dois sistemas se forem consideradas conjuntamente as populações por eles atendidas.

Do lado da indústria farmacêutica, a regulação deve ser incentivadora de inovação, protetora de direitos de patente, promotora da concorrência e fiscalizadora de boas práticas. É preciso eliminar, definitivamente, o viés que faz a regulação nacional tratar com desconfiança o setor produtivo.


[1] Vale dizer que no Brasil, diferentemente do que ocorre em outros países, as operadoras estão submetidas a uma regulamentação que as obriga a oferecer cobertura a tratamentos incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde, conforme normatizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o que diminui consideravelmente seu poder de negociação frente à indústria farmacêutica. Também é preciso considerar, no caso brasileiro, os parâmetros de precificação definidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), colegiado responsável pelo estabelecimento dos preços-teto de comercialização de medicamentos no Brasil, o que inclui a precificação de terapias avançadas.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996.


A gradativa consolidação de uma Corte Digital no STJ – Parte II

Gabriela Pimenta R. Lima

No artigo anterior tratei brevemente sobre a evolução do Plenário Virtual (PV) do STF, que desde a sua criação, em 2007, passou por dois momentos marcantes de crescimento, o primeiro com a Emenda Regimental 51/2016, que incluiu os agravos internos e os embargos de declaração nas competências do PV, e o segundo com a Emenda Regimental 53/2020, que na época da pandemia causada pelo Covid-19, ampliou ainda mais a competência do PV, permitindo que todos os processos de competência da Corte fossem submetidos a julgamento em listas, no ambiente presencial ou no eletrônico, equiparando o plenário virtual ao físico.

Também falei sobre a importância que o PV adquiriu no modelo decisório do STF nos últimos 16 anos, mostrando-se como mecanismo importante e necessário para a redução do acervo de processos, que hoje ultrapassa 24 mil processos, contra 129.623, em 2007, segundo dados do programa “Corte Aberta”[1] do STF.

Em que pese os avançado do PV, abordei algumas críticas feitas a nova sistemática, principalmente, no tocante às violações ao devido processo legal, ao contraditório e ao direito de defesa, bem como do art. 7º, X, XI e XII, do Estatuto da OAB, que prevê garantias quanto ao uso da palavra, indispensável ao exercício do direito de defesa.

No artigo de hoje, vamos tratar dos julgamentos virtuais no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, previsto pela ER 27/2016 que incluiu dispositivos no Regimento Interno para disciplinar o julgamento virtual de embargos de declaração, agravos internos e agravos regimentais.

À época, o STJ não possuía amparo tecnológico para julgar em ambiente virtual os processos com sustentação oral, razão pela qual o então presidente, ministro Humberto Martins, resolveu que, transitoriamente, os pedidos de sustentação em agravos implicariam a retirada da pauta virtual dos respectivos processos.

Posteriormente, em 2020, com a decretação da pandemia, o STJ editou a Resolução STJ/GP n. 9/2020 para disciplinar a realização das sessões presenciais da Corte Especial, das Seções e das Turmas, ordinárias e extraordinárias por videoconferência. E com a ER 41/2022, o STJ, dessa vez com amparo tecnológico, permitiu que as sustentações orais fossem encaminhadas por meio eletrônico, após a publicação da pauta e em até 48 horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual.

Decretado o fim da pandemia, em maio de 2023, o STJ, assim como todos os tribunais do país, continuou realizando alguns julgamentos de forma virtual, principalmente, em razão da celeridade que essa modalidade de julgamento possibilita.

Entre 1º de janeiro e 28 de junho de 2023, foram julgados 221.185 processos (306.213 se considerar o julgamento dos agravos internos, agravos regimentais e embargos de declaração) e no âmbito da Presidência do STJ foram proferidas 109.228 decisões e despachos entre os meses de janeiro e junho de 2023[2].

Em 30 de junho de 2023, durante a sessão da Corte Especial que marcou o encerramento do semestre forense, a atual Presidente da Corte Superior, ministra Maria Thereza de Assis Moura, mostra-se preocupada com a crescente demanda processual. Ela comentou que o STJ, nos últimos anos, vem investindo na ampliação de sua capacidade produtiva, “por meio de iniciativas que visaram adequar recursos humanos e financeiros, modernizar estruturas e incrementar sobremaneira o uso da tecnologia para racionalizar e agilizar diversas etapas do processo de julgamento”[3] [3].

A tecnologia aplicada aos julgamentos virtuais se mostra como uma forma eficaz de ajudar o Tribunal a diminuir seu acervo, no entanto, alguns pontos precisam ser revistos.

Os relatórios e votos não são disponibilizados no início do julgamento às partes, nem a seus advogados, o que obviamente afeta o exercício do direito da ampla defesa e do contraditório, ante a impossibilidade de esclarecimentos de fatos ou do levantamento de questões de ordem, que são prerrogativas legais de todo e qualquer julgamento presencial/videoconferência ou virtual. Diferentemente do que ocorre no STF, que disponibiliza o relatório e o voto assim que o julgamento virtual é iniciado, na aba “sessão virtual” do andamento do processo. Extraoficialmente, ministros do STJ comentaram que futuramente o sistema vai permitir o acompanhamento em tempo real de todos os julgamentos.

É imprescindível que a sistemática seja aperfeiçoada para que se cumpra a exigência de que as partes tenham conhecimento de forma clara e expressa do posicionamento de cada membro do colegiado, sob pena de violação ao art. 93, IX, da CF, que estabelece a obrigatoriedade da publicidade e fundamentação de todas as decisões, sob pena de nulidade, ressaltando-se que a limitação da presença dos advogados nas sessões de julgamento deve ser feita mediante lei, e não por meio de regimento interno.

Essa situação viola o princípio da colegialidade e o princípio da transparência, pois nos julgamentos virtuais do STJ, não é possível saber se houve debate entre os Ministros e nem como cada Ministro votou. Concluído o julgamento, o resultado é lançado no andamento processual e as partes e advogados apenas têm acesso à decisão quando da publicação do acórdão. Nesse ponto, o STF adota uma sistemática mais transparente, pois além de disponibilizar o relatório e o voto do relator quando iniciado o julgamento virtual, os votos dos demais Ministros também são disponibilizados na aba “sessão virtual” do andamento do processo.

Também há o problema das sustentações orais gravadas. Apesar de a Corte possibilitar o envio da gravação para ser juntada ao sistema, não é possível apresentar eventuais esclarecimentos fático-jurídicos, que podem ser essenciais ao deslinde do caso, e as partes não sabem se o vídeo de fato foi assistido pelos julgadores. No STF ocorre o mesmo problema, não é possível confirmar se os Ministros assistiram a sustentação, mas, ao menos os vídeos das sustentações também são disponibilizados na aba “sessão virtual” do andamento do processo. Então, a simples previsão do art. 184-B, §1º, do RISTJ, que permite o envio da gravação da sustentação, não garante o mais importante, que os julgadores assistam e que haja um diálogo entre julgadores e advogados.

O uso da palavra constitui a principal prerrogativa da advocacia desde a sua origem, tornando-se o advogado indispensável à administração da justiça, conforme previsão do art. 133 da CF. As garantias de (i) “usar da palavra, pela ordem, em qualquer tribunal, judicial ou administrativo, órgão de deliberação coletiva da administração pública ou comissão parlamentar de inquérito, mediante intervenção pontual e sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam na decisão”; (ii) “reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento”; e (iii) “falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder Legislativo”, expressamente estabelecidas pelo Estatuto da OAB (artigo 7º, X, XI e XII), significam não apenas prerrogativas profissionais, mas são indispensáveis ao exercício do direito de defesa, como bem pontua Aury Lopes Jr.[4].

Vale ressaltar que o próprio RISTJ, em seu art. 184-D, II, garantia de oposição ao julgamento virtual, prevendo que “as partes, por meio de advogado devidamente constituído, bem como o Ministério Público e os defensores públicos poderão apresentar memoriais e, de forma fundamentada, manifestar oposição ao julgamento virtual ou solicitar sustentação oral, observado o disposto no art. 159″, no entanto, tal dispositivo foi revogado pela ER 41/2022, que regulamentou as sustentações orais em agravo interno/regimental.

A sistemática do julgamento virtual está em sintonia com os tempos atuais, e deve sim ser utilizada, o problema, porém, é a forma como o julgamento virtual vem sendo realizado pelo STJ. A advocacia espera que em breve o Tribunal da Cidadania possa aprimorar o formato de seus julgamentos virtuais para que o STJ também se desenvolva como uma “Corte Digital”.


[1] O programa Corte Aberta, instituído pela Resolução 774/2022, foi idealizado para tornar o STF cada vez mais transparente e próximo da sociedade. O objetivo da iniciativa é garantir que os dados da Corte sejam disponibilizados a todos os cidadãos de maneira mais acessível, precisa, confiável e íntegra – observando-se os pilares da proteção de dados pessoais e da segurança cibernética. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Corte Aberta [recurso eletrônico] / Supremo Tribunal Federal. Brasília: STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/hotsites/corteaberta/. Acesso em: 01 nov. 2023.

[2] STJ encerra primeiro semestre de 2023 com mais de 306 mil julgamentos. Superior Tribunal de Justiça, 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas /Comunicacao/Noticias/2023/30062023-STJ-encerra-primeiro-semestre-de-2023-com-mais-de-306-mil-julgamentos.aspx. Acesso em: 05 nov. 2023.

[3] STJ encerra primeiro semestre de 2023 com mais de 306 mil julgamentos. Superior Tribunal de Justiça, 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas /Comunicacao/Noticias/2023/30062023-STJ-encerra-primeiro-semestre-de-2023-com-mais-de-306-mil-julgamentos.aspx. Acesso em: 05 nov. 2023.

[4] LOPES Jr, Aury. RITTER, Ruiz. O silêncio da advocacia nos tribunais só aumenta a injustiça. CONJUR, 2023. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2023-fev-24/limite-penal-silencio-advocacia-tribunais-aumenta-injustica/. Acesso em: 05 nov. 2023. Acesso em: 05 nov. 2023.


Gabriela Pimenta R. Lima. Advogada desde 2012, graduada pelo UniCEUB. Especialista em Direito Tributário pelo IBET (2014) e Pós graduada em Direito Tributário pelo IDP (2014), matéria na qual se especializou e atuou por quase 10 anos. Desde sua formação também atua no STF e no STJ. Em 2021, concluiu o Mestrado em Direito Constitucional pelo IDP, e na mesma época passou a se dedicar exclusivamente a processos em trâmite perante as Cortes Superiores. Está concluindo LLM de recursos nos Tribunais Superiores pelo IDP. É membro da Associação Brasiliense de Processo Civil (ABPC) e da Comissão de Tribunais Superiores da OAB/DF.