Transportar é preciso, e o embarque é imediato!

Adriano Paranaiba

Ideias, e somente ideias, podem iluminar a escuridão.

Sem medo de incorrer em uma repetição de bordões, essa frase atribuída a Von Mises é um excelente ponto de partida (trocadilho pretendido) para nos apresentarmos.

Transporte é o que usamos para levar pessoas ou bens de um ponto A para um ponto B. Na maior parte das vezes a palavra é despida do seu conceito mais abstrato, e termina a servir apenas para identificar máquinas e/ou meios de se conquistar esse objetivo, ir de um lado para o outro.

Sem dúvida, retornar ao conceito mais amplo é necessário para atingirmos o objetivo desta primeira conversa: transportar você, leitor, do ponto A para o ponto B.

Deixemos os mecanismos de lado: quando falamos em transporte não devemos apenas nos referir ao modo. Devemos é claro abordar tudo o que exerce influência na ação humana de deslocar-se.

Falamos então da infraestrutura de transportes como um todo, como, ruas, pontes e viadutos nos transportes rodoviários, do aeroporto, de rotas e controladores de voo para os aviões, das estações e trilhos das ferrovias.

Perceba que ainda estamos com a nossa carga conceitual atrelada ao mundo físico. Mas não vamos ficar aqui parados esperando o trem sair. Vamos conduzi-lo.

Não podemos deixar de falar de transportes sem mencionar o impacto que o ambiente regulatório exerce no dia a dia desta atividade essencial. Transporte então, é também, ambiente regulatório, legislativo, concorrencial, inovativo, negocial.

E é aqui, leitor, nosso início:

O Podcast Transportar é Preciso leva e traz informações importantes não só sobre as inovações tecnológicas que são tão frequentes na área dos transportes. No TEP, jeito carinhoso de chamar esse projeto, mostramos que não dá para falar de transportes sem falar de concorrência, sem falar de regulação e sem abordar as dificuldades econômicas, políticas e jurídicas que são tão doloridas para a área.

É um transporte de ideias – porque não – com um objetivo: difundir a cultura da inovação e a modernização do debate técnico, acadêmico, econômico, político ou jurídico sobre a mobilidade humana.

Desde o início do Podcast, já entrevistamos inúmeros atores deste mercado tão importante para o desenvolvimento econômico. Falamos de regulação e dificuldades jurídicas e políticas. Comemoramos boas notícias, repudiamos as que consideramos más.

E é neste ponto que uma nova jornada inicia seu caminho: a segunda temporada do Minidocumentário Transportar é Preciso. São diversas entrevistas com o objetivo de falar sobre transportes com vários pontos de vista diferentes.

Se nossa finalidade é o transporte das ideias que precisamos para a modernização e o desenvolvimento da área, o TEP é o ônibus no qual convido todos a embarcarem, imediatamente.

Saudações,

Adriano

Você pode acompanhar o TEP pelo canal do Youtube, por meio do Spotify e também ficar sempre conectado ao site www.transportarepreciso.com.br, que está sempre atualizado com as últimas novidades da área.

Liberalismo, esse desconhecido: uma apresentação em 700 palavras.

Amanda Flávio de Oliveira* e Adriano Paranaiba**

É fato notório que as ideias liberais encontram muita resistência no Brasil, aprioristicamente e desde sempre. Sabe-se também que quase nada nos é apresentado das teorias liberais no decorrer de nossa formação acadêmica no Brasil: da escola à pós-graduação, os autores liberais são negligenciados nos currículos. Esse estado de coisas, no entanto, não nos impede de assistir a muita crítica a eles – aqueles que ninguém leu, mas é contra.

Uma expressão clara disso consiste no sempre referido criticamente “neoliberalismo” que por vezes parece “ameaçar” o bem-estar do país e de seu povo. É só surgir uma medida desreguladora de um mercado ou uma proposta de afastamento do Estado em algum assunto que logo ela é “acusada” de “neoliberal”. O termo, na grande maioria dos casos em que é empregado, com o prefixo que diz respeito à “novo”, não tem significado preciso algum, a não ser o de que aquele que o proferiu não sabe do que está falando, mas é contra.

Outros “argumentos” são lugar comum em discussões contra o “neoliberalismo” malvadão: as sempre reiteradas invocações de Adam Smith e sua “mão invisível”, a suposta “falácia” do laissez faire, assim entendido aquele Estado negligente, irresponsável e ausente, além das afirmações de que “a ideia até poderia dar certo, mas não em um país tão desigual” ou de que “a ideia só funciona depois de um certo grau de desenvolvimento”, e por aí vai.

Este breve texto tem a missão ingrata de explicar o que são as ideias liberais em apenas 3 páginas. Claro que ele pagará todos os pecados pela sua brevidade: é que há escolas de liberalismo econômico, com pontos de vista por vezes divergentes entre elas. Mas, principalmente, explicar o que é liberalismo em 3 páginas só seria possível se ele fosse aquilo a que é acusado e que ele não é: uma proposta anárquica de extinção do Estado, defendida por pessoas irresponsáveis e despreocupadas com o outro e com a pobreza, e que advogam a ideia egoísta de que cada um cuide de si.

Primeiramente, esclareça-se de que o liberalismo não é uma instituição, um modelo que podemos implantar em um país. Sempre nos perguntam: onde o liberalismo foi implantado? De fato, nunca foi – o que é bom, pois não se trata de um regime. Também não é uma filosofia completa acabada, muito menos um dogma.

Liberalismo também não é só economia. O liberalismo econômico é apenas uma vertente – há também o liberalismo político, responsável pela defesa da liberdade de expressão, locomoção e crença.

De fato, o liberalismo constitui uma doutrina política, que utiliza fundamentos da Economia, buscando alternativas para a melhora do padrão de vida das pessoas. E aqui é importante pontuar: historicamente, o liberalismo, em seus primórdios, foi o primeiro movimento político que buscou promover o bem-estar para pessoas que não faziam parte de grupos especiais e elites. Esse ponto é importante destacar, por que os detratores do liberalismo o acusam justamente do oposto: que o liberalismo é cruel, principalmente com os mais pobres, pequenos e desprovidos.

Se há escolas de pensamento diferentes dentro de um grande universo das teorias liberais, alguns pontos em comum elas possuem e que as tornam partes de um todo: o enaltecimento da pessoa humana e a sua proteção contra os arroubos do Estado é ponto fulcral entre elas. Liberais defendem a definição precisa dos direitos de propriedade, as trocas voluntárias, a liberdade de expressão, os preços de mercado. Se há divergências entre elas, isso dependerá do quanto de Estado se admite em cada uma, mas em todas a preferência é dada ao indivíduo.

Em épocas de uso abusivo de expressões, conferir às pessoas liberdade e exigir responsabilidade em seu uso representa a melhor forma de empoderamento a se desejar. O mesmo se pode dizer de empatia: a tolerância constitui valor importante para os teóricos liberais, o que pressupõe discordância respeitosa de ideias, o que, infelizmente, em épocas de cancelamentos, não vem sendo a tônica. Por fim, o liberalismo será sempre contra guerras, exatamente por configurarem atentados à propriedade privada de outros povos e países. A paz, portanto, é cara aos liberais.

Essas são apenas as 3 primeiras páginas de uma proposta maior: explicar o liberalismo e afastar críticas apriorísticas infundadas ou frutos de desconhecimento ou exclusivamente ideológicas. Invocar Adam Smith, mão invisível, laissez faire e desigualdade é passar recibo de que não conhece o que é criticado. Mas isso não é exatamente culpa de ninguém: conforme mencionamos no primeiro parágrafo deste texto, o liberalismo não nos é apresentado nos bancos escolares. Recebam nosso convite para conhecer o liberalismo, em todas as suas expressões.

*AMANDA FLÁVIO DE OLIVEIRA. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1996, onde também cursou Mestrado (2000) e Doutorado (2004), tendo realizado formação complementar em Louvain-la-Neuve, Bélgica (1999). É professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB).

**ADRIANO PARANAIBA. É Economista, Doutor em Transportes. Professor do IFG e Diretor Acadêmico do Instituto Mises Brasil. Já atuou como Subsecretário de Competitividade e Melhoria Regulatória no Ministério da Economia.

Regulação de risco em tempos de incerteza: lições da ciência comportamental

Lúcia Helena Salgado*

A ciência comportamental vem informando a tomada de decisão em políticas regulatórias há mais de uma década. Trazida ao conhecimento do público leigo em 2008, com a publicação do livro de Cass Sustein e Richard Thaler, Nudge[1], os relatos de experimentos ali reunidos revelaram quão potente pode ser a “arquitetura da escolha” para elevar o nível de bem-estar social. Os exemplos hoje já clássicos – como a mudança na disposição de itens saudáveis à frente de ultraprocessados em cantinas escolares, induzindo mudanças de hábitos alimentares, e a mudança do default de não-doador” para “doador” em cadastros, levando a significante aumento do número de doadores de órgãos na Suécia -, demonstraram que pequenas alterações em menus de escolhas podem levar a mudanças importantes de comportamento, com reflexos positivos tanto para a sociedade como para o próprio tomador de decisão.

Ao tempo em que Nudge se revela um best-seller e era traduzido para várias línguas, Obama vencia as eleições presidenciais estadunidenses e tomava posse, convidando para liderar o OIRA[2] – o ente na Casa Branca responsável desde 1980 por avaliar e encaminhar todas as propostas regulatórias do Executivo – seu ex-professor em Yale e autor da obra, Cass Sustein. Richard Thaler[3] por sua vez, no ano seguinte, foi convidado pelo governo bipartidário britânico de Cameron a criar e dirigir uma unidade executiva capaz de rever e propor políticas regulatórias fundamentadas nos ensinamentos da ciência comportamental, o Behaviour Insights Team. A unidade completou 10 anos em 2020, e vem servindo de inspiração para unidades com o mesmo desenho e propósito, na Comissão Europeia, na província de Vitoria, Austrália, no Banco Mundial e na OMS, dentre outras[4]. O núcleo de estudo, revisão e desenho de politicas implantado originalmente no Reino Unido segue um formato bem-sucedido naquela jurisdição, já testado desde o governo de Tony Blair para reformular a intervenção regulatória: é uma força tarefa interdisciplinar, conectada em rede de diálogo e cooperação com órgãos de governo e com a academia, em permanente processo de aperfeiçoamento e revisão de desenho[5].

Em paralelo a essas iniciativas, a OECD[6] abraçou a missão de pesquisar e relatar a aplicação de ciência comportamental[7] nos processos de melhoria regulatória. A abordagem mostrou-se perfeitamente ajustada ao objetivo perseguido desde o inicio do milênio por muitos países, inclusive o Brasil, de aperfeiçoamento da regulação por meio da adoção de análises de impacto tanto ex-ante como ex-post, baseadas em evidências empíricas obtidas com metodologia científica[8]. Nos relatórios que publica regularmente sobre experiências nacionais[9], a organização costuma assinalar que a abordagem de politica regulatória fundamentada em insights comportamentais é apoiada em evidências, ao procurar identificar o que de fato guia as decisões dos cidadãos, deixando de lado premissas de como os cidadãos “deveriam agir” para fundamentar intervenções regulatórias[10].

Insights comportamentais têm iluminado com especial brilho situações a demandar intervenção regulatória em que há riscos a serem ponderados (em contraponto a benefícios). A premissa é que é essencial compreender como as pessoas tomam (de fato) decisões em condições de incerteza e risco, os atalhos mentais utilizados e os erros sistematicamente incorridos, para desenhar regulações que auxiliem os indivíduos a evitar os erros de avaliação. Por que a regulação em condições de risco beneficia-se especialmente de fundamentos da ciência comportamental? Porque erros nessas condições são sinônimos de tragédias, envolvem perdas de vidas, danos irreparáveis à sociedade e a seu ecossistema. Riscos envolvem probabilidade e gravidade de ocorrências. Um evento pode ser de altíssima gravidade mas de probabilidade insignificante; pode ser de gravidade média – danos reparáveis – com probabilidade moderada, pode ser de baixa gravidade mas com alta probabilidade – o que recomendaria medidas preventivas leves, e daí por diante; consideradas em um contínuo, gravidade e probabilidade, as combinações tendem ao infinito, embora possam ser abordados por intervalos. Amos Tversky e Daniel Kahneman, no artigo “Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases[11], marco dos estudos em economia comportamental, concluem que as regras da estatística não fazem parte do repertório inato humano; não obstante, é parte da condição humana a tomada de decisões a todo momento, sendo elas em grande parte referidas a um futuro – imediato ou distante – sobre o qual paira incerteza. Para transitar nesse mundo de incertezas, povoado por riscos, motivados seja por receios seja por esperanças, os indivíduos tomam decisões, fazem escolhas, arriscam ou se protegem, com base em heurísticas – regras práticas de comportamento, que simplificam inconscientemente o processo de tomada de decisão. Os autores identificam especialmente três heurísticas empregadas nas inferências sob incerteza: representatividade, disponibilidade e ancoragem, destacando, nas suas palavras, que:

“Essas heurísticas são altamente econômicas e usualmente efetivas, mas levam a erros sistemáticos e previsíveis. Uma melhor compreensão dessas heurísticas e dos desvios a que levam podem aperfeiçoar julgamentos e previsões em condições de incerteza.” (pp. 1124, tradução livre).

Adiante Thaler denominaria essas regras práticas, que podem levar, por afastamento da racionalidade, a erros sistemáticos de avaliação em tomada de decisão (com consequências econômicas significativamente negativas), de “anomalias”[12]. Pesquisas subsequentes expandiram o rol de erros de avaliação (ou vieses cognitivos) e revelaram importante aplicabilidade para politicas de intervenção regulatória, a ponto de hoje ser obsoleto tratar-se de intervenção regulatória para lidar com um problema sem considerar com o devido cuidado o impacto na percepção dos agentes e sua reação em face tanto do problema como da intervenção.

A pandemia de COVID-19 colocou em evidência a importância da análise de riscos para o desenho regulatório. Quando incluída com método e rigor, a variável risco pode aumentar a efetividade e eficiência da politica pública, à medida em que substitua receios, esperanças e opiniões – que traduzem heurísticas tipicamente humanas – por diretivas simples e claras, balizadas no exame criterioso de dados.

Este momento histórico representado pela pandemia já proporciona a observação de verdadeiros experimentos naturais, como a variância de comportamentos com respeito ao protocolo básico indicado pela OMS, tão logo os estudos levaram ao consenso cientifico em torno da importância de afastamento mínimo, higiene das mãos e uso de máscaras adequadas. Onde o público foi orientado pelas autoridades diretamente, com clareza e objetividade sobre a importância do protocolo, a adesão prevaleceu; onde essa condução não se deu, as heurísticas conduziram as decisões. Na dúvida sobre que conduta adotar? O mais seguro é a heurística de conformidade: seguir o comportamento do seu grupo social, daqueles em quem o sujeito deposita confiança, daqueles com quem se identifica.

Muitos estudos ainda serão publicados sobre os impactos da pandemia nos rumos do planeta; a produção científica vem tomando proporções gigantescas desde 2020, assim como tem crescido a colaboração em pesquisa e compartilhamento de dados, proporcionados pelas novas tecnologias. O desenho de politicas regulatórias tem muito a ganhar nesse processo em que a avaliação de risco fundamentada nos ensinamentos da ciência comportamental venha a se tornar rotineira na condução de processos de tomada de decisão em políticas públicas.

[1] Cutucada ou cutucão, em português informal, foi o título escolhido pelo editor e seu faro comercial para a obra de Sustein e Thaler sobre a arquitetura da escolha: Nudge, Improving Decisions about Money, Health and Happiness, Yale University Press, 2008.

[2] Office of Information and Regulatory Affairs. https://www.whitehouse.gov/omb/information-regulatory-affairs/

[3] Que em 2017 recebeu o Nobel de Economia, o segundo prêmio conferido à linha de pesquisa de economia comportamental, atrás de Daniel Kahneman, que recebeu o Nobel em 2002 em função da importância dos achados em psicologia comportamental para a revisão do princípio individual-metodológico baseado em perfeita racionalidade.

[4] Organização Mundial da Saúde. Uma consulta rápida ao Google oferece os endereços virtuais de cada uma dessas unidades.

[5] Tanto que, uma vez consolidada como instituição, após dez anos passou a operar de forma independente do governo. Confira em www.bi.team

[6] Organization for Economic Co-Operation and Development.

[7] Behaviour Isights tem sido a expressão mais frequente para designar essa nova abordagem.

[8] A respeito vale consultar Marcos Regulatórios no Brasil – Aperfeiçoando a Qualidade Regulatória, Salgado, L.H. e Fiuza E.S.P. (orgs), volume de 2015 da coleção disponível no repositório de conhecimento do IPEA http://repositorio.ipea.gov.br

[9] Acessiveis em www.oecd-library.org

[10] O que equivale a substituir a hipótese do indivíduo (tomador de decisão) racional-maximizador perfeitamente informado pela observação da decisão humana em contexto social e condições de incerteza e informação incompleta.

[11]Science, New Series, Vol. 185, No. 4157. (Sep. 27, 1974), pp. 1124-1131. Stable URL: http://links.jstor.org/sici?sici=0036-8075%2819740927%293%3A185%3A4157%3C1124%3AJ

[12] Richard Thaler, quando editor da American Economic Review, publicou como prefácio, a cada número, um ensaio sobre eventos econômicos em que a tomada de decisão dos agentes demonstrava uma sistemática viloação do princípio racional-mazimizador. Esses ensaios posteriormente foram publicados no livro The Winner’s Curse: Paradoxes and Anomalies of Economic Life, 1991.

* LÚCIA HELENA SALGADO. Professora Associada da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ. 

Impedimento à posse em concurso público de condenados por violência contra mulher e outros grupos vulneráveis

Vanessa Vilela Berbel

Iniciemos com uma situação hipotética: Ana estabeleceu convivência com Marcos; desta relação adveio Susana, hoje com três anos. Ana foi agredida psicologicamente por Marcos, que lhe proferiu xingamentos e humilhações, o que culminou no deferimento de medida cautelar para preservar a integridade psicológica da vítima. Marcos paga pensão à sua filha em valor é insuficiente para o adequado cuidado da prole. Aprovado em concurso público, Marcos restou impedido de tomar posse no cargo, em razão de possuir medida cautelar decorrente de violência doméstica.

O Projeto de Lei 2.556/21 visa, a partir de alteração das Leis nº 8.112 de 1990 e 14.133 de 2021, criar mecanismos para impedir que pessoas que estejam sob medidas cautelares ou condenadas por crimes de violência doméstica, contra mulher, crianças e adolescentes e contra idosos não possam tomar posse em cargos públicos, nem contratar com a Administração Pública Direta e Indireta.

Apesar de ser uma resposta social ao agressor, as consequências negativas do impedimento à posse em concurso nem sempre serão suportadas por ele, podendo atingir o próprio sustento da prole, da vítima e daqueles que sofreram a violência.

Nestas hipóteses, creio que ao legislador caberá a missão de reformular o texto legal, refletindo sobre situações em que há a transcendência dos efeitos negativos da lei; talvez, a via melhor, em alguns casos, não seja o impedimento à posse em cargo público, mas o estabelecimento de desconto compulsório da remuneração auferida, destinando-o aos afetados pela violência ou até, por hipótese, a fundo destinado a ações positivas para as vítimas de violência doméstica e familiar.

A justificativa do projeto invoca boas razões para seus termos. Também não se discute a necessidade de se estabelecer medidas que efetivamente reprimam ou desestimulem a violência; sem dúvida, combater a impunidade e não premiar os malfeitores é um caminho correto.

Contudo, a par das excelentes intenções, precisamos discutir os reais efeitos sociais da norma e desenhá-la de forma adequada para que atinja de fato os efeitos desejados. Nesta senda, faz-se necessário ter maior atenção com as situações em que há a transcendências dos efeitos da medida punitiva, afetando negativamente aqueles que dependam economicamente do agressor e que sejam vítimas diretas ou indiretas da ofensa.

O princípio da moralidade impõe que a investidura em cargo ou emprego público seja reservada a pessoas probas, não sendo ilícita a previsão editalícia de inexistência de condenação criminal como requisito para a posse. Todavia, conforme reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal, não se pode estabelecer a valoração negativa de simples processo em andamento, salvo situações excepcionalíssimas e de indiscutível gravidade; seria, a medida cautelar nos casos de violência contra a mulher, crianças, adolescentes e idosos uma dessas exceções?

Talvez o caminho precise ser inverso. Em um país em que a cultura da informalidade no emprego se legitima como via para burlar o pagamento de pensões alimentícias, o impedimento à posse em concurso público não parece ser o caminho mais adequado de coibir o potencial agressor ou de dar a ele a justa repreensão. Ao invés, o desconto compulsório de indenização e pensão aos atingidos parece-me um modo mais inteligente de se realizar a resposta social.

Outrossim, não se afasta, nesta ou em outras situações, o princípio da presunção de inocência. Há de se primar pelo trânsito em julgado da ação condenatória para que o impedimento à posse se legitime, não bastando a concessão de medida cautelar. Se contrário for, nestas hipóteses, a lei, ao invés de garantir a repreensão adequada ao agressor, pode se tornar um obstáculo à própria concessão da cautela, visto que os magistrados poderão refrear o uso de seus poderes.

Não vamos, porém, jogar fora o bebê com a água do banho. O PL anda bem no objetivo geral de impedir condenados por violência contra a mulher, crianças, adolescentes e idosos de tomar posse em concurso público, mas, nesta hipótese, não se pode dispensar o trânsito em julgado da decisão condenatória.

Outrossim, deve-se pensar em situações excepcionais em que o impedimento afete o sustento das vítimas diretas e indiretas da tragédia; deste modo, não havendo correlação entre o crime e as funções públicas a serem exercidas, não sendo conferido ao agressor o acesso a porte de armas ou meios que facilitem a reiteração da violência (ao exemplo dos agentes de segurança pública ou de inteligência), deve-se formatar medida em que, ao invés de se impedir a posse, imponha-se desconto compulsório de indenização e pensão alimentícia aos agredidos ou às vítima indireta da tragédia (filhos e dependentes economicamente do agressor).

Parece-me, neste ponto, que o PL ainda carece de amplo debate e de um desenho mais elaborado das hipóteses sociais afetas ao tema, a fim de não prejudicar as próprias vítimas com o desamparo econômico quando dependentes do agressor ou credoras de indenização indispensável à reparação da lesão sofrida.