Descentralização financeira: o impacto dos criptoativos na soberania monetária estatal

Apresentação

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Ficha catalográfica

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Descentralização financeira: o impacto dos criptoativos na soberania monetária estatal

Gabriel Almeida Rodrigues de Souza[1]

Fernando de Magalhães Furlan[2]

Resumo:

Este artigo investiga o impacto dos criptoativos na soberania monetária dos Estados, destacando a descentralização financeira proporcionada pela tecnologia Blockchain. O estudo examina a evolução dos principais criptoativos, a exemplo do Bitcoin e do Ether (Ethereum), e discute os benefícios da descentralização, como a inclusão financeira, em contraste com desafios como a evasão fiscal e a regulação. Experiências com criptoativos em diferentes países e suas abordagens variadas são analisadas, ilustrando os efeitos sobre a política monetária. O artigo revela que, apesar das vantagens econômicas e tecnológicas dos criptoativos, eles representam desafios significativos para a soberania monetária estatal. Conclui-se que os governos devem adaptar as suas estratégias regulatórias para equilibrar a inovação com o controle monetário, contribuindo para um melhor entendimento do futuro das finanças globais.

Palavras-chave: descentralização financeira; criptoativos; soberania monetária, blockchain,

Abstract:

This paper investigates the impact of crypto assets on State monetary sovereignty, highlighting the financial decentralization enabled by Blockchain technology. The article examines the evolution of major crypto assets like Bitcoin and Ether (Ethereum) and discusses the benefits of financial decentralization, such as financial inclusion, in contrast with challenges like tax evasion and regulation. We analyze cases from different countries and their varied approaches to crypto assets, illustrating the effects on monetary policy. The article reveals that, despite the economic and technological advantages of crypto assets, they pose significant challenges to State monetary sovereignty. It concludes that governments must adapt their regulatory strategies to balance innovation with monetary control, contributing to a better understanding of the future of global finance.

Keywords: decentralization; crypto assets; monetary sovereignty; blockchain.

  1. INTRODUÇÃO

Este artigo investiga o impacto dos criptoativos na soberania monetária dos Estados, destacando a descentralização financeira proporcionada pela tecnologia Blockchain. Desde o surgimento do Bitcoin em 2009, as mudanças no panorama financeiro global foram radicais, pois passou-se a oferecer uma alternativa descentralizada às transações financeiras tradicionais. Contudo, essa inovação tecnológica apresenta desafios significativos para a soberania monetária estatal, o que exige uma análise aprofundada de seus efeitos.

A soberania monetária é um elemento essencial da capacidade de um estado exercer controle sobre a sua política monetária, fiscal e cambial, pois permite aos governos regular a oferta de moeda, estabilizar a economia, implementar políticas econômicas e fiscais eficazes, combater a evasão fiscal e o financiamento ilícito. No entanto, a  grande ascensão dos criptoativos desafia essa autoridade estatal tradicional.

Iniciamos com uma análise da evolução dos criptoativos, como o Bitcoin, e também sobre dos fundamentos da tecnologia Blockchain. Além disso, abordamos os benefícios da descentralização financeira, incluindo a redução da dependência de intermediários financeiros tradicionais, a promoção da inclusão financeira e o aumento da eficiência e segurança das transações.

Para compreender os impactos práticos dos criptoativos na soberania monetária, o trabalho analisa casos de diferentes países com abordagens diversas em relação aos ativos, desde a aceitação e integração, até a proibição e a restrição.

O artigo revela que, embora os criptoativos ofereçam significativos benefícios econômicos e tecnológicos, eles também representam um desafio substancial para a soberania monetária estatal. Recomendamos, ao final, que os Estados desenvolvam regulamentos flexíveis e dinâmicos que permitam a exploração dos benefícios dos criptoativos, enquanto mitigam os seus riscos.

Este artigo busca contribuir para uma compreensão tecnicamente mais adequada de como os criptoativos podem reconfigurar o sistema financeiro global e impactar a autoridade dos Estados sobre as suas moedas e economias. O artigo sugere que a adaptação e a inovação regulatória serão cruciais para solucionar os complexos desafios e oportunidades apresentados pela ascensão dos criptoativos no cenário financeiro mundial.

2. O BITCOIN

Em 2008 surge o primeiro criptoativo que revolucionaria o mercado monetário tradicional, o Bitcoin. Segundo Moraes (2021, p. 9) o Bitcoin teve seu whitepaper[3], documento que descreve as diretrizes e bases desse ativo digital, publicado e que revelou que as transações do sistema seriam validadas e registradas pela própria rede. Sendo assim, serviria como um método de pagamento ou reserva de valor, sem intermediários. Em resumo, era um manual do criptoativo em que foram descritos, de forma resumida, os fundamentos do Bitcoin, explicando as transações peer-to-peer[4], que evitam a duplicidade das operações (a possibilidade de enviar os mesmos ativos mais de uma vez), além de operar sem intermediários, como os bancos, permitir o anonimato dos participantes e utilizar o algoritmo de Prova de Trabalho (proof of work), para gerar Bitcoins (um processo conhecido como mineração).

O criador (ou criadores) do Bitcoin, como explica Amoedo (2021, p. 94) denominou(ram)-se Satoshi Nakamoto. Porém, acredita-se ser apenas um apelido, pois a identidade real de Nakamoto nunca foi revelada. O envolvimento do criador no protocolo original foi concluído em meados de 2010. Porém, antes do afastamento de Nakamoto, sua conta continuava ativa, e ele continuava postando informações técnicas em fóruns e fazendo alterações na rede Bitcoin. Ele era responsável pela maior parte do desenvolvimento do protocolo e aceitava poucas contribuições de terceiros. Entre as diversas especulações, uma hipótese é que a anonimidade de Satoshi Nakamoto serve para evitar a personalização do criptoativo, preservando o seu caráter descentralizado.

Além disso, o uso de um pseudônimo pode ter como objetivo proteger o criador de possíveis consequências legais, como já ocorreu com outros desenvolvedores no passado. Por exemplo, em 1998, o norte-americano Bernard von NotHaus criou uma moeda chamada Liberty Dollars e foi posteriormente acusado e preso pelo governo dos Estados Unidos por violar a legislação federal. Da mesma forma, em 2007, a moeda digital E-gold foi desativada pelas autoridades sob a alegação de envolvimento em atividades de lavagem de dinheiro. Em 2013, Sergio Lemer (2020), analista e diretor de criptoativos da RSK, procurou o caminho dos primeiros bitcoins, e conseguiu encontrar uma carteira de Satoshi Nakamoto, a qual possuía 980 mil unidades de Bitcoin, o que equivaleria, atualmente, a aproximadamente 8 bilhões de dólares. Apesar desse enorme valor, nenhum criptoativo foi movimentado desde a criação da carteira, ou seja, não houvera transferências, nem furtos, o que comprova a segurança do sistema, pois, caso fosse frágil, certamente já teria ocorrido algum tipo de invasão hacker.

 O Bitcoin pode ser definido, de acordo com Amoedo e Schramm (2021, p. 98, 335) como um ativo virtual dentro de uma rede descentralizada, desenvolvida por meio de um código aberto e cujas transações são armazenadas de forma pública e transparente. Além de ser considerado o primeiro ativo digital global descentralizado, estabeleceu um sistema financeiro alternativo, independente e livre.

De acordo com Ulrich (2014, p. 17) o Bitcoin é um ativo digital peer-to-peer, de código aberto e independente de uma autoridade central. Ele destaca que o Bitcoin se diferencia por ser o primeiro sistema de pagamentos global totalmente descentralizado. Moraes (2020, p.12) menciona também que o limite arbitrário para a quantidade de bitcoins foi estabelecido em 21 milhões, e estima-se que o último “Satoshi[5]” (0,00000001 de um bitcoin) será minerado por volta do ano 2140). Além disso, ele observa que, com o tempo, a complexidade computacional aumenta, o que significa que a dificuldade de encontrar novos blocos válidos é ajustada automaticamente para garantir que a média de 10 minutos, entre a descoberta de blocos, seja mantida.

Ulrich exemplifica, em sua obra, que se Maria quisesse enviar 100 reais a João pela Internet, ela precisaria de intermediários como o PayPal ou a Mastercard para registrar a transação e evitar o gasto duplo (duplicidade). Sem esses intermediários, o dinheiro digital, como um arquivo de computador, poderia ser duplicado e enviado a várias pessoas, pois Maria manteria uma cópia do arquivo. Esse é o problema do “gasto duplo”, que, antes do Bitcoin, só podia ser resolvido por terceiros confiáveis que mantinham registros históricos de transações. Dessa forma, nota-se a característica revolucionária do Bitcoin, que resolveu o problema da duplicidade (gasto duplo), sem a necessidade de um terceiro/intermediário.

É importante notar que as transações de Bitcoin, via Blockchain, não são denominadas em dólares, euros ou reais, como o são no PayPal ou na Mastercard. Em vez disso, são denominadas em Bitcoins. Isso torna o sistema não apenas uma rede de pagamentos decentralizada/distribuída, mas também um ativo virtual. O valor intrínseco do ativo não deriva de algum lastro metálico, como o ouro, ou de alguma garantia estatal ou governamental, mas do valor que o mercado lhe atribui, a partir de sua própria escassez (máximo de 21 milhões de Bitcoins em circulação até 2140) e de sua crescente demanda. O valor de um Bitcoin é determinado em um mercado aberto, da mesma forma que são estabelecidas as taxas de câmbio entre diferentes moedas mundiais, por exemplo (Ulrich, 2014 p. 18).

3. SOBERANIA MONETÁRIA ESTATAL

Segundo Ulrich (2013, pag.105), o ativo digital criado por Satoshi Nakamoto oferece grandes vantagens em relação às moedas fiduciárias (moedas soberanas, emitidas pelos bancos centrais). Contudo, o Bitcoin não é apenas uma maneira de realizar transações globais, com baixo custo nenhum custo. Ele representa uma forma de opor-se à opressão monetária. Essa é a sua principal “raison d’être”. O autor também afirma que o surgimento da moeda digital não foi uma mera coincidência, pois o Bitcoin surgiu como uma resposta natural ao colapso da ordem monetária vigente, à constante perda de privacidade financeira e a uma estrutura bancária cada vez mais perniciosa ao cidadão comum. Com o Bitcoin, os governos não conseguem inflacionar ou desinflacionar a moeda, apropriar-se da rede, corromper ou desvalorizar os Bitcoins. Além disso, não podem proibir a transferência de Bitcoins para comerciantes, seja no Maranhão, seja no Tibete.

Ulrich (2013, pag. 106) revela que o Bitcoin, ou qualquer alternativa que venha a surgir no futuro, estabelece uma concorrência real frente ao poder econômico dos bancos e às moedas emitidas pelos bancos centrais. A Internet proporcionou liberdade de comunicação e o Bitcoin tem o potencial de garantir autonomia sobre as finanças. Em essência, o Bitcoin é a aplicação da Internet ao dinheiro.

Como disse Satoshi Nakamoto:

“O problema fundamental da moeda convencional é a confiança necessária para que ela funcione. Precisamos confiar que o banco central não irá desvalorizar o dinheiro, mas a história das moedas fiduciárias está repleta de quebras dessa confiança. Os bancos têm a responsabilidade de guardar nosso dinheiro e transferi-lo eletronicamente, mas eles o emprestam em ciclos de bolhas de crédito, mantendo apenas uma fração em reserva. Devemos confiar neles para preservar nossa privacidade, confiando que não permitirão que ladrões de identidade drenem nossas contas”.

Ainda, para Ulrich (2013, pag. 106), o Bitcoin elimina a dependência de intermediários fiduciários, que historicamente violam os direitos dos clientes. Ele torna a tirania monetária praticamente impossível, sendo um feito admirável para qualquer defensor da liberdade e uma necessidade vital para cidadãos de regimes autoritários. Assim, qualquer país com um histórico de agressões à moeda se beneficiará significativamente do uso do Bitcoin.

O autor (2013, pag. 108) cita o exemplo do Brasil, que já enfrentou diversos planos econômicos fracassados, e, portanto, teria muito a ganhar com um ativo financeiro que protege a população genuinamente das arbitrariedades de governos que, ao longo da história, abusaram do poder e desrespeitaram os direitos de propriedade de seus cidadãos. Ele, provavelmente, se referia ao vexatório confisco da poupança popular do Governo Collor de Mello[6].

O autor enfatiza que a história revela que nenhum sistema político foi capaz de conter os abusos governamentais na esfera monetária e que o Bitcoin surge, portanto, como uma alternativa necessária. Pois, quando as Constituições e a separação de poderes falham em garantir uma moeda inviolável, a tecnologia pode assumir esse papel. A separação entre o Estado e a moeda se tornará uma questão tecnológica, não política. O autor propõe a imaginação de uma situação hipotética de um mundo sem inflação, sem bancos centrais desvalorizando o dinheiro para financiar os excessos fiscais dos governantes. Um mundo sem confisco de poupanças, sem manipulação das taxas de juros e sem controle de capitais. Sem banqueiros centrais que têm o poder de aumentar a base monetária, a qualquer momento, para resgatar banqueiros ineficazes que usaram os depósitos dos cidadãos em aventuras privadas[7].

O fator, que impulsionou o Bitcoin, segundo Amoedo e Schramm (2021, p. 146) para ser um criptoativo relevante e com um grande valor na economia mundial, chegando a possuir um valor de mercado atual próximo a 1,7 trilhão de dólares (maior que o Produto Interno Bruto- PIB de muitos países), é a desconfiança no sistema monetário tradicional. Diversas crises financeiras foram ocasionadas por decisões de terceiros (políticos) que interferiram negativamente na economia. Os políticos, por melhores intenções que tenham, não conseguem evitar colapsos institucionais.

Isso acontece, segundo Amoedo e Schramm (2021, p. 26) porque a moeda estatal tende a uma perda real, pois os governos podem se financiar apenas de três formas. A primeira é a tributação, porém há uma limitação demonstrada pela curva de Laffer[8], citada por Amoedo (2021, p.340), que afirma que existe um limite para o aumento da carga tributária, a partir do qual a arrecadação do governo começa a cair. Isso em razão do desincentivo dos contribuintes em pagar os tributos devidos, ou seja, uma diminuição da carga tributária, em alguns casos, significa uma maior arrecadação.

A segunda forma, segundo Amoedo e Schramm (2021, p. 26), de financiamento é a emissão de moeda. Porém, também há um limite determinado pela inflação, que corrói o seu valor. Pois, no caso de emissão de mais moeda, aquelas já em circulação perderão valor. A inflação, segundo Ulrich (2013, pag. 37), se refere ao aumento na quantidade de moeda em uma economia, levando, inevitavelmente, à elevação dos preços. Em uma economia moderna, a oferta de moeda não se limita apenas a cédulas e moedas metálicas; os depósitos bancários também fazem parte dessa oferta, pois cumprem a mesma função que a moeda física. Embora os depósitos não existam materialmente, eles são considerados parte da oferta monetária total. Portanto, quando há emissão de moeda ou criação de depósitos bancários, sem lastro na realidade, ocorre inflação. Assim, quanto maior a quantidade de dinheiro em circulação, menor será o poder de compra de cada unidade monetária.

 A terceira forma, também segundo Amoedo e Schramm (2021, p. 26), do governo se financiar é a contratação de dívida. Essa alternativa também encontra limites para encontrar credores que estejam dispostos a emprestar. Muitos países atualmente, inclusive o Brasil, estão próximos de seus limites fiscais, o que causa insegurança nos investidores, que buscam novas maneiras de proteger o seu patrimônio, retirando as suas economias de moedas fiduciárias fracas e colocando em alguma reserva de valor, como o ouro ou o Bitcoin.

Sendo assim, de acordo com Schramm (2021, p. 47), devido a esses motivos, surge o Bitcoin. Ele atende aos critérios de Aristóteles da definição de dinheiro, como a fungibilidade, a divisibilidade, a durabilidade, a portabilidade e, também, a escassez, para ser reserva de valor.  O Bitcoin se destaca nesses aspectos pois possui tecnologia que combina todos esses fatores, além de possuir uma tendência inflacionária menor que o ouro. O único quesito em que o Bitcoin ainda não se provou é a durabilidade, pois o ouro, por exemplo, já está no mercado como ativo financeiro, há séculos. Pode-se notar um padrão de mudança nos sistemas monetários. O cobre, por exemplo, foi desmonetizado pela prata, que, por seu turno, foi substituída pelo ouro. O ouro foi superado pelas moedas fiduciárias, como o dólar, o euro e o real. Agora, a indagação é se essas moedas tendem a ser desmonetizadas pelo Bitcoin.

Com isso, Renato Amoedo afirma em seu livro (Amoedo, p. 147) que o motivo pelo qual o Bitcoin se destaca é a falência de todos os sistemas monetários anteriores, sejam eles baseados em moedas fiduciárias ou no padrão ouro, que falharam em cumprir as suas promessas de manter o seu valor a longo prazo. A moeda fiduciária é adotada, mesmo em sistemas falhos, porque resolve o problema da dupla coincidência de desejos entre pessoas que querem trocar bens. A riqueza é subjetiva e resulta do trabalho ou comércio. Dessa forma, é possível que todos estejam em melhor condição apenas redistribuindo bens para aqueles que mais os valorizam. Há mais trocas quando se usa moeda, em vez de apenas permutar bens diretamente (que podem não ser divisíveis, duráveis ou transportáveis).

O gráfico comparativo a baixo analisa a evolução do preço do dólar e do ouro, ao longo do tempo. Ao comparar o comportamento do dólar com o do ouro, percebe-se que, ao longo dos anos, é necessário um montante crescente de dólares para adquirir a mesma quantidade de ouro. Isso evidencia a tendência de desvalorização do dólar em relação ouro.

Figura 1- Preço do ouro em dólar

Fonte: Banco Central dos EUA – 2021

Com isso, de acordo com Amoedo e Schramm (2021, p. 110), com o fim do Acordo de Bretton Woods em 1971 e o abandono do padrão ouro (gold window), quase todas as moedas do mundo tornaram-se totalmente fiduciárias. Quando os governos começaram a imprimir moeda de forma ilimitada, a moralidade política começou a entrar em declínio. Ainda segundo Amoedo e Schramm (2021, p. 149), uma demonstração disso é que em 1933, a moeda de 20 dólares (USD ou US$) era feita de uma onça de ouro. Já em 2020, uma onça de ouro chegava a custar mais de 2,000 USD (dois mil dólares estadunidenses), ou seja, quem poupou em dólar perdeu mais de 99% (em ouro), em menos de 90 anos.

Além disso, Ulrich afirma que, atualmente, as moedas emitidas pelos governos não têm lastro algum, exceto a confiança que as pessoas têm neles. Com o tempo, o sistema monetário evoluiu de tal forma que não há mais qualquer vínculo com o ouro ou a prata, que foram utilizados como dinheiro por milênios. O padrão-ouro se tornou um fato histórico, com poucas chances de retorno, não porque não funcionasse, mas porque impunha limitações ao apetite inflacionário dos governos. Quando esses governos emitiam moeda em excesso, percebiam a fuga de ouro para fora de suas fronteiras e eram obrigados a depreciar o valor da moeda em relação ao metal precioso.

Sendo assim, também de acordo com Fernando Ulrich, desde 1971, quando o presidente Richard Nixon suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro, entramos na era do papel-moeda fiduciário, na qual os bancos centrais têm a capacidade de imprimir dinheiro quase sem limites, a não ser pelo risco de que as pessoas percam a confiança na moeda e se recusem a utilizá-la em transações, o que costuma ocorrer em situações de hiperinflação.

Na prática, os governos historicamente recorreram à impressão de dinheiro para cobrir déficits, financiar guerras ou sustentar um estado gastador que não conseguia sobreviver apenas com os tributos arrecadados da população. A tentação de usar o poder de imprimir dinheiro é grande demais para ser ignorada.

É interessante observar que o whitepaper do Bitcoin foi publicado dias depois da falência de um dos maiores bancos dos Estados Unidos, o Lehman Brothers[9], e que foi diretamente ligada à crise de 2008, ocasionada por uma elevada liberação de crédito ligado a um momento de muita especulação no mercado imobiliário, sendo a maior crise financeira desde a chamada grande depressão de 1930. Fernando Ulrich (2014, p. 35) explica que, apesar da coincidência de o ativo digital ter surgido durante a maior crise financeira desde a Grande Depressão de 1930, não se pode ignorar o avanço do Estado interventor, as medidas sem precedentes e arbitrárias das autoridades monetárias na primeira década do novo milênio, e a crescente perda de privacidade enfrentada pelos cidadãos em muitos países desenvolvidos e emergentes. Assim como, Fernando Antônio de Barros Júnior, professor doutor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP, considera que a coincidência temporal entre os dois eventos é apenas isso: uma coincidência. Segundo ele, “é improvável que o Bitcoin tenha sido criado em resposta à crise. No próprio whitepaper, está claro que Nakamoto não pretendia criar um ativo financeiro, mas sim um meio de pagamento seguro e fora do controle governamental.”

Como o Bitcoin é um tipo de ativo digital, uma de suas principais características é a ausência de regulação estatal. Ou seja, não existe um banco central que controle e administre as transações feitas com esse ativo. Devido à falta de uma regulamentação uniforme, o Bitcoin é altamente volátil, o que faz com que o seu preço possa oscilar de maneira significativa e imprevisível. Aliás, como qualquer ativo de renda varável, como as ações.

4. BITCOIN: ATIVO FINANCEIRO OU MOEDA?

Sobre a tangibilidade do Bitcoin, Ulrich (2014, p.59) explica que hoje em dia, quando se pensa em dinheiro, geralmente associa-se a algo físico, como cédulas e moedas que carregamos, como também nos depósitos bancários, à vista, a prazo ou poupança. Esses números nas contas bancárias representam a moeda escritural, que é quase inteiramente digital. Uma diferença fundamental entre o sistema monetário atual e o de séculos atrás é a existência de um banco central, que tem o monopólio da emissão de moeda física, bem como cria moeda escritural, na forma de reservas bancárias. Embora os bancos possam criar moeda escritural, a emissão de moeda física é exclusiva de um banco central. A capacidade dos bancos de gerar moeda escritural é limitada, sendo o banco central responsável por regular e incentivar essa criação. Apesar disso, pode-se questionar a importância da moeda escritural nos dias de hoje. Dados[10]dos bancos centrais mostram que, nos EUA, a moeda escritural representa mais de 55% do dinheiro em circulação. No Brasil esse número chega a 52%, e em países como Japão, Suíça, China e os da Zona do Euro, esse valor ultrapassa os 80%. No Reino Unido, a moeda física não chega a 5% do total.

Dessa forma, nota-se que a característica intangível do ativo/moeda não é uma inovação do Bitcoin, mas uma realidade do sistema monetário, desde a criação da moeda escritural, com a prática das reservas fracionárias. A intangibilidade da moeda é antiga, mas a sua escassez sempre foi controlada pelos bancos centrais.

Ulrich (2014. pag. 60) também afirma que, com a criação do Bitcoin, essa vulnerabilidade foi sanada. E isso faz toda a diferença. Do dinheiro commodity material (gado, sal, ouro ou prata), o mundo evoluiu ao papel-moeda e à moeda escritural. A intangibilidade desta permitiu aos bancos a criação quase ilimitada de moeda, corroendo continuamente o poder de compra do dinheiro que usamos. A intangibilidade do Bitcoin, por outro lado, propiciou justamente o oposto: assegurou a escassez da moeda, a fim de preservá-la e não corroer o seu poder de compra. Da intangibilidade do Bitcoin também é possível evoluir ou materializar ao dinheiro físico. Alguns empresários, ávidos por satisfazer a demanda de alguns usuários, criaram moedas físicas, lastreadas em unidades monetárias de Bitcoin.

Sendo assim, também segundo Ulrich (2014, pag. 62), entende-se que o dinheiro se origina naturalmente no mercado, por meio de trocas voluntárias, o que é essencial para compreender o fenômeno do Bitcoin. O autor também exemplifica que a introdução e evolução do dinheiro são fundamentais para diminuir os custos associados às transações, resolvendo o problema da “dupla coincidência de desejos”, como quando alguém possui uma vaca e deseja pão, mas o padeiro prefere um terno. A moeda simplifica essas trocas, reduzindo o que os economistas chamam de custos de transação. Assim, em um ambiente de concorrência, a moeda que mais eficientemente reduzir esses custos, acabará prevalecendo no mercado.

Com isso, Ulrich (2014, pag. 65) afirma que o Bitcoin, sendo a própria unidade monetária (1 BTC), elimina a necessidade de substitutos de dinheiro, ao oferecer baixos custos de transação, algo que os substitutos normalmente proporcionariam. Suas propriedades digitais tornam improvável o surgimento de novos intermediários e têm o potencial de tornar o sistema bancário irrelevante, prevenindo a expansão artificial de crédito e ciclos econômicos. Uma das maiores vantagens do Bitcoin é seu sistema peer-to-peer, que dispensa intermediários, como bancos, e utiliza criptografia moderna para garantir a segurança e a solidez do ativo/moeda, substituindo a confiança no fator humano, por comprovação matemático-criptográfica.

Ulrich (2014, pag. 67) conclui que o Bitcoin é uma forma superior de ativo/moeda, combinando a escassez do ouro com a portabilidade e divisibilidade instantâneas dos substitutos digitais, sem depender de intermediários, como bancos ou entidades financeiras, eliminando o risco de contraparte. A tabela abaixo traz uma comparação entre os sistemas monetários mais comuns: o ouro e o papel moeda, e o Bitcoin:

AtributoOuroPapel-moedaBitcoin
1. DurabilidadeAltaBaixaPerfeita
2. DivisibilidadeMédiaAltaPerfeita
3. MaleabilidadeAltaAltaIncorpóreo
4. HomogeneidadeMédiaAltaPerfeita
5. Oferta (Escassez)Limitada pela naturezaIlimitada e controlada politicamenteLimitada matematicamente
6. Dependência de terceiros fiduciáriosAltaAlta    Baixa ou quase nula

Moraes (2021, pag. 9) afirma que em janeiro de 2009 foi lançada a versão 0.1 do Bitcoin, e no final do mesmo ano, a versão 0.2 também foi liberada. Esse ano também marcou a primeira transação de bitcoins, realizada entre Nakamoto e Hal Finney[11]. Naquele período, a taxa de câmbio entre a moeda virtual e o dólar foi estabelecida pelo New Liberty Standard [12]como USD 1 = BTC 1.309,03, aproximadamente 0,0025 centavos de dólar americano

Fernando Ulrich (2014, p. 18) menciona que alguns meses depois, em maio de 2010, uma pizza (Exame, 2022) foi vendida por 10 mil bitcoins, o equivalente a 25 dólares à época. Essa quantidade de bitcoin utilizada para comprar uma pizza, equivaleria hoje a aproximadamente US$ 592,500.00 (quinhentos e noventa e dois milhões e quinhentos mil dólares)

Entre 2011 e 2012, os criptoativos foram amplamente utilizados em mercados clandestinos da eep web[13], em vendas de drogas e armas. Nesse mercado específico, foram movimentados mais 9,9 milhões de bitcoins, o que correspondia a 214 milhões de dólares à época. Durante o mesmo período, o preço do Bitcoin variou de 30 centavos a 31,50 dólares, por unidade.

Moraes (2020, p.13) destaca o aspecto da volatilidade do Bitcoin, pois é crucial lembrar que o seu preço não é definido por um fundo monetário ou qualquer outro órgão estatal ou interestatal regulador. Sua cotação não segue nenhuma regulamentação formal, sendo estabelecida diretamente entre os negociantes, baseada na lei da oferta e demanda. Em outras palavras, quanto mais transações e ativos existam no mercado virtual, menor tende a ser o preço do Bitcoin. Essa ausência de regulamentação e regulação estatal torna o mercado de criptoativos bastante arriscado, já que os valores do Bitcoin podem cair drasticamente, sem que o Estado consiga intervir de maneira eficaz para estabilizar o mercado. Como o faz, por exemplo, no câmbio. A falta de regras claras desde o surgimento do Bitcoin deixa o mercado exposto a grandes oscilações.

Sendo assim o preço atual do Bitcoin (março de 2025) é de aproximadamente US$80,000, oitenta mil dólares estadunidenses (Coinbase, 2024). O gráfico abaixo ilustra a evolução do preço do Bitcoin ao longo do tempo. Percebe-se que as flutuações significativas e as tendências de valorização e desvalorização do criptoativo mostram como o preço do Bitcoin tem variado em resposta a eventos de mercado e fatores econômicos. Apesar das quedas e elevações, ao longo do período analisado, o gráfico revela que o preço do Bitcoin tem se mantido, em média, em uma trajetória de ascensão.

Figura 2 – Gráfico sobre o preço do Bitcoin

Fonte: Crypto – 2024

Entre 2010 e 2012, o Bitcoin enfrentou um período de desvalorização e estagnação, devido a várias fraudes e problemas técnicos em diversas bolsas de negociação. Nos anos seguintes, o Bitcoin ganhou popularidade. No entanto, a verdadeira ascensão do Bitcoin ocorreu em 2020, quando, apesar da crise global provocada pela pandemia de Covid-19, seu valor alcançou cifras superiores a $30,000 dólares por unidade. Portanto, vários fatores contribuíram para essa valorização, incluindo a introdução de produtos financeiros relacionados ao Bitcoin, na bolsa de Frankfurt[14], uma das maiores do mundo. Nesse período, o Bitcoin consolidou-se como um ativo de reserva de valor, especialmente em um cenário de instabilidade financeira global, causado pela pandemia.

5. AQUISIÇÃO DE BITCOIN

Há diversas formas de se adquirir Bitcoin. Por exemplo, a compra direta de pessoa para pessoa (peer-to-peer), a compra por meio de uma corretora (exchange), ou por meio da mineração.

A mineração de Bitcoin, de acordo com Amoedo (2021, p. 199) é baseada em um sistema de recompensas. Sempre que um dispositivo criptográfico resolve, com sucesso, os desafios matemáticos, ele tem o direito de adicionar um novo bloco de transações e, como recompensa, recebe uma quantidade de criptoativos (Bitcoins). Portanto, cada minerador enfrenta um problema matemático exclusivo, que é influenciado pelas informações que ele inclui no bloco, como transações a serem validadas, valores transacionados e endereços de origem e destino. Cada bloco validado, de acordo com Amoedo e Schramm (2021, p. 347), recebe uma assinatura criptográfica, chamada de Hash[15], que o vincula ao bloco anterior. Isso cria uma cadeia (chain) indissociável, onde cada bloco faz referência aos dados do bloco anterior e contém o hash desse bloco.

Por exemplo, se alguém tentar transferir a mesma moeda duas vezes, a segunda tentativa será rejeitada, pois a transação já foi registrada em um bloco anterior. A validação das transações ocorre por meio do consenso entre os dispositivos da rede. Todos os computadores na rede realizam cálculos, e a transação só é registrada na blockchain[16] se a verificação for correta. Os demais computadores da rede verificam as soluções propostas pelos mineradores para cada bloco. Se houver consenso na validação, o bloco é adicionado à blockchain e o minerador responsável recebe a recompensa. Essa recompensa é a única maneira de gerar novos criptoativos.

A segurança do sistema é garantida pela dificuldade de fraudar a maioria dos dispositivos, já que há milhares a dezenas de milhares de computadores minerando ou participando da rede de outras formas. A mineração de bitcoin tem esse nome pois há uma similaridade com a mineração de ouro. Por exemplo, o minerador aparece validando uma transação feita, em que, quando completa, cria bitcoins e os envia ao minerador, como recompensa. A diferença é que o ouro é regulamentado por diversas leis, que controlam a sua extração, demanda e comércio, enquanto o bitcoin é descentralizado/distribuído. Ulrich afirma (2021, p. 22) que no contexto do Bitcoin, a criptografia desempenha duas funções principais: primeiro, ela garante que um usuário não possa gastar os bitcoins da carteira de outro usuário, assegurando a autenticidade e a veracidade das informações; segundo, ela protege a blockchain contra violações e corrupção, garantindo a integridade e a segurança das informações e evitando o gasto duplo (duplicidade). Além disso, a criptografia também pode ser utilizada para proteger uma carteira, por meio de uma senha definida pelo proprietário, garantindo que somente ele possa acessar e utilizar os bitcoins armazenados.

Sobre o armazenamento do Bitcoin, de acordo com Amoedo (2021, p. 199-201), por se tratar de um ativo digital e, portanto, não ter uma forma física, é guardado em endereços públicos na blockchain, acessíveis por meio de chaves privadas que permitem ao usuário acessar os fundos e assinar transações de forma segura. As transações na blockchain do Bitcoin são realizadas por meio da combinação da chave pública do destinatário com a chave privada. Portanto, também segundo os autores (2021, p.173) há várias formas de carteiras para o Bitcoin, e que oferecem diferentes funcionalidades e níveis de segurança.

Por exemplo, tem-se uma carteira de papel que é um documento que contém um endereço público na rede do Bitcoin, utilizado para receber fundos, e uma chave privada, que autoriza o gasto ou a transferência dos Bitcoins armazenados nesse endereço. Esses documentos são frequentemente apresentados como códigos QR[17], facilitando a digitalização e a adição das chaves a uma carteira de software[18] para realizar transações. A grande vantagem de uma carteira de papel é que as chaves não são armazenadas digitalmente em nenhum lugar. Sendo assim, é imune a ataques de hackers[19]para furto de criptoativos.

Outra forma de armazenar Bitcoins é em carteiras web, que guardam as chaves privadas em servidores de empresas (custódia) e estão sempre conectados à Internet. Os provedores de carteiras oferecem diversas funcionalidades, incluindo a integração entre carteiras móveis e de desktop[20], sincronizando os endereços nos dispositivos.

6. REGULAMENTAÇÃO ESTATAL

Moraes (2020, p. 12-15) enfrenta a questão da regulamentação do Bitcoin em sua obra, considerando que é necessária para proporcionar segurança aos consumidores e para atrair investidores institucionais, como grandes bancos e fundos internacionais, com reservas bilionárias.

Fernando Ulrich (2013, pag. 33) afirma que as leis e regulamentações atuais não contemplam tecnologias como a do Bitcoin, resultando em zonas legais cinzentas. Isso acontece porque o Bitcoin não se encaixa nas definições regulamentares existentes de moeda, instrumentos financeiros ou instituições, tornando complicado determinar quais leis se aplicam a ele e de que forma. Além disso, essa nova tecnologia possui características de um sistema eletrônico de pagamentos, moeda e commodity, entre outras. Isto significa que deverá ser alvo de supervisão por diversos reguladores. Vários países debatem sobre o Bitcoin em nível governamental e alguns já adotaram posturas que vão desde a neutralidade, até uma abordagem mais cautelosa. Dado o rápido crescimento desse mercado, novidades legais e regulatórias deverão surgir em breve.

Porém, até a chegada da Lei 14.478/2022[21] (Brasil, 2022) o Brasil não possuía uma regulamentação legal específica para a prestação de serviços de ativos virtuais. As empresas que oferecem esses serviços são conhecidas como exchanges[22] ou corretoras. A nova lei visa a proteger os consumidores nesse mercado e estabelecer boas práticas de governança e transparência. No passado, e até certo ponto ainda hoje, existia uma assimetria informacional entre o que os consumidores sabiam e o que as corretoras sabiam. Para reduzir essa assimetria, é crucial que as corretoras provem, de forma robusta, suas reservas, por meio de auditorias independentes. E que os mecanismos de proteção dos ativos dos clientes sejam claros. A transparência nas relações informacionais é uma das diretrizes do direito privado no século XXI. Sendo assim, a Lei 14.478/2022 (Brasil, 2022) é uma legislação fundamental para regular as empresas que operam no mercado de ativos virtuais, trazendo mais segurança aos usuários. A Lei 14.478/2022, em seus artigos 2º [23]e 4º[24],  não especifica qual órgão da administração pública federal será responsável pela regulamentação e fiscalização, sendo provável que essa tarefa seja atribuída ao Banco Central. Como comparação, em termos econômicos, a regulação pode beneficiar o setor, similar ao que ocorreu com as fintechs[25], como o Nubank. Reguladas, essas fintechs passarão a competir com grandes bancos e ampliarão a sua base de clientes. Sendo assim, é relevante recordar a frase de George Ripert, professor e reitor da Faculdade de Direito da Universidade de Paris, que, na década de 1940, disse: “quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito”.

Entre outros pontos, essa nova lei acrescenta ao Código Penal, ou Decreto-lei 2.848 de 1940 (Brasil, 1940), um novo tipo de estelionato, com pena de reclusão de quatro a oito anos e multa. Será enquadrado no crime de “fraude com a utilização de ativos virtuais” quem organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações envolvendo criptoativos para obter vantagem ilícita em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro. Na Lei 9.613, de 1998 (Brasil, 1998), conhecida como “Lei de Lavagem de Dinheiro”, a norma inclui os crimes cometidos por meio da utilização de ativo virtual entre aqueles com agravante de um terço a dois terços de acréscimo na pena de reclusão de três a dez anos, quando praticados de forma reiterada. O texto também determina que as empresas deverão manter registro das transações, para fins de repasse de informações aos órgãos de fiscalização e combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro[26].

Um dos principais pontos abordados na consulta pública do Banco Central sobre a nova legislação relativa aos criptoativos, é a regra de segregação patrimonial. De acordo com esse princípio, os ativos das carteiras de criptoativos dos clientes devem ser mantidos separados dos ativos patrimoniais das empresas. Na prática, isso implica que as exchanges passem a seguir regras similares às aplicadas a bancos, financeiras e corretoras. Por exemplo, a Binance[27] já adota a prática de manter os ativos virtuais dos clientes em contas distintas das contas de ativos da própria empresa. Para a exchange, essa abordagem deve ser adotada por todo o setor para assegurar a proteção dos usuários. A companhia acredita que as prestadoras de serviços de ativos virtuais (VASPs)[28] devem possuir uma infraestrutura própria de carteira para assegurar a proteção dos ativos. Além disso, defende que cada cliente deva ter uma conta identificada por um código único, conhecido como UID, onde seus saldos seriam registrados. Entre as medidas e ferramentas implementadas pela empresa está a “prova de reservas”, que utiliza uma árvore Merkle — um modelo criptográfico para organizar e verificar grandes volumes de dados. Esse sistema permite aos investidores verificar se seus ativos estão devidamente protegidos e disponíveis na plataforma, garantidos pelas reservas de fundos da companhia.

Apesar da regulamentação pela lei 14.478/2022 (Brasil, 2022), o Banco Central do Brasil já havia divulgado o Comunicado nº 31.379, em 16 de novembro de 2017 (Brasil, 2017), alertando sobre os riscos associados à aquisição de “moedas virtuais” e à realização de transações com essas moedas. O comunicado alertava que, considerando o crescente interesse dos agentes econômicos (sociedade e instituições) nas denominadas moedas virtuais, o Banco Central do Brasil lembra que esses ativos/moedas não são emitidos(as), nem garantidos(as) por qualquer autoridade monetária. Por isso, não têm garantia de conversão para moedas soberanas e tampouco são lastreados(as) em ativo real de qualquer espécie, ficando todo o risco com os detentores. Seu valor decorre exclusivamente da confiança conferida pelos indivíduos ao seu emissor.

Além do Brasil, outros países têm começado a explorar formas de regulamentar os criptoativos, buscando equilibrar a inovação tecnológica com a proteção dos interesses públicos. As estratégias incluem desde a criação de diretrizes claras para exchanges e empresas que operam com criptoativos, até a implementação de sistemas de monitoramento e compliance mais rigorosos. Santos (2014) relata que a Receita Federal dos EUA (Internal Revenue Service – IRS) definiu o Bitcoin como uma forma de “propriedade”, em vez de “moeda”, implicando que cada transação com o ativo virtual estaria sujeita à tributação sobre ganhos de capital. Além disso, a atividade de mineração de Bitcoin foi estabelecida como tributável, com base no valor de mercado do ativo, na data da atividade específica (Santos, 2014, p.132).

A correta classificação tributária dos criptoativos pelo Estado é um aspecto crucial em sua regulamentação. Essa sistematização não apenas visa a evitar a evasão fiscal, mas também proporcionar ao Estado uma compreensão mais precisa dos investimentos dos cidadãos. Portanto, a positivação do tratamento tributário relacionado ao dinheiro virtual é considerada uma prioridade (Campos, 2015 p.77).

O Decreto 11.563, de 2023 [29](Brasil, 2023) atribuiu a competência de regulamentação dos criptoativos ao Banco Central, respeitando as atribuições da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), e visa a reforçar a proteção dos investidores em ativos virtuais. A regulamentação busca estabelecer regras que garantam maior transparência sobre os benefícios e riscos associados a esses investimentos. Para avançar na regulamentação do mercado de criptoativos no Brasil, o Banco Central optou por dividir o processo em fases. Nagel Lisanias Paulino, do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do BC, ressalta que a regulação tem um papel crucial em tornar mais claras as práticas inadequadas que envolvem esses ativos e que podem prejudicar consumidores e agentes do setor, em casos de golpes e fraudes. A intenção é definir requisitos mínimos para que os prestadores de serviços de ativos virtuais atuem de maneira adequada e transparente com seus clientes. A ideia é avançar na criação dos atos normativos que vão tratar tanto dos aspectos de negócios, quanto das autorizações necessárias.

De acordo com a Lei 14.478, de 2022 (Brasil, 2022), as prestadoras de serviços de ativos virtuais só poderão operar no Brasil mediante autorização do BC. Entre as suas atividades regulamentadas estão a oferta direta, a intermediação e a custódia de criptoativos.

A regulamentação dos ativos virtuais será implementada de maneira gradual e por etapas, para acompanhar o avanço do conhecimento dos reguladores e as práticas recomendadas por organismos internacionais, como o GAFI[30]. O Banco Central (BC), com o apoio de outras entidades reguladoras como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), vai abordar aspectos específicos dos ativos virtuais que são relevantes para essas instituições e outros órgãos governamentais. Os próximos passos para a regulamentação dos criptoativos, estabelecidos pelo próprio incluem:

1) Segunda consulta pública: realização de uma nova consulta pública sobre as normas gerais para a atuação e autorização dos prestadores de serviços de ativos virtuais (Banco Central, 2024);

2) Planejamento para stablecoins[31]: estabelecimento de um planejamento interno para regulamentar stablecoins, especialmente nas áreas de pagamentos e mercados de câmbio e capitais internacionais, sob a jurisdição do Banco Central (Banco Central, 2024);

3) Desenvolvimento de normas complementares: criação e aprimoramento de um conjunto de normas adicionais para regulamentar a atuação das VASPs no mercado de câmbio e capitais internacionais, além de aspectos como regulamentação prudencial, prestação de informações ao BC, contabilidade, tarifas e adequação (Banco Central, 2024).

Depois dessas etapas, espera-se que as contribuições recebidas sejam avaliadas e as propostas normativas finalizadas e apresentadas.

Além disso, a regulamentação visa a manter a estabilidade do Sistema Financeiro Nacional, uma das responsabilidades do BC. Isso inclui assegurar que as regras para a prevenção à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo sejam seguidas, monitorar atividades suspeitas e garantir que os prestadores de serviços e outras instituições autorizadas cumpram as normas estabelecidas.

A regulamentação dos criptoativos no Brasil surge como uma resposta necessária à crescente complexidade e popularidade desses ativos no cenário financeiro global e doméstico. Ao tratar a classificação tributária como um pilar fundamental, conforme apontado por Campos, o Estado busca, não apenas evitar a evasão fiscal, mas, também, garantir um controle mais eficiente sobre os fluxos financeiros dos cidadãos, fortalecendo a soberania econômica e fiscal do país.

O Decreto 11.563/2023 (Brasil, 2024), que confere ao Banco Central a responsabilidade pela regulamentação dos criptoativos, marca um passo decisivo na estruturação de um mercado que, até então, operava, em grande parte, à margem da supervisão estatal. A colaboração com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e com a Receita Federal do Brasil (RFB) robustece um esforço coordenado para proteger investidores e trazer maior transparência e confiança ao mercado de criptoativos.

A abordagem gradual, adotada pelo Banco Central, com consultas públicas e o desenvolvimento de normas complementares, reflete uma estratégia prudente que visa a integrar o avanço do conhecimento regulatório às melhores práticas internacionais. Esse processo permite ao Brasil adaptar as suas regulamentações à medida que o mercado evolui, garantindo que as regras acompanhem o dinamismo do setor, sem comprometer a proteção dos consumidores e a integridade do Sistema Financeiro Nacional.

A Lei 14.478/2022 (Brasil, 2022) ao exigir que as prestadoras de serviços de ativos virtuais operem apenas com autorização do Banco Central, estabelece uma barreira regulatória que busca impedir a atuação de agentes mal-intencionados, contribuindo para um ambiente mais seguro e confiável. Além disso, a regulamentação se preocupa com a prevenção de práticas ilícitas, como a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, que podem encontrar nos criptoativos um terreno fértil, se não forem adequadamente monitoradas.

A regulação dos criptoativos no Brasil representa um esforço multifacetado para equilibrar a inovação tecnológica com a necessidade de proteger a economia e os cidadãos. Por meio  de uma combinação de classificação tributária rigorosa, supervisão regulatória robusta e um processo de implementação gradual e consultivo, o Brasil está construindo um arcabouço legal que permitirá a integração segura dos criptoativos no sistema financeiro, garantindo, ao mesmo tempo, a estabilidade econômica e a proteção dos investidores. Esse movimento é essencial para que o país possa aproveitar os benefícios das novas tecnologias financeiras, sem renunciar à segurança e da governança, que são fundamentais para um desenvolvimento econômico sustentável.

7. CONCLUSÃO

A análise do ambiente da regulamentação dos criptoativos no país revela um cenário de desconhecimento e falta de legislação específica. Essa situação revela uma grande incerteza jurídica. Com isso, nota-se uma movimentação por parte dos legisladores, pois perceberam uma crescente utilização de criptoativos por se tratar de uma nova alternativa monetária descentralizada, e por isso buscam dar uma resposta à essa lacuna jurídica, a fim de aumentar a segurança dos usuários.

Portanto, com base na investigação realizada, nota-se que o tema relacionado aos criptoativos está presente na atual sociedade, e ganha, de forma exponencial, relevância com o passar do tempo, principalmente quando se trata do Bitcoin.

Surgido em 2008, o Bitcoin, com sua nova tecnologia, elimina a necessidade de uma entidade centralizadora e resolve o chamado “problema do gasto duplo”. Além disso, ressalta-se a característica de anonimado do criador Satoshi Nakamoto, que de forma inteligente se manteve oculto da sociedade para aumentar a integridade do projeto, além de gerar mais confiança na moeda digital. Essa confiança é algo de extrema relevância, tendo em vista que, atualmente, as moedas fiduciárias tendem a perder valor.

Além disso, a possibilidade de transações globais, com custos reduzidos e sem a interferência de intermediários, trouxe uma alternativa viável e mais economicamente interessante de movimentar patrimônio, e com isso, tem-se a oportunidade de proteger o capital, principalmente em um contexto de regimes autoritários que ameaçam a liberdade financeira da população.

Dessa forma, é inegável que a criação do Bitcoin tenha sido algo revolucionário, e marcante na história econômica, principalmente em relação aos sistemas monetários, por ser uma proposta financeira alternativa aos modelos monetários ainda dominantes.

O Bitcoin surge como uma inovação tecnológica, amplamente recebida pela sociedade. Ele trouxe a reflexão sobre o futuro do dinheiro e o desafio do Estado em manter a sua soberania monetária, já que as moedas tradicionais estão sob constante pressão inflacionária e, portanto, enfrentam crises de desconfiança. A tecnologia do Bitcoin trouxe características como a descentralização, que reestabeleceu a confiança e a privacidade sobre o patrimônio próprio. Sendo assim, pode-se afirmar que o Bitcoin não é algo irrelevante, não é apenas um simples ativo digital, mas algo que pode mudar a forma que a sociedade interage com o dinheiro nas próximas décadas.

O Bitcoin trouxe diversos impactos no campo jurídico. A maioria dos legisladores ainda desconhece o ativo digital, o que ocasiona falta de regulamentação. Exatamente num momento em que há crescente adoção do ativo digital, o que gera problemas potenciais. Por isso é necessária e urgente a sua regulamentação, principalmente com o fim de aumentar a segurança e prevenir crimes relacionados ao ambiente digital. Assim, é fundamental que os legisladores reconheçam a presença da criptoativos na economia nacional, além de compreenderem o seu desenvolvimento tecnológico e particularidades. Pois não é possível conter os avanços tecnológicos, e, portanto, deve haver uma união entre a tecnologia e a ciência do Direto, com vistas ao progresso da sociedade, visto que o Direito é um conjunto de normas que regulam as relações sociais e objetivam garantir a paz social e a convivência harmônica da coletividade.

Em síntese, a regulamentação dos criptoativos impulsionada pela lei 14.478/2022 e pelo Decreto 11.563/2023, traz um grande avanço no mercado de ativos virtuais. A criação de normas para as exchanges e prestadoras de serviços de ativos virtuais não protegem apenas os consumidores, como também colabora para uma melhora do sistema financeiro como um todo. Com isso, a cooperação do Banco Central com a Comissão de Valores Mobiliários e a Receita Federal é crucial para a implementação efetiva de uma regulamentação que proteja o investidor e busque um ambiente responsável no mercado.

O Brasil, apesar de ainda não haver regulamentado, de forma completa e abrangente todos os aspectos relacionados aos criptoativos, é um país protagonista na regulamentação e regulação dos ativos digitais, e, desse modo, alinha-se às melhores práticas internacionais, em busca de um sistema financeiro saudável.


REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

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  3. BRASIL. Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em 27/08/2024;
  4. BRASIL. Decreto nº 11.563, de 13 de junho de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20232026/2023/Decreto/D11563.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2011.563%2c%20DE%2013%20DE%20JUNHO%20DE%202023&text=Regulamenta%20a%20Lei%20n%C2%BA%2014.478%2cao%20Banco%20Central%20do%20Brasil. Acesso em 27/08/2024;
  5. BRASIL. Lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022. Disponível em: https://planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Lei/L14478.htm. Acesso em 27/08/2024;
  6. COINBASE. BTC/USD: converter Bitcoin (BTC) em United States Dollar (USD), [S. l.], p. 1, 27 ago. 2024. Disponível em: https://www.coinbase.com/pt-br/converter/btc/usd. Acesso em: 27 ago. 2024;
  7. COINTELEGRAPH. Há 12 anos foi definido o primeiro preço do Bitcoin e usuário comprou 50 mil Bitcoins por US$ 35. Disponível em: https://br.cointelegraph.com/news/12-years-ago-the-first-bitcoin-price-was-established-1-300-btc-for-us-1-dollar. Acesso em 18 setembro 2024;
  8. COMUNICADO nº 31.379: BACEN esclarece sobre riscos da aquisição de moedas virtuais. Disponível em: https://www.garciaemoreno.com.br/legislacao/17181/comunicado_n_31379:_bacen_esclarece_sobre_riscos_da_aquisio_de_moedas_virtuais.html. Acesso em: 27 ago;
  9. CRIPTOMOEDAS: Regras para corretoras de moedas digitais avançam no Brasil e no mundo, trazem segurança e podem atrair investidores: Disponível em: https://www.poder360.com.br/conteudo-patrocinado/metade-dos-brasileiros-quer-mercado-de-criptomoedas-regulado/. Acesso em 18 de setembro de 2024;
  10. EXAME. Bitcoin Pizza Day: o que é e qual a importância da data? Disponível em:https://exame.com/future-of-money/bitcoin-pizza-day-o-que-e-e-qual-a-importancia-da-data/. Acesso em: 18 de setembro de 2024;
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  17. PODER, [S. l.], p. 1, 28 fev. 2024. Disponível em: https://www.poder360.com.br/conteudo-patrocinado/metade-dos-brasileiros-quer-mercado-de-criptomoedas-regulado/. Acesso em: 27 ago. 2024;
  18. SANTANA, André Garcia. Olhar Agro e Negócios. Tudo o que você precisa saber antes de investir em bitcoins economista da UFMT explica agitação em torno das criptomoedas;
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  20. ULRICH, F. Bitcoin: A moeda na era virtual. São Paulo. Instituto Ludwig von Misses Brasil. 2014.

[1] Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. E-mail: Gabriel.email.12345@gmail.com. Aprovado no concurso para Auditor-fiscal da Agência DF Legal.

[2] Professor doutor da Faculdade de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). E-mail: fernandomfurlan@gmail.com.

[3] O whitepaper do Bitcoin é um documento que descreve as bases para a criação de uma moeda digital, o Bitcoin, e que foi publicado em 2008 por uma entidade anônima chamada Satoshi Nakamoto. (Open AI, 2024).

[4] Peer-to-peer (P2P), ou “ponto a ponto” em português, é um modelo de rede distribuída que permite o compartilhamento de recursos entre os próprios usuários, sem a necessidade de um servidor central (Open AI, 2024).

[5] Satoshi (unidade de medida) Existem 100 milhões de satoshis (sats) em um bitcoin, o que significa que cada satoshi vale 0,00000001 BTC.

[6] Em março de 1990, o governo de Fernando Collor de Mello implementou o Plano Collor, que, além de medidas como a troca da moeda e congelamento de salários e preços, incluiu o inconstitucional confisco de poupanças, com o objetivo de conter a hiperinflação. 

[7] A crise dos subprimes, também conhecida como a crise financeira de 2007-2008, foi desencadeada pela expansão de créditos hipotecários de alto risco (subprime) nos EUA, que, após o estouro da bolha imobiliária, resultaram na falência de bancos e instituições financeiras, com efeitos globais. Para evitar um colapso, o governo norte-americano renacionalizou as agências de crédito imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac, privatizadas em 1968, que ficaram sob controle governamental por tempo indeterminado, injetando 200 bilhões de dólares nas duas agências, considerada a maior operação de socorro financeiro feita pelo governo norte-americano até então.

[8] A curva de Laffer foi desenvolvida para indicar a relação entre a alíquota de imposto cobrada pelo Governo e a capacidade Zde arrecadação desse tipo de tributo. Na prática, a curva de Laffer demonstra que nem sempre aumentar a carga tributária pode levar a um crescimento do total arrecadado pelo Governo.

[9] Lehman Brothers foi uma empresa de serviços financeiros norte-americana que quebrou em 2008, marcando o ápice da crise financeira de 2008, também conhecida como crise do subprime. (Open AI, 2024)

[10] Usando os dados de 29 de novembro de 2013, a relação foi calculada dividindo os depósitos à vista contidos no agregado monetário Ml pelo próprio M1 (papel-moeda + depósitos à vista = Ml).

[11] Hal Finney foi um programador e um dos primeiros colaboradores do Bitcoin, conhecido por ser o primeiro a receber uma transação de Bitcoin de Satoshi Nakamoto. Ele foi um defensor da moeda digital e contribuiu para seu desenvolvimento. Finney também lutou contra a esclerose lateral amiotrófica (ELA) e faleceu em 2014, deixando um legado importante na comunidade de criptoativos.

[12] New Liberty Standard foi um modelo rudimentar de corretora que na verdade era um site p2p, onde o usuário que queria comprar BTC fazia um pagamento via PayPal e, depois de algumas horas, recebia o Bitcoin em sua carteira pessoal (Cointelegraph, 2021)

[13] Deep Web é o termo usado para descrever o conjunto de páginas da web que não são encontradas pelos mecanismos de busca, como o Google e o Bing. A Deep Web é composta por conteúdos que estão protegidos por senha ou que não são de livre acesso.

[14] A Bolsa de Frankfurt é a maior bolsa de valores da Alemanha e uma das maiores do mundo. Localizada em Frankfurt am Main, na Alemanha, ela é considerada uma das mais eficientes instalações de trading do mundo.

[15] O hash do Bitcoin é uma sequência alfanumérica gerada a partir de um bloco de transações processado por um algoritmo de hash específico. O hash é um código compactado dentro de um padrão específico, e o seu detentor não consegue recriar os dados originais, mas é possível testar o encaixe com a sequência anterior (Mynt, 2024)

[16] A tecnologia blockchain é um mecanismo de banco de dados avançado que permite o compartilhamento transparente de informações na rede de uma empresa. Um banco de dados blockchain armazena dados em blocos interligados em uma cadeia. (Amazon, 2024)v

[17] O código QR, ou Quick Response Code, é um código de barras bidimensional que armazena e transmite informações através de um scan. O nome vem da capacidade de ser interpretado rapidamente, permitindo que o usuário acesse informações de modo instantâneo

[18] Software é o conjunto de instruções, dados ou programas que fazem com que um computador ou outro dispositivo eletrônico funcione e execute tarefas específicas.

[19] Hacker é uma palavra inglesa que se refere a alguém com conhecimento profundo de informática e programação que explora sistemas, redes e dispositivos.

[20] Um computador pessoal projetado para ser usado em um local fixo, como uma mesa, devido ao seu tamanho e consumo de energia.

[21] A Lei 14.478/2022 posicionou o Brasil como um dos pioneiros na regulação das criptoativos, o que pode atrair mais investimentos internacionais no setor. A Lei nº 14.478/2022, ou “Lei das Criptomoedas”, regulamenta o setor de criptoativos no Brasil ao exigir que as prestadoras de serviços de ativos virtuais (VASPs) obtenham autorização do Banco Central do Brasil (BC) para operar. A lei define as atividades permitidas para as VASPs, como oferta, intermediação e custódia de criptoativos, e modifica o Código Penal para incluir crimes relacionados à fraude e estelionato envolvendo ativos virtuais. Além disso, a legislação altera a Lei de Lavagem de Dinheiro, incorporando as VASPs em suas disposições, e exige que as empresas mantenham registros das transações para fiscalização pelos órgãos competentes.

[22] Exchanges são plataformas digitais onde é possível comprar, vender, trocar e guardar criptoativos, como Bitcoin (Infomoney, 2024)

[23] Art. 2º As prestadoras de serviços de ativos virtuais somente poderão funcionar no país mediante prévia autorização de órgão ou entidade da Administração pública federal.

[24] Art. 4º A prestação de serviço de ativos virtuais deve observar as seguintes diretrizes, segundo parâmetros a serem estabelecidos pelo órgão ou pela entidade da Administração Pública federal definido em ato do Poder Executivo:

I – livre iniciativa e livre concorrência; II – boas práticas de governança, transparência nas operações e abordagem baseada em riscos; III – segurança da informação e proteção de dados pessoais; IV – proteção e defesa de consumidores e usuários; V – proteção à poupança popular; VI – solidez e eficiência das operações; e VII – prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa, em alinhamento com os padrões internacionais.

[25] Fintechs são empresas que usam tecnologia para oferecer serviços financeiros inovadores, com o objetivo de tornar as transações financeiras mais acessíveis, rápidas e econômicas (Open AI, 2024)

[26] Agência Senado.

[27] A Binance é uma exchange de criptoativos, ou seja, uma bolsa de valores de ativos criptográficos, que permite a compra, venda e negociação de criptoativos.

[28] As prestadoras de serviços de ativos virtuais (VASPs) são empresas ou indivíduos que fornecem serviços relacionados a ativos digitais, como criptoativos, tokens não fungíveis (NFTs), tokens de segurança e tokens de utilidade.  As VASPs desempenham um papel central no criptomercado, conectando os usuários e investidores com os ofertantes de ativos digitais. Elas podem ser plataformas digitais centralizadas ou descentralizadas.  No Brasil, as VASPs só podem funcionar mediante autorização do Banco Central (BC). O BC está em fase de regulamentação dos ativos virtuais e das VASPs, com o objetivo de preservar a estabilidade do Sistema Financeiro Nacional.

[29] O Decreto nº 11.563, de 13 de junho de 2023, regulamenta a Lei nº 14.478 e designa o Banco Central do Brasil (BC) como o órgão responsável pela regulação dos ativos digitais no país. O decreto define o que constitui um criptoativo, estabelece quem pode comercializar moedas digitais, autoriza o funcionamento das prestadoras de serviços de ativos virtuais e supervisiona essas prestadoras. O decreto não altera as competências da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que continua a ser responsável pela regulamentação e supervisão de valores mobiliários

[30] Grupo de Ação Financeira Internacional – GAFI.

[31] Ativos virtuais atrelados a uma moeda fiduciária estável, como o dólar, por exemplo.


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A Inconstitucionalidade da Cobrança do ITBI na Integralização de Imóveis ao Capital Social: Uma Análise Crítica à Luz da Constituição Federal de 1988, do Código Tributário Nacional e das Decisões dos Tribunais Superiores.

Publicado em 19/03/2025, às 09h35 – Atualizado em 19/03/2025, às 11h21

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.


Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


A Inconstitucionalidade da Cobrança do ITBI na Integralização de Imóveis ao Capital Social: Uma Análise Crítica à Luz da Constituição Federal de 1988, do Código Tributário Nacional e das Decisões dos Tribunais Superiores.

Herval Forny

Resumo:

O presente artigo científico tem por objetivo suscitar um debate sobre a cobrança indevida do ITBI pelos municípios na integralização de imóveis ao capital social. Demonstrando a inconstitucionalidade da prática à luz da CF/1988, do CTN e das decisões do STF e STJ. Partindo da premissa que a imunidade prevista no art. 156, § 2º, inciso I, da CF/1988 é incondicionada, e que o art. 37 do CTN, utilizado pelas prefeituras, como fundamento legal para cobrança, não foi recepcionado pela atual ordem constitucional.

Palavras-chave: ITBI; realização de capital; inconstitucionalidade de leis municipais; não recepção de norma do CTN; imunidade incondicionada; descumprimento ou interpretação equivocada de decisões dos Tribunais Superiores.

Abstract:

This scientific article aims to spark a debate on the undue collection of ITBI by municipalities when real estate is incorporated into share capital. Demonstrating the unconstitutionality of the practice in light of the 1988 Federal Constitution, the National Tax Code (CTN) and the decisions of the STF and STJ, including the analysis of specific municipal rules. Starting from the premise that the immunity provided for in art. 156, § 2, item I, of the 1988 Federal Constitution is unconditional, and art. 37 of the National Tax Code (CTN), used by city governments as a legal basis for collection, was not accepted by the current constitutional order.

Introdução:

A partir de um cenário onde se almeja um primado de uma sociedade justa, livre e solidária, que ainda espera pela sua consolidação como objetivo fundamental do País. Obrigando que as questões sociais sejam encaminhadas por uma reflexão e expansão da autonomia das vontades, do princípio da boa-fé, da segurança jurídica e da função social dos contratos. Onde se faz mais necessária a crescente adequação das leis infraconstitucionais aos preceitos e princípios constitucionais na nossa codificação.

Não há como criar obstáculos à efetivação de negócios jurídicos através de ferramentas de arrecadação Estatal, sob pena de comprometer a base principiológica que rege toda uma sistemática de efetividade da segurança jurídica, proporcionada por um Estado Democrático de Direito, compromissado com a solução de cenários futuros constituídos, para evitar conflitos e consequentes prejuízos ao ser cidadão, em seu contexto social, principalmente familiar.

Analise-se a contextualização do ITBI, a competência para a sua cobrança, limites desta competência, discorre-se sobre a imunidade tributária do tributo, na integralização de imóveis ao capital social. Para tanto, analisa-se a previsão constitucional e as exceções à esta imunidade. Discorrendo sobre o entendimento equivocado das prefeituras com relação às Cortes Superiores, tanto na questão da integralização (Tema de Repercussão Geral 796, do STF), quanto à questão do valor de mercado atribuído pelas Prefeituras, de forma unilateral, sem a abertura de um procedimento administrativo tributário, em afronta ao Tema Repetitivo 1.113, do STJ.

Aprofundando a questão da inconstitucionalidade das leis municipais, que utilizam como fundamento legal para a instituição de leis que permitam a cobrança do tributo, com base no artigo 37, do CTN.

Trazendo à discussão, a não recepção do citado artigo 37, do CTN, por não se amoldar à imunidade incondicionada prevista na primeira parte do inciso I, do §2º, do art. 156, da CF/88.

Apontando alguns julgados favoráveis aos contribuintes. E os impactos da manutenção da cobrança inconstitucional.

Apresentando propostas de soluções ao tratamento da questão.

Desenvolvimento:

1. Princípio da boa-fé

“A boa-fé traduz-se em uma atitude de lealdade e transparência, sem a intenção de lesar, locupletar-se ou obter vantagem indevida ou irrazoável. É a versão jurídica do mandamento ético de respeito ao próximo, do qual se extrai o dever de tratar o outro com a mesma medida com que gostaria de ser tratado.”[i].

Não podemos deixar de considerar que precebemos cada vez mais a crescente adequação das leis infraconstitucionais aos preceitos e princípios constitucionais na nossa codificação.

É a flexibilização normativa que procura se amoldar às evoluções culturais, científicas e tecnológicas dos tempos atuais sem desmerecer a base pricipiológica robustecida pela norma constitucional que firmou os princípios gerais interpretativos do sistema.

Por tal razão, FARIAS & ROSENVALD[ii] (2007, pág. 36) sinalizam:

“…Hodiernamente, o estudo da principiologia ganha relevância ainda maior em razão da norma constitucional, que estabelece os princípios gerais interpretativos do sistema.     Por isso, já se afirmou, lucidamente, que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremessível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”, conforme a firme advertência de Celso Antõnio Bandeira de Mello …”

Precisa a respeito do assunto, é a lição de FARIAS & ROSENVALD (idem, pág. 37):

“… Assim, com essa visão constitucionalizada, é possível apresentar como princípios basilares do Direito Civil: a) a personalidade (revelando que todo ser humano é capaz de titularizar obrigações e direitos); b) a autonomia da vontade (pelo qual se evidencia o poder de praticar ou se abster dos atos que lhes prover); c) a liberdade de estipulação negocial ou a autonomia privada (explicitando a possibilidade de escolher o conteúdo e as categorias dos atos jurídicos praticados); d) a propriedade individual (exprimindo a possibilidade de constituir patrimômnio); e) a intangibilidade familiar (querendo significar o equilíbrio entre a proteção da família e a dignidade da pessoa humana, constituindo-se a família verdadeira célua mater da sociedade e expressão imediata do ser);(g.n) f) a legitimidade da herança e direito de testar (decorrente do poder sobre os bens); (g.n) g) a solidariedade social (buscando conciliar as exigências coletivas com os interesses particulares)….”

Do mesmo modo, temos a colaboração do MINISTRO BARROSO, do Supremo Tribunal Federal no sentido de consolidar o processo de valorização da Constituição:

“…a ênfase recai em procurar-se propiciar a materialização, no mundo dos fatos (g.n), dos preceitos constitucionais, fazendo com que eles passem do plano abstrato da norma jurídica para a realidade concreta da vida.(g.n) A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho verdadeiro de sua função social…”(g.n)[iii]

As contribuições apontadas mostram que a constitucionalização inserida em nosso cenário codificado e de legislação infraconstitucional atende a referência do viés patrimonialista antecipado do texto constitucional, no sentido de que a demanda econômica que valorizará o trabalho humano, a livre iniciativa no objetivo de preservar a existência digna atendendo aos princípios da propriedade privada e da função social da propriedade.

Logo, nas hipóteses em que se utiliza a integralização de bens imóveis ao capital social, como por exemplo, no planejamento sucessório, através de uma Holding Familiar, num contexto perfeitamente incluso nestas questões invocadas, não pode enfrentar embaraços do Estado Democrático de Direito. Pois, a Carta Política há muito já se posicionou. Nem tampouco, do Estado-Juiz sistematizado por esses valores.

Neste sentido, a cobrança do Imposto de Transmissão sobre Bens Imóveis (ITBI) na integralização de bens imóveis ao capital social, fere mortalmente a razão de sua estruturação, comprometendo o dogma do princípio da conservação dos negócios. Como bem expõe KONDER (2024, pág. 2):

“…No plano doutrinário, o problema foi abordado quase que exclusivamente pela perspectiva do dito princípio da conservação dos negócios (g.n). comumente, ele é invocado sob uma acepção ampla, como um princípio autônomo, inferido a partir de institutos como a redução e a conversão dos negócios jurídicos e que se aplicaria também em outros contextos – como a eficácia do negócio nulo – traduzido, no direito contyratual, em autêntico favor contractus. Nessa toada, a conservação dos negócios jurídicos é tida omo um princípio voltado à preservação dos efeitos da manifestação de vontade como um fim sem si mesmo, em decorrência de tomar-se a autonomia privada coomo um valor, sempre socialmente positivo, Sob essa abordagem, entende-se que “os negócios jurídicos são úteis à sociedade, do que decorre, logicamente, a conveniência de preservar seus resultados sempre que possível” …”[iv]

Não podendo, desta forma, se admitir a criação de obstáculos à efetivação de negócios jurídicos através de ferramentas de arrecadação Estatal, pelo ente estatal competente para instituir e cobrar o tributo.

2. Competência para legislar sobre o tributo

O ITBI é um imposto de competência municipal e do Distrito Federal. Em suma, incide sobre as transações imobiliárias realizadas de forma onerosa, como a compra e venda.

Esta competência é definida pelo inciso II, artigo 156, da CF/88.

A imunidade tributária deste imposto é estabelecida pelo inciso I, do §2º, do art. 156, do mesmo diploma legal, in verbis:

§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;

Pode-se observar que o referido inciso pode ser divido em duas partes. A primeira parte contém a seguinte expressão:

“I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital…”

A segunda parte contém a seguinte expressão:

“…nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;” (gn)

As duas partes são ligadas por uma partícula aditiva “nem”.

A análise do dispositivo permite concluir que a primeira parte do inciso (realização de capital / integralização) a imunidade é incondicionada. Enquanto que na segunda parte (fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica) estes se condicionam à análise da preponderância de transações imobiliárias (compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil).

Se todos os atos previstos no inciso precisassem ser submetidos à análise de preponderância de transações imobiliárias, não faria sentido a redação do aludido inciso. Bastaria que fosse redigido da seguinte forma:

“não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, ou nos casos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.”

Ou seja, o acréscimo da partícula “NEM”, deveria ser substituído pela partícula alternativa “OU”. Da mesma forma, a partícula” nesses” (sic) seria desnecessária. Da forma em que está redigido, ela se refere aos casos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica e não a todos os atos, onde se inclui a integralização.

3. Da interpretação equivocada das prefeituras quanto ao Tema de Repercussão Geral 796, do STF.

Primeiramente, cabe ambientar do que se trata o referido tema e em qual contexto ele foi decidido.

O Leading case versava sobre um processo originário de Santa Catarina, onde os contribuintes possuíam imóveis declarados na DIRPF (Declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física) no valor de R$ 802 mil, sendo que foram integralizados R$ 24 mil e o restante, cerca de R$ 778 mil, foram contabilizados como reserva de capital.

A prefeitura negou a não incidência sobre o valor que ultrapassou o capital social e foi lançado a título de reserva de capital.

Em razão dos inúmeros recursos, o processo chegou ao STF onde foi firmada a tese de Repercussão Geral 796, assim descrita: “Alcance da imunidade tributária do ITBI, prevista no art. 156, § 2º, I, da Constituição, sobre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, quando o valor total desses bens excederem o limite do capital social a ser integralizado”.

Com a seguinte EMENTA: CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – ITBI. IMUNIDADE PREVISTA NO ART. 156, § 2º, I DA CONSTITUIÇÃO. APLICABILIDADE ATÉ O LIMITE DO CAPITAL SOCIAL A SER INTEGRALIZADO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO. 1. A Constituição de 1988 imunizou a integralização do capital por meio de bens imóveis, não incidindo o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito pelo sócio ou acionista da pessoa jurídica (art. 156, § 2º,). 2. A norma não imuniza qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica, mas exclusivamente o pagamento, em bens ou direitos, que o sócio faz para integralização do capital social subscrito. Portanto, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI. 3. Recurso Extraordinário a que se nega provimento. Tema 796, fixada a seguinte tese de repercussão geral: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado“.

Diante deste julgado, algumas prefeituras começaram a legislar cobrando o ITBI sobre a diferença existente entre o valor declarado na DIRPF e o valor de mercado atribuído unilateralmente pelas próprias prefeituras.

Entretanto, o julgado em nenhum momento autorizou que fosse cobrado o tributo entre a diferença existente do valor declarado na DIRPF e o valor de mercado.

O que o julgado firmou é que o valor que ultrapasse o capital subscrito incidirá o imposto. Em outras palavras. Caso todo o valor dos imóveis declarados na DIRPF seja utilizado para integralizar o capital social, SEM a utilização de parte do valor a título de reserva de capital, não poderá ser cobrado o tributo.

Ainda analisando o aludido julgado, na ratio decidendi, o Ministro redator do Acórdão Alexandre de Moraes sustenta e foi acompanhado pelos demais ministros no voto, que a imunidade da primeira parte do inciso I, do §2º, do art. 156 é incondicionada, como pode ser observado no seguinte trecho[v]:

Reitere-se, as hipóteses excepcionais ali inscritas não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada, desde que, por óbvio, refira-se à conferência de bens para integralizar capital subscrito.

Em outras palavras, todo o valor dos bens deverá ser utilizado para integralizar o capital social.

4. Da violação ao tema repetitivo 1.113, do STJ

Além de interpretarem de forma equivocada o Tema de Repercussão Geral 796, do STF, em detrimento dos contribuintes, os municípios adotam o valor venal atribuído por eles próprios, sem a obrigatoriedade de instauração de um processo administrativo tributário, para estabelecer de forma unilateral, o valor de mercado que será utilizado de forma ilegal por eles próprios, para calcular a diferença entre o valor de mercado e o valor de aquisição declarado na DIRPF dos contribuintes, para calcularem o ITBI a ser pago incidente sobre esta diferença.

Tese firmada:

“a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.”(gn)

E aqui cabe um parêntesis, a legislação do Imposto de Renda (lei 9.249/95) autoriza o contribuinte integralizar bens ao capital social ou pelo valor declarado ou pelo valor de mercado, como pode ser observado a seguir:

Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.

Como a integralização pelo valor de mercado sujeitará a transação a eventual Imposto de Renda sobre o Ganho de Capital, à alíquota de 15%, em regra, os contribuintes optam por integralizar pelo valor de aquisição.

E algumas prefeituras se aproveitam para cobrarem de forma ilegal o tributo sobre a diferença entre o valor de aquisição e o valor de mercado, atribuído, na grande maioria das vezes, sobre uma base de cálculo existente de uma base de dados, um valor de referência estabelecido unilateralmente.

Além de cobrarem de forma ilegal sobre uma diferença vedada na Corte Superior, se fundamentam nas disposições do Código Tributário Nacional (CTN).

5. Da não recepção do art. 37, do CTN

Não há dúvida que o CTN foi recepcionado pela atual Constitucional, com status de lei complementar.

Entretanto, traz-se à discussão, a tese de que os artigos 35 e 37, daquele diploma legal não foram recepcionados.

Para tanto, precisamos contextualizar a entrada em vigor de tal código perante a ordem constitucional daquela época e confrontá-lo com a entrada em vigor da nova Carta Cidadã.

Quando o CTN entrou em vigor em 25/10/1966, o ordenamento jurídico encontrava-se sob a égide da Emenda Constitucional 18, de 01/12/1965, que promulgou a Reforma do Sistema Tributário.

O art. 9º da citada Emenda Constitucional (EC) estabelecia:

Art. 9º Compete aos Estados o impôsto sôbre a transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza ou por cessão física, como definidos em lei, e de direitos reais sôbre imóveis, exceto os direitos reais de garantia. (gn)

§ 2º O impôsto não incide sôbre a transmissão dos bens ou direitos referidos neste artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquela cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

Ou seja, o ordenamento constitucional estabelecia que nos casos de integralização não incidia o imposto, salvo, se a pessoa jurídica possuísse atividade preponderante de transações imobiliárias.

Neste contexto, foi sancionada a lei 5.172/66 (CTN) que estabelecia em seu artigo 37:

Impôsto sôbre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a êles Relativos

Art. 35. O impôsto, de competência dos Estados, sôbre a transmissão de bens imóveis e de direitos a êles relativos tem como fato gerador: (gn)

I – a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;

Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o impôsto não incide sôbre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:

I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;

II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.

Parágrafo único. O impôsto não incide sôbre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I dêste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.

Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.

§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.

§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o impôsto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sôbre o valor do bem ou direito nessa data.”

Ou seja, os artigos 35 e 37, do CTN se amoldavam perfeitamente à norma constitucional então em vigor, em especial ao §2º, do art. 9º, da EC 18/65.

Entretanto, com a entrada em vigor da Carta Cidadã, esta estabelece:

a) competência:

 Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (gn)

II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

b) não incidência (imunidade):

Na primeira parte do inciso I, do §2º, do art. 156, a imunidade incondicionada, na integralização de imóveis ao capital social.  Só condicionando à análise da preponderância de transações imobiliárias, os atos de fusão, cisão, incorporação e extinção.

Esta imunidade incondicionada ou autoaplicável é defendida pelo Professor KIYOSHI HARADA[vi]. Sendo que: “as ressalvas previstas na segunda parte do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 aplicam-se unicamente à hipótese de incorporação de bens decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.”.

Em outras palavras, no entendimento do Ministro redator do Acórdão do Tema 796, do STF: “É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I.”.

6. Dos julgados favoráveis à tese da imunidade tributária

Diversos julgados têm sido prolatados favoravelmente aos contribuintes:

  • RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.449.120 MATO GROSSO DO SUL;
  • RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.485.056 GOIÁS;
  • INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE CÍVEL 0705115-03.2021.8.07.0018 – 6ª Turma Cível – TJDFT;
  • PROCESSO Nº 5022628-89.2021.8.08.0024 – MANDADO DE SEGURANÇA CÍVEL – TJES;
  • PROCESSO: 1007894-43.2022.8.11.0006 – TJMT – MANDADO DE SEGURANÇA;
  • APELAÇÃO CÍVEL Nº 5082610-43.2021.8.21.0001/RS;
  • PROCESSO 1008799-54.2022.8.26.0451 – MANDADO DE SEGURANÇA – TJSP
  • APELAÇÃO 1000084-08.2022.8.26.0456 – TJSP;

7. Impactos da manutenção da cobrança inconstitucional

A manutenção da cobrança pelos municípios acarreta um ônus financeiro para as empresas. Insegurança jurídica e judicialização da questão.

8. Soluções propostas

Para pacificar o entendimento sobre a questão, faz-se mister o julgamento do Tema de Repercussão Geral 1348, onde se discute o “Alcance da imunidade do ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição, para a transferência de bens e direitos em integralização de capital social, quando a atividade preponderante da empresa é compra e venda ou locação de bens imóveis”.

Uma vez julgado o mencionado Tema, urge a revisão das legislações municipais; o controle de constitucionalidade através do Poder Judiciário; a observância dos municípios de medidas administrativas com observância do devido processo legal; e por fim, a conscientização dos contribuintes sobre os seus direitos.

Conclusões:

Diante do exposto, não resta dúvidas que a cobrança de ITBI na integralização do capital social representa uma inconstitucionalidade.

Afirmação referendada tanto doutrinariamente, quanto jurisprudencialmente.

Referências e Notas:


[i] BARROSO, Luiz Roberto. TEMAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL. Tomo IV. Rio de Janeiro: Renovar. 2009

[ii] FARIAS, Cristiano Chaves de & ROSENVALD, Nelson. DIREITO CIVIL – TEORIA GERAL. 6.ª Edição. Editora Laumen Juris. Rio de Janeiro. 2007.

[iii] Cf. O DIREITO CONSTITUCIONAL E A EFETIVIDADE DE SUAS NORMAS. Cit. P. 344. Nota de rodapé. TEORIA GERAL – DIREITO CIVIL. FARIAS & ROSENVALD (idem, idem).

[iv] KONDER, Carlos Nelson. FUNÇÃO SOCIAL NA CONSERVAÇÃO DE EFEITOS DO CONTRATO. Indaiatuba, sp: Editora Foco, 2024.

[v] Inteiro teor do Acórdão RE 796376/SC, fls. 22.

[vi] HARADA Kiyoshi. ITBI: Doutrina e Prática, 3ª ed., ver. ampl. – Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021. 316 p.


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Apresentação

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Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

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Uma percepção legal das práticas de assédio pela administração pública

Lorenzo Martins Pompílio da Hora

Tiago Natan Veiga Kaufmann

Resumo

O presente artigo científico tem por propósito, em síntese, suscitar um debate sobre o que realmente levou a alteração da sistemática da Lei nº 4.878/1965 ao novo regime disciplinar previsto na Lei nº 15.047/2024, implantado em 17 de dezembro de 2024.

Tecer correlações com balizas constitucionais que permeiam todo o processo disciplinar. E os elementos fáticos, legais e da percepção de uma nova “era” que necessita ainda dos preceitos constitucionais de uma sociedade livre justa e solidaria, da presunção de inocência, do contraditório, do respeito ao devido processo legal, da ampla defesa substancial para afastar de vez o viés ideológico que permearam durante décadas as manipulações e utilização de ferramentas recheadas de inconstitucionalidades e ilegalidades para favorecer os menos favorecidos na administração, desmerecendo a sua religião, o seu credo, o seu gênero, a sua cor, o seu livre arbítrio e principalmente o compromisso com a verdade real e as condutas constitucionais.

Para isso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial que busca avaliar a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos que nunca foram absolutas, assim como a necessidade de se verificar a justa causa em procedimentos disciplinares que apuram improbidade administrativa e desvios de conduta.

Exigindo daqueles que exercem cargos em Comissões disciplinares um compromisso com um Estado democrático de Direito e não uma submissão aos interesses dos que estão no poder sangrando a dignidade da pessoa humana com suas inovações principiológicas sem qualquer lastro dogmático, jurisprudencial, ou ainda com as contribuições da saudável doutrina.

Desafiante e estimulante a proposta que certamente trará outras contribuições ao Direito Público e exigirá que a sua interação interdisciplinar mereça também o compromisso com a boa-fé processual.

O novo texto transmite uma inicial clarividência de que o devido processo legal, a dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência em voga há muito na jurisprudência de nossas Cortes de Vértice e doutrina especializada não podem ser mais reféns das eclipsadas manobras com suas desencorajadoras bases principiológicas que não são encontradas em nenhuma construção codificada, legislação infraconstitucional ou manuais de assistências às práticas de apurações de sinistros administrativos.

Indiciamentos sem contraditório, expressões do tipo “não é crível, “não é possível que, confecção de documentos ideologicamente falsos a permitir interpretações sem standard probatório, narrativas inconsistentes e tantas outras infinidades de práticas perversas. 

Por fim, conclui-se pelo alerta ao perigo que se corre ao instrumentalizar processos disciplinares como meios de assédio moral e de perseguição, caso as balizas constitucionais do devido processo legal (due processo of law), da segurança jurídica, da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência não sejam adequadamente observados.

As práticas de “fishing expedition” descritas pelo ilustre administrativista, parecerista, advogado e escritor Mauro Roberto Gomes de Mattos em sua obra:  Fishing Expedition no Direito Administrativo Sancionador são um exemplo da necessidade desse texto legal recentemente publicado quando a unidade corregedora não observa e se recente de que um administrado é vítima de perseguição e fica desmoralizado perante familiares, amigos, colegas e a administração de sua instituição, desenvolvendo uma conduta depressiva que em alguns casos é irresgatável com danos psíquicos, morais e reflexos que são irreparáveis.

Palavras-chave: direito administrativo; processo administrativo disciplinar; procedimento disciplinar; presunção de veracidade e legitimidade; atos administrativos; justa causa; improbidade administrativa; devido processo legal; presunção de inocência.

Abstract

The purpose of this scientific article, in short, is to spark a debate on what really led to the change in the system of Law No. 4,878/1965 to the new disciplinary regime provided for in Law No. 15,047/2024, implemented on December 17, 2024.

To draw correlations with constitutional guidelines that permeate the entire disciplinary process. And the factual, legal and perception elements of a new “era” that still requires the constitutional precepts of a free, fair and supportive society, the presumption of innocence, the adversarial system, respect for due process, and broad substantial defense to once and for all eliminate the ideological bias that has permeated for decades the manipulations and use of tools feared to be unconstitutional and illegal to favor the less favored in the administration, discrediting their religion, creed, gender, color, free will and, above all, their commitment to the real truth and constitutional conduct.

To this end, a bibliographical and jurisprudential research was carried out that seeks to evaluate the presumption of truthfulness and legitimacy of administrative acts that have never been absolute, as well as the need to verify just cause in disciplinary procedures that investigate administrative impropriety and misconduct.

Demanding that those who hold positions in disciplinary committees commit to a democratic State of Law and not submit to the interests of those in power, bleeding human dignity with their principled innovations without any dogmatic or jurisprudential basis, or even with the contributions of sound doctrine.

A challenging and stimulating proposal that will certainly bring other contributions to Public Law and will require that its interdisciplinary interaction also deserves a commitment to procedural good faith.

The new text conveys an initial clear-sightedness that due process, human dignity, and the presumption of innocence, which has long been in vogue in the jurisprudence of our High Courts and specialized doctrine, can no longer be held hostage by outdated maneuvers with their discouraging principled bases that are not found in any codified construction, infra-constitutional legislation, or manuals for assisting in the practice of investigating administrative claims. Indictments without a contradictory principle, expressions such as “it is not credible”, “it is not possible that”, the creation of ideologically false documents allowing interpretations without a standard of proof, inconsistent narratives and many other perverse practices.

Finally, we conclude by warning of the danger that arises when using disciplinary processes as means of moral harassment and persecution, if the constitutional guidelines of due process of law, legal certainty, human dignity and the presumption of innocence are not adequately observed. The “fishing expedition” practices described by the distinguished administrative expert, expert, lawyer and writer Mauro Roberto Gomes de Mattos in his work: “Fishing Expedition in Sanctioning Administrative Law” are an example of the need for this recently published legal text when the oversight unit fails to observe and is aware that an individual is a victim of persecution and becomes demoralized before family, friends, colleagues and the administration of his institution, developing a depressive behavior that in some cases is irreparable with psychological, moral and repercussion damages that are irreparable.

Keywords: administrative law; administrative disciplinary process; disciplinary procedure; presumption of truthfulness and legitimacy; administrative acts; just cause; administrative misconduct; due process of law; presumption of innocence.

Introdução

Nos dias de hoje dar ênfase a preceitos e posições basilares tem se mostrado cada vez mais importante, na medida em que garantias antes vistas como inabaláveis podem ser facilmente erodidas diante de processos administrativos mal conduzidos. Entre as garantias mais caras ao nosso constituinte de 1988 estão sem dúvidas o devido processo legal (Art. 5º, LIV CFRB/88), a dignidade da pessoa humana (art. 1.º inciso III da CFRB/88) e a presunção de inocência (Art. 5º, LVII CFRB/88). Tais garantias devem ser salvaguardadas em qualquer tipo de processo, seja judicial, seja administrativo (Art. 5º, LV CFRB/88).

Ocorre que por vezes um procedimento administrativo ou mesmo processo judicial pode, por motivos diversos, não se atentar a estas importantes garantias constitucionais. Nesse sentido, torna-se vital estar zeloso a qualquer violação de direitos e fazer valer os mandamentos constitucionais que garantem o devido processo legal.

Como exemplos de eventuais algumas ilegalidades cometidas pela Administração no curso de Processos Administrativos Disciplinares (PADs), colacionam-se os seguintes julgados das nossas Cortes de Vértice (STF e STJ):

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO-DISCIPLINAR (PAD). SERVIDOR PUNIDO COM PENA DE DEMISSÃO. RECURSO PROVIDO PARA CONCEDER A SEGURANÇA.

1. A aplicação das penalidades previstas no art. 127 da Lei 8.112/1990 vincula-se ao cumprimento de pré-requisitos estritos previstos na legislação de regência, apurados mediante a apreciação das características particulares de cada caso concreto em sede de processo administrativo disciplinar. A caracterização de tais requisitos não se sujeita a juízos de conveniência ou oportunidade da Administração e, portanto, é sindicável pela via judicial.

2. No controle judicial dos atos administrativos de demissão de servidor público estável, “a legalidade do ato administrativo compreende, não só a competência para a prática do ato e as suas formalidades extrínsecas, como também os seus requisitos substanciais, os seus motivos, os seus pressupostos de direito e de fato”, sendo certo que “a inconformidade do ato com os fatos que a lei declara pressupostos dele constitui ilegalidade, do mesmo modo que o constitui a forma inadequada que o ato porventura apresente” (LEAL, Victor Nunes. Atos administrativos – Exame da sua validade pelo poder judiciário. Revista de Direito Administrativo, v. 3, p. 69–98, 1946).

3. Caso em que a penalidade de demissão aplicada pela Administração se deu sem devida caracterização do elemento subjetivo referente ao intuito de abandonar o cargo ocupado (Lei 8.112/1990, art. 138). Na espécie, a aplicação da penalidade de demissão violou direito líquido e certo do impetrante, uma vez que, valendo-se de fundamentação inconsistente e contraditória, calcada em presunções não corroboradas pelo acervo fático-probatório dos autos do PAD, a União aplicou-lhe a penalidade de demissão deixando de considerar a data em que efetivamente se deu o término de sua cessão informal ao Senado. 4. Recurso ordinário provido para reformar o acórdão recorrido e conceder a segurança.

(RMS 38983. Relator(a): Min. ANDRÉ MENDONÇA. Redator(a) do acórdão: Min. GILMAR MENDES. Julgamento: 13/11/2023. Publicação: 28/02/2024)

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. ABSOLVIÇÃO NO PAD. INDEPENDÊNCIA ENTRE AS ESFERAS ADMINISTRATIVA E JUDICIAL. CONTROLE DE LEGALIDADE JUDICIAL. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. INEVIDÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL.


1. Apesar da absolvição administrativa, não há qualquer ilegalidade no acórdão que determina a instauração de incidente judicial de apuração de falta grave.

2. Esta Corte já decidiu que as esferas administrativa e judicial são independentes e autônomas entre si, de maneira que a decisão proferida no Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) que absolve o apenado ou que reconhece a imputação da prática de falta grave no cumprimento de pena, pode ser submetida ao controle judicial, pelo d. Juízo das Execuções (HC n. 553.572/PR, Ministro Leopoldo de Arruda Raposo (Desembargador Convocado do TJ/PE), Quinta Turma, DJe 24/3/2020).

3. Agravo regimental improvido.

AgRg no HC 915733 / MG. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS 2024/0184452-9. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, j. 23/09/2024, DJe 27/09/2024.

EXECUÇÃO PENAL. AGRAVO INTERNO EM HABEAS CORPUS. FALTA GRAVE. DESOBEDIÊNCIA A AGENTES PENITENCIÁRIOS. SINDICÂNCIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. NOVA OITIVA JUDICIAL. DESNECESSIDADE. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO DO SENTENCIADO E DE JUNTADA COMPLETA DA SINDICÂNCIA. PRECLUSÃO. ATIPICIDADE, DESCLASSIFICAÇÃO, INSIGNIFICÂNCIA E AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE DA CONDUTA. PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. PERDA DE 1/3 DOS DIAS REMIDOS. FUNDAMENTAÇÃO
INIDÔNEA. GRAVIDADE EM ABSTRATO DA FALTA DISCIPLINAR. AGRAVO PROVIDO EM PARTE.

1. Reconsiderada em parte a decisão que não conheceu do agravo com fundamento no art. 34, XVIII, do RISTJ.

2. O procedimento administrativo disciplinar, instaurado para a apuração do cometimento de falta grave, por tratar da liberdade de ir e vir do réu condenado, deve, necessariamente, observar o contraditório e a ampla defesa, tornando imprescindível a presença de advogado constituído ou de defensor público nomeado, em razão das regras específicas contidas na Lei de Execuções Penais.

3. Tendo sido determinada a notificação do sentenciado no momento da instauração do Procedimento Disciplinar, o qual foi interrogado na presença de advogada da FUNAP, que apresentou alegações finais, não há nos autos evidência de ilegalidade por inobservância do princípio do contraditório.


4. As questões acerca da ausência de citação e de juntada completa dos autos da sindicância não foram suscitadas pela defesa durante o interrogatório do sentenciado ou nas alegações finais do procedimento administrativo, ocorrendo, no ponto, a preclusão.

5. Havendo a prévia apuração da infração disciplinar em procedimento administrativo em que foram observados a ampla defesa e o contraditório, não se exige nova oitiva judicial do sentenciado.
6. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, a desobediência a agentes penitenciários, conforme dispõe os arts. 50, VI, e 39, II e V, da LEP, consubstancia falta disciplinar de natureza grave.

7. Maiores considerações acerca da atipicidade, da desclassificação, da insignificância ou da ausência de materialidade da conduta, a fim de afastar a falta disciplinar aplicada e absolver o sentenciado, demandariam necessária incursão no conjunto fático-probatório dos autos, o que se mostra inviável na via eleita.

8. Com o advento da Lei n. 12.433, de 29/6/2011, foi dada nova redação ao art. 127 da Lei de Execuções Penais, que passou a dispor que o cometimento de falta grave não mais acarretaria a perda da integralidade do tempo remido, somente podendo atingir o limite de 1/3 (um terço).


9. No que respeita ao quantum a ser fixado pelo juízo das execuções penais, devem ser levados em conta os critérios estabelecidos no art. 57 da novel legislação, quais sejam: a natureza, os motivos, as circunstâncias e as consequências do fato, bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão, cabendo ao juiz certa discricionariedade.

10. Decisão que não apresenta fundamento idôneo e suficiente para justificar a perda máxima, prevista no art. 127 da LEP, consubstanciado na gravidade da infração praticada, havendo constrangimento ilegal a ser sanado.

11. Agravo interno parcialmente provido para não conhecer do writ, porém conceder de ofício a ordem, determinando o retorno dos autos ao Juízo das Execuções Penais, a fim de que complemente o julgamento, na parte referente à perda dos dias remidos, motivando a escolha do patamar da penalidade, à luz da disciplina do art. 127 da Lei de Execuções Penais.

AgInt no HC 374195 / SP. AGRAVO INTERNO NO HABEAS CORPUS
2016/0265931-0. Rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. 04/04/2017, DJe 17/04/2017.

A recente lei nº 15.047/2024 instituiu o regime disciplinar da Polícia Federal e da Polícia Civil do Distrito Federal. No âmbito das prerrogativas do Estado de Direito, percebe-se que houve atualização de dispositivos que hoje buscam dar efetivação ao combate à corrupção por meio de atividades correicionais. No entanto, tais atividades devem ser promovidas levando-se em conta todos os preceitos constitucionais que lhe dão suporte e justificação jurídica, sob pena de se transformar, processos administrativos disciplinares em instrumentos de assédio moral e perseguição em desfavor do servidor-administrado, como a pesquisa aqui avaliada irá demonstrar.

Desta forma, convém destacar que a condução de processos disciplinares deve observar a necessidade de haver justa causa para a instauração. Além disso, a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos é juris tantum (relativa) ou “apenas de direito”. Somente com a adoção de instrumentos de controle que preservem as garantias constitucionais é que se poderá garantir um julgamento justo e, sobretudo, atendo aos mandamentos da Constituição de 1988.

O gestor correicional deve der antevidente, prudente, inibidor das instaurações única e exclusivamente lastreadas em iniciais ministeriais que quando muito podem apenas conter um recebimento de ação penal que não se enquadra nas prescrições do art. 41 do C.P.P, ou mesmo com fundamentações genéricas do Juiz de Piso sem compromisso com as determinações de que suas fundamentações devem ser dotadas de elementos probatórios e não de narrativas sem Standard Probatório.

O gestor correicional sob pena de responder por abuso de autoridade e civilmente por tais equívocos ou desvios funcionais decorrentes de assédios dos mais diversos deve ter a percepção que uma narrativa necessita de uma “firmação de fatos” com destaca o Professor escritor e processualista GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ.

Imputações genéricas em portarias de instauração também responsabilizam todos os atores envolvidos em sua confecção. Isto é, quem determina, quem instaura, quem determina diligências e ainda os que são omissos diante das ilegalidades acreditando que são eclipsados e protegidos pelo manto da Responsabilidade Civil Objetiva.

Essas práticas no entender de nossas Cortes de Vértice acabaram. A literatura acadêmica atual prima pela boa-fé objetiva em feitos dessa natureza. O assédio horizontal não sobrevive para as condutas de lawfare, racismo estrutural e ações de segregação dos mais diversos gêneros.   

1. A exposição de motivos e a tramitação da Lei 15.047/2024 no Congresso Nacional

A Lei nº 15.047/2024 institui o regime disciplinar da Polícia Federal e da Polícia Civil do Distrito Federal. A norma foi publicada no Diário Oficial da União em 18/12/2024, buscando atualizar e substituir termos e tipos administrativos abertos, inconstitucionais (a este respeito veja-se a ADPF 353) e antiquados, revogando desta forma os artigos 41 a 60 da Lei nº 4.878/1965.

No bojo da citada ADPF 353, é importante destacar que o STF invalidou dispositivos da Lei nº 4.878/1965, com entendimento que “parte das condutas elencadas viola direitos fundamentais e, por esse motivo, não foram recepcionadas pela CF/88”. A ação foi julgada parcialmente procedente para declarar a não recepção pela Constituição Federal de 1988 dos incisos I, V, VI, XXXV e LI do artigo 43 da Lei 4.878/1965 e para conferir interpretação conforme a Constituição aos incisos II e XLIV da do mesmo artigo.

A lei é resultado de um projeto do Poder Executivo, que tramitou na Câmara dos Deputados como PL 1952/07 e no Senado como PL 1734/24. Contudo, o presidente Lula vetou sete dispositivos do texto original.

2. Alguns aspectos do novo regime disciplinar

O texto da Lei nº 15.047/2024 lista diversas infrações disciplinares relacionadas às atividades policiais e administrativas, além de casos que configuram insubordinação hierárquica. O texto também atualiza o conjunto de penalidades aplicáveis aos policiais, incluindo advertência, suspensão, demissão e cassação de aposentadoria.

A norma destaca fatores que podem agravar as penalidades, como reincidência, abuso de autoridade e participação de terceiros no cometimento da infração. Por outro lado, apresenta circunstâncias atenuantes, como a ausência de antecedentes, registros elogiosos, confissão ou colaboração espontânea durante as investigações.

Uma novidade é a possibilidade de celebrar um termo de ajustamento de conduta (TAC) para solucionar de forma consensual infrações disciplinares de menor gravidade — puníveis com advertência ou suspensão de até 30 dias. Para firmar o TAC, o servidor não pode ter penalidades prévias em sua ficha funcional nem ter assinado outro termo nos dois anos anteriores.

A lei também estabelece normas específicas para:

  • Investigação preliminar sumária, destinada à coleta de informações sobre autoria e materialidade da infração;
  • Sindicância patrimonial, voltada para identificar indícios de enriquecimento ilícito do servidor; e
  • Processos administrativos disciplinares, com foco na apuração de responsabilidade por infrações cometidas.

3. A presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos na jurisprudência e na doutrina

A voz do Estado não pode ser a única e muito menos absoluta. Em artigo publicado no Conjur [1], Fabrício Reis Costa e Ana Letícia Arruda Viana discutem sobre a necessidade de tratar da “autoproclamada confiança” na palavra estatal, objeto de críticas do Ministro Ribeiro Dantas (5ª Turma — STJ). Por acaso, em julgamento monocrático ocorrido no último dia 13/01/2025, o assunto foi, novamente, objeto de debate.

Em um sistema jurídico que se pretende democrático, a voz do Estado não pode ser absoluta, especialmente quando o tema são os processos criminais e as infindáveis formas de persecução penal por parte do Estado.

A decisão do ministro Reynaldo Soares da Fonseca — integrante da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça — no Recurso Especial nº 2.173.338/SC serve como um paradigmático contraponto à tendência de se privilegiar e acolher inadvertidas e incondicionais “técnicas investigativas” em detrimento das garantias fundamentais do indivíduo. O caso, que envolveu a condenação de um réu por tráfico de drogas, expõe as tensões entre o poder punitivo do Estado e os direitos constitucionais à inviolabilidade do domicílio, à presunção de inocência e ao devido processo legal.

Não se discute, muito menos se nega, que a atividade investigativa do Estado é essencial para a manutenção da ordem pública e a persecução penal. No entanto, ao se desvincular esta atividade dos limites legais e constitucionais, transforma-se em um instrumento de arbítrio. A versão estatal, representada pelos agentes policiais e pelo Ministério Público, não pode ser tomada como infalível ou incontestável. Do contrário, a história recente do Sistema de Justiça Criminal está repleta de exemplos em que a busca pela “verdade real” foi utilizada como justificativa para violações graves de direitos constitucionais.

A ausência de elementos objetivos que justifiquem a suspeita de prática criminosa invalida a busca e, consequentemente, os elementos dela decorrentes. Essa decisão reforça a ideia de que os representantes do Estado não devem ser ouvidos como portadores de uma verdade absoluta. Corre-se o risco de transformar a atividade investigativa em um exercício de poder discricionário, em que a palavra do agente estatal prevalece sobre os direitos do cidadão. Das vezes em que tal premissa se estabeleceu — dentro ou fora — do ordenamento brasileiro, o resultado foi trágico.

A presunção de veracidade dos depoimentos prestados por agentes estatais, especialmente em contextos de buscas domiciliares e abordagens policiais, é um tema que frequentemente gera controvérsias no sistema de justiça criminal. Quando há elementos concretos que apontam para agressões ou violações de direitos por parte dos policiais, essa presunção deve ser rigorosamente questionada. A decisão judicial não pode se basear em relatos contraditórios ou desprovidos de suporte probatório, mesmo que provenham de agentes do Estado.

Por fim, a decisão de afastar a presunção de veracidade dos depoimentos policiais quando há indícios de agressões reforça o princípio de que o Estado não está acima da lei. Em um Estado democrático de direito, a atividade policial deve ser submetida ao controle judicial e ao escrutínio público. A voz do Estado, embora importante, não pode ser incontestável. A Justiça exige que todas as partes sejam ouvidas e que as provas sejam analisadas com isenção, especialmente quando há indícios de que os direitos fundamentais foram violados. Essa postura não apenas protege o indivíduo contra abusos, mas também fortalece a credibilidade do sistema de justiça como um todo.

Conforme sustenta Geraldo Prado, não se pode recorrer a conceitos da antiga tradição do processo penal brasileiro, como a “fé-pública”, pois a interpretação predominante nas tradições democráticas que foram abraçadas após 1988 tem fundamento no princípio da desconfiança, afastando, portanto, qualquer presunção de veracidade absoluta dos atos praticados pelos agentes estatais responsáveis pela investigação criminal[2].

Segundo entendimento de Paolo Ferrua, no exercício da epistemologia jurídica é preferível o realismo do modelo acusatório, que admite a limitação da busca da verdade, cujo conhecimento será sempre relativo, à perigosa utopia típica modelo inquisitório, em que tudo é justificado para atingir a verdade absoluta. [3]

A presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos é um atributo que considera que os atos da Administração Pública são válidos até que se prove o contrário. A presunção de legitimidade significa que os atos administrativos são praticados de acordo com a lei. A presunção de veracidade significa que os fatos alegados pela Administração são verdadeiros. Como funciona?

  • A presunção de legitimidade e veracidade é uma presunção relativa, ou seja, é válida até que se prove o contrário. 
  • Em caso de controvérsia, o ônus da prova da ilicitude é de quem questiona o ato. 
  • O Poder Judiciário deve verificar a legalidade e legitimidade dos atos administrativos, mas não pode interferir no mérito. 

Exemplos de aplicação

  • A presunção de legitimidade e veracidade é aplicada em atos administrativos como a exoneração de um cargo. 
  • A presunção de legitimidade e veracidade é aplicada em atos administrativos como a exclusão de um programa de intercâmbio. 

A presunção de veracidade dos atos administrativos deve ser relativizada quando fundamentar atos administrativos sancionatórios, a fim de que o Poder Público prove o fato gerador da sanção aplicada e não atribua ao sujeito uma exigência ilegal, como a prova da inocência, ou impossível, como a prova da não ocorrência de um fato.

As manifestações de vontade da Administração Pública são instrumentalizadas por meio de atos que gozam de uma série de prerrogativas outorgadas pelo Direito Público, que autorizam o Estado a submeter de forma imediata o sujeito particular a deveres e obrigações. Nesse contexto, o atributo da presunção de legalidade, legitimidade e veracidade dos atos administrativos é a qualidade conferida pelo ordenamento jurídico que fundamenta a fé pública de que são dotadas as manifestações de vontade expedidas por agente da Administração Púbica e por seus delegatários1, no exercício da função administrativa.

Essas presunções, especialmente a presunção de veracidade dos fatos narrados no teor do ato administrativo, são relativas (juris tantum) e devem admitir a impugnação de seu mérito pelo sujeito interessado, a partir de um procedimento instrutório que oportunize a produção de provas, dentro de uma relação processual que garanta o contraditório e a ampla defesa, tanto na própria esfera administrativa quanto na via da tutela jurisdicional.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, [4] por sua vez, aponta os seguintes fundamentos justificadores da presunção de legitimidade do ato administrativo:

1. o procedimento e as formalidades que precedem a sua edição, os quais constituem garantia de observância da lei;

2. o fato de ser uma das formas de expressão da soberania do Estado, de modo que a autoridade que pratica o ato o faz com o consentimento de todos;

3. a necessidade de assegurar celeridade no cumprimento dos atos administrativos, já que eles têm por fim atender ao interesse público, sempre predominante sobre o particular;

4. o controle a que se sujeita o ato, quer pela própria Administração, quer pelos demais poderes do Estado, sempre com a finalidade de garantir a legalidade;

5. a sujeição da Administração ao princípio da legalidade, o que faz presumir que todos os seus atos tenham sido praticados em conformidade com a lei, já que cabe ao poder público a sua tutela.

No mesmo sentido, Lúcia Vale Figueiredo [5] afirma:

“Se os atos administrativos desde logo são imperativos e podem ser exigíveis (i.e., tornam-se obrigatórios e executáveis), há de militar em seu favor a presunção iuris tantum de legalidade.

Todavia, como bem assinala Celso Antônio, a presunção se inverte quando os atos forem contestados em juízo ou, diríamos nós, também fora dele, quando contestados administrativamente.

Caberá à Administração provar a estrita conformidade do ato à lei, porque ela (Administração) é quem detém a comprovação de todos os atos e fatos que culminaram com a emanação do provimento administrativo contestado.

Determinada, p. ex., a demolição de imóvel por ameaça à incolumidade pública, se houver contestação em juízo, deverá a Administração provar (por meio de estudos técnicos ou pareceres de profissionais competentes) que o imóvel ameaçava ruir e que desse fato resulta a periclitação da incolumidade pública.”

A jurisprudência também tem relativizado a exigência de a parte desincumbir-se de provar suas alegações quando se tratar de hipótese de prova diabólica. Nesse sentido, vale citar o julgamento do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 823.122/DF, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, relator para o acórdão o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, julgado por maioria em 14.11.2007, DJU de 18.02.2008, p. 59, no qual foi firmado o entendimento de que a prova, nos casos de concessão de anistia para fins de reintegração ao serviço público, é sempre indireta e deve decorrer da interpretação do contexto e das circunstâncias do ato apontado como de motivação política. Sendo assim, a prova direta, material ou imediata é rigorosamente impossível em casos dessa espécie. Impor ao autor que a produza é o mesmo que, em última análise, impor a produção de prova diabólica, porque os afastamentos dos cargos, à época, eram velados. Eis a ementa do referido julgamento:

DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. ANISTIA. DEMISSÃO POR MOTIVAÇÃO POLÍTICA. PROVA DIRETA OU MATERIAL. IMPOSSÍVEL. ATO DEMISSÓRIO DISSIMULADO. CONTEXTO DEMONSTRATIVO DA NOTA POLÍTICA DA DEMISSÃO DO RECORRENTE. PROVA EM CONTRÁRIO QUE COMPETE À ADMINISTRAÇÃO. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 7/STJ. VALORAÇÃO DA PROVA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

1. A prova, nos casos de concessão de anistia para fins de reintegração ao serviço público, é sempre indireta e deve decorrer da interpretação do contexto e das circunstâncias do ato apontado como de motivação política.

2. A prova direta, material ou imediata é rigorosamente impossível em caso dessa espécie. Impor ao autor que a faça significa, em verdade, impor-lhe a chamada prova diabólica, de produção impossível, porque os afastamentos dos cargos, à época, eram disfarçados; assim, por exemplo, quando militar o servidor, afastava-se por indisciplina ou insubordinação; quando civil, por ato de abandono e outras alegações com a mesma finalidade e do mesmo teor. Destarte, compete à instituição que promoveu o ato demissionário demonstrar a inexistência de motivação política.

3. Na presente hipótese, o contexto da demissão do recorrente, revelado (I) pela sua participação ativa em movimentos então denominados esquerdistas ou subversivos, (II) pela perseguição e demissão de pessoas próximas, inclusive familiares, (III) pelo forte conceito que mantinha na universidade, sem qualquer mácula em sua conduta profissional e acadêmica, bem como (IV) pelo fato de ter sido anistiado pelo Ministério do Trabalho em face de sua demissão da Petrobras, demonstra a motivação política do seu afastamento dos quadros da UNB.

4. Não se cuida, aqui, de mero reexame de matéria fático-probatória, realmente incabível em sede recursal especial, mas de valoração da prova, abstratamente considerada, passível de realização nesta instância.


5. A questão da prova direta não é nuclear no processo de anistia nem mesmo constitui o fulcro do pedido, porque em hipótese que tal a avaliação do pleito há de seguir a trilha do art. 8º do ADCT e da Lei 10.559/02 (Lei de Anistia), elaborada com o ânimo de pacificar o espírito nacional, aproximar os contrários e instalar o clima de recíprocas confianças entre grupos dantes desentendidos.

6. Recurso especial conhecido e provido.

Em síntese, a disciplina legal do ônus da prova deve ser interpretada de forma a se harmonizar com a garantia constitucional do devido processo legal e permitir às partes o pleno exercício do direito de defesa.

A defesa técnica do cidadão deve ainda exigir na busca da verdade real, na presunção de inocência, na dignidade da pessoa humana, na construção de uma sociedade livre justa e solidária, o protocolo de atuação do Estado Policial. Houve planejamento para a sua atuação? Que é o responsável pelo planejamento operacional da atuação dos investigadores? Como esse planejamento foi exposto aos executores? Que recursos foram disponibilizados aos agentes da lei? Quais eram os objetivos da missão policial que teve uma ordem formal emitida por uma autoridade policial? Quais os resultados dessa ação? Trouxe prejuízos ou possibilidade de prejuízos ao erário considerando que agentes policiais poderão ser mortos num confronto no vale tudo, sem objetivos claros e específicos. O ônus em qualquer lado onde ocorra perdas é do Estado.

São detalhes que os dois lados devem buscar no princípio da cooperação entre as partes. É um princípio processual de uma evolução do trato constitucional. 

Com base nas premissas acima trazidas, impõe-se a reflexão sobre os limites da presunção de legitimidade do ato administrativo em face do atual regime constitucional.

A presunção de legitimidade do ato administrativo não é um dogma. Em verdade, ela deriva de uma construção doutrinária que tem por finalidade permitir que a Administração Pública atue de forma eficaz, na busca de sua finalidade de atender ao interesse público. Mas é da essência do interesse público que as garantias constitucionais sejam respeitadas, de modo que a presunção de legitimidade do ato administrativo deve ser afastada quando conflitar com o ordenamento constitucional.

Assim sendo, e por necessidade metodológica, para fins de encerramento deste trabalho, é possível concluir que:

a) a presunção de legitimidade do ato administrativo, em certa medida, é necessária à regular atuação da máquina estatal;

b) os atos administrativos, em especial quando editados com a finalidade de restringir direitos dos administrados, devem respeitar as garantias constitucionais destes;

c) a presunção de legitimidade dos atos administrativos não prevalece quando ao administrado é impossível desincumbir-se do ônus da prova de que sua atuação ocorreu de forma lícita; e

d) em se tratando de atividade estatal sancionadora, cabe à Administração comprovar a ocorrência da situação fática motivadora da aplicação da penalidade.

Não é por outra razão que Mattos(2024, pág. 36) [6] destaca:

“…Contudo, não havendo autoria e materialidade demonstradas, deve o Ministério Público arquivar o inquérito civil, em vez de promover uma devassa na vida do investigado, com o intuito de encontrar ou “pescar” algo, mesmo não existindo o menor indício para o ingresso da futura ação judicial correspondente…”                                                                                                                                     

Acrescenta ainda (idem, idem) as considerações do Min. Joaquim Barbosa, ao relatar o RE n.º 464.893/GO, 1.ª Turma, DJ 1.º.08.2008:

[…] o que autoriza o Ministério Público a investigar não é a natureza do ato punitivo que pode resultar da investigação (sanção administrativa, cível ou penal), mas, sim, o fato a ser apurado, incidente sobre bens jurídicos cuja proteção a Constituição confiou ao Parquet. […} Assim, parece-me lícito afirmar que a investigação se legitima pelo fato investigado, e não pela ponderação subjetiva de qual será a responsabilidade do agente e qual a natureza da ação a ser eventualmente proposta…”                                                                                                                                                       

As narrativas construtoras de cenários inconsistentes e irreais não podem mais fazer parte de um cenário, pois não se consolidam em imaginários e intuições, ou ainda em análise de contextos isolados.

Estas explanações precisam de concretudes, elementos palpáveis e conexos, pois não sobreviverão a decisões decorrentes de um amplo contraditório, sem deixar de expor a fraca textura e perversidade de  suas imputações.

4. A necessidade de se verificar a justa causa para a instauração e apuração de procedimentos disciplinares

Em outra frente de reflexão, faz-se necessário trazer o seguinte ponto. Mattos [7] destaca que firmes posicionamentos são utilizados para defender, com toda razão, a necessidade de justa causa, para instauração do inquérito policial e até́ mesmo o próprio processo penal não direcionou até́ agora, também os seus valiosos focos para o procedimento disciplinar.

Ora, apesar de serem autônomos e independentes, existe forte semelhança entre o processo penal e o inquérito administrativo disciplinar. Basta notar, que em alguns casos, as normas punitivas do processo disciplinar se aproximam dos princípios do direito repressivo. Isso porque, quando um fato tem a natureza de infração disciplinar, pode ao mesmo tempo desencadear um processo crime, por ofender os interesses sociais gerais prevenidos nas leis penais. A responsabilidade penal abrange os crimes de contravenção imputados ao servidor. nessa qualidade [8].

O Estatuto do Servidor Público Federal é claro em estipular a tríplice responsabilidade do servidor:

“Art. 121 – O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.”

Portanto, como já dito, pode um fato disciplinar punível desencadear também responsabilidade criminal do servidor. Sendo certo, que a justa causa para a instauração do processo penal também deverá estar presente no âmbito disciplinar, pois a Constituição Federal garante o direito à inviolabilidade da honra, da vida privada e do cidadão, sem distinguir, se ele é ou não servidor público.

A existência da justa causa é condição sine qua non para a instauração do inquérito administrativo, pois sem elementos materiais, não pode o administrador público devassar a vida do servidor público sob o pálido argumento de tentar encontrar indícios de uma pseudo infração disciplinar.

Por ser o tema de grande relevância, resolvemos adentrá-lo no intuito de fixar os limites do poder público, que como todos sabem, possui competência discricionária para a instauração dos procedimentos administrativos que achar necessário para o atingimento de um determinado fim, do interesse da sociedade.

Sucede, que a atuação conforme a lei e o direito, retira do Estado a ampla, geral e irrestrita discricionariedade, devendo a Administração Pública obedecer ao princípio da segurança jurídica, [9] só instaurando o processo disciplinar quando estiver presente com toda certeza e materialidade, uma justa causa para a sua instauração, sob pena de indevida invasão da privacidade do agente público.

Em boa hora, a atual Constituição Federal estabelece limites à atuação do Estado, conferindo ao cidadão direitos e garantias fundamentais. sendo legitimado para apurar e punir condutas consideradas ilícitas, o Poder Judiciário (art. 92 e segs./CF), o Ministério Público (art. 127 e segs./CF), as Polícias (art. 144 e ss) e a própria previsão de um contencioso administrativo (art. 5°, LV).

Nessa linha, o constituinte moderno, na luta entre a repressão de ilícitos e a proteção da honra. imagem, bom nome e privacidade, traçou a devida fronteira de atuação do Poder Público, que deverá atuar dentro dos limites estabelecidos pela Magna Carta.

E coube ao artigo 5° da CF e seus incisos distribuir diversos dispositivos que disciplinam o processo; a aplicação da pena e as condições para seu cumprimento (incisos XXXVII e seguintes); a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem (inciso X); o direito de indenização do dano moral e à imagem (inciso V); defesa da intimidade restringida à publicidade de atos processuais (incisos LX); o direito de defesa (inciso LV) e o direito de propriedade (inciso LIV), dentre outras.

Mantendo inafastáveis e intactos tais direitos, o art. 60, § 4°, IV, da CF, proíbe que sejam esses direitos, inseridos nas garantias fundamentais da sociedade (art. 5°), objeto de deliberação de proposta de emenda constitucional tendente a abolir quaisquer dessas garantias.

Pois bem, a garantia mínima do cidadão de que não será́ molestado sem o devido processo legal, e que o procedimento instaurado conterá́ provas diretas e indiretas da prática de um ato vedado pelo ordenamento jurídico vigente é uma realidade, pois se também existem dois conjuntos de normas constitucionais – os que propugnam a investigação e punição de ilícitos e os que protegem a honra e a imagem das pessoas – o certo é que o direito reconhece e cria instrumentos aptos que evitam danos inúteis à imagem das pessoas quando não haja elementos de suspeitas suficientes para constranger as pessoas a determinados procedimentos.

Os procedimentos disciplinares entram também nessa escalada, pois é vedada a instituição de procedimento disciplinar genérico, onde acusações vagas servem para iniciar uma devassa na vida do agente público, no afã̃ de encontrar-se prova de pseudo conduta ilícita.

A sociedade clama por uma justiça administrativa séria e que, antes de mais nada, respeite os direitos e prerrogativas dos acusados.

Não é lícito e nem factível que ainda ocorram acusações genéricas contra a honra de quem quer que seja. O direito não permite procedimento de caráter aberto, sem que haja justa causa, contra agentes públicos que renderão ou não espaço na mídia contra seus nomes [10].

A falta de justa causa afasta a figura do possível delito, tendo em vista a ausência do ato ilícito. O STF vem retirando do Ministério Público o poder de instaurar inquérito policial sem um mínimo de plausibilidade ou de justo motivo, trancando-o:

Habeas Corpus. Inquérito policial instaurado pelo fato de vereadores terem recebido importância em virtude de lei municipal que veio a ser considerada inconstitucional pelo Tribunal de Contas do Estado, conhecimento parcial. com base na letra d do inciso j do artigo 102 da Constituição, já que, no caso, não há sequer conexão determinadora do deslocamento da competência. Sendo o fato que deu margem à instauração do inquérito policial manifestadamente atípico, é de trancar-se esse inquérito por falta de justa causa. Habeas Corpus conhecido quanto ao paciente que atualmente é deputado federal, e deferido com relação a ele[11].

Diante de todos esses elementos legais e jurisprudenciais, a Administração Pública deverá instaurar procedimento disciplinar contra agentes públicos para verificar a possível prática de infringência disciplinar, desde que exista um mínimo de provas ou materialidade do cometimento de ato ilícito.

Corroborando o que foi dito, a Lei nº 9.874/99, que regula o processo administrativo federal, veda as medidas restritivas além daquelas que sejam estritamente necessárias, bem como a segurança jurídica.

O processo disciplinar, segundo o art. 148, da Lei n° 8.112/90, é o instrumento destinado a apurar a responsabilidade do servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre vinculado.

Portanto, sem indícios ou provas, tanto o princípio da boa fé como o da segurança jurídica, retiram do administrador público a possibilidade de instaurar procedimento disciplinar contra o servidor público.

E a insistência numa instauração que se proponha única e exclusivamente a recepcionar procedimentos de outras instâncias balizadas em narrativas falsas e genéricas podem trazer a responsabilização patrimonial direta do gestor correicional se comprovado mais que uma conduta omissiva, voluntária, pois o manto de responsabilidade civil objetiva não cobre mais esse tipo de conduta.

A segurança jurídica funciona in casu como o dever/poder do Estado em proteger a sociedade, sem exceção, da inviabilidade da honra e da devida privacidade dos indivíduos, não podendo ser rompida por atos administrativos desarrazoados ou que guardam em seu núcleo o sentimento pessoal de vingança.

Sem justa causa para a instauração de processo administrativo disciplinar, não estará́ legitimado o poder público em promover procedimento genérico ou com falsa motivação, para apurar inexistente falta funcional.

A evolução do direito administrativo traz a segurança jurídica como um dos traços marcantes dos dias atuais. Não se admitindo mais que a força do arbitro prevaleça a qualquer modo.

A presunção de inocência [12] milita em favor de todos, não podendo ser descartada no procedimento disciplinar, pois compete à Administração provar a irregularidade ou a culpa do servidor [13].

Sendo assim, necessário se faz que haja justa causa na instauração do processo disciplinar, pois senão o mesmo será́ natimorto, pronto para ser fulminado pelo Poder Judiciário.

5. Alguns casos que mostram os prejuízos decorrentes da errônea interpretação dos dispositivos constitucionais

Em artigo paradigmático, Mattos [14] destaca que o Poder Público não é concebido para aniquilar o indivíduo. Pelo contrário, é justamente nele que toda sociedade deposita suas esperanças de ter uma vida mais digna e harmonizada, com a diminuição das desigualdades regionais e, finalmente, com a proteção do Estado.

Visando democratizar o Poder, o Preâmbulo da Carta Magna institui um: “…Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.

É justamente nesse dogma que as sociedades modernas se embasam para distribuir justiça e paz social para toda a comunidade.

Apesar da constante evolução tecnológica e social dos povos, quando o tema é direito público, as dores de um passado recente, responsáveis por chagas de injustiças, se inquietam na alma dos que sofreram este grave dissabor.

Portanto, nos preocupamos, no presente trabalho, em discorrer sobre alguns abusos de poder do Ministério Público quando instado a defender a sociedade, mesmo sem indícios de ilícitos, instaurando procedimentos penais e administrativos contra quem não deveria ser investigado. Para o homem de bem, a simples inclusão de seu nome em procedimentos investigatórios, sem um justo motivo, é suficiente para desestabilizar a vida da sua família e a sua própria, pois não existe vergonha maior para quem não cometeu um ato ilícito do que conviver com a dor de ser confundido com um infrator.

São frequentes estes casos, pois em algumas situações, mesmo inexistindo ilícito penal ou administrativo, alguns Promotores entendem que estão obrigados a promover uma devassa na vida do cidadão, com inversão do princípio da presunção de inocência, para apurarem se há ou não ilícito contra o investigado. E, para piorar a situação, mesmo não existindo o menor traço de ilicitude ou de falta funcional do agente público, ele responde a natimortos procedimentos, com o custo grave da sua saúde física e mental, para no curso dos anos ser absolvido, exatamente por falta de prova ou pela negativa de autoria, dentre outros fundamentos.

Essa dor, causada pelo denuncismo ilegal e abusivo, vem se tornando frequente em nosso meio jurídico, com a mutilação de várias pessoas, que não suportam a carga negativa dessa terrível injustiça e, a posteriori, mesmo sendo inocentadas, carregam sequelas psicológicas por uma eternidade.

A utilização irresponsável do processo administrativo disciplinar, tal qual no processo penal, traz a figura do abuso do direito de investigar, não mais tolerado em nosso ordenamento jurídico pátrio, que estabelece como invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X, da CF).

Essa garantia constitucional de proteção à intimidade e à vida privada de todos impede intromissões ilícitas externas, do poder público, inclusive quanto ao bom nome do agente público em sua repartição, e no meio social que ele vive:

… o conceito de intimidade relaciona-se as relações subjetivas e de trato intimo da pessoa humana, suas relações familiares e de amizade, enquanto o conceito de vida privada envolve todos os relacionamentos da pessoa, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo, etc[15].

Encontra-se em clara e ostensiva contradição com o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, CF), com o direito à honra, à intimidade e à vida privada (art. 5º, X, da CF), converter em instrumento de intromissão o direito de investigação ampla e genérica sem a existência de um fato concreto, desatrelado de um justo motivo ou de uma razão sólida.

Encontra-se em clara e ostensiva contradição com o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), com o direito à honra, à intimidade e à vida privada (art. 5º, X, da CF), converter em instrumento de intromissão o direito de investigação ampla e genérica sem a existência de um fato concreto, desatrelado de um justo motivo ou de uma razão sólida.

Na atual fase do direito público, onde as constituições fixam limites e prerrogativas, não é mais lícito que o poder de investigar possa chegar a excessiva perseguição, na tentativa de punir por punir determinada pessoa, agente público ou autoridade.

Equilíbrio como ideia de direito deve ser perquirido em respeito às liberdades individuais tão fundamentais para a estabilização de uma sociedade livre e justa.

Mesmo ostentando a prerrogativa de investigar, o Ministério Público não possui um “cheque em branco”, capaz de preenchê-lo como bem lhe aprouver, escolhendo este ou aquele para ser fiscalizado.

O abuso de direito ofende ao próprio direito, sendo defeso ao Ministério Público uma atuação contrária à sua própria instituição que é a de fiscalizar a lei.

A doutrina contemporânea nacional não tem demonstrado muita atenção para o abuso de poder de denunciar na esfera administrativa, desenvolvendo-se seu foco para o aspecto do desdobramento penal.

Entendemos que tanto no direito penal, como no direito administrativo, é dever da autoridade instauradora do procedimento um juízo preliminar, mesmo em sumaria cognito, onde fique caracterizado um justo motivo lastreado por indícios ou por uma fundamentação compatível com a imputação, sem que ela seja construída pela intelectualidade do subscritor da peça.

Por isso, que a denúncia ou a Portaria que instaura um processo administrativo disciplinar ou até mesmo a ação de improbidade administrativa não podem trazer em seus fundamentos a incerteza, a obscuridade, e ser inconcludente quanto aos elementos causais, gerando acusações vagas e elásticas.

O poder discricionário do MP em oferecer denúncias, solicitar investigações e ajuizar ações de improbidade administrativa não é absoluto, eis que se vincula à lei e ao direito.

Como princípio vertebral do direito público, o princípio da legalidade, configurado com bloc de la légalité a que Maurice Hauriou105 deixou registrado, serve para vincular todo o poder as normas jurídicas validamente instituídas.

O bem-estar de toda a sociedade está vinculado às normas constitucionais e legais, instituídas para trazer harmonia para toda a sociedade.

Ou, pelas lições de Rousseau, o poder não é maior do que a força da lei, devendo todos preconizarem o princípio da legalidade.

Não foi instituído o direito para ser um repositório de prerrogativa das autoridades públicas, pois a sua finalidade é aumentar as garantias da coletividade.

Assim, o excesso de poder do Ministério Público de invadir indevidamente a intimidade das pessoas e promover denúncias ou investigações indevidas, sem justa causa, agride a todos e deve ser rechaçado por toda a sociedade.

Dessa forma, não se admite denúncia ou investigações elásticas, onde o grau genérico é o preponderante, para que no curso dos trabalhos se apure se há ou não indícios de provas contra o acusado/investigado. Esses procedimentos causam um desserviço para o direito, devendo o MP não abusar do seu poder, evitando a onda do denuncismo inconsistente e indevido.

Conclusões

Naturalmente, a intenção deste artigo não foi esgotar o tema, tampouco trazer conclusões definitivas sobre o problema apresentado. O que se busca, antes de tudo, é provocar reflexões sobre o tema.

As garantias constitucionais sempre devem nortear o intérprete na aplicação do Direito, de modo que os antigos institutos jurídicos devem ser revisitados para que sua aplicação em tempos atuais se dê em harmonia ao texto constitucional vigente.

De acordo com as balizas do que foi visto, é perfeitamente possível concluir que o PAD pode revelar-se como instrumento de assédio moral e de perseguição, quando desenvolvido em afronta aos princípios constitucionais da garantia do devido processo legal e da presunção de inocência.

O novo texto legal denuncia este ambiente tóxico e nocivo da administração a merecer ainda a inserção de mais ferramentas, inclusive com soluções mais eficazes, diretas e imediatas nas atuações perversas dos gestores correicionais.

Referências e notas

[1] COSTA, Fabrício Reis; VIANA, Ana Letícia Arruda. A voz do Estado não pode ser a única e muito menos absoluta. Revista Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-fev-04/a-voz-do-estado-nao-pode-ser-a-unica-e-muito-menos-absoluta/. Acesso em 09 fev. 2025.

[2] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021. p. 197.

[3] FERRUA, Paolo. Contradditorio e veritá nel processo penale. Studi sul processo penale: anamorfose del processo accusatorio. Torino: G. Giappichelli, 1992. v. II. p. 49.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

[5] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

[6] MATTOS, Mauro Roberto gomes de. FISHING EXPEDITION no direito Administrativo Sancionador. Inquérito Civil Público. Processo Administrativo Disciplinar e Ação de Improbidade Administrativa. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024.

[7] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Necessidade de Justa Causa para a Instauração de Processo Administrativo Disciplinar – Impossibilidade do Procedimento Genérico para que no seu Curso se Apure se Houve ou não Falta Funcional. R. Dir. Adm. Rio de Janeiro, 231: 117-128. Jan./mar. 2003.

[8] Cf. art. 123 da Lei nº 8.112/90.

[9] “Encontra-se a segurança jurídica toda vez que se observa a legalidade, a impessoalidade, finalidade, a moralidade administrativa. Dessa maneira, podemos dizer que a grande segurança da Administração e Administrado no processo administrativo consiste na observância do devido processo legal, vale dizer, no respeito às linhas traçadas pela lei reguladora, bem como no cumpri- mento dos postulados básicos que já examinamos.” (José dos Santos Carvalho Filho, Processo Administrativo Federal. Lumen Juris. 2001, p. 57)

[10] “O jornalista transforma, de bom grado, o inquérito judiciário num duelo simbólico entre o juiz de instrução e o acusado, no qual o arbitro não é mais o juiz, mas sim o jornalista.” (Antoine Garapon, O Juiz e a Democracia, Editora Revan, 1996, p. 80).

[11] STF, HC n067.039/RS, REI. Min. Moreira Alves, DJ de 24.11.89.

[12] “Uma das garantias mais expressivas do processo penal vigente nos países democráticos é a de que não pode haver processo sem um princípio de prova, sem um fumus boni iuri”. (Weber Martins Batista. Liberdade Provisória. Forense. 2″ ed., 1985. p. 27).

[13] “(…) II – No Processo Administrativo Disciplinar o ônus da prova incumbe à Administração.” (AGU – Parecer n° AGUIMF – 04/98 (Processo 10168.001291/95-93, de 23 de abril de 1998.)

[14] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Ilegalidade e Abuso de Poder na  Investigação Policial e Administrativa,  na Denúncia, e no Ajuizamento de  Ação de Improbidade Administrativa, quando Ausente uma Justa Causa. A & C R. de Dir. Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, ano 5, n. 20, p. 77-124, abr./jun. 2005.

[15] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 224.


Lorenzo Martins Pompílio da Hora. Advogado. Professor associado de Direito Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Tiago Natan Veiga Kaufmann. Advogado. Mestrando em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


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Lorenzo Martins Pompílio da Hora

A responsabilidade civil das instituições de ensino e religiosas pelas práticas das condutas de pedofilia

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.


Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

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Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

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Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

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Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

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A responsabilidade civil das instituições de ensino e religiosas pelas práticas das condutas de pedofilia

Clayton da Silva Bezerra

Lorenzo Martins Pompílio da Hora

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

Resumo: A proposta do presente artigo é suscitar o debate sobre a responsabilização civil e reflexos nas instituições de formação sobre a prática de pedofilia em seus ambientes. As medidas de prevenção, denúncias, responsabilização e alguns tipos de danos sofridos.

Palavras – chave: Pedofilia, transtorno de personalidade, norma, contratual, prevenção, segurança jurídica, responsabilização, solidariedade, criança, adolescente, cyberbullying, dano psíquico e dano reflexo.

Abstract: The purpose of this article is to raise the debate about civil liability and reflections in training institutions on the practice of pedophilia in their environments. Prevention measures, reporting, liability and some types of damage suffered.

Keywords: Pedophilia, personality disorder, norm, contractual, prevention, legal security, accountability, solidarity, child, adolescente, cyberbullying, psychic damage and reflex damage.

Introdução: a questão sobre um olhar abrangente e social

Não são poucas as prescrições normativas envolvendo as práticas cada vez mais intensas, sofisticadas e limitantes das atividades de prevenção e repressão aos sinistros envolvendo os crimes e abusos a menores, a pedofilia.

Uma ação que em uma visão sugestiva, é exercitada por atores com conduta antissocial, psicopata numa performance bem premeditada, calculada que pode ser constatada nos mais diversos segmentos sociais, coletivos, de extratos financeiros e profissionais.

A uma primeira abordagem, podemos entender que a responsabilidade civil das instituições de ensino sejam elas públicas, privadas, Federais, Estaduais e Municipais pelos sinistros envolvendo práticas de pedofilia são de natureza contratual.

Neste mesmo esteio, temos as instituições religiosas que participam ativamente da formação da criança, do jovem, adolescentes através dos seus prepostos de educação religiosa, cursos dos mais diversos contextos bíblicos e espirituais, são lugares nos quais os valores são tão sensíveis pelo seu contexto espiritual que podem ser também afetados por pedófilos sagáveis em suas argumentações.

O cidadão a partir de um contexto constitucional lastreado nos princípios próprios da responsabilidade civil como a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, da prevenção, da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica, procura a oportunidade de ser considerada com absoluta prioridade, o direito à educação que proporcionará uma inteiração respeitosa, com percepção do respeito entre si nas comunidades, nos valores da liberdade e principalmente no básico de todo o ser humano, a convivência familiar.

É responsabilidade do docente, da gestão escolar, e dos líderes espirituais, a preservação preventiva de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O conhecimento a respeito das qualificações dos formadores de conceitos, ideologias e conhecimento são inevitáveis no percurso da seleção desses profissionais, pois a responsabilidade por eventuais danos sofridos pelos educandos transpassa a responsabilidade do ministrador de conhecimento e alcança solidariamente a instituição de ensino.

O significado deste efeito se traduz na possibilidade de a vítima adequar a sua compensação patrimonial na polaridade passiva do causador direto do dano e do estabelecimento de ensino.

E neste percurso, importante agregar o ensino religioso que possui uma função educacional densa de assegurar a formação integral do jovem e da criação numa perspectiva inclusiva, respeitando a diversidade cultural sem proselitismos.

A proposta sinaliza para a construção de uma sociedade mais coesa e justa, fundamentada no reconhecimento e valorização das diferentes expressões de fé e cultura presentes no país. O sentido do ensino religioso, principalmente nos templos religiosos dos mais diversos segmentos e propostas, nada mais é que um instrumento valioso para a promoção da diversidade, do respeito mútuo e da compreensão intercultural.

Estamos relevando o sagrado, a tolerância religiosa na busca do convívio respeitoso e de convivência pacífica.

PAPA FRANCISCO[1]FRANCISCUS, sacerdote católico que serve como o 266º PAPA e soberano do Estado da Cidade do Vaticano, na data 05 de abril de 2013, em encontro e audiência com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, arcebispo Gerhard Ludwig Müller pediu que a congregação continuasse com a linha de ação delineada por Bento XVI, agindo de forma decisiva contra o abuso sexual de menores por membros da Igreja Católica, promovendo medidas para a proteção e ajuda às crianças que sofreram esse tipo de violência e auxiliando nos processos contra os culpados.

O Papa Argentino pediu o compromisso das Conferências Episcopais na formulação e aplicação das diretivas necessárias num “campo tão importante para o testemunho da Igreja e a sua credibilidade”.

Na data de 22 de março de 2014, nomeou os oito primeiros integrantes da “Comissão Pontifícia de Proteção às Crianças“, órgão instituído por ele em 2013 para combater mundialmente os abusos sexuais de menores na Igreja Católica.

O grupo tem como objetivos, preparar o estatuto da comissão, informar a situação das crianças que sofreram abuso em todos os países, propor medidas e nomes, tanto de laicos quanto religiosos, para implantar novas iniciativas de combate aos abusos sexuais de menores na Igreja Católica, criar códigos de conduta e avaliações psiquiátricas para o ministério sacerdotal, além de implementar políticas que protejam os menores de idade e colaborar com as autoridades civis nas investigações de possíveis crimes.

A Comissão foi composta naquela oportunidade, entre outros, Marie Collins, uma irlandesa vítima de abuso sexual por um padre, Peter Saunders,[139] a psicóloga e psiquiatra francesa Catherine Bonnet, o cardeal norte-americano Sean Patrick O’Malley, defensor das vítimas norte-americanas, e o jesuíta alemão Hans Zollner, decano da faculdade de psicologia da Universidade Gregoriana, com sede em Roma.

Franciscus numa iniciativa inédita, assinou em 11 de julho de 2013, um decreto de MOTU PROPRIO, reformando o Código Penal do Vaticano e tornando mais rígidas as sanções para o crime de pedofilia e outros tipos de crime.

Em abril de 2014, o Papa pediu perdão pelos casos de pedofilia e abusos sexuais cometidos por sacerdotes da Igreja Católica.

Numa decisão inédita na história da Igreja Católica, em setembro de 2014 o Papa Francisco ordenou pessoalmente a prisão do ex-arcebispo e ex-embaixador da Santa Sé, o polonês Józef Wesolowski acusado de abusos sexuais durante o período de 2008 a 2013, quando era representante diplomático da Igreja Católica na República Dominicana.

Declarou em 21 de setembro de 2017 que a Igreja “chegou tarde” ao lidar com casos de abuso sexual.

Francisco em seu papado deu ênfase ao combate de abusos sexuais por membros do clero católico, tornando obrigatórias as denúncias e responsabilizando quem as omite desde 20/03/2019.

O Papa Francisco é um homem sem medo, que enfrentou uma das questões mais sensíveis da Igreja católica no mundo.

Sustenta que a Igreja deve ser mais aberta e acolhedora. Tem uma visão e conduta comprometida com o tradicionalismo da Igreja.

No mês de maio de 2019, o Papa Francisco promulgou o motu proprio Vos estis lux mundi (Vós sois a Luz do Mundo), estabelecendo novas normas de procedimento para combater o abuso sexual e garantir que bispos e superiores religiosos sejam responsabilizados por suas ações. 

O documento exigiu que clérigos e irmãos e irmãs religiosos, incluindo bispos, em todo o mundo denunciem casos de abuso sexual e encobrimentos de abuso por seus superiores. 

A partir dessa orientação, todas as dioceses católicas em todo o mundo são obrigadas a estabelecer mecanismos ​​através dos quais as pessoas possam apresentar denúncias de abuso ou o seu encobrimento até junho de 2020.

O documento promulgado por Francisco em maio de 2019, estabelecendo novas leis do Vaticano sobre como o clero católico em todo o mundo deveria lidar com casos relatados de abuso sexual, foi atualizado quatro anos depois.

O Papa Francisco em 2021[2] no intuito de erradicar um dos fenômenos que mais fragilizam a fé cristã, incluiu no Código de Direito Canônico um artigo que contemplou a pedofilia, exigida pelas vítimas.

O documento que inseriu a prescrição no Código de Direito Canônico foi assinado em 23 de maio de 2021.

Desta maneira, o Vaticano modificou o Código de Direito Canônico promulgado pelo papa João Paulo II em 25 de janeiro de 1983 em substituição ao Código promulgado em 1917.

É uma codificação composta por 1.752 cânones, organizados em sete livros. 

As fontes do direito Canônico são: O Papa, que é a autoridade suprema da Igreja, os concílios ecumênicos, que tomaram decisões jurisprudenciais e as escrituras, que constituem o fundamento da Igreja Católica. 

Na data de 25 de março de 2023, como já apontado, o documento de maio de 2019 foi revisado e divulgado pelo Vaticano.

Nas novas orientações, o documento ampliou a responsabilidade também dos líderes leigos, que são pessoas que não são membros do clero, mas participam das atividades eclesiais, e que fazem parte de associações aprovadas pelo Vaticano, caso venham a encobrir abusos sexuais.

Na sistemática anterior, as prescrições aplicavam-se anteriormente apenas aos bispos e superiores religiosos.

O conceito de “vítima de abuso” também foi modificado.

As vítimas, que antes eram definidas como “menores e pessoas vulneráveis”, passaram a ser definidas como “menores, ou pessoas que habitualmente têm um uso imperfeito da razão, ou adultos vulneráveis”.

Uma conduta, inciativa que pontua com concretude normativa a repulsa da congregação católica com os sinistros de pedofilia que agora terão um tratamento legal previsto normativamente.   

Os grupos Evangélicos[3], a própria Igreja Luterana Alemã, que é a maior organização protestante do País, encomendou um relatório contendo mais de 800 (oitocentas) páginas preparadas por especialistas de diferentes Universidades e Institutos alemães sobre levantamentos de vítimas de pedofilia.

São elementos que despertam a nossa consciência para um olhar de alerta sobre essas ocorrências preocupantes.

Dados da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania relacionados a esses segmentos, nos informam que as pessoas atingidas com mais frequência estão nas religiões de Umbanda, Candomblé, outros segmentos de religiosidades Afro-brasileiros, evangélicos e católicos.

A sensibilidade da matéria que podemos acessar no Painel da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania nos disponibiliza mais elementos que clamam pela necessidade de trabalharmos a responsabilização das instituições também religiosas que cristalizam as ideologias em nossas crianças e jovens, sejam para o olhar aos outros segmentos religiosos. Sejam para preservar nossos menores daqueles que eclipsam suas reais intenções e ações no manto da religiosidade.

Não podemos desviar a nossa acuidade do artigo 5.º, inciso VI da Constituição Federal de 1988 que define: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

As liturgias, seus valores, símbolos precedem um processo de formação.

O executar desse processo é que exige a cautela com as técnicas dos pedófilos e seus modelos de inserção.

É numa aula, catequização, orientação espiritual, curso de base e formação que podem transcorrer provocações, brincadeiras, dramas e muito humor que inibam as pessoas, que podem atingir o seu inconsciente, e revolver questões a serem consolidadas.

Esses personagens pedófilos de conduta psicopata, com transtornos de personalidade são hábeis negociadores a proporcionar uma imersão reflexiva dos telespectadores ou espectadores, fazendo com que as vítimas de suas investidas realizemuma viagem ao inconsciente sedimentando lembranças que agora serão alicerçadas a novas amizades e cumplicidades manipuladores inimagináveis.

A diversidade religiosa nas escolas ou em templos religiosos e o combate ao bullyng

Como reflexo do preconceito institucionalizado nas redes sociais e  presentes na sociedade, o ambiente escolar e religioso, são muitas vezes, marcados pelo bullying, decorrente da intolerância religiosa que pode ser uma narrativa, recurso, sistemática utilizada pelo pedófilo para deixar o seu espaço mais confortável.

Desta forma, portanto, muitas crianças e adolescentes, ao exercerem suas crenças após uma estigmatização, sofrem com o preconceito e o bullying. A manifestação de uma crença ocorre por meio do uso de símbolos, objetos ou vestimentas.          

Sendo assim, é essencial, imperioso que as instituições religiosas, escolas, e instituições seminaristas atentem a conscientização sobre a importância de refletirmos nas ações de prevenção a pedofilia nas diferentes religiões e instituições de ensino.

Os valores que as próprias religiões pregam auxiliam nesse processo.

A família tem de estar e se fazer presente já que pode também sofrer com essa conduta em seus ambientes.

Mas, obviamente chegou o momento de avaliarmos com uma sensibilidade jurídica e acadêmica, a dimensão patrimonial causadas com incidentes dessa natureza.

Obviamente que o trabalho a ser enfatizado é o da prevenção envolvendo todas as realidades e cenários possíveis para antecipar a cognição às práticas de pedofilia através de eventos esportivos coletivas, treinamentos nas escolas, nos templos religiosos, inserção do conhecimento sobre as típicas práticas do crime de pedofilia e seus eventuais atores, a influência da tecnologia digital utilizada como ferramenta de persuasão e alienação.

Os principais atores deste cenário perverso de exploração de menores, a título exemplificativo, podem ser todos aqueles numa primeira ótica as mais próximas e com acessibilidade às crianças e adolescentes.

Na data de 18/05/2023 foi divulgado um boletim epidemiológico[4] pelo Ministério da Saúde em evento realizado pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania dando conta de que entre os anos de 2015 e 2021, o Brasil registrou mais de 200 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes.

Foram notificados mais de 83 (oitenta e três) mil episódios entre crianças e mais de 119 (cento e dezenove) mil atos violentos contra adolescentes agregando um somatório de 202.948 casos.

No ano de 2021, o número de notificações foi apontado como o mais expressivo na investigação implementada com o quantitativo de 35.196 episódios.

O apontado expediente sinaliza que o local de ocorrência de maior incidência é o caso das vítimas num percentual de 70,9% na faixa etária de 0 a 9 anos de idade e 63,4% dos casos contra pessoas de 10 a 19 anos

Na sequência da pesquisa, temos que o perfil dos agressores se enquadra no sexo masculino num percentual de 81% dos sinistros para a faixa etária de crianças e 86% dos casos dos adolescentes entre 10 e 19 anos.

Noutro ponto de análise, temos que as vítimas são em sua maioria do sexo feminino 76,9 % dos registros envolvem crianças e 92,7 % abrangem adolescentes do gênero feminino.

É importante observar, segundo expõe o Ministério dos Direitos Humanos no sentido de que levantamentos sinalizam que são denunciados todos os dias aproximadamente 366 (trezentos e sessenta e seis) crimes cibernéticos no Brasil, sendo que as maiores vítimas são crianças e adolescentes.

As abordagens a crianças e adolescentes são trabalhadas através da técnica do “DEEPFAKE[5] que permite alterar um vídeo ou foto com a ajuda de inteligência artificial (IA). São ferramentas das práticas de pedofilia.

A metodologia virtual é uma substancial ameaça à privacidade, à segurança nas instituições de ensino e na vida familiar, considerando que nossos menores ocupam seu tempo em casa em celulares, smartphones e notebooks com inúmeros jogos desafiantes.

A criação de deepfakes objetiva ludibriar, confeccionando vídeos que se apresentam como verdadeiros.

A capacidade da IA de capturas e replicar a expressão facial detalhada, proporciona um efeito ilusório nos cenários reais desses vídeos, pois apesar de serem fictícios, são tidos como genuínos, autênticos.

Ressalte-se também que a potencialidade focada em fins educativos ou culturais, sua ampla divulgação está relacionada à elaboração de conteúdo enganoso e desumano, alocados especialmente em plataformas sociais, objetivando a alienação de crianças e adolescentes.

A dinâmica desenvolvida pelos adeptos dessa sistemática envolve a capacidade possível através de uma tecnologia denominada “TEXT TO SPEECH” (TTS) que sintetiza o áudio a partir de um texto, tomando por lastro, uma ampla coleta de amostras de áudio de uma pessoa pública conhecida.

A partir daí, tudo é possível na fala artificial do escolhido, principalmente a desinformação com a emissão de declarações falsas, sutis e alienantes.

A oportunidade de prevenção e repressão dessas práticas de deepfakes é expansivamente dimensionada quando levamos em conta que o indivíduo, principalmente a criança e o adolescente depositam confiança no que percebem, principalmente quando o conteúdo é visualizado em telas pequenas, a exemplo dos smartphones que pela sua dimensão, obscurecem detalhes cruciais para a identificação de manipulações.

MARTINS (2024)[6] destaca que a falta de familiaridade do público com técnicas como leitura labial, restringem ainda mais a capacidade de discernir vídeos falsificados de produções insuspeitas.

Apresentados esses elementos e a problematização de seu objeto, passemos a estudar e compreender o papel das instituições de ensino que precisam urgentemente adotar mecanismos de prevenção e repressão aos efeitos nocivos das inserções pedófilas nesta circunstância ou conjuntura. Há uma responsabilidade compartilhada entre escola e pais.

Afinal a Lei Civil no art. 932, no inciso I e IV, assim prescrevem:

“Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

I – os pais pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;

[…]

IV – os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos…” 

Dentro dessas concepções, temos que a modalidade de responsabilidade civil a macular esses sinistros é de natureza contratual. Não pode haver jogo de empurra ou transferência de responsabilidades, mas sim apurar em sua integralidade e com compromisso com a verdade real.

A instituição de ensino que condensa crianças e adolescentes sem adotar ferramentas tecnológicas e legais a esses atos, está fadada a conviver com a exclusão social da vítima, evasão escolar, ações indenizatórias consequentes de danos físicos, materiais, psicológicos e morais.

Estamos sim e há muito na era do cyberbullying. Uma prática ferramenta da pedofilia.

As instituições de ensino são as mais sensíveis e devem estar aparelhadas frente às mudanças globais desses nossos últimos tempos avassaladores com inúmeras informações e personalizações falsas.

Sabemos que a escola tem o dever de zelar para a segurança e integridade física e mental de seus acolhidos. Porém as responsabilidades devem ser compartilhadas entre educadores e Pais.

Com isso, assimila institucionalmente total responsabilidade para com os casos que ocorrem no período de oferta do serviço educacional, até mesmo nas atividades externas que sejam efeitos diretos e imediatos das atividades extraclasse decorrentes da programação de estudos e seus desdobramentos.

Fundamenta esta percepção a psiquiatra, professora e escritora SILVA (2010, pág. 63)[7]:

“As escolas mais sensíveis e atentas às mudanças globais de nosso tempo já estão procurando iniciar processos de inovação e de reforma que poderão dar conta dos novos desafios. É necessário modificar não somente a organização escolar, os conteúdos programáticos, os métodos de ensino e estudo, mas sobretudo, a mentalidade da educação formal.

Até bem pouco tempo, o aprendizado do conteúdo programático era o único valor que importava e interessava na avaliação escolar. Hoje é preciso dar destaque à escola como um ambiente no qual as relações interpessoais são fundamentais para o crescimento dos jovens, contribuindo para educá-los para a vida adulta por meio de estímulos que ultrapassam as avaliações acadêmicas tradicionais (testes e provas). Para que haja um amadurecimento adequado, os jovens necessitam que profundas transformações ocorram no ambiente escolar e familiar. Essas mudanças devem redefinir papéis, funções e expectativas de todas as partes envolvidas no contexto educacional.

Na concepção da Wikipédia [A enciclopédia Livre] a Pedofilia é um transtorno psiquiátrico em que um adulto ou adolescente mais velho sente uma atração sexual primária ou exclusiva por crianças pré-púberes, geralmente abaixo dos 11 anos de idade 

Tal como um diagnóstico médico, critérios específicos para o transtorno classificam a pré-puberdade até os 13 anos. Uma pessoa que é diagnosticada com pedofilia deve ter ao menos 16 anos de idade, mas adolescentes devem ser pelo menos cinco anos mais velhos que a criança pré-púbere para que a atração possa ser diagnosticada como pedofilia.

Pedofilia é o desvio sexual “caracterizado pela atração por crianças, com os quais os portadores dão vazão ao erotismo pela prática de obscenidades ou de atos libidinosos”.[8]

Objetiva e certamente um transtorno de personalidade e não um transtorno mental. O pedófilo não possui transtorno mental na essência de sua conceituação. São pessoas com condutas de desvio de personalidade. Falam bem, são inteligentes, hábeis em seus discursos, com uma linguagem de apreensão das atenções, extremamente sedutoras.

Alguns sexólogos, porém, como o especialista americano John Money, acreditam que não somente adultos, mas também adolescentes, podem ser qualificados como pedófilos.

A expressão pedófilo para descrever criminosos que cometem atos sexuais com crianças é visto como equivocado por alguns indivíduos, especialmente quando tais indivíduos são vistos de um ponto de vista clínico psiquiátrico, numa avaliação de linguagem corporal e microexpressões faciais na concepção do psicólogo Paul Ekman, ou ainda numa visita que os operadores do direitos devem realizar as neurociências como a enuropsicologia forense.

Como registrado na wikipédia, uma vez que a maioria dos crimes envolvendo atos sexuais contra crianças são realizados por pessoas que não são consideradas clinicamente pedófilas, já que não sentem atração sexual primária por crianças[9].

No contexto de uma visão mundial, pesquisadores sinalizam que apenas um quarto dos abusos sexuais de crianças são praticados por pedófilos.

Esses abusos sexuais são praticados por pessoas que simplesmente acharam mais fácil fazer sexo com crianças, seja enganando-as ou utilizando de intimidação ou força. E aí reside a necessidade de que cada caso tenha uma tratamento investigativo e científico coerente com a psiquiátrica forense em todos os sentidos, na defesa e preservação da instituição que poderá ser responsabilizada solidariamente com o causado do dano  e com as vítimas do dano que também necessitarão de elementos probatórios para pontuarem melhor suas medidas sejam judiciais, criminais ou extrajudiciais.

Esse entendimento é referenciado por Silva (2010, págs 22/24)[10] quando evidencia as formas de Bullying, assim transcrito:

“…Algumas atitudes podem se configurar em formas diretas ou indiretas de praticar o bullying. Porém, dificilmente a vítima recebe apenas um tipo de maus-tratos; normalmente, os comportamentos desrespeitosos dos bullies costumam vir em “bando”. Essa versatibilidade de atitudes maldosas contribui não somente para a exclusão social da vítima, como também para muitos casos de evasão escolar, e pode se expressar das mais variadas formas, como as listadas a seguir:

SEXUAL

Abusar, violentar, assediar, insinuar. Este tipo de comportamento desprezível costuma ocorrer entre meninos com meninas, e meninos dom meninos. Não raro o estudante indefeso é assediado e/ou violentado por vários “colegas” ao mesmo tempo…” 

Por isto, somente o abuso sexual de crianças pode indicar ou não que um abusador é um pedófilo. A maioria dos abusadores em fato não possuem um interesse sexual voltado primariamente para crianças.

Assim, com base nesta fonte de informações. Projeta-se que apenas entre 2% a 10% das pessoas que praticaram atos de natureza sexual em crianças sejam pedófilos, tais pessoas são chamadas de pedófilos estruturados, fixados ou preferenciais. Abusadores que não atendem aos critérios regulares de diagnóstico da pedofilia são chamados[ de abusadores oportunos, regressivos ou situacionais.

Acrescente-se ainda, SILVA (2008, P. 21)[11]:

Também conhecidos como predadores sociais. O seu melhor desenho é descrito numa fábula lembrada por SILVA (2008, p. 21) assim reproduzida:

“… O escorpião aproximou-se do sapo que estava à beira do rio. Como não sabia nadar, pediu uma carona para chegar à outra margem.

Desconfiado, o sapo respondeu: “Ora, escorpião, só se eu fosse tolo demais! Você é traiçoeiro, vai me picar, soltar o seu veneno e eu vou morrer.

Mesmo assim o escorpião insistiu, com o argumento lógico de que se picasse o sapo ambos morreriam. Com promessas de que poderia ficar tranquilo, o sapo cedeu, acomodou o escorpião em suas costas e começou a nadar.

Ao fim da travessia, o escorpião cravou o seu ferrão mortal no sapo e saltou ileso em terra firme.”

Atingido pelo veneno e já começando a afundar, o sapo desesperado quis saber o porquê de tamanha crueldade. E o escorpião respondeu friamente:

                     – Porque essa é a minha natureza…”

É neste contexto, cenário que a importância de avaliarmos bem o fato envolvendo uma conduta desta natureza com as ferramentas que a fisiologia e psiquiatria forense contemporânea disponibiliza é que poderemos perceber a diferença de um indivíduo pedófilo que apresente uma conduta de transtorno psiquiátrico mental ou o outro lado, um transtorno de personalidade, onde certamente a sua conduta antisocial não autorizará a classificação psiquiátrica onde certamente inexistirá o transtorno mental, mais a plena consciência do que faz , pois é um pedófilo psicopata.

A confirmação deste perfil necessita da realização de uma avaliação adequada, é o que aponta a academia através de CAPELA SAMPAIO & BIGELLI DE CARVALHO em seu capítulo intitulado “DETECÇÃO DE MENTIRA E PSICOFISIOLOGIA FORENSE” (2020, pág.201)[12]:

“…Como o perito em psiquiatria não tem a função de “detector de mentira”. A simulação deve ser relatada no laudo pericial em seu aspecto negativo – ou seja, deve-se relatar a ausência de um transtorno mental, e não a simulação. Afinal, vale lembrar que há sempre a possibilidade de a suspeita (dissimulação ou simulação) ser infundada e existirem, de fato, os sintomas referidos. Por isso, é necessário muita cautela nesse tipo de avaliação…” (g.n) 

Não se poderia deixar de mencionar na linha de CAPELA SAMPAIO[13] & BIGELLI DE CARVALHO[14] que um exame dessa magnitude acautele alguma facilidade como apontam (idem, p. 2011):

“…DETECÇÃO DE MENTIRAS

A tarefa de identificar mentiras não é fácil. Surpreendentemente, um estudo mostrou que grupos de psiquiatras, estudantes universitários e técnicos de polígrafo apresentam médias de acerto baixas. Somente agentes do serviço secreto apresentaram médias significativamente maiores que o acaso (64% vs. 53%). Em estudo no qual oficiais de polícia foram requisitados a identificar verdades e mentiras de suspeitos em interrogatórios policiais gravados, a acurácia esteve relacionada à percepção de experiência em entrevistar suspeitos e ao ato de mencionar pistas para detectar mentiras que se relacionassem à história do sujeito. Houve correlação negativa entre acurácia e sinais que popularmente se imaginam associados à mentira, como evitação de olhar nos olhos e inquietação. Não foi evidenciada relação significativa entre acurácia e confiança.

A constatação de padrões específicos característicos da mentira pode ser feita de diversas formas, como análise do conteúdo da fala (ACF), observação de comportamento (OC) ou aferição de parâmetros psicofisiológicos. A ACF pode ser feita por técnicas como análise de conteúdo baseada em critério (ACBC) ou monitoramento de realidade (MR). A técnica ACBC usa testes psicométricos, entrevista semiestruturadas, técnicas de análise sistemática e julgamento clínico para diferenciar se o indivíduo vivenciou um fato ou o inventou.

O MR parte da teoria de que memórias do indivíduo que têm origem em sua experiência interna apresentam mais referências cognitivas e aquelas com origem externa são mais carregadas de informações sensoriais, contextuais, afetivas e semânticas.

A OC pode ser objetiva, subjetiva direta ou subjetiva indireta. Aplica-se a OC objetiva por quantificação de frequência de emissão não verbais de mentiras, como tempo de falta, latência de respostas, pausas e movimentos das mãos. Na OC subjetiva direta, o indivíduo simplesmente recebe o comando para identificar a mentira, sem outra metodologia, mas sua precisão não difere significativamente do acaso. Já na OC subjetiva indireta, orienta-se o sujeito a prestar atenção em elementos, como ambivalência, confiança e esforço para pensar, e seus resultados são melhores. […]

Os apontados pesquisadores e especialistas acrescentam ainda (idem, p. 203) acrescentam:

PSICOFISIOLOGIA FORENSE

“…A psicofisiologia forense tem como objetivo detectar a ocultação de informações por meio da aferição de parâmetros fisiológicos do sujeito. Os principais métodos utilizados são o polígrafo, a eletroencefalografia (EEG) e a ressonância magnética funcional (RMF). Essas técnicas são mais amplamente conhecidas para outras finalidades, mas constituem o arsenal que a psicofisiologia forense utiliza para a detecção de mentiras, ou memórias ocultas, como prefere a literatura mais parcimoniosa. A premissa básica é que o estado basal de contar a verdade é alterado para um modo de funcionamento que demanda maior esforço cognitivo quando o indivíduo precisa mentir.

As alterações psicofisiológicas relacionadas a esse novo estado podem ser aferidas perifericamente como sinais de excitação autonômica (alterações cardíacas, respiratórias e eletrocutâneas) ou pelo exame direto do cérebro, seja por sua atividade elétrica, seja por exames de neuroimagem….”

A partir dessas contribuições acadêmicas desses especialistas em psiquiatria forense com referencial teórico, observamos que a avaliação diagnóstica não pode ser realizada sem ferramentas da neurociência para que não seja incompatível com a prática diagnóstica pericial dessa natureza.

Temos dentro desta instrumentalidade de recursos de testagem, as técnicas de avaliação do transtorno antisocial/psicopata: O PCR-L, O MMPI, MMPI-2[15], O TAT, O RORSCHACH e outros instrumentos (HTP e inventários, bem como sugerem os pesquisadores, ou seja, o uso combinado de alguns deles

HOLMES (1997, pág.311)[16] nesta temática da conduta antisocial/psicopata introduz um panorama histórico acerca desse conceito, mencionando o termo “insanidade sem delírio”. Aliás, um excelente olhar de um acadêmico e atuante de campo.

Há, também uma tendência a culpar os outros e a oferecer racionalizações para explicar um comportamento que entra em conflito com as normas sociais.

Ao discorrer sobre os sintomas cognitivos do transtorno, HOLMES (idem, pág. 199) ressalta a inteligência e as boas qualidades verbais e sociais, além da capacidade de racionalizar seus atos inadequados de maneira a imprimir-lhes aparência justificável.

Acrescenta a isso o fato de a punição não surtir efeito nesses indivíduos, que costumam reincidir no comportamento punido – “quando não convencem de sua inocência, utilizando suas habilidades verbais e sociais para evitar serem punidos”.

HOLMES (1997, pág. 309)[17] faz uma leitura interessante sobre o transtorno de personalidade antisocial/psicopata, que auxilia a compreensão da problemática social acerca desse transtorno.

O referido pesquisador ressalta que na maioria dos outros transtornos, temos a vivência pelas próprias pessoas que têm o transtorno, enquanto, que no caso do transtorno de personalidade antisocial, os problemas são vividos pelas pessoas que estão ao seu redor.

Os indivíduos com este transtorno são descritos pelo autor como “os mais interpessoalmente destrutivos e emocionalmente prejudiciais em nossa sociedade”.

Essa concepção é reafirmada por HENRIQUE (2009, pág. 15)[18] quando afirma que “a psicopatia certamente é uma anomalia da personalidade que apresenta consequências sociais mais graves”.

A metodologia pericial adequada a avaliação de indivíduos pedófilos com viés psicopata

A Lei processual civil em respeito a busca da verdade, da constatação e motivação de um saudável diagnóstico à instrução de feitos apuratórios de condutas antissociais de comportamento dos pedófilos que auxiliam a correto e adequado processamento de feitos indenizatórios, inclusive penais tem socorro no art. 466 § 2.º do C.P.C.

Não é por outra razão, que que essa integração acopla de forma integrativa o art. 466 § 2.º do C.P.C, ao art. 3.º do C.P.P, assim reproduzido:

“…466. O perito cumprirá escrupulosamente o encargo que lhe foi cometido, independentemente de termo de compromisso.

§. 2.º O perito deve assegurar aos assistentes das partes o acesso e o acompanhamento das diligências e dos exames que realizar, com prévia comunicação, comprovada nos autos, com antecedência mínima de 5 (cinco) dias.

É certamente a cristalização da ampla defesa substancial, do contraditório e do devido processo legal. Dogmas que não podem ser eclipsados na reconstrução histórica do fato no intuito de uma elaboração cognitiva própria do nexo de causalidade relacionado ao espiral legal do dano causado por efeito direto e imediato praticado em relação à criança e ao adolescente.

“Pedofilia[19] é algo bastante grave e, sim, os criminosos virtuais estão sempre tentando se aproveitar da internet, do fato deles estarem por trás de uma câmera ou por trás de algum elemento”, alerta a professora. Ela adianta que uma forma de os pais protegerem seus filhos é não deixar que fiquem com o celular ou computador sozinhos sem a supervisão de um adulto, principalmente quando são pequenos. 

Além disso, Kalinka pontua que os filhos têm sua individualidade, mas é responsabilidade dos pais ou responsáveis estarem sempre atentos.      

“Verifique o que eles estão acessando, as contas, o conteúdo e evite o computador no quarto onde eles podem acessar sozinhos sem que você esteja presente”, sugere. 

 Por fim, a especialista aponta ainda que um software de controle pode auxiliar nesse processo de verificação de conteúdo por parte dos responsáveis. “Eles auxiliam a verificar se a criança está tendo acesso a conteúdo que não deveria. Atitudes bastante simples de olhar e verificar com quem seu filho está falando na internet, o que ele está acessando, pode ajudar muito a evitar casos e problemas como de pedofilia virtual”, finaliza a professora. *Sob a supervisão de Ferraz Junior.

Logo, por essas considerações, experiências, extensão possível dessa conduta é que no campo jurídico a metodologia de uma perícia escrupulosamente bem realizada se torna imprescindível.

A não observância dessa metodologia em atenção a prescrição do art. 466 § 2.º do C.P.C traz como consequência a nulidade da perícia e a realização de novo exame como decidiu recentemente o Eminente desembargador MARCELLO FERREIRA DE SOUZA GRANADO da 2.ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal no HC n.º 5006007 – 85.2024.4.02.0000/RJ na data de 04/06/2024, no qual colacionamos os seguintes trechos:      

Consequentemente, a admissão do assistente técnico somente após a juntada do laudo aos autos, ainda que em cumprimento do disposto no § 4º, do art. 159, do CPP, forçosamente incorreu em cerceamento da defesa, o que justifica a necessidade de renovação do ato. (g.n)

Por outro lado, em razão de certo tumulto envolvendo a expedição de vários ofícios endereçados ao Instituto de Perícias Heitor Carrilho, requisitando esclarecimentos quanto à atuação do Dr. José Roberto M. Laborne Valle, parece-me prudente determinar que outro profissional conduza o novo exame do periciado.

Ante o exposto, voto no sentido de JULGAR PROCEDENTE o pedido de concessão da ordem de habeas corpus, para que seja realizado, por outro perito, um novo exame de sanidade do corréu colaborador, devendo ser acompanhado pelo assistente técnico indicado pela defesa do paciente, e JULGAR PREJUDICADO o recurso de embargos de declaração da defesa (evento 11, EMBDECL1).          

Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça, o MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA da 5.ª Turma no AgRg no Recurso em HABEAS CORPUS n.º 201415 – RJ (2024/0268130-RJ), decidido em 19/08/2024, adotou fundamentadamente, o mesmo entendimento, como extraímos dos trechos abaixo: 

No entanto, o exame teria sido realizado sem a participação da defesa técnica do ora agravante, o que violaria a disposição do art. 466, § 2º, do Código de Processo Penal, que dispõe sobre o acesso e acompanhamento de diligências e exames às partes. Segundo a defesa, o exame pericial ocorreu antes do horário agendado sem prévia comunicação ao assistente técnico do ora agravante. (g.n)

Neste caso, a despeito de a perícia ter sido realizada conforme o art. 159, § 4º, do Código de Processo Penal, segundo o qual o assistente técnico atuará a partir de sua admissão pelo juiz e após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelos peritos oficiais, sendo as partes intimadas desta decisão. No entanto, a falta de acompanhamento dos representantes técnicos do agravante, tendo em vista a relevância do exame para a própria persecução criminal instaurada, certamente reduz as possibilidades de participação da defesa, o que justifica a necessidade de renovar o ato. (g.n)

Nesse sentido, mutatis mutandis:

PROCESSUAL CIVIL. EXAME PERICIAL. REALIZAÇÃO. JUNTADA AOS AUTOS DO LAUDO. VISTA AS PARTES. NECESSIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE PROFERIR SENTENÇA SEM DAR OPORTUNIDADE AS PARTES DE IMPUGNAÇÃO. PRINCÍPIO DO CONTRADITORIO. DOUTRINA. VIOLAÇÃO. ART. 398, CPC APLICADO A PROVA PERICIAL. PRECEDENTE. RECURSO PROVIDO I – O PRINCÍPIO DO CONTRADITORIO, GARANTIA CONSTITUCIONAL, SERVE COMO PILAR DO PROCESSO CIVIL CONTEMPORANEO, PERMITINDO AS PARTES A PARTICIPAÇÃO NA REALIZAÇÃO DO PROVIMENTO.

II – APRESENTADO O LAUDO PERICIAL, E DEFESO AO JUIZ PROFERIR DESDE LOGO A SENTENÇA DEVENDO ABRIR VISTA AS PARTES PARA QUE SE MANIFESTEM SOBRE O MESMO, PENA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITORIO.

(REsp n. 92.313/SP, relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 14/4/1998, DJ de 8/6/1998, p. 113).

Diante do exposto, nos termos do art. 258, § 3º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, reconsidero a decisão de e-STJ, fls. 207-211, para dar provimento ao recurso ordinário, determinando a renovação do exame de insanidade mental do corréu colaborador, com a participação de assistente técnico indicado pela defesa do ora agravante. (g.n)

Publique-se.

Brasília, 19 de agosto de 2024.

Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA

Relator

Da jurisprudência pronunciada em nossos tribunais sobre a importância da prova, destinatários e o princípio da verdade real

A nossa jurisprudência é muito bem acentuada nesta questão, pois os nossos Tribunais numa tendência comprometida cada vez mais com a ciência psiquiátrica forense adequada, acrescente-se a psicologia forense, a neurociência, a neuropsicologia forense e a psicofisiologia forense reforçadas pela doutrina que possui a tarefa agregatória de encontrar as respostas adequadas à Constituição caminham neste sentido.

Por isso, é preciso, sim debater com o Poder Judiciário, que é o guardião dos direitos fundamentais. Essa sintonia e importante, real, acontece e é corajosa para se opor aos equívocos que ocorrem cada vez mais em mínimas oportunidades graças a essa nova visão.

É certo, como afirma FERRAZ (2024)[20]: “…Há um pesadelo do negacionismo jurídico. Não se pode jamais afrontar a Constituição…”

E nesse sentido, colhemos excelentes notícias do Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Desembargador – DR. LUIZ ROLDÃO DE FREITAS GOMES FILHO, no Agravo de Instrumento n.º 0004672-46.2023.8.19.0000 que proporcionou uma aula de Direito Constitucional Processual ao Juízo que indeferiu a prova pericial, mandando chamar o VAR, assim transcrito:

“Com efeito, a Constituição da República estabelece como garantia fundamental o acesso à justiça (art. 5º, XXXV CRFB), que se materializa por meio da adequada prestação jurisdicional assegurado o devido processo legal. Nesse diapasão, a busca da verdade real é corolário do princípio do devido processo legal, como instrumento necessário para que se concretize o acesso à ordem jurídica justa. Assim, não se pode fazer justiça sem entender, com segurança, o quadro fático trazido à consideração do órgão judicante. Na medida em que a justiça da prestação jurisdicional se vincula ao compromisso do processo com a verdade real, e a essa só se chega mediante a instrução probatória, ao julgador é lícita a determinação de produção de provas a fim de que o conjunto probatório resulte completo.”

Nesse mesmo sentido, esse meio de prova é de grande utilidade à boa instrução processual. Cumpre trazer, neste ponto, a doutrina do professor Alexandre Câmara[21]:

“Sendo juiz e partes destinatários da prova, a todos eles são reconhecidos a existência de poderes de iniciativa instrutória. Às partes evidentemente caberá postular a produção de provas que lhes pareçam relevantes, pois é delas o direito material em debate e, por isso, são titulares de interesse de produzir prova.”

Logo, é importante que se acentue que todos são destinatários da prova

Conforme leciona o Desembargador Alexandre Câmara:

“A prova possui dois tipos de destinatários: um destinatário direto, o Estado-juiz, e destinatários indiretos, as partes. A prova levada aos autos, pertence a todos, isto é, pertence ao processo, não sendo de nenhuma das partes (o que costuma ser chamado de “princípio da comunhão da prova”. (…) Na verdade, a prova tem por destinatários todos os sujeitos do processo (FPPC, Enunciado nº 50: “os destinatários da prova são aqueles que dela poderão fazer uso, sejam juízes, partes ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz.”

Assim sendo, todos atuam com o mesmo fim, qual seja, um processo justo. uma Justiça justa. Em consequência, a atividade probatória deve ser destinada ao processo para que haja o melhor debate. Em consequência, o destinatário da prova não é somente o juiz.

Logo, uma prova que trate de uma avaliação de um transtorno de personalidade não pode ser considerada válida quando uma avaliação psiquiátrica forense fugindo ao seu escopo a trate como um transtorno mental.

Salienta por fim, KHALED JR.[22] (2023, págs. 196): …O paradigma da cientificidade oferece fundamentação e legitimação “científica” para práticas processuais que rompem com a estrutura do sistema acusatório, atribuindo ao juiz, enquanto sujeito do conhecimento, a capacidade de extração da essência das coisas…”

Recentemente, na seara criminal, o Ministro RIBEIRO DANTAS, da 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em seçãio da 3.ª Turma que reúnem a 5.ª Turma e a 6.ª Turma desta Corte de Vértice, na data de 08/06/2022, publicado no Dje 01/07/2022 – TEMA REPETITIVO 1121, na tese jurídica (tese firmada em recurso repetitivo), definida nestes parãmetros: “Presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)”., pronunciaram o seguinte julgado:

Ementa

PENAL. RECURSO ESPECIAL SUBMETIDO AO RITO DOS RECURSOS REPETITIVOS.
ESTUPRO DE VULNERÁVEL (ART. 217-A DO CP). DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL (ART. 215-A DO CP). EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES. DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL. TRATADOS INTERNACIONAIS. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. PRINCÍPIOS DA ESPECIALIDADE E DA SUBSIDIARIEDADE. RESERVA DE PLENÁRIO. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. MANDAMENTO DE CRIMINALIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DA DESCLASSIFICAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. De maneira ampla, a Medicina Legal define o abuso sexual infantil como “toda e qualquer exploração do menor pelo adulto que tenha por finalidade direta ou indireta a obtenção do prazer lascivo” (FRANÇA, Genival Veloso. Medicina legal. 11ª ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2017, p. 250). Nesse sentido, não há meio-termo. O adulto que explora um menor com a finalidade de obter prazer sexual, direto ou indireto, está a praticar ato abusivo.
2. Nesse ponto, é importante ressaltar que o abuso sexual contra o público infantojuvenil é uma realidade que insiste em perdurar ao longo do tempo. A grande dificuldade desse problema, porém, é dimensioná-lo, pois uma parte considerável dos delitos “ocorrem no interior dos lares, que permanecem recobertos pelo silêncio das vítimas”. Há uma elevada taxa de cifra negra nas estatísticas. Além do natural medo de contar para os pais (quando estes não são os próprios agressores), não raro essas vítimas sequer “possuem a compreensão adequada da anormalidade da situação vivenciada.” (BIANCHINI, A.; MARQUES, I. L.; ROSSATO, L. A.; SILVA, L. P. E.;
GOMES, L. F.; LÉPORE, P. E.; CUNHA, R. S. Pedofilia e abuso sexual de crianças e adolescentes. São Paulo: Saraiva, 2013, e-book, Introdução, cap. 1).
3. Nessa senda, revela-se importante observar que nem sempre se entendeu a criança e o adolescente como sujeito histórico e de direitos. Em verdade, a proteção às crianças e aos adolescentes é fenômeno histórico recente. “A família não percebia as necessidades específicas das crianças, não as via como um ser com peculiaridades e que precisavam de atendimento diferenciado. […] a única diferença entre o adulto e a criança era o tamanho, a estatura, pois assim que apresentavam certa independência física, já eram inseridas no trabalho, juntamente com os adultos. Os pais contavam com a ajuda de seus filhos para realizar plantações, a produção de alimentos nas próprias terras, pescas, caças, por isso, assim que seus filhos tinham condições de se manterem em pé, já contribuíam para o sustento da família.” (HENICK, Angelica Cristina. FARIA, Paula Maria Ferreira de. História da Infância no Brasil. Educere, 2022. Disponível em: br/arquivo/pdf2015/19131_8679.pdf>. Acesso em: 7/1/2022).
4. Diante de um cenário de exposição e vulnerabilidade passando para uma perspectiva protetiva, alguns autores verificam uma correlação entre o reconhecimento pelo Estado da violência intrafamiliar e o movimento feminista. Dizem que esse movimento, “ao enfrentar o denominado modelo patriarcal de família, acaba por desvelar inúmeras formas de violência, que permaneciam encobertas pelo manto do silêncio”. (MACIEL, K. R. F. L. A. Curso de direito da criança e do adolescente. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, e-book, parte I, cap. I).
5. Verificou-se, portanto, uma modificação de paradigmas sociais, que refletiu no Direito. E é nessa perspectiva que se deve ressaltar a importância de o Direito estar atento à complexidade da vida social. “Muitos dos argumentos defendidos por tantos anos já estão superados. […] O histórico da Criminologia revela muito sobre a superação de paradigmas e axiomas”, um exemplo disso é o reconhecimento da violência doméstica e familiar. O lar, que era até então considerado um local seguro (ao contrário das ruas, do lado de fora), passa a ser palco do drama criminal. (BIANCHINI, A.; MARQUES, I. L.; ROSSATO, L. A.; SILVA, L. P. E.; GOMES, L. F.;
LÉPORE, P. E.; CUNHA, R. S. Pedofilia e abuso sexual de crianças e adolescentes. São Paulo: Saraiva, 2013, e-book, Introdução). O fato de a violência dentro dos lares ser reconhecida pelo Estado não significou a criação dessa violência. Em verdade, ela sempre existiu, mas permanecia no silêncio entre os familiares e na indiferença institucional. O que era para servir de apoio violentava ou ignorava.
6. Nesse passo, Andréa Rodrigues Amin lembra que “vivemos um momento sem igual no plano do direito infantojuvenil. Crianças e adolescentes ultrapassam a esfera de meros objetos de ‘proteção’ e ‘tutela’ pela família e pelo Estado e passam à condição de sujeitos de direito, beneficiários e destinatários imediatos da doutrina da proteção integral.” (MACIEL, K. R. F. L. A. Curso de direito da criança e do adolescente. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, e-book, parte I, cap. I). O Estado não é mais indiferente ao que acontece no interior dos lares com as crianças e com os adolescentes. Porém, reforce-se, que isso é relativamente recente.

7. Toda essa evolução é verificada no Brasil, como um reflexo de um movimento internacional pela proteção das crianças. Chamando a atenção para a importância dos instrumentos internacionais na positivação e na interpretação do direito penal pátrio, o em.
Ministro João Otávio de Noronha, em voto lapidar no EREsp n. 1.530.637/SP, lembra que o Brasil está obrigado, perante seus pares, a adotar medidas legislativas para proteger às crianças (todos aqueles com menos de 18 anos completos) de qualquer forma de abuso sexual.

8. Este Superior Tribunal de Justiça, em várias oportunidades, já se manifestou no sentido de que a prática de qualquer ato libidinoso, compreendido como aquele destinado à satisfação da lascívia, com menor de 14 anos, configura o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP). Não se prescinde do especial fim de agir: “para satisfazer à lascívia”. Porém, não se tolera as atitudes voluptuosas, por mais ligeiras que possam parecer. Em alguns precedentes, ressaltou-se até mesmo que o delito prescinde inclusive de contato físico entre vítima e agressor.
9. Com efeito, a pretensão de se desclassificar a conduta de violar a dignidade sexual de pessoa menor de 14 anos para uma contravenção penal (punida, no máximo, com pena de prisão simples) já foi reiteradamente rechaçada pela jurisprudência desta Corte.
10. A superveniência do art. 215-A do CP (crime de importunação sexual) trouxe novamente a discussão à tona, mas o conflito aparente de normas é resolvido pelo princípio da especialidade do art. 217-A do CP, que possui o elemento especializante “menor de 14 anos”, e também pelo princípio da subsidiariedade expressa do art. 215-A do CP, conforme se verifica de seu preceito secundário in fine.
11. Além disso, a cogência do art. 217-A do CP não pode ser afastada sem a observância do princípio da reserva de plenário pelos tribunais (art. 97 da CR).
12. Não é só. Desclassificar a prática de ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos para o delito do art. 215-A do CP, crime de médio potencial ofensivo que admite a suspensão condicional do processo, desrespeitaria ao mandamento constitucional de criminalização do art. 227, §4º, da CRFB, que determina a punição severa do abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes. Haveria também descumprimento a tratados internacionais.
13. De fato, de acordo com a convicção pessoal desta Relatoria, o legislador pátrio poderia, ou mesmo deveria, promover uma graduação entre as espécies de condutas sexuais praticadas em face de pessoas vulneráveis, seja por meio de tipos intermediários, o que poderia ser feito através de crimes privilegiados, ou causas especiais de diminuição. De sorte que, assim, tornar-se-ia possível penalizar mais ou menos gravosamente a conduta, conforme a intensidade de contato e os danos (físicos ou psicológicos) provocados. Mas, infelizmente, não foi essa a opção do legislador e, em matéria penal, a estrita legalidade se impõe ao que idealmente desejam os aplicadores da lei criminal.
14. Verifique-se que a opção legislativa é pela absoluta intolerância com atos de conotação sexual com pessoas menores de 14 anos, ainda que superficiais e não invasivos. Toda a exposição até aqui demonstra isso. E, essa opção, embora possa não parecer a melhor, não é de todo censurável, pois, veja-se, “o abuso sexual contra crianças e adolescentes é problema jurídico, mas sobretudo de saúde pública, não somente pelos números colhidos, mas também pelas graves consequências para o desenvolvimento afetivo, social e cognitivo”. Nesse sentido, “não é somente a liberdade sexual da vítima que deve ser protegida, mas igualmente o livre e sadio desenvolvimento da personalidade sexual da criança” (BIANCHINI, A.; MARQUES, I. L.; ROSSATO, L. A.; SILVA, L. P. E.; GOMES, L.F.; LÉPORE, P. E.; CUNHA, R. S. Pedofilia e abuso sexual de crianças e adolescentes. São Paulo: Saraiva, 2013, e-book, Introdução, cap. 1).
15. Tanto a jurisprudência desta Corte superior quanto a do Supremo Tribunal Federal são pacíficas em rechaçar a pretensão de desclassificação da conduta de praticar ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos para o crime de importunação sexual (art. 215-A do CP). Precedentes.
16. Tese: presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP).
17. Solução do caso concreto: recurso especial provido para condenar o réu como incurso nas sanções do art. 217-A do CP, determinando a remessa dos autos ao Tribunal de origem para que, na instância ordinária, seja realizada a dosimetria da pena.

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial para condenar o réu como incurso nas sanções do art. 217-A do CP, determinando a remessa dos autos ao Tribunal de origem para que, na instância ordinária, seja realizada a dosimetria da pena, e fixou a seguinte tese: “presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (Art.
217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)”.

Os Srs. Ministros Antonio Saldanha Palheiro, Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior e Rogerio Schietti Cruz votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Joel Ilan Paciornik.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca.

Os julgados da Cortes de Vértice na sensibilidade a destacar deste julgadores de Escol, representados nesta profunda reflexão pela autoridade judicial e olhar reflexivo para a vida na sua espiral mais ampla e em todos os lados e sentidos do Ministro Ribeiro Dantas pontuam que o Judiciário está bem atento as essas questões.

Consequências psíquicas e comportamentais da pedofilia

Os danos causados às crianças, adolescentes e como já apontamos no decorrer do presente artigo, a família e ao ambiente social do menor trouxeram a precupação dos especialistas também na Responsabilidade Civil na qual podemos contextualizar danos psíquicos e reflexos a serem considerados nesta análise.

Na concepção da avaliação psicológica/psiquiátrica, constatamos o dano psíquico com a finalidade de apurar o prejuízo decorrente de um determinado siistro no que trouxe a pessoa, ou melhor, como salienta CASTRO & MAIA[23] (2010, pág. 03): “assume que pode existir um nexo de causalidade entre a experiência de quem foi vítima e o grau de perturbação mental”.

Acrescentam os referidos autores (Idem, idem):

“…O dano psíquico é caracterizado por uma deterioração das funções psíquicas, de forma súbita e inesperada, que surge após a ação deliberada ou culposa de alguém e que traz para a vítima um prejuízo material ou moral, face à limitação das suas actividades habituais ou profissionais (Ballone G., 2003, s/p). O autor acrescenta que o dano psíquico pode ser concebido como uma doença psíquica relacionada causalmente com um evento traumático (ex: acidente, doença, delito), que tenha resultado num prejuízo das aptidões psíquicas prévias com carácter irreversível ou transitório longo (leia-se durante um período prolongado). Este implica a alteração do equilíbrio básico do sujeito e/ou o agravamento de uma patologia anterior, alterando a normalidade do sujeito relativa a si mesmo e aos outros (Brito, 1999) …”

Silva (2010, pág. 25/32)[24] enumera as consequências possíveis no campo da psiquiatria com os quais se depara em seu consultório nos casos de vítimas de práticas dessa natureza que são os seguintes: Sintomas psicossomáticos: [cefaleia, cansaço crônico, insônia, dificuldades de concentração, náuseas, diarreia, boca seca, palpitações, alergias, crise de asma, sudorese, tremores, sensação de “nó” na garganta, tonturas ou desmaios, calafrios, tensão muscular, formigamentos.

Transtorno do Pânico, fobia escolar, fobia social (transtorno de ansiedade social – TAS), transtorno de ansiedade generalizada (TAG), depressão, anorexia e bulimia; transtorno obsessivo – compulsivo (TOC); transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) dentre outros menos frequentes.

Nas hipóteses menos frequentes referencia a renomada psiquiatra e escritora (idem, pág. 31): Esquizofrenia; suicídio e homicídio.

Ocorre Também que a atuação de um pedófilo, personagem com transtorno de personalidade, diferentemente das outras modalidade de transtorno, atinge não somente a vítima, mas também as pessoas do seu entorno e convivência, transformando-ono dano em ricochete, também conhecido como dano moral reflexo, é o prejuízo sofrido por pessoas próximas à vítima direta de um ato ilícito. 

 Ressalte-se que o dano em ricochete é uma indenização autônoma em relação ao dano sofrido pela vítima direta

Esse vem sendo o entendimento de precedentes de nossos tribunais, cuja ementa transcrevemos abaixo:

Trecho da ementa

“(…) No dano moral reflexo ou em ricochete, a despeito de a afronta a direito da personalidade ter sido praticada contra determinada pessoa, por via indireta ou reflexa, tal conduta agride a esfera da personalidade de terceiro, o que também reclama a providência reparadora a título de danos morais indenizáveis na medida da ofensa aos direitos destes. 3. Demonstrados o ato ilícito decorrente do atendimento defeituoso prestado por hospital público à neonatal, o dano correspondente à morte de filho recém-nascido e o nexo de causalidade entre ambos, deve ser o Estado ser condenado à prestar reparação por dano moral aos pais da vítima.”

Acórdão 1336600, 00354692820168070018, Relatora: MARIA DE LOURDES ABREU, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 28/4/2021, publicado no PJe: 14/5/2021. 

A responsabilidade civil decorrentes dessas práticas

Nos nossos tempos estamos cada vez mais expostos a situações consequentes das práticas de pedofilia. E são assustadores os registros e estatísticas apresentadas pelos mais diversos meios de pesquisas contratados por instituições de ensino, grupos religiosos.

A Lei Civil no Código Civil de 2002 proporciona um certo conforto e objetividade no sentido de precisar as responsabilidades decorrentes dos efeitos de uma conduta pedófila que proporcione efetos danosos as vítimas quando prevê o “nexo de causalidade” entre a ação do causador do dano e a efetividade dos prejuízos causados. Assim temos o orientação do art. 403 CC/02:

“… Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato,(g.n) sem prejuízo do disposto na lei Processual…” 

Assim superando décadas sobre o debate sobre essa temática que percorreu uma longa discussão sobre o que seria a ação e seu efetivo resultado. O legislador pôs por terra as estridentes correntes doutrinárias, acadêmicas e jurisprudenciais que tentavam preencher essa lacuna do Código Civil de 1916.

A concepção de efeito está focada na denominada e conhecida teoria do dano direto e imediato ou também conhecida por teoria do nexo causal.

Como descrevem ROSENVALD, FARIAS & BRAGA NETTO[25] (2017, pág. 477):

“…Se interpretarmos literalmente o mencionado dispositivo, encotraremos uma noção singela e bem-acabada do nexo causal sob o ponto de vista pragmático. Qual seja: de todas as condições presentes, só será considerada causa eficiente para o dano aquela que com ele tiver um liame direto e imediato. Todos os danos que se ligarem ao fato do agente de forma indireta e mediata serão excluídos da causalidade…”

Acrescentam ainda os referidos autores (idem, pág. 480) a importância do nexo de causalidade que pressupõe, obviamente uma investigação criteriosa e com um Standard Probatório seguro e bem fundamentado que viabilizará a responsabilidade sem equívocos:

“Nesse sentido, confessadamente decidiu o Supremo Tribunal Federal[26]. ‘a (teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade necessária ou teoria da causalidade adequada) – revela-se essencial ao reconhecimento do dever de indenizar, pois, sem tal demonstração, não há como imputar, ao causador do dano, a responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos pelo ofendido”…       

Ora, se temos o dever legal de identificar o responsável pela ação direta e imediata causadora do dano, é evidente e certo a necessidade e importância de uma investigação que resgate toda a história do incidente causador do dano.

Logo, temos que identificar quem é o pedófilo, agiu com ajuda de alguém? É preposto de alguma instituição de ensino ou organização religiosa. Em caso afirmativo, como foi contratado, qual a sua tarefa, exigia treinamento, porque a instituição o contratou? Com que finalidade? Verificou algum precedente? Em caso afirmativo. Que providências tomou ou foram adotadas? Houve omissão das vítimas ou de seus responsáveis quanto as ocorrências precedentes? Informaram à empresa ou pessoa jurídica? Realizou alguma avaliação psicológica de transtorno de personalidade? Há quanto tempo trabalha na pessoa jurídica? Houve omissão, negligência ou imprudência da organização nessa contratação? Há uma unidade com essa atribuição de receber as notícias na organização? Os Pais e responsáveis têem ciência dessas unidade? Como foram cientificados? Há comprovação dessa ciência? As pessoas que lidam com menores foram treinados ou preparados para eventos dessa natureza? Isto, dentro de um rol de ferramentas e expertise próprios de um profissional de investigação habilitado para esse ofício específico.

Não é qualquer profissional que investiga preventivamente ou probatoriamente um cenário de pedofilia. É um ambiente que exige preparação adequada, habilitação e acima de tudo experiência.

A importância dessa investigação no resgate da história está na definição daqueles que iram responder individualmente ou solidariamente pelo dano, pois também são orientações prescritas na nossa Lei Civil de 2002.

O artigo 932 elenca os possíveis responsáveis pela reparação civil, dentre les o empregador pelos empregados em resposta ao serviço que prestarem.

“ Art. 932: São também responsáveis pela reparação civil: III – o empregador ou comitente, por seus empregados,serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele…”  

Ou ainda, como é tipico no caso do bullyng, a responsabilidade solidária como também prescreve o Código civil de 2002 no artigo 942 e parágrafo único, já que essas práticas são ofensivas e violam o direito da vítima que merece uma segurança jurídica:

“…Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

Parágrafo único. São solidariamente respnsáveis com os autores ous coautores e as pessoas designadas no art. 932….”   

A questão a ser avaliada em sinistros resultantes de ações de pedófilos envolve uma visão cada vez mais técnica e especializada. Compromissada com as nossas crianças e adolescentes, pois serão um amanhã bem resolvido ou alguém com medo de enxergar e caminhar pela vida.

Essa área de atuação, preocupação e conhecimento não é nova, mas necessita de uma debate democrático, participante, preocupado, atuante daqueles que pensam numa sociedade justa, livre e solidária.

Não é uma tarefa que atente a um padrão de normalidade profissinal, mas sim espinhosa, penosa, trabalhosa e certamente por alguns episódios, frustrante. Mas esses infortúnios não tira a nossa esperança, pois com certeza, temos neste momento muitas pessoas do bem tentando suprimir ou mesmo amenizar este cenário.                                                                                              


[1] FONTE :WIKIPÉDIA.

[2] FONTE:CARTA CAPITAL. 01.06.2021. VATICANO INCLUI CRIME DE PEDOFILIA NO CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO

[3] FONTE: UOL de 26/01/2024: ESTUDO REVELA MILHARES DE CASOS DE PEDOFILIA NA IGREJA EVANGÉLICA DA ALEMANHA DESDE 1946.

[4] FONTE: LUCAS ROCHA, da CNN em São Paulo.

[5] FONTE: “O QUE É DEEPFAKE E COMO SE PROTEGER DOS RISCOS DA DESINFORMAÇÃO”. Fernanda Martins, março, 7, 2024.

[6] FONTE: “O QUE É DEEPFAKE E COMO SE PROTEGER DOS RISCOS DA DESINFORMAÇÃO”. Fernanda Martins, março, 7, 2024.

[7] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. BULLYING: MENTES PERIGOSAS NAS ESCOLAS. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

[8] Croce, Delton, et alli, Manual de Medicina Legal, Saraiva, São Paulo, 1995

[9] Seto MC (2009 «Pedofilia». Annual Review of Clinical Psychology, 5:391 – 407: PMID – 193270034. Doi: 10.1146/annurev. Clinpsy 032408.153618.

[10] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Bullying: MENTES PERIGOSAS NAS ESCOLAS. RIO DE JANEIRO: OBJETIVA, 2010.

[11] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes Perigosas: O psicopata mora ao lado. 3.ª ed. – São Paulo: Principium, 2018.

[12] PSIQUIATRIA FORENSE: Interfaces jurídicas, éticas e clínicas. Organizadores, Daniel Martins de Barros, Gustavo Bonini Castelhana. – 2.ª ed. – Porto Alegre: Artmed, 2020.

[13] LEONARDO AUGUSTO NEGREIROS PARENTE CAPELA SAMPAIO – Psiquiatra. Coordenador do Programa de Psiquiatria Social e Cultural (Prosol) do IPq-HCFMUSP)

[14] VICTOR B BIGELLI DE CARVALHO – Psiquiatra e empreendedor digital. Especialista em Medicina Legal pela FMUSP.

[15] MMPI e MMPI-2 (inventário Multifásico de Personalidade de Minnesota). Indicadíssimos pela ciência psiquiátrica. MMPI – inventário de autorrelato e compreendem 566 itens, que descrevem sentimentos, atitudes, sintomas físicos e emocionais e experiências anteriores de vida, para os quais o examinado assinala “certo” ou “errado”, conforme sua concordância com o item. É composto por 14 escalas, sendo 10 clínicos e quatro de validade. MMPI-2 – Além dessas citadas, contém 15 de conteúdo e 18 suplementares.

[16] HOLMES, D. (1997).  PSICOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS. Porto Alegre: ARTMED.

[17] DAVID S. HOLMES – Professor do Kansas, Usa. PHD em Psicologia Clínica pela NORTHWESTERN UNIVERSITY.

[18] HENRIQUES, R.P (2009) de H. CLECKLEY ao DSM – IV – TR: A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE PSICOPATIA RUMO À MEDICALIZAÇÃO DA DELINQUÊNCIA. Retirado do site www.scielo.br.

[19] KALINKA CASTELO BRANCO. FONTE: SUZANA NAZAR “CASOS DE PEDOFILIA SE MULTIPLICAM NO BRASIL COM OS AVANÇOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. https://jornalismo.usp.br/? P = 653936. Atualizado: 21/07/2023 às 14:51

[20] DIREITO FUNDAMENTAL À PROVA. CONSTITUCIONAL. 22/11/2024. RENATO OTÁVIO FERRAZ. Professor e Advogado.

[21] CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2023, p.416/417, Gen/Atlas)

[22] KHALED JR., Salah H. A BUSCA DA VERDADE NO PROCESSO PENAL: PARA ALÉM DA AMBIÇÃO INQUISITORIAL. 4.ª ed. – Belo Horizonte, MG: Letramento; Casa do Direito, 2023.

[23] Castro, A., & Maia, A. (2010). A avaliação de dano psíquico em processo cível: Uma análise de cinco anos de práticas. Psicologia, Psiquiatria e Justiça, 3, 111-127.Universidade de Minho.

[24] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. BULLYING: MENTES PERIGOSAS NAS ESCOLAS. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

[25] BRAGA NETTO, Felipe, CHAVES DE FARIAS, Cristiano & ROSENVALD, 

[26] STF, RE 481110 AgR-PE, rel. Min. Celso de Mello, j. 6-2-2007, 2.ª Turma.


Clayton da Silva Bezerra. Delegado de Polícia Federal. Palestrante. Presidente do Instituto Federal Kids de Combate A Pedofilia. Instrutor da Academia Nacional de Polícia Federal. Especialista em Direito Processual Penal.

Lorenzo Martins Pompílio da Hora. Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça. Doutora em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e pesquisa – IDP – Escola de direito de Brasília – EDB. Sócia do Escritório Jurídico Mendonça Advocacia.


Acesse o Guia do Governo Federal (Família protetora) para identificar riscos com pedofilia

https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/maio/FAMILIAPROTETORA.pdf

Imunidade tributária do ITBI sobre imóveis integralizados ao capital social de empresas: análise da sua aplicabilidade e limitações

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.


Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

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Imunidade tributária do ITBI sobre imóveis integralizados ao capital social de empresas: análise da sua aplicabilidade e limitações

Jhully Hermes de Castro

Fernando de Magalhães Furlan

Resumo

Este artigo tem o objetivo de examinar a extensão normativa da imunidade tributária ao Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) em operações de integralização de capital social com imóveis, conforme prevista no artigo 156, § 2º da Constituição Federal de 1988. A análise se baseou em pesquisa doutrinária e jurisprudencial, com o intuito de aprofundar o conhecimento sobre a regra-matriz desse imposto e esclarecer a operação de integralização de capital social, sob a perspectiva jurídica, por meio da análise sistemática do direito positivo brasileiro. Além disso, foi investigado o contexto fático e processual de um caso paradigmático escolhido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para resolver as controvérsias nacionais sobre o tema. Por fim, foi realizada uma apreciação dos impactos econômicos e tributários da aplicabilidade da imunidade do ITBI, evidenciando as limitações significativas no alcance normativo da imunidade tributária com a adoção do Tema 796 de repercussão geral pelo STF.

Palavras-chave: Imunidade tributária; Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI); Integralização de capital social;

Abstract

This article aims to examine the normative extension of the tax immunity of the Real Estate Transfer Tax (ITBI) in operations involving the payment of subscribed capital with real estate, as provided for in Article 156, § 2 of the Federal Constitution of 1988. The analysis was based on doctrinal and jurisprudential research, with the aim of deepening knowledge about the main rule of this tax and clarifying business operations of payment of subscribed capital from a legal perspective, through the systematic analysis of Brazilian positive law. Furthermore, we investigated the factual and procedural context of a paradigmatic case chosen by the Federal Supreme Court (STF) to resolve national controversies on the subject (Topic 796 of STF’s General Repercussion Regime). Finally, we analyzed the economic and tax impacts of the applicability of ITBI immunity, highlighting the specific limitations in the normative scope of tax immunity raised by Topic 796.

Keywords: Tax immunity; Real Estate Transfer Tax (ITBI); Payment of subscribed capital.

Introdução

A imunidade tributária no contexto do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) representa tema de grande relevância e complexidade dentro do direito tributário brasileiro. Este artigo se propõe a explorar, com alguma profundidade, essa temática, com foco nos casos em que imóveis são integralizados ao capital social de empresas. A questão central é compreender até que ponto a imunidade tributária se aplica nesses casos, considerando as nuances constitucionais, legais e jurisprudenciais, buscando esclarecer as ambiguidades e os debates que envolvem a questão.

Para isso, é necessário interpretar as normas imunizantes com precisão, investigar o alcance efetivo da imunidade tributária e examinar como o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se posicionado sobre o tema. Esses pontos são essenciais para formar um entendimento abrangente e fundamentado da matéria.

A norma pilar está prevista no artigo 156, caput e inciso II, da Constituição Federal de 1988, que atribui aos municípios a competência para instituir um imposto sobre a transmissão de bens imóveis entre vivos, a qualquer título e por ato oneroso, bem como sobre direitos reais relacionados a esses imóveis, excetuando-se os de garantia e a cessão de direitos à sua aquisição. Além disso, essa disposição também fundamenta a imunidade tributária, estabelecendo que o ITBI não incide sobre a transmissão de bens ou direitos que sejam incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica, por meio da integralização de capital, nem sobre as transmissões resultantes de incorporação, fusão, cisão ou extinção da pessoa jurídica. A exceção se aplica somente quando a atividade principal da sociedade empresarial for a comercialização desses bens ou direitos, a compra/venda/aluguel de imóveis ou a locação mercantil (Brasil, 1998).

Importante destacar que o Código Tributário Nacional (Brasil, 1966) também dispõe sobre o ITBI e a imunidade tributária, fornecendo diretrizes para a interpretação e aplicação dessas normas. O CTN, ao regulamentar os aspectos tributários, oferece um arcabouço jurídico que orienta os contribuintes e os entes tributantes, proporcionando um entendimento mais claro das obrigações fiscais e das isenções.

Nessa mesma linha, é especialmente necessária a análise dos reflexos do julgamento do Tema 796 do Supremo Tribunal Federal – STF (Recurso Extraordinário 796.376 do Estado de Santa Catarina), afetado em Repercussão Geral, que discutiu o alcance da imunidade tributária do ITBI. Esse julgamento esclareceu como a imunidade se aplica a imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica, particularmente quando o valor total desses bens ultrapassa o limite do capital social a ser integralizado.

O STF determinou que essa imunidade se aplica apenas ao valor dos imóveis que corresponda ao capital social integralizado; ou seja, qualquer valor que exceda esse limite está sujeito à tributação. Apesar de ser um tema de repercussão geral já julgado e definido, existem muitas discussões e debates sobre as zonas limítrofes entre tributação e imunidade ao ITBI. Isso ocorre porque há uma falta de disciplina específica voltada a restringir o gozo da imunidade, mesmo que o CTN estabeleça requisitos, ainda persistem controvérsias sobre a interpretação teleológica, que, como será discutido, introduziu limitações não previstas pela Constituição Federal.

Justifica-se a relevância deste artigo pela frequência com que a integralização de imóveis ao capital social ocorre no ambiente empresarial e pela importância de um entendimento claro e consistente sobre a aplicação da imunidade tributária. Pois a correta aplicação da legislação tributária é fundamental, tanto para a segurança jurídica das empresas, quanto para a arrecadação estatal. Assim, este artigo visa a preencher lacunas existentes no conhecimento sobre o tema, oferecendo uma análise das disposições legais e das interpretações jurisprudenciais, além de avaliar os impactos econômicos dessa imunidade. Em última análise, ao proporcionar uma compreensão mais aprofundada sobre o alcance da imunidade tributária no ITBI, este artigo pretende contribuir para a melhoria da aplicação da legislação tributária, promovendo maior eficiência e segurança jurídica no âmbito tributário.

1. Revisão bibliográfica

1.1. Imunidade tributária e as limitações ao poder de tributar

As imunidades tributárias são entendidas como exceções que ganham relevância quando se consideram as normas que distribuem a competência tributária entre os diferentes entes federativos. Schoueri (2021, p. 434) explica que isso se dá porque a imunidade atua como uma limitação à competência tributária. Após ser estabelecida pela Constituição Federal (Brasil, 1988), essa competência permite que um ente federado crie um tributo sobre um determinado fenômeno econômico, enquanto a imunidade estabelece uma restrição ao exercício dessa competência.

Segundo Lima Júnior (2023, p. 133) as imunidades tributárias possuem a natureza de cláusulas pétreas, pois são garantias concedidas pelo legislador constituinte originário que protegem determinadas situações, fatos e pessoas da tributação, por refletirem finalidades essenciais. Dessa forma, nenhuma emenda constitucional pode revogar (abolir) essas imunidades, conforme o disposto no inciso IV, §4º, art. 60 da Constituição Federal (Brasil, 1988).

Embora isso não impeça a criação de novas imunidades, o constituinte derivado não pode alterar aquilo que foi considerado, pela Assembleia Nacional Constituinte, como insuscetível de tributação, elevando-o à condição de garantia fundamental do cidadão frente ao Estado.

Para a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Regina Helena Costa (2019, p. 112), as imunidades tributárias abrangem situações em que a tributação não se aplica e possuem uma dupla natureza. De um lado, são normas constitucionais que definem os limites da competência tributária, ao estabelecer casos em que o imposto não pode ser cobrado; de outro, representam um direito público subjetivo concedido às pessoas beneficiadas, garantindo-lhes dispensa de tributação.

Com base nessa perspectiva, Costa (2019, p. 113) define imunidade tributária como uma “exoneração estabelecida pela Constituição (Brasil, 1988), expressa em normas que impedem a atribuição de competência tributária ou derivam de princípios constitucionais, conferindo a certas pessoas o direito de não serem tributadas, de acordo com os limites definidos pela norma”.

Por sua vez, Carvalho (2018, p. 205) define imunidade tributária como um “conjunto restrito e claramente definido de normas jurídicas presentes na Constituição Federal (Brasil, 1988)”. Essas normas estabelecem, de forma explícita, a limitação da competência das entidades políticas para cobrar tributos que se aplicam a situações específicas e bem delimitadas.

A exclusividade da Lei Maior (Brasil, 1988) para tratar de imunidades decorre do fato de que essas normas são parte integrante da competência tributária, como tais, elas só podem ser estabelecidas pela Lei Maior (Brasil, 1988), que é responsável pela distribuição de competências entre os entes federativos no Brasil (Dias, 2020, p. 18).  

Carvalho (2018, p. 206), ao examinar o conceito de imunidades com maior profundidade, argumenta que elas não devem ser vistas como limitações à competência tributária. Enquanto limitações, têm a finalidade de restringir ou eliminar competências, as imunidades definem o alcance da competência atribuída a cada ente tributante, estabelecendo, junto com outras normas constitucionais, o escopo das atribuições dos entes tributantes.

De acordo com Coêlho (2020, p. 136), as normas tributárias definem situações tributáveis, enquanto as normas imunizantes e isentivas definem situações intributáveis, no plano normativo, todas as previsões de tributabilidade e intributabilidade se integram no contexto da norma tributária. Portanto, as imunidades também delimitam o poder do Estado de legislar para instituir tributos.

É importante distinguir entre limitação constitucional ao poder de tributar e limitação das competências tributárias. Para Dias (2020, p. 18) o poder de tributar é uma capacidade política, enquanto a competência é um conceito jurídico derivado das normas legais. Imunidades tributárias limitam o poder de tributar ao impedir que os entes políticos realizem certas ações que aumentariam a arrecadação, simultaneamente, funcionam como normas de competência negativa, ao vedar determinadas atribuições a esses entes.

Carvalho (2018, p. 206) destaca que as imunidades têm uma função estruturante, estabelecendo regras para a incidência dos tributos e definindo as situações em que a tributação não é permitida. O autor defende que a imunidade deve ser clara e autoaplicável, sem necessidade de recursos adicionais para a sua compreensão. Assim, a interpretação das normas imunizantes deve respeitar suas características intrínsecas para não distorcer o seu propósito e violar os princípios constitucionais.

No presente artigo, é importante distinguir entre duas categorias: as imunidades incondicionadas, que têm aplicação direta e imediata, sem necessidade de outra norma que as regule; e as imunidades condicionadas, que dependem de uma lei complementar para definir os requisitos de sua aplicação. A diferenciação, no entanto, está na necessidade de verificar, nas imunidades condicionadas, se os requisitos estabelecidos pelo legislador infraconstitucional foram atendidos (Serrano, 2023, p. 75).

1.2. Análise normativa da imunidade do ITBI

No contexto do ITBI a imunidade é especificada no inciso II do artigo 156, da Constituição Federal (Brasil, 1988), que delega aos municípios a competência para instituir o imposto sobre a transmissão intervivos, por ato oneroso, de propriedade de bens imóveis. A incidência do ITBI abrange direitos reais sobre imóveis, como o usufruto e a servidão, mas exclui direitos de garantia, como hipotecas e penhores, que não implicam na transferência plena da titularidade.

Esta norma assegura que os municípios possam arrecadar receitas decorrentes das transferências efetivas de patrimônio imobiliário, fortalecendo a sua autonomia financeira. Vejamos:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

II – Transmissão intervivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

Além da previsão constitucional, o imposto, sua imunidade e a exceção a ela estão regulamentados nos artigos 35, 36 e 37 do Código Tributário Nacional (CTN) (Brasil, 1966). Embora o código mencione que a competência sobre o ITBI pertença aos estados, na verdade, o tributo é de competência dos municípios. Essa divergência ocorre porque o CTN foi promulgado antes da Constituição de 1988 (Brasil, 1988), quando a ordem constitucional vigente atribuía aos estados a competência sobre a transmissão de bens imóveis causa mortis, já que, à época, esse era considerado um único tributo de competência estadual (Machado, 2019, p. 88).

Assim, o artigo 36 do CTN (Brasil, 1966) define as regras para a aplicação da imunidade tributária ao ITBI, verbis:

Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:

I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;

II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.

Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.

O artigo supramencionado especifica que o imposto não é cobrado na transferência de bens ou direitos que sejam incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica, como integralização de capital social. Idem para as transferências resultantes de fusão ou incorporação de uma empresa por outra. Além disso, o artigo assegura que o ITBI não incida na devolução desses bens aos alienantes originais, caso sejam retirados do patrimônio da pessoa jurídica adquirente.

O objetivo da regra é facilitar a mobilização (custos de entrada) e posterior desmobilização (custos de saída) de bens imóveis, promovendo a formação, fusão, transformação, cisão e extinção de sociedades comerciais e civis, sem embaraçar a movimentação dos imóveis com o ITBI, quando comprometidos com tais situações. Essa exceção, estabelecida ao final do artigo 156, inciso II, § 2º, assegura a aplicação justa da imunidade do ITBI, impedindo o seu uso como meio de evasão fiscal, fundamental para manter o equilíbrio fiscal e a integridade do sistema tributário (Brasil, 1966).

A análise da definição da hipótese de incidência tributária e da consequente obrigação tributária exige um exame detalhado da norma tributária, em sentido estrito, conhecida como “regra-matriz de incidência tributária”. Conforme ensina Schoueri (2021, p. 288), essa expressão refere-se à hipótese e à relação jurídico-tributária que daí se estabelece, representando um método essencial para a compreensão do fenômeno tributário.

Segundo Maia e Antunes (2022, p. 250) a regra-matriz de incidência tributária é composta por três aspectos antecedentes: material, temporal e espacial, que definem a hipótese tributária; e dois aspectos consequentes: quantitativo e pessoal, que determinam a obrigação tributária. Cada um desses aspectos é fundamental para identificar quando e como o fato gerador de determinado tributo ocorre, bem como para estabelecer quem são as partes envolvidas e o valor da obrigação a ser recolhida.

No caso específico do ITBI, a análise dos aspectos antecedentes define quando e onde ocorre a transferência de propriedade, enquanto os aspectos consequentes estabelecem quem são os sujeitos da relação tributária (contribuinte e Fisco) e qual será o montante devido. Inicialmente, constata-se que a Constituição Federal (Brasil 1988) delineou dois critérios materiais para a incidência do ITBI; o primeiro é a transmissão “intervivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis (seja por sua natureza ou por acessão física[3]) e de direitos reais sobre imóveis, com exceção dos direitos de garantia, como hipoteca, anticrese[4] e propriedade fiduciária instituída como forma de garantia; o segundo critério material é a cessão de direitos sobre a aquisição de tais bens ou direitos.

O critério espacial, que delimita a competência territorial do tributo, está relacionado ao município onde se localiza o bem imóvel. A Constituição (Brasil, 1998) atribui expressamente aos municípios a competência para instituir e cobrar o ITBI, reforçando que o território do Município onde o imóvel está situado é o espaço geográfico relevante para a incidência do imposto. Por fim, o critério temporal, que é o último aspecto antecedente da regra-matriz de incidência tributária, refere-se ao momento da transmissão da propriedade do imóvel, que ocorre quando o título é registrado no Cartório de Registro de Imóveis, nos termos do artigo 1.245, caput e §1º, do Código Civil (Brasil, 2002). Esse dispositivo estabelece que a propriedade do imóvel só é efetivamente transmitida após o registro do título no Registro de Imóveis. Assim, o momento da incidência do ITBI coincide com a conclusão formal da transferência de propriedade, consolidada no registro (Maia; Antunes, 2022, p. 251).

Conforme Coêlho (2020, p. 135), os princípios que embasam a imunidade do ITBI estão diretamente ligados à atividade econômica, eles promovem a formação de estruturas societárias essenciais para o crescimento e desenvolvimento econômico ao isentar a transmissão de bens ou direitos para a integralização de capital subscrito, demonstrando a intenção dos legisladores constituintes de estimular o investimento privado, a oferta de trabalho, enfim, o progresso econômico e social.

A doutrina especializada aponta que o constituinte decidiu imunizar as operações previstas no art. 156, §2º, I, da Constituição (Brasil, 1988) como uma forma de incentivar o crescimento e a capitalização das empresas, evitando que o ITBI se tornasse um obstáculo ao desenvolvimento econômico. Baleeiro (2015, p. 157), por exemplo, defende que a imunidade do imposto em transmissões destinadas à formação de empresas é um meio de fomentar o desenvolvimento econômico do país. De modo semelhante, Barreto sustenta que a imunidade tem como objetivo facilitar a constituição e a alteração de empresas, promovendo a livre iniciativa, o crescimento das empresas e, por consequência, o desenvolvimento econômico. (2009, p. 161-162).

De fato, a personalidade jurídica exerce um papel essencial na organização e no incentivo às atividades econômicas e sociais. A criação de uma pessoa jurídica, separada da figura dos sócios e com patrimônio próprio, proporciona maior eficiência administrativa à atividade desenvolvida e aumenta a liquidez do capital investido. Além disso, possibilita a adoção de mecanismos para prevenir, gerir e resolver conflitos entre os sócios, entre outros benefícios (Andrade Júnior; Felício, 2019, p. 336-338).

Assim, conforme definido por Ataliba (1994, p. 306-307), a imunidade do ITBI se classifica como uma imunidade específica, pois se aplica exclusivamente a esse imposto e é dirigida aos municípios, que são os responsáveis por sua instituição. Além disso, trata-se de uma imunidade circunstancial, que protege uma situação particular, delimitada pela norma constitucional, não possuindo como objetivo principal a proteção de valores constitucionais amplos e fundamentais.

1.3. A Transmissão de bens imóveis em realização de capital social

Para Braum (2022, p. 22) o capital social reflete a contribuição dos sócios para a empresa, tanto no momento de sua criação, quanto em etapas futuras, fornecendo os recursos essenciais para alcançar os objetivos da sociedade. Em outras palavras, a integralização do capital consiste na transferência de ativos (valores ou bens) para o patrimônio da sociedade, com o propósito de gerar riqueza.

Nesse cenário, o capital social pode ser composto por qualquer bem (corpóreo ou incorpóreo[5]) que possua um valor passível de ser registrado no balanço da sociedade, incluindo bens imóveis. Esses bens devem ser transferidos à sociedade, de acordo com as normas que regem a sua natureza jurídica. No caso de bens imóveis, o instrumento legal adequado para a sua transferência, devido à sua natureza jurídica especial, é a transcrição no Registro de Imóveis do ato societário, devidamente registrado na Junta Comercial, que aumenta o capital social com a conferência do imóvel (Lamy Filho, 1999, p. 204).

Assim, os bens imóveis são incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica, deixando de pertencer ao antigo proprietário. Em troca, a empresa que adquire o imóvel emite novas ações ou quotas, que são entregues ao antigo proprietário do bem, conferindo-lhe a condição de sócio ou acionista.

Em relação à transferência de bens imóveis, como mencionado, o legislador constituinte procurou estimular a formação de empresas e impulsionar o crescimento econômico, limitando a capacidade dos municípios de cobrar o ITBI. Assim, foi definido que o imposto não se aplicaria à transmissão de bens ou direitos que fossem incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica para fins de integralização de capital, nem às transferências resultantes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica. A exceção aplica-se somente quando a atividade principal do comprador for a comercialização desses bens ou direitos, a locação de imóveis ou o leasing mercantil (Brasil, 1988; Braum, 2022, p. 23).

Essa norma impede que os municípios tenham competência para criar leis que instituam a cobrança do ITBI na transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital. Essa limitação constitucional é reforçada pelo CTN (Brasil, 1966), que também confirma a não incidência do imposto.

Ademais, a jurisprudência nacional, como a posição do STJ no EDcl no AgRg no REsp 798.794/SP (Brasil, 2006), era consistente em entender que a administração municipal deveria considerar dois fatores, ao avaliar pedidos de reconhecimento da imunidade tributária do ITBI. Primeiramente, era necessário verificar se a transferência do imóvel teria ocorrido como parte da integralização de capital social de uma pessoa jurídica. Em segundo lugar, deveria ser analisado se a atividade preponderante da pessoa jurídica receptora dos imóveis não se enquadrava como atividade imobiliária. A atividade preponderante do transmitente, por outro lado, era considerada irrelevante para a determinação da imunidade tributária do ITBI. Assim, esse entendimento prevaleceu até o julgamento do Tema 796 pelo STF (2020) (Carrazza, 1997, p. 125; Braum, 2022, p. 23).

Se ambos os critérios fossem atendidos, ou seja, se o valor integral do imóvel transferido fosse destinado ao capital social, e a atividade preponderante da empresa receptora não fosse imobiliária, estariam preenchidos os requisitos para a concessão da imunidade tributária do ITBI. Nesse contexto, uma negativa municipal ao reconhecimento da imunidade tributária do ITBI, nessa situação, seria considerada inconstitucional. No entanto, essa interpretação passou a ser reavaliada após o julgamento do Tema 796 de Repercussão Geral (STF, 2020), conforme será discutido no próximo capítulo.

1.4. Alcance da imunidade do ITBI

A natureza densa e complexa do Direito Tributário se reflete, tanto nos prolongados processos judiciais que frequentemente envolvem questões tributárias, quanto nos debates acalorados e nas extensas negociações políticas que caracterizam a tramitação de proposições legislativas de ordem tributária no Congresso Nacional. Essas propostas legislativas, em sua maioria, impactam diretamente a carga tributária dos contribuintes e as receitas dos entes federativos, prolongando ainda mais o ciclo de discussões (Coelho, 2016, p. 338).

O texto do artigo 156, §2º, I, da Constituição Federal permite identificar duas situações em que a imunidade tributária foi concedida pelo constituinte: (i) a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica para a realização de capital social; e (ii) as transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de uma pessoa jurídica.

Contudo, Silva (2021, p. 188) observa que há uma exceção a essa imunidade, ela não se aplica quando a atividade principal do adquirente é a compra e venda desses bens ou direitos, a locação de imóveis ou o arrendamento mercantil.

Assim, a questão central reside na interpretação da expressão “salvo se, nesses casos”. De acordo com a análise de Guilherme Traple (2012, p. 89), a vírgula e o vocábulo “nem” presentes no dispositivo são cruciais para entender essa expressão, uma vez que a conjunção aditiva com efeito de negação sugere uma divisão entre circunstâncias distintas. O autor explica que a expressão poderia ser substituída por “e não”, o que indicaria a separação de dois contextos diferentes. Além disso, o termo “nesses casos” é visto como uma contração da preposição “em”, que visa a adequar o texto ao português formal.

Dessa forma, o termo “esses” seria usado para se referir a uma ideia mencionada anteriormente, o que implica que a expressão “nesses casos” também retoma os termos precedentes. Com base nessa interpretação, há duas situações que podem ser consideradas para imunização: a transmissão em realização de capital social e as transmissões resultantes de alterações societárias e extinção de pessoa jurídica. Na visão literal, a exceção à imunidade se aplicaria apenas às últimas situações, ou seja, a imunidade não seria concedida se a atividade preponderante fosse de natureza imobiliária, como especificado no dispositivo (Silva, 2021, p. 119).

A interpretação da norma constitucional envolve compreender, investigar e disseminar o conteúdo semântico dos enunciados presentes na Constituição (Brasil, 1988), tanto em seus aspectos formais, quanto materiais. Essa atividade tem o objetivo de revelar o significado e o conteúdo da norma para, posteriormente, aplicá-la a um caso concreto (Canotilho, 1995, p. 214).

Barroso (2014, p. 107-108) explica que a interpretação constitucional exige também a definição do conceito de construção. O autor leciona que a Constituição é composta principalmente por normas principiológicas, que são abstratas e visam a abranger situações que não estão detalhadas no texto. Enquanto a interpretação busca o sentido literal de uma expressão, a construção vai além, permitindo que se tirem conclusões sobre questões que não estão diretamente expressas; essas conclusões são extraídas do espírito da norma, embora não constem de sua letra. Assim, a interpretação se restringe ao texto, enquanto a construção pode incluir considerações externas.

Nesse contexto, em um cenário atualizado, ainda não resta nítido, muito menos consolidado, quais seriam os limites ou alcance de gozo da imunidade tributária do ITBI, visando a uma aplicação precisa de uma interpretação dos dispositivos legais, a jurisprudência vigente é fundamental para definir os limites dessa imunidade.

1.4.1. A interpretação gramatical do artigo 156, §2º, I

Como já mencionado, a controvérsia sobre a interpretação do artigo 156, §2º, I, da Constituição (Brasil, 1998), gira em torno da expressão “nesses casos“. A questão central que surge é se os “casos” mencionados no texto constitucional incluem ambas as exceções previstas no dispositivo — ou seja, a primeira relacionada à transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica durante a realização de capital social, e a segunda referente às transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica — ou se se restringem apenas às transmissões resultantes de reorganizações societárias.

De acordo com Barroso (2014, p. 131), a interpretação jurídica deve começar pelo texto da norma, buscando o conteúdo semântico das palavras, o que justifica o uso inicial da interpretação gramatical.

Segundo a gramática, os pronomes demonstrativos “este”, “esse” e “aquele” e suas variações têm a função de indicar a posição de objetos ou seres no tempo ou espaço, eles são utilizados para apontar a proximidade ou distância entre os elementos do discurso. Maia e Antunes (2022, p. 262) explicam que “este” indica proximidade com a pessoa que está falando, “esse” sugere proximidade com a pessoa com quem se fala, e “aquele” se refere a algo distante de ambas as partes.

Aplicando essa regra gramatical, parece que o constituinte de 1967 usou a expressão “salvo se estas” para se referir exclusivamente às transmissões de bens em fusões, incorporações, extinções ou reduções de capital de pessoas jurídicas. Excluindo, portanto, a transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica da exceção à regra de imunidade, verbis:

§ 3º O imposto a que se refere o n.º I não incide sobre a transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica nem sobre a fusão, incorporação, extinção ou redução do capital de pessoas jurídicas, salvo se estas tiverem por atividade preponderante o comércio desses bens ou direitos, ou a locação de imóveis (Brasil, 1967).

No entanto, é relevante destacar que a Constituição Republicana de 1891 (Brasil, 1891) não previu qualquer hipótese de não incidência do imposto sobre a transmissão de propriedade (art. 9º, §3º). As Constituições subsequentes de 1934 (art. 8º, ‘c’), 1937 (art. 23, I, ‘b’) e 1946 (art. 29, III), embora não tenham introduzido a não incidência, inovaram ao prever expressamente a incidência do imposto sobre a transmissão de propriedade imobiliária intervivos, inclusive nos casos de incorporação ao capital de sociedade. Isso pode levar à conclusão de que o uso do pronome “estas” na Constituição de 1967 (Brasil, 1967) tenha sido um erro linguístico do legislador.

Por outro lado, Frota (2018, p. 119) entende que o termo “nesses casos”, presente no inciso I do §2º do art. 156 da Constituição (Brasil, 1998), se refere a todos os casos mencionados anteriormente no inciso, sem distinção entre a primeira parte (transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica como capital social) e a segunda parte (transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica). Frota argumenta que, se o legislador tivesse a intenção de diferenciar entre as duas partes do inciso, teria utilizado a expressão “nestes casos” para se referir especificamente às hipóteses de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.

Segundo Maia e Antunes (2022, p. 264), a modificação no texto visou, inicialmente, a ampliar a exceção para situações em que o comprador do imóvel, no caso da extinção de uma pessoa jurídica, fosse uma pessoa física e não uma outra entidade, desde que sua atividade principal estivesse relacionada ao setor imobiliário. No entanto, essa justificativa se torna menos convincente, pois ao examinar os registros da Assembleia Nacional Constituinte, não se encontra nenhuma evidência, explicação ou discussão que sustente essa intenção.

Diante disso, conclui-se que a interpretação gramatical do artigo 156, §2º, I, da Constituição Federal (Brasil, 1998) não oferece elementos suficientes para uma compreensão clara do alcance da exceção à regra de imunidade. Embora existam argumentos linguísticos que sugiram que a expressão “nesses casos” visava a condicionar apenas a segunda hipótese de imunidade, tais como a escolha deliberada de incluir a expressão “nesses casos“, quando poderia ter sido omitida; o uso do vocábulo “nem”, que delimita as hipóteses, com a expressão “nesses casos” inserida na última situação de não incidência, esses argumentos são enfraquecidos pela controvérsia sobre o significado de “esse”, em contraste com “este”; e a escolha do termo “esse”, quando poderia ter sido usado “este” (Maia; Antunes, 2022, p. 265).

1.4.2. A interpretação teleológica

Além da interpretação gramatical, existe a interpretação teleológica que busca compreender a norma com base na sua finalidade, ou seja, o objetivo para o qual foi criada. Segundo o Vocabulário Jurídico Tesauro[6], esse método interpretativo visa a identificar a razão finalística da norma, indo além do seu conteúdo literal. A teleologia, portanto, foca na descoberta do propósito subjacente à criação da norma, permitindo uma interpretação mais eficiente ao esclarecer o motivo pelo qual a regra foi elaborada[7].

Segundo Zahran (2015, n.p), ao combinar a interpretação teleológica com o contexto histórico, o método histórico-teleológico se propõe a captar a intenção da norma, levando em consideração a realidade histórica no momento da sua criação e a finalidade prática pretendida, que permite que a norma seja interpretada de forma mais abrangente, já que leva em conta tanto os aspectos linguísticos, quanto os objetivos que ela visa a atingir.

As imunidades têm como objetivo evitar a elaboração de normas que instituam tributação sobre determinados sujeitos e situações essenciais para a promoção de valores fundamentais à sociedade; nesse sentido, a doutrina defende que a interpretação teleológica deve orientar a aplicação desse instituto. Machado (2015, p. 160) enfatiza essa perspectiva ao destacar que o aspecto finalístico é fundamental e que a norma imunizante visa a garantir que o Estado respeite todas as formas de manifestação.

É importante lembrar que essa legislação não pode restringir o alcance da imunidade prevista pelo Constituinte. Assim, cabe ao intérprete realizar uma interpretação literal, como se fosse uma mera verificação de requisitos, bem como aplicar a interpretação teleológica. Essa abordagem pretende avaliar o alcance e a finalidade da norma imunizante, garantindo que os valores considerados fundamentais pelo Constituinte para o Estado Democrático de Direito não sejam indevidamente limitados (Lima Júnior, 2023, p. 133).

Para Jorge (2014, p. 36) a interpretação não deve ser vista apenas como um ato de extrair o sentido já presente no texto, mas como um processo de construção do significado a ser realizado pelo intérprete, que pode ser alcançado por meio de outros métodos interpretativos, como o teleológico.

Carrazza (1997, p. 534) ressalta que cabe ao intérprete, ao lidar com a lei, afastar termos inúteis ou redundantes e buscar o verdadeiro significado das palavras. No entanto, o intérprete não pode atribuir qualquer sentido ao texto normativo, devendo fazê-lo de acordo com o contexto social e histórico em que se insere, seguindo os métodos de interpretação.

Machado (2019, p. 82) defende que o exegeta deve priorizar o método teleológico ao interpretar normas constitucionais, buscando preservar o princípio da supremacia da Constituição (Brasil, 1998). Maximiliano (2005, p. 314) compartilha dessa visão, destacando a importância do método teleológico na interpretação constitucional. Essa abordagem é amplamente sustentada na doutrina brasileira, especialmente no que diz respeito às normas de imunidade tributária, que devem ser interpretadas dentro do contexto do sistema tributário e dos princípios constitucionais que fundamentaram a sua criação.

As imunidades tributárias possuem um elemento finalístico e sua interpretação deve buscar concretizar as finalidades expressas no texto normativo. Nesse sentido, Costa (2021, p. 115-116) afirma que a interpretação da norma imunitória deve ser feita de maneira equilibrada, a fim de evidenciar o princípio ou o valor que ela abriga. Assim, não é legítima uma interpretação ampla e extensiva que inclua mais do que a constituição pretende, nem a chamada “interpretação literal”, que poderia restringir indevidamente os limites da exoneração tributária. Em ambos os casos, a intenção constitucional estaria comprometida.

Castro, ao discutir o argumento teleológico como justificativa para a imunidade do ITBI em operações societárias, apresenta mais dois pontos de significativa relevância. Em primeiro lugar, ele afirma que, juridicamente, não ocorre uma transmissão de propriedade que configure a hipótese de incidência tributária nas operações de integralização de imóveis ao capital social de uma pessoa jurídica. Segundo ele, “o que ocorre na integralização de imóvel a sociedade é a substituição de bens imóveis (terrenos ou prédios) detidos pelos sócios, por bens móveis (quotas representativas do capital social da sociedade)” (2013, p. 253).

Em segundo lugar, mesmo que se admita a existência de uma transmissão, ele sustenta que essa não ocorre de forma onerosa. Para justificar esse ponto, argumenta que não há onerosidade para o transmitente, pois não lhe são impostas obrigações ou deveres adicionais, decorrentes da transmissão (Castro, 2013, p. 253).

Considerando que o método teleológico busca compreender a finalidade de uma norma, ou seja, a ratio essendi do preceito normativo, para, a partir disso, determinar seu real sentido e alcance, a interpretação do artigo 156, §2º, I, da Constituição Federal (Brasil, 1998) deve ser guiada pelo propósito da imunidade tributária nele prevista (Soares, 2019, p. 50).

Nesse contexto, Greco esclarece que a imunidade funciona como um verdadeiro incentivo à criação e reorganização empresarial, uma vez que a empresa poderá utilizar seus bens para obter crédito e contratos, utilizando-os como garantia real (2018, p. 1843). Isso significa que a interpretação da imunidade prevista no inciso I, §2º, do art. 156 deve estar alinhada com a finalidade de estimular o empreendedorismo (livre iniciativa), a capitalização e o desenvolvimento econômico. Assim, para garantir que a norma de imunidade atinja a sua máxima eficácia, pode-se argumentar que a expressão “salvo se, nesses casos” deve ser interpretada de forma restritiva, limitando a exceção às transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de empresas.

Diante do exposto, conclui-se que a interpretação teleológica do artigo 156, §2º, I, da Constituição Federal (Brasil, 1998) oferece um ponto de partida para entender a extensão da exceção à regra de imunidade. No entanto, a justificativa baseada na finalidade da norma de imunidade pode ser confrontada pela própria finalidade da norma de exceção. A exceção relacionada à atividade preponderante tem o intuito de evitar que pessoas jurídicas sejam criadas com o único propósito de escapar da cobrança do ITBI, o qual seria aplicado normalmente se a operação fosse realizada por uma pessoa física.

1.5. Entendimento doutrinário sobre a exceção à imunidade do ITBI

A doutrina tributária brasileira aborda de forma limitada o alcance da expressão “salvo se, nesses casos“, que introduz a segunda parte do inciso I, §2º, do art. 156 da Constituição Federal (Brasil, 1988). No mais das vezes, a doutrina simplesmente aponta a incidência do ITBI na integralização de imóveis ao capital social de pessoa jurídica imobiliária, sem aprofundar discussões ou controvérsias sobre possíveis restrições à exceção.

Costa (2021, p. 160) ressalta que o art. 156, § 2º, I, da Constituição (Brasil, 1988) prevê duas regras imunizantes com características objetivas e políticas. Contudo, essa imunidade é limitada quando a atividade principal do adquirente envolve a compra e venda de bens ou direitos imobiliários, a locação de imóveis ou o arrendamento mercantil. Segundo Costa, a imunidade não se aplica se o adquirente exercer essas atividades preponderantemente, sendo irrelevante a atividade do cedente ou transmitente; o objetivo da norma, de acordo com sua análise, é facilitar a transformação, formação, fusão, cisão e extinção de sociedades civis e comerciais.

Coêlho (2020, p. 246) também trata da exceção à imunidade em casos de integralização de capital em pessoa jurídica imobiliária, e observa que a norma visa simplificar a mobilização e desmobilização de bens imóveis, favorecendo a formação e transformação das sociedades sem que a movimentação de imóveis seja onerada pelo ITBI, exceto quando os adquirentes tenham por atividade preponderante a compra e venda de imóveis ou a locação, conforme previsto no art. 37, §§ 1º e 2º do CTN (Brasil, 1966).

Ambos os autores concordam que o objetivo central dessas normas imunizantes é evitar o embaraço fiscal nas operações societárias envolvendo imóveis, exceto em situações específicas em que a atividade preponderante dos adquirentes se relaciona diretamente com o mercado imobiliário.

Kiyoshi Harada (2021, p. 89-90) é um dos poucos estudiosos que faz uma análise detalhada sobre a exceção à imunidade tributária na integralização de capital social com bens ou direitos. Com base em uma interpretação gramatical do texto constitucional, Harada divide essa imunidade em duas categorias: a) imunidade autoaplicável e b) imunidade condicionada. Ele argumenta que a conjunção “nem”, presente no inciso I, §2º, do art. 156, indica a existência de duas situações distintas, cada uma com uma imunidade própria.

Na primeira parte do dispositivo, a imunidade é autoaplicável, abrangendo a transferência de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica para realização de capital; já na segunda parte, que trata da transmissão de bens em casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção de uma pessoa jurídica, a imunidade é condicionada. Para que ela se aplique, é necessário que a atividade preponderante do adquirente não envolva a compra e venda de bens ou direitos, a locação de imóveis ou o arrendamento mercantil. Harada conclui que apenas a imunidade em reorganizações societárias está sujeita a essa condição da atividade preponderante, enquanto a imunidade na integralização de capital é incondicional, não sendo necessário verificar as condições estabelecidas no final do dispositivo.

Esse entendimento também é compartilhado por Alexandre (2016, p. 663), que aponta a ressalva quanto à atividade preponderante da adquirente apenas para operações de fusão, incorporação e cisão. Nesses casos, se a atividade principal do adquirente for a compra e venda de imóveis, locação ou arrendamento, haverá incidência do ITBI. O autor menciona, por exemplo, a situação em que uma imobiliária incorpora outra, o que justifica a tributação por envolver uma atividade típica do setor.

Dessa forma, a maioria dos doutrinadores parece concordar que a exceção à imunidade do ITBI aplica-se à integralização de bens imóveis ao capital social de pessoa jurídica cuja atividade principal seja o comércio de imóveis, locação ou arrendamento. Contudo, muitos desses posicionamentos são rasos no que se refere à interpretação gramatical e teleológica da norma.

1.6. Os Recursos Extraordinários nº 796.376/SC e nº 1.495.108/SP (Temas 796 e 1348)

Antes de analisar criticamente a aplicabilidade e a limitação da imunidade tributária no ITBI, é fundamental abordar o conteúdo completo do Recurso Extraordinário nº 796.376/SC (que deu origem ao Tema 796, do instituto de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal) para uma melhor compreensão dos argumentos que levaram à sua conclusão (STF, 2020).

Em 1º de maio de 2010, seis pessoas físicas formalizaram a criação de uma sociedade empresária limitada, denominada “Lusframa Participações Societárias Ltda.” Na ocasião, os sócios estabeleceram que o capital social da empresa seria de R$ 24.000,00 (vinte e quatro mil reais), valor integralizado mediante a transferência de 17 (dezessete) bens imóveis. Esses imóveis estavam registrados nas respectivas Declarações de Ajuste Anual de Imposto de Renda (DIRPF) dos sócios, totalizando R$ 802.724,00 (oitocentos e dois mil, setecentos e vinte e quatro reais). Ao serem transferidos para a pessoa jurídica, a diferença entre o valor declarado e o valor atribuído ao capital social (ágio) foi contabilizada na conta de reserva de capital[8].

Após o registro do ato constitutivo da sociedade na Junta Comercial do Estado de Santa Catarina, a Lusframa Participações Societárias Ltda. solicitou, em procedimento administrativo junto ao Município de São João Batista, o reconhecimento da imunidade tributária referente ao ITBI na transferência dos imóveis mencionados, como parte da integralização do capital social. Durante esse processo, o município reconheceu que a atividade principal da Lusframa Participações Societárias Ltda. não era de natureza imobiliária.

No entanto, posteriormente, o município concedeu a imunidade tributária do ITBI apenas sobre o valor de R$ 24.000,00 (vinte e quatro mil reais), estipulando que a diferença entre o valor dos imóveis declarados pelos sócios (R$ 802.724,00) e o valor destinado ao capital social (R$ 24.000,00) deveria ser considerada como base de cálculo para a aplicação da alíquota do ITBI. Isso significava que, segundo a interpretação do município, o ITBI deveria incidir sobre a quantia de R$ 778.724,00 (setecentos e setenta e oito mil, setecentos e vinte e quatro reais).

O município justificou sua posição argumentando que a imunidade tributária do ITBI se restringe apenas aos valores utilizados para a subscrição do capital social, não se estendendo a valores excedentes.

Inconformada com a decisão administrativa, a Lusframa Participações Societárias Ltda. ajuizou uma ação de mandado de segurança na Justiça Estadual de Santa Catarina, buscando o reconhecimento da imunidade tributária sobre a totalidade da transferência dos imóveis utilizados para a integralização do capital social, sem que houvesse a incidência do ITBI sobre qualquer valor.

O juiz da Vara Única do Município de São João Batista, com base em manifestação favorável do Ministério Público, concedeu liminar favorável à Lusframa Participações Societárias Ltda., determinando que o Secretário de Fazenda do Município de São João Batista se abstivesse de cobrar o ITBI sobre a transmissão dos imóveis incorporados ao patrimônio da empresa, para fins de realização do capital social.

Após a decisão, o Município de São João Batista interpôs recurso de apelação ao Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, buscando a revisão da sentença. O município argumentou que a base de cálculo para o ITBI deveria ser a diferença entre o valor total declarado dos imóveis pelos sócios (R$ 802.724,00) e o valor destinado ao capital social (R$ 24.000,00), totalizando R$ 778.724,00, e não apenas o valor do capital social.

No segundo grau, a Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Santa Catarina novamente manifestou apoio ao contribuinte e contrariedade à tributação pretendida pelo município, postulando pela manutenção da sentença de primeiro grau. No entanto, a 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, à unanimidade, deu provimento ao recurso do município, reformando a sentença e negando a segurança solicitada pela Lusframa Participações Societárias Ltda. A decisão da câmara fundamentou-se na interpretação de que a imunidade do ITBI para integralização de capital social não impedia a tributação sobre valores adicionais ao capital social.

A Lusframa Participações Societárias Ltda., então interpôs Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, pedindo a reforma da decisão do Tribunal de Justiça e a concessão da segurança. O recurso foi admitido pelo Tribunal de Justiça em decisão monocrática, em 13 de dezembro de 2012.

Neste contexto, o Ministério Público, então representado pela Procuradoria-Geral da República, manifestou-se pela primeira vez, no processo, contra os interesses do contribuinte, opinando pelo desprovimento do Recurso Extraordinário.

No dia 05 de agosto de 2020, o Plenário do STF analisou o Recurso Extraordinário apresentado pela Lusframa Participações Societárias Ltda., sob o rito da repercussão geral. Naquela sessão, a maioria dos ministros decidiu negar provimento ao recurso, seguindo o voto divergente do ministro Alexandre de Moraes, que contou com o apoio dos ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Roberto Barroso e Rosa Weber. Os ministros Marco Aurélio (relator), Ricardo Lewandowski, Edson Fachin e Cármen Lúcia ficaram vencidos. A tese fixada pelo STF foi: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal de 1988, não abrange o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.”

O ministro Alexandre de Moraes, ao redigir o voto vencedor, argumentou que seria uma interpretação extensiva indevida considerar que a imunidade abarcaria imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica, que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, mas sim a outro fim, como a formação de reserva de capital, como ocorreu naquele caso concreto. Ele ressaltou que a norma constitucional não permite que valores excedentes às quotas subscritas sejam isentos de ITBI, pois isso iria em prejuízo ao Fisco municipal e, portanto, à res publica.

Dessa forma, o julgamento do STF envolveu um caso em que imóveis foram incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica, não para integralizar o capital subscrito, mas para formar uma reserva de capital. Essa foi a principal razão da decisão (ratio decidendi). Logo, a aplicação da tese fixada no Tema 796 deve se limitar aos casos em que os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica são destinados à formação de reserva de capital, e não à integralização do capital subscrito (esses sim imunes ao ITBI), definindo assim o alcance da repercussão geral.

Além do Tema 796 (relativo ao RE 796.376/SC), há também o recente Tema 1348, relativo ao RE nº 1.495.108/SP em que se discute o alcance da imunidade do ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição, para a transferência de bens e direitos em integralização de capital social, quando a atividade preponderante da empresa é a compra e a venda ou a locação de bens imóveis. Contudo, esse segundo recurso extraordinário somente teve o acórdão que atribuiu repercussão geral ao caso publicado em 08/11/2024. Ou seja, o STF ainda analisa o mérito do caso.

O recurso foi apresentado por uma empresa administradora de bens contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) que considerou válida a cobrança de ITBI pela Prefeitura de Piracicaba relativo a um imóvel integralizado a seu capital social. Para a Justiça estadual, a exceção prevista na Constituição se aplica ao caso, em razão da atividade da empresa.

No STF, a administradora sustenta, entre outros pontos, que a incidência do imposto para empresas de compra e venda ou locação de bens imóveis só se aplicaria para transmissões de imóveis decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.

Em manifestação pelo reconhecimento da repercussão geral, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, explicou que a discussão trata exclusivamente de interpretação do artigo 156, parágrafo 2º, inciso I da Constituição, a fim de definir se a ressalva constante da última parte do dispositivo condiciona as duas hipóteses de imunidade do ITBI ou apenas a segunda relativa às transmissões de bens imóveis decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.

Ele destacou que, como o STF ainda não fixou orientação vinculante sobre o tema, tem sido recorrente o questionamento judicial sobre a cobrança de ITBI nessas situações. A resolução da controvérsia sob a sistemática da repercussão geral promoverá a isonomia e a segurança jurídica.

Por fim, Barroso ressaltou a relevância da questão, que tem repercussão sobre a arrecadação tributária dos municípios e sobre o regime de incentivo à livre iniciativa e à promoção de capitalização para o desenvolvimento de empresas.

Ainda não há data prevista para o julgamento do mérito do recurso.

1.6.1. Análise crítica e controvérsias

A definição do alcance da imunidade tributária do ITBI foi debatida no julgamento do Recurso Extraordinário 796.376/SC, que deu origem ao Tema 796 no Supremo Tribunal Federal (STF, 2020). Esse julgamento trouxe à tona uma série de argumentos e interpretações divergentes entre os ministros, refletindo a complexidade do tema e as diferentes perspectivas jurídicas e econômicas envolvidas.

No voto do relator, ministro Marco Aurélio, prevaleceu uma interpretação ampla e favorável ao contribuinte. Em caráter obiter dictum, o ministro relator observou que a imunidade do ITBI na integralização de capital não deveria ser condicionada à atividade preponderante do adquirente. Ele argumentou que a exceção à imunidade prevista no art. 156, §2º, I, da Constituição (Brasil, 1988) se aplica exclusivamente às transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica (Antunes; Maia, 2023, p. 271).

De acordo com o ministro Marco Aurélio, a Constituição (Brasil, 1988) não estabelece um limite explícito para a imunidade, e qualquer interpretação restritiva poderia prejudicar o incentivo à formação de capital social e ao crescimento econômico das empresas; ele defendeu que a imunidade tributária deve ser aplicada de maneira a não limitar as formas de integralização de capital, assegurando segurança jurídica e promovendo investimentos.

Por outro lado, o voto divergente do ministro Alexandre de Moraes adotou uma interpretação mais restritiva da imunidade tributária do ITBI. Moraes argumentou que a imunidade deve ser aplicada apenas ao valor correspondente ao capital social a ser integralizado, excluindo qualquer valor excedente registrado como reserva de capital. Ele sustentou que uma interpretação ampla poderia abrir espaço para abusos fiscais e para a elisão tributária, contrariando a finalidade original da imunidade prevista na Constituição (Brasil, 1988). Moraes destacou que a norma deve ser interpretada de maneira restritiva para evitar distorções e assegurar que o benefício fiscal seja utilizado conforme a sua finalidade constitucional

Nesse sentido, o voto vencedor do ministro Alexandre de Moraes, consagrou a tese de que “a imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.” (Tema 796).

A Suprema Corte fez uma distinção clara entre as hipóteses previstas no texto constitucional, demonstrando que a segunda parte do dispositivo condiciona a imunidade à não exploração de atividade imobiliária, enquanto a primeira parte concede imunidade incondicionada (Lima Júnior, 2023, p. 158).

Na decisão, o ministro Alexandre de Moraes partiu de uma interpretação gramatical do dispositivo constitucional, esclarecendo o conteúdo semântico da norma, o que permitiu à Corte Suprema avançar na interpretação e definir o alcance da imunidade tributária e da expressão relacionada ao valor dos bens envolvidos. A decisão confirmou que a transmissão de bens e direitos na integralização de capital foi excluída, de forma irrestrita, da incidência do ITBI, sem qualquer limitação (Lima Júnior, 2023, p. 158).

Com base nessa interpretação, foi estabelecido que a exceção à imunidade do ITBI aplica-se apenas às transmissões de bens decorrentes de “fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.” A decisão seguiu o entendimento do doutrinador Kiyoshi Harada (2021, p. 89), afirmando que a imunidade sobre os imóveis entregues para subscrição de capital é incondicionada e autoaplicável, independentemente da atividade desenvolvida pela pessoa jurídica adquirente.

No entanto, a decisão não abordou em profundidade várias controvérsias, como (i) a escolha do termo “nesse” em vez de “neste”, (ii) a interpretação histórica da norma de imunidade e sua exceção, e principalmente, (iii) a razão pela qual a norma diferencia entre as hipóteses de integralização de capital e as de reorganizações societárias (Antunes; Maia, 2023, p. 271).

Schoueri (2021, p. 276) destaca que o ministro Alexandre de Moraes, em sua consideração obiter dictum, argumentou que a imunidade ao ITBI na integralização de capital não deve ser restrita à atividade preponderante do adquirente. Ele observou que o artigo 156, § 2º, I, da Constituição (Brasil, 1988), ao mencionar a exceção “salvo se, nesses casos“, refere-se especificamente às transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção, e não à integralização de capital.

Schoueri (2021, p. 276) aponta que o entendimento da Suprema Corte é questionável por duas razões principais. Primeiro, a imunidade tributária deve abranger operações societárias que envolvam a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica. Uma vez identificada essa operação, a imunidade deve se aplicar independentemente da discrepância entre o valor do capital social e os imóveis incorporados. Segundo, a expressão “salvo se, nesses casos” não parece excluir a transmissão em realização de capital. A diferenciação proposta pelo STF não encontra uma justificativa clara e parece que a exceção para a atividade preponderante visa a evitar a criação de pessoas jurídicas exclusivamente para evitar o pagamento do ITBI pela pessoa física.

É importante destacar que a interpretação do ministro Alexandre de Moraes implica uma declaração de inconstitucionalidade, sem redução de texto, do caput do artigo 37 do CTN, o que inviabiliza a sua aplicação ao caso previsto no artigo 36, I, do mesmo código (Brasil, 1966).

A principal controvérsia nesse julgamento residiu na extensão da imunidade tributária do ITBI e na questão de se ela deve ser aplicada apenas ao valor do capital social ou também aos valores excedentes contabilizados como reserva de capital. As divergências entre os ministros refletem diferentes abordagens interpretativas e preocupações quanto aos impactos econômicos e fiscais das suas decisões.

Em suma, a decisão do STF que gerou o Tema 796 de Repercussão Geral (STF, 2020) tem implicações significativas tanto para os contribuintes, quanto para a arrecadação fiscal dos municípios. A interpretação restritiva adotada pode limitar a utilização de imóveis como meio de integralização de capital, enquanto a interpretação ampla, defendida nos votos vencidos, pode facilitar a captação de recursos pelas empresas, mas reduzir a arrecadação municipal de ITBI.

De qualquer forma, é sempre aconselhável entender corretamente a finalidade dos institutos jurídicos para, a partir daí, dar-lhes interpretação consentânea.

Pois de acordo com o artigo 200 da Lei 6.404/76, conhecida como Lei das S.A.:

Art. 200. As reservas de capital somente poderão ser utilizadas para:

I – absorção de prejuízos que ultrapassarem os lucros acumulados e as reservas de lucros (artigo 189, parágrafo único);

II – resgate, reembolso ou compra de ações;

III – resgate de partes beneficiárias;

IV – incorporação ao capital social;

V – pagamento de dividendo a ações preferenciais, quando essa vantagem lhes for assegurada (artigo 17, § 5º).

Nesse contexto, a incorporação ao capital social é somente uma, dentre cinco possibilidades de utilização das reservas de capital. O que nos leva à conclusão intuitiva de que as reservas de capital podem ou não ser utilizadas para fins de integralização ao capital social.

1.6.2. Impactos jurídicos

Mesmo não constituindo precedente vinculante, as considerações feitas no voto condutor sobre a exceção à imunidade do ITBI têm influência em decisões judiciais relacionadas ao tema. Após o julgamento do Tema 796, os municípios passaram a interpretar o conceito de “excedente” mencionado na tese fixada pelo STF ao avaliar pedidos de reconhecimento de imunidade tributária do ITBI na transferência de bens imóveis para a integralização de capital social de uma pessoa jurídica. Com base nessa interpretação, passaram a cobrar o ITBI sobre a transmissão de imóveis, mesmo quando a atividade principal da empresa adquirente não era imobiliária, aplicando o imposto sobre a diferença entre o valor venal do imóvel e o valor pelo qual foi transferido à pessoa jurídica (Braum, 2022, p. 31).

Diante desse entendimento, os contribuintes começaram a recorrer ao Poder Judiciário para garantir o direito à imunidade tributária na transmissão de imóveis para a realização de capital social. Assim, além do próprio julgamento do STF, é necessário examinar os desdobramentos desse precedente no Judiciário. Este artigo se concentrou nas decisões mais recentes dos tribunais de justiça dos estados mais populosos de cada região do Brasil, a fim de estabelecer um critério claro para a análise.

O Tribunal de Justiça do Paraná, ao interpretar o Tema 796, decidiu que o ITBI deve incidir sobre a diferença entre o valor venal do imóvel transferido e o valor atribuído pelo transmitente para o aumento de capital social. O tribunal entendeu que o Tema 796 não se aplica apenas aos casos de transferência de bens a título de reserva de capital, mas em qualquer situação onde haja diferença entre o valor venal e o valor de transferência para integralização de capital social. Além disso, concluiu que a imunidade total do ITBI só é aplicável quando o valor de mercado do imóvel for igual ou menor que o valor do capital social, independentemente do valor declarado para fins de imposto de renda (Brasil, 2021a).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo adotou a mesma posição, afirmando que “independentemente da escrituração do valor excedente do imóvel como reserva de capital, a empresa beneficiária da incorporação torna-se proprietária do bem cujo valor de mercado é significativamente superior ao valor pelo qual foi recebido” (Brasil, 2022b). Diversos julgados desse tribunal corroboram a ideia de que a diferença entre o valor venal do imóvel e o valor atribuído ao aumento de capital social constitui a base de cálculo sobre a qual deve incidir o ITBI.

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás seguiu a mesma linha dos tribunais mencionados anteriormente, optando por tributar a diferença entre o valor venal dos imóveis e o valor atribuído a eles, para fins de aumento de capital social. No entanto, chama a atenção a interpretação dada ao Tema 796 por esse tribunal, que afirma que essa diferença entre o valor venal e o valor do aumento de capital necessariamente forma uma reserva de capital sujeita à tributação pelo ITBI (Brasil, 2022a).

No entanto, há uma decisão isolada no Tribunal de Justiça de São Paulo que diverge dessa posição quase que unânime. Essa decisão diferenciou o caso tratado pelo STF em repercussão geral dos demais casos apresentados ao Judiciário, entendendo que o precedente do STF só deveria ser aplicado nos casos em que houvesse ágio no aumento de capital, ou seja, quando o valor dos imóveis fosse destinado à conta de reserva de capital. De acordo com esse entendimento, a imunidade tributária do ITBI deveria ser mantida integralmente, mesmo que os imóveis fossem transferidos para aumento de capital a um valor inferior ao valor venal (Brasil, 2021b).

Similar ao que ocorreu em São Paulo, o Tribunal de Justiça de Goiás também emitiu uma decisão isolada que contraria essa posição predominante. Nesse caso, o tribunal entendeu que a imunidade tributária do ITBI na transmissão de imóvel para realização de capital é incondicional e independe do valor atribuído ao bem para esse fim. Segundo essa decisão, o contribuinte pode, conforme permitido pela legislação federal, transmitir o bem pelo valor de sua declaração de bens, sem que isso gere um “excedente” sujeito à tributação, conforme estabelecido no Tema 796 do STF (Braum, 2022, p. 33).

Em resumo, o entendimento quase unânime tem sido o de que, se o transmitente transferir um imóvel a uma pessoa jurídica (mesmo que sua atividade preponderante não seja imobiliária) e atribuir a esse bem um valor inferior ao venal, a base de cálculo do ITBI será a diferença entre o valor venal e o valor pelo qual o capital social foi aumentado. Por exemplo, se um imóvel é transferido a uma pessoa jurídica para realização de capital por R$ 100.000,00, mas seu valor venal é de R$ 150.000,00, a diferença de R$ 50.000,00 será considerada a base de cálculo para a aplicação da alíquota do ITBI. Isso se aplica independentemente da atividade principal da pessoa jurídica.

A decisão da Supremo Corte no Tema 796, que abordou a imunidade tributária do ITBI sobre a transmissão de bens imóveis integralizados ao capital social de empresas, teve impactos significativos tanto para os contribuintes quanto para os municípios. Essa decisão, favorável ao entendimento de que a imunidade do ITBI não abrange os valores excedentes destinados à reserva de capital, acabou beneficiando a arrecadação municipal, mas impondo custos adicionais às empresas e desincentivando a prática de integralização de imóveis como capital social. A complexidade e as divergências inerentes ao tema refletem a necessidade de um equilíbrio entre incentivar o crescimento econômico e assegurar a sustentabilidade financeira dos municípios, pois continuariam a poder tributar os valores excedentes ao capital social integralizado, o que significa uma base tributária mais ampla para a cobrança do ITBI, resultando em maior arrecadação de receitas municipais.

Com uma maior arrecadação, os municípios teriam mais recursos para financiar serviços públicos e investimentos em infraestrutura, educação, saúde e outras áreas essenciais, o que contribui para o desenvolvimento local e a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos

2. Metodologia

Este artigo, enquanto investigação teórica e bibliográfica, se apoiou em obras acadêmicas (livros), artigos científicos e jurisprudência. O método utilizado para conduzir a pesquisa envolveu a análise doutrinária sobre o tema, com ênfase na revisão de publicações científicas relacionadas à incidência do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) na integralização do capital social.

As fontes foram obtidas nas plataformas Google Acadêmico e Scielo utilizando palavras-chave como “imunidade”, “ITBI”, “Tema 796 STF” e “capital social”. Foram selecionados artigos em língua portuguesa, acessíveis gratuitamente e que abordassem o ITBI na integralização de capital social, dando preferência aos mais recentes. Além disso, foram incluídos artigos que analisaram decisões de outros tribunais no contexto do Tema 796. Foram excluídos artigos publicados em língua estrangeira, aqueles disponíveis apenas em formato físico e os que não estavam acessíveis gratuitamente.

A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa para a interpretação dos dados coletados, que permitiu uma avaliação detalhada das contribuições dos autores e uma interpretação aprofundada sobre os limites da imunidade tributária.

3. Considerações finais

Este artigo buscou examinar o alcance da norma constitucional imunizante do Imposto sobre a Transmissão Onerosa de Bens Imóveis por ato intervivos (ITBI), na hipótese de integralização do imóvel ao capital social de empresa, conforme discussão que teve a sua repercussão geral reconhecida pelo STF (Tema 796).

A questão central investigada foi a forma como o STF tem interpretado a imunidade tributária, no contexto da integralização de imóveis ao capital social e a relação dessa interpretação com a prática jurídica atual. Diante disso, o artigo revelou que o STF tem adotado uma abordagem mais restritiva, aplicando a imunidade apenas às operações onde o valor dos imóveis é diretamente incorporado ao capital social, excluindo aquelas em que os imóveis são registrados como reserva de capital.

A análise demonstrou que o STF tem favorecido a arrecadação tributária em situações em que o valor dos imóveis supera o capital subscrito. A avaliação das implicações dessa interpretação indicou que ela pode impactar a prática empresarial e a segurança jurídica, ressaltando a necessidade de maior clareza nas normas aplicáveis e na sua interpretação. As decisões judiciais têm seguido uma interpretação extensiva do Tema 796, com a maioria concordando com a posição dos municípios de que o “excedente”, mencionado na tese, corresponde à diferença entre o valor venal do imóvel e o valor pelo qual ele foi transferido à pessoa jurídica para integralização de capital social. Assim, o entendimento predominante é de que o ITBI deve incidir sobre essa diferença.

Em suma, este artigo buscou analisar a imunidade tributária relativa ao ITBI, na expectativa de contribuir para uma aplicação eficaz e segura da legislação tributária dentro do contexto empresarial, promovendo maior clareza e segurança jurídica, tanto às empresas quanto ao próprio sistema tributário nacional.

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[3] Um imóvel por acessão física é um bem imóvel que sofreu um acréscimo por meio de intervenção humana ou por causas naturais. A acessão pode ser natural ou artificial. A acessão natural ocorre por meio das forças da natureza, como a formação de ilhas, aluvião, avulsão e abandono de álveo. Já a acessão artificial ocorre por meio da intervenção humana, como construções e plantações.

[4] A anticrese é um direito real de garantia que consiste na transferência de um imóvel ao credor, para que este possa usar os frutos e rendimentos do bem para pagar a dívida.

[5] Direitos de propriedade intelectual, como obras científicas, patentes, marcas, desenhos industriais, softwares, indicação geográfica e proteção de cultivares.

[6] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/tesauro/pesquisa.asp?pesquisaLivre=REQUISITO. Acesso em 20/01/2025.

[7] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/tesauro/pesquisa.asp?pesquisaLivre=INTERPRETA%C3%87%C3%83O%20TELEOL%C3%93GICA#:~:text. Acesso em: 8 out. 2024.

[8] As reservas de capital são valores recebidos pela empresa que não se caracterizam como receita, isto é, não transitam pelo resultado do exercício, sendo contabilizados diretamente à conta de Patrimônio Líquido (Art. 200 da Lei 6.404/76).


Jhully Hermes de Castro. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – UNICEPLAC (2024). E-mail: jhully.jhully50@gmail.com

Fernando de Magalhães Furlan. Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – UNICEPLAC. E-mail: fernandomfurlan@gmail.com


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A boa fé e seus aliados processuais no exercício da litigância elegante e cristalina dos operadores do direito em todos os seus segmentos

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

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Ficha catalográfica

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A boa fé e seus aliados processuais no exercício da litigância elegante e cristalina dos operadores do direito em todos os seus segmentos

Lorenzo Martins Pompílio da Hora e Durval Pimenta de Castro Filho

RESUMO: O presente artigo científico tem por propósito, em síntese, uma análise do exercício do direito probatório aliado ao princípio da boa-fé, como elementos processuais estruturantes de um procedimento potencialmente gerador de uma sentença com resolução de mérito seguramente justa e efetiva, de acordo com a norma fundamental do artigo 6º do Código de Processo Civil, conforme reclama o Estado Democrático de Direito, resguardado pela denominada Constituição Cidadã, promulgada em 5 de outubro de 1988.  

Palavras – chave: princípio da boa-fé; direito probatório; devido processo legal.

ABSTRACT: The purpose of this scientific article is, in summary, an analysis of the exercise of the right to evidence combined with the principle of good faith, as structuring procedural elements of a procedure potentially generating a sentence with a surely fair and effective resolution of the merits, in accordance with the fundamental rule of article 6 of the Civil Procedure Code, as demanded by the Democratic Rule of Law, protected by the so-called Citizen Constitution, promulgated on October 5, 1988.

Keywords: principle of good faith; evidentiary law; due process of law.

Propedêutica

A Boa-fé cresceu, superou todos os percalços da puberdade, da adolescência, atingiu a maioridade e atualmente se faz presente nos mais diferentes cenários cognitivos da vida jurídica.

Superou um momento clássico, sujeito a concepções preestabelecidas e ao mesmo tempo limitadoras do seu potencial de generosidade com o bom senso, a probidade na arte de litigar entre as partes.

O legislador processual civil  hodierno contemplou a boa-fé, colocando-a sob a égide das normas fundamentais, de acordo com a redação do artigo 5º do Código de Processo Civil, bem como elencou, no artigo 80 do precitado Estatuto, condutas reveladoras de uma litigância temerária, caracterizadoras de má-fé, entre as quais a que altera “a verdade dos fatos”.

Podemos afirmar que agir de boa-fé, é agir no paradigma da verdade, da evidência, alieno da sombra da subversão do que é certo, seja sob o aspecto objetivo e subjetivo, de modo que a intenção e o agir estejam inarredavelmente alinhados com a finalidade a que se propõe o benévolo agente alcançar.

Em termos, quem provoca a jurisdição para, segundo o disposto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil, afastar “lesão ou ameaça a direito”, tem o dever de fazê-lo com fundamento na legitimidade de sua pretensão, amparado em norma jurídica assecuratória da alegada titularidade, bem como na prova, pena de responsabilização reparatória pela temeridade da infundada litigância, conforme inteligência do artigo 79 do Código de Processo Civil. 

Desenvolvimento

Para o alcance de melhor abordagem do instituto, sob o aspecto preliminarmente conceitual, valem-se os articulistas de expressiva manifestação doutrinária, trazendo à lume, primeiramente, o magistério do atemporal civilista ORLANDO GOMES:

A expressão boa-fé não tem, no particular, o sentido em que é usada no Direito das Coisas. No Direito das Obrigações, significa, segundo BARASSI, referente a um modelo abstrato, ao qual deve adequar-se a execução da obrigação. Não é fácil enunciá-lo. Ao se estabelecer que as partes de uma relação obrigacional oriundas de contrato precisam agir com boa-fé, quer-se dizer que lhes cumpre observar comportamento correto, que corresponda à legítima confiança do outro contratante.[1] (Grifos no original).

As locuções reveladoras da boa-fé, segundo o precitado ensinamento, são a confiança, o comportamento fidedigno, a lisura, em suma, o empenho do agente em direção ao fim colimado pela avença, partindo-se do pressuposto restritivamente contratual.

A boa-fé como sinalizam ROSENVALD & FARIAS:

Demais disso, não se pode olvidar a boa-fé objetiva como princípio fundamental das relações civis, especialmente das relações negociais, obrigacionais e contratuais. Não prevista na estrutura codificada de 1916, a boa-fé objetiva materializa uma necessária compreensão ética das relações privadas. Aliás, já tivemos oportunidade de afirmar que a boa-fé objetiva “significa a mais próxima tradução da confiança, que é o esteio de todas as formas de convivência em sociedade”. A Lei Civil, inclusive, acolhe a boa-fé objetiva de forma expressa, como princípio fundamental das relações jurídicas privadas, mencionadas nos arts. 113 e 422, como regra interpretativa dos negócios jurídicos e das obrigações como um todo, como mecanismo de imposição de limites ao poder de contratar e para estabelecer deveres implícitos nas relações do mundo negocial (…).[2]

Acontece que esses visionários do Direito já antecipavam que os limites da boa-fé não ficariam apenas no Direito Civil. Ocupariam espaços legais em outros textos normativos, até porque em suas cuidadosas pesquisas de citações notificaram:

Valendo-se da advertência de PALOMA MODESTO, “todo o processo de descoberta da norma de decisão para a resolução dos casos passa, necessariamente, pelos princípios constitucionais – verdadeiros balizadores da realização e da concretização da Constituição – , não tendo pretensão de exclusividade (…).[3]

E assim aconteceu, na renovação da Lei Processual Civil, até o momento, juntamente com episódios institucionais consagrados de Lei Processual Penal integrativa para fazer companhia as conquistas constitucionais, também tivemos a boa-fé presente de forma substancial e expressa na Lei Processual. Restando claro que a sua presença também faz parte das metodologias de busca da verdade real, contraditório, ampla defesa substancial, devido processo legal, entre outros.

Dispensáveis maiores ilações para reconhecer que a boa-fé não é um ornamento legal, mas sim um princípio que veio para ficar nos momentos mais cruciais do Estado-Juiz em vários ritos normativos, no âmbito civil e penal, entre outros, a citar: NEGÓCIOS JURÍDICOS, HOLDING FAMILIAR, ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA EXTRAJUDICIAL, INVENTÁRIOS EXTRAJUDICIAIS, A DINÂMICA E AS FERRAMENTAS DE COBRANÇAS DECORRENTES DE INADIMPLEMENTOS, NARRATIVAS E ACUSAÇÕES SEM STANDARD PROBATÓRIO, INVESTIGAÇÃO POLICIAL VICIADA POR INQUISITÓRIOS PROVENIENTES DE ILAÇÕES, COLABORAÇÃO PREMIADA, ABUSO DE ATORIDADE, QUEBRAS DA CADEIA DE CUSTÓDIA, ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL.

O DIREITO A PRODUÇÃO PROBATÓRIA, CONTRADITÓRIO, MOTIVAÇÕES INTRÍNSECAS E EXTRÍNSECAS DAS DECISÕES JUDICIAIS e outros temas sensíveis que nos levariam a discorrer por inúmeras páginas, até porque a natureza humana ainda pode ser uma incógnita que carece do manto da boa-fé, ou seja, é preciso que haja entre as partes credibilidade mútua.

Assim, podemos nos defrontar, hipoteticamente, com uma simples investigação policial em que o agente da perquirição, depois de ter acesso preliminar a todas as medidas invasivas e cautelares de quebras de sigilo do investigado, faz uma narrativa desprovida da verdade, como, por exemplo, de que só teria descoberto determinado bem de propriedade deste após uma recente diligência de busca do imóvel do invadido, mesmo depois de ter minuciosamente averiguado toda a respectiva situação fiscal daquele que é alvo da persecução criminal preliminar.[4]

Vale dizer, uma típica inverdade que não resiste a um exame superficial na cronologia de eventos que precederam a buscar domiciliar. Ou seja, uma conduta de má-fé do agente público, aliena da legalidade constitucionalmente assegurada pela via principal da norma fundamental contida no artigo 5º, inciso LIV. 

O suporte e a assistência consolidadora é multidisciplinar, comunicação com todas as metodologias periciais, psiquiátricas, neuropsicológicas, psicológicas que por não poderem estar mais eclipsadas e distantes dos princípios constitucionais encontram o seu forte engajamento na Boa-fé.

Parceira incólume do processamento dos feitos judiciais para limitar os abusos irresponsáveis e descomprometidos em qualquer segmento institucional, desde a instauração do feito até o almejo da coisa soberanamente julgada.

Como afirma constantemente o Doutor e Professor da Universidade Federal de Santa Catariana, Juiz Federal Alexandre Moraes da Rosa em suas encantadoras obras e monografias: “NÃO VALE TUDO NO PROCESSO PENAL”.

A boa-fé pede emprestado a expressão: “NÃO VALE TUDO SEM BOA-FÉ”.

Na acepção da boa-fé objetiva temos uma contrapartida numa lide que envolve uma litigância com elegância, sem o slogan: saiba levar vantagem em tudo, que há alguns bons anos atrás era exposto pelo denominado “canhotinha de ouro”, considerado o melhor meio campista do mundo da irretocável Seleção Brasileira Tricampeão Mundial de Futebol na Itália – GERSON DE OLIVEIRA NUNES.

Um jogador de meio-campo taticamente inteligente, eficiente e tecnicamente talentoso, foi considerado o “cérebro” por trás da Seleção Brasileira que venceu a Copa do Mundo de 1970.

Além do análogo contexto futebolístico, também ficou famoso nos anos 70 por protagonizar uma campanha publicitária do produto cigarro Vila Rica, na qual dizia “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também…“. Essa frase presumidamente resumiria a suposta, por assim dizer, malandragem brasileira[5] e acabou caindo na cultura midiática como o símbolo do jeitinho desonesto de ser e da corrupção, ficando conhecida como “Lei de Gérson“. Após a associação maliciosa e indevida, ele se lamentou publicamente, em diversas ocasiões, de ter seu nome ligado a esses defeitos morais associados pela cultura midiática ao povo brasileiro.

E certamente não merecia essa associação pelo valor de atleta que também representou o Brasil em todas as suas atuações.

Ocorre que esse slogan, além de ser reprimido pelo próprio GERSON, não deixou de traduzir uma situação em que as lides processuais se esmeravam eclipsando elementos e narrativas inoportunas e provas obtidas ilicitamente. Aí temos o bom local para a percepção da acepção da boa-fé como destacam, mais uma vez ROSENVALD & FARIAS:

Compreende a boa-fé objetiva um modelo ético de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de conduta, caracterizada por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção, de modo a não se frustrar a legítima confiança da outra parte (…)[6]

A boa-fé se impõe como um arquétipo capaz de conduzir o conteúdo geral da colaboração intersubjetiva, trazendo o princípio a ser combinado, conduzido de maneira coordenada às normas integrantes da também locução ritos processuais, no intuito de lograr própria concreção.[7]

Hodiernamente, há um limite que concorre para promover a cognição daqueles que decidem, podendo exercitá-la em sede sumária parcial ou mesmo exauriente numa percepção de um cognicismo justo. Não é por mero acaso legislativo que a norma fundamental contida no texto do artigo 6º do Código de Processo Civil dispõe que, além da cooperação dos sujeitos processuais para abreviação do procedimento, no que obviamente estiver alinhado com o devido processo legal, devem igualmente concorrer para que, ao fim e ao cabo, tenha lugar “decisão de mérito justa e efetiva”.

A propósito da centralidade judicial relativamente à condução do procedimento, oportuna é a lição de EMÍLIO SANTORO, Professor de Sociologia do Direito na Universidade de Florença, litteris:

O perfil do juiz ator fundamental do rule of law traçado por Dicey parece muito semelhante àquele do juiz ator fundamental do ‘Estado constitucional de direito’ desenhado por Luigi Ferrajoli. Também para ele, o juiz está caracterizado por uma ‘função e uma dimensão pragmática desconhecida à razão jurídica própria do velho juspositivismo dogmático e formalista’; atribui-se ao juiz a ‘responsabilidade civil e política’ de perseguir, através operações interpretativas ou jurisdicionais ‘a efetividade dos princípios constitucionais – contudo, sem que seja possível iludir-se que estes sejam alguma vez inteiramente realizáveis’.[8]   

RUI ROSADO DE AGUIAR JUNIOR, reportando-se ao revogado Código de Processo Civil de 1973, doutrina que a função limitadora “veda ou pune o exercício de direito subjetivo, quando caracteriza “abuso da posição jurídica (…)”:

{…} Outro exemplo está no art.22 do Código de Processo Civil, que não extingue o direito do réu que deixar arguir, na sua resposta fato, modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do autor, dilatando o processamento da lide, mas faz recair sobre ele os ônus derivados de sua omissão (…).[9]

Numa situação hipotética, entretanto possível, teríamos na seara cível o cenário em que a parte ré promove juntada extemporânea de inúmeros documentos, acrescendo ser este momento posterior à réplica apresentada pela parte autora, com fundamento na redação do artigo 435, caput, do Código de Processo Civil, interpretando a locução “em qualquer tempo”, sob o palio da mais intensa literalidade. Nesse contexto, é de bom alvitre recordar a lição de CARLOS MAXIMILIANO, afirmando que “O processo gramatical, sobre ser o menos compatível com o progresso, é o mais antigo (único outrora).”[10] INOCÊNCIO GALVÃO TELLES obtempera que “A lei, em princípio, deve ser entendida da maneira que melhor corresponda à consecução do resultado que o legislador teve em mira. A lei está para a ‘ratio iuris’ como o meio para o fim, e quem quer o fim quer o meio.”[11]

Quanto ao aspecto preliminarmente teórico, alusivo a decisão de saneamento do feito, acerca da manifestação do autor sobre os documentos coligidos pela ré, cumpre, primeiramente, resgatar o denominado princípio da preclusão consumativa, isto é, uma vez exercida validamente a respectiva faculdade processual, não mais estará assegurada à parte a possibilidade de realiza-la novamente, instituto que se revela por intermédio da redação do artigo 200, caput, do Código de Processo Civil.

Na hipótese em que a parte não exerce a faculdade que lhe compete durante o assegurado prazo legal e/ou judicial, cumpre reportar à preclusão temporal, vale dizer, tempus regit actum; logo, expirado o prazo, tal faculdade terá sido peremptoriamente acobertada pela preclusão temporal, exceto na hipótese ventilada no artigo 223 do Código de Processo Civil.

Assim, caso a ré não tenha, durante o prazo da contestação, coligido aos autos processuais toda a prova pré-constituída, isto é, pré-existente à instauração da demanda e ao seu alcance, e de cuja produção presumidamente haveria de tirar proveito, inferir-se-á que tal faculdade teria sido definitivamente acobertada pela preclusão temporal.

Entretanto, caso a ré tenha exercido o contraditório, na fase postulatória, promovendo a juntada aos autos de documentação presumidamente idônea e concernente ao objeto da ação, para provar a existência “de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (…)”, segundo informa a redação do artigo 373 do Código de Processo Civil, teve lugar a preclusão consumativa, razão pela qual eventual juntada posterior de documento, há que, necessariamente, ser enquadrada na categoria de documento novo, conforme estabelece a norma contida no texto do artigo 435, caput, do Código de Processo Civil. Outro não é o sentido da copiosa jurisprudência do Egrégio Tribunal Regional Federal da Segunda Região, revelada pela v. decisão proferida em sede de Apelação Cível nº 0151933-02.2015.4.02.5109/RJ, Relatoria do Desembargador William Douglas Resinente dos Santos, amparada em sólida jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça, cuja ementa é parcialmente transcrita:

De acordo com o art. 434, do Código de Processo Civil, incumbe à parte instruir a petição inicial ou a contestação com os documentos destinados a provar suas alegações. Entretanto, tal comando pode ser excepcionado, quando surgem documentos novos decorrentes de fatos supervenientes, já alegados pela parte, mas que por algum motivo só foram produzidos ou conhecidos posteriormente. Nesse sentido:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. JUNTADA DE DOCUMENTOS NA APELAÇÃO. DOCUMENTO NOVO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
1. A regra prevista no art. 396 do CPC/73 (art. 434 do CPC/2015), segundo a qual incumbe à parte instruir a inicial ou a contestação com os documentos que forem necessários para provar o direito alegado, somente pode ser excepcionada se, após o ajuizamento da ação, surgirem documentos novos, ou seja, decorrentes de fatos supervenientes ou que somente tenham sido conhecidos pela parte em momento posterior, nos termos do art. 397 do CPC/73 (art. 435 do CPC/2015).(Grifou-se).[12]

O v. e monocrático julgado acima retratado acompanha a sólida manifestação pretoriana do Colendo Superior Tribunal de Justiça, extraída dos autos do Agravo Interno no Recurso Especial nº 2034103/SP, Relatoria do Ministro Moura Ribeiro, integrante da Terceira Turma, e que a correspondente ementa segue parcialmente transcrita:

(…)

2. A invocação do art. 435, parágrafo único, do CPC não pode ser utilizada de forma indiscriminada pela parte com o intuito de juntar documentos em qualquer fase do processo, inclusive após a prolação de sentença, na tentativa de, por vias transversas, desconstituir a coisa julgada.[13]

No que diz respeito, ainda, à juntada de documento posteriormente à demanda (rectius, ao protocolo da petição inicial) ou à contestação cumpre observar tal admissibilidade expressa na redação do artigo 350 do Código de Processo Civil, quando o autor, se for o caso, manifestar-se em réplica,[14] haja vista que a norma em referência não restringe a modalidade probatória aplicável. Logo, presume-se que obtendo o autor documento novo a oportunidade de coligi-lo aos autos do processo seria, pena de preclusão, na ocasião da réplica, exceto, obviamente, na hipótese de posterior surgimento ou alcance pela parte.

Dessa forma, se os documentos coligidos pela ré, sobre os quais o autor foi judicialmente instado a se manifestar, não se revestem da qualidade albergada na redação do artigo 435, caput, do Código de Processo Civil, conforme a revelação pretoriana acima colacionada, eficácia probatória de nenhuma natureza terão, razão pela qual não poderão concorrer para a formação da convicção judicial, de modo a atender o predicado fundamental contido no artigo 6º do Código de Processo Civil. Ou seja, não poderá o prístino Julgador disponibilizar sua capacidade de percepção, acerca da verdade dos fatos, orientado por modalidade probatória ilegítima para o alcance da finalidade a que se presta a elevada atividade do Dignatário Judicial, isto é, o proferimento de inarredável “decisão de mérito justa e efetiva (…)”, segundo os termos da precitada norma fundamental processual civil.

Sabidamente que o ente público, independentemente da categoria republicana que ostentar, detém, justificadamente, prerrogativas funcionais na dinâmica processual, de acordo, por exemplo, com o disposto nos artigos 183, caput, e 345, inciso II, do Código de Processo Civil, sem, entretanto, deixar o albergue da lealdade processual e da paridade de armas, pena de franca violação ao preceito maior do devido processo legal, consoante a norma contida no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil.

No que concerne a uma decisão saneadora, ato judicial interlocutório cuja finalidade é, segundo a lição de GALENO LACERDA, “(…) desimpedir o caminho para a instrução da causa, seu objeto, certamente, há-de ser o exame da legitimidade da relação processual (…)”.[15] Dessarte, sob os auspícios da redação do artigo 357 do Código de Processo Civil, referentemente à justificativa da modalidade probatória a requerer, 02 (dois) temas precisam ser milimetricamente explorados pelo requerente: admissibilidade da prova e pertinência da prova.

A propósito, a juízo dos articulistas, a respeito do assunto, o melhor conceito, sem prejuízo da proficiência da destacada comunidade de intérpretes, é da lavra do atemporal EDUARDO COUTURE, ensinando que “Prova pertinente é aquela que versa sôbre as alegações e fatos que são realmente objeto de prova.”[16] (Grifo no original).

Referentemente à prova admissível, disserta o precitado autor que “está-se fazendo referência à idoneidade ou falta de idoneidade de um determinado meio de prova para demonstrar um fato.”[17]

C.J.A. Mittermayer, citado por LUIZ OTÁVIO DE OLIVEIRA AMARAL, disserta que “prova é o complexo dos motivos produtores da certeza. A prova consiste na demonstração da existência ou da veracidade daquilo que se alega em juízo. Alegar sem provar não tem valor.” [18] (Grifos no original).

Acerca do contexto probatório, assinala DURVAL PIMENTA DE CASTRO FILHO, inspirado na lição do memorável Eduardo Couture, verbis:

(…) o convencimento judicial acerca da verdade dos fatos não será formado com espeque na eloquência dos respectivos patronos, narrativa dos fatos sob a ótica autoral, ou conforme o engendramento da matéria de defesa por obra do réu, mas, necessariamente, segundo a lavra de EDUARDO COUTURE, mediante o ‘contrôle das proposições que os litigantes formulam em juízo (176)’. É o que se denomina prova. [19]

Em suma, a locução admissibilidade da prova concerne à modalidade da prova que se pretende produzir (documental, testemunhal, material, pericial), ou qualquer outro meio, ainda que não especificado no ordenamento, segundo informa a redação do artigo 369 do Código de Processo Civil; logo, a expressão prova admissível diz respeito à idoneidade do meio probandum, ou seja, o quanto a modalidade probatória requerida concorrerá efetivamente para a formação da convicção judicial, vale dizer, em que medida contém suficiente higidez para revelar a verdade dos fatos sob a ótica do sentenciante, que decidirá com fundamento nos princípios da livre investigação das provas e da livre convicção motivada, este último igualmente denominado persuasão racional e adstrição, conforme o disposto no artigo 371 do Código de Processo Civil.

No que diz respeito à locução pertinência da prova concerne ao fato probandum, isto é, se o que a parte pretende provar tem relação direta com o objeto da ação. A título de exemplo, a prova testemunhal em ação de responsabilidade civil por danos materiais, causados em razão de colisão de veículos na via pública, em horário de rush, seria, em tese, além de admissível, pertinente. É factível que, naquele horário e logradouro houvesse fluxo de transeuntes, aptos a descrever como os automóveis colidiram, que é o cerne da questão.     

Em apertada síntese, para que haja prova,[20] será necessário a conjugação de 02 (dois) elementos fidedignamente inarredáveis da instrução: meio (probandum) e fato (probandum), os quais, uma vez alinhados, revelarão a verdade dos fatos, ainda que formal ou relativa.

Dessarte, será preciso que no requerimento de produção de provas a parte conjugue simultaneamente a respectiva admissibilidade e pertinência, de modo a convencer o sentenciante que, tanto a modalidade probatória pretendida, como o fato a provar (objeto da prova), concorrem, no mesmo paradigma de instrução, para o seu convencimento, sem o que estará à míngua de elemento idôneo e revelador da verdade dos fatos, impedindo-o de atender a norma fundamental do artigo 6º do Código de Processo Civil, reiteradamente citada durante o curso da pesquisa. 

Nesse Standard processual e probatório, teremos uma perspectiva da exteriorização de conduta da boa ou má-fé[21] e é esta a avaliação que nos conforta, e não as intenções. O fluxo do processo sentirá deveras sucessivas interrupções e substancial prejuízo na sua construção. Uma ferramenta com inúmeros vazios em todos os sentidos, pois, segundo o magistério do atemporal ENRICO TULLIO LIEBMAN, “El mismo es derecho instrumental y dinámico, y pertenece al derecho público.”[22]

Conclusão

A boa-fé presente em nosso Código de Processo Civil de 2015, Diploma Legal que entrou em vigor no dia 18 de março do ano de 2016, veio para proporcionar mais segurança jurídica não só nas decisões, mas também na postura daqueles que buscam uma interação transparente e justa entre as partes, isto é, sob a égide da cooperação dos atores processuais, de modo a alcançar o desiderato do proferimento de uma “decisão de mérito justa e efetiva”, segundo a norma fundamental contida no artigo 6º do sobredito Estatuto Processual.

Para tanto, será preciso que a provocação da atividade jurisdicional, amparada no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República, tenha por fundamento a credibilidade da parte referentemente à sua titularidade sobre determinado bem jurídico, credibilidade construída por uma conjugação de fatores que, a seu juízo, acabaram por erigi-la a condição de prejudicado pelo inadimplemento alheio, malgrado o Estado-juiz em sentido contrário possa vir a entender.

Em apertada síntese, o princípio da boa-fé aliado à dinâmica probatória tecnicamente admissível e pertinente, conforme expusemos no decorrer da pesquisa, concorrem sobremaneira para o desenvolvimento do denominado processo justo, terminologia reveladora de um conceito embora indeterminado, porém seguramente construtivo pelos atores processuais, quando, por exemplo, o juiz, ao detectar a presença de irregularidade sanável, determina a chamada do feito à ordem para recolocá-lo sob a égide da legalidade, mormente em se tratando de contraditório e ampla defesa, princípios sabidamente de índole constitucional fundamental, portanto, indene de violação de qualquer natureza. 

Referentemente aos aliados processuais, locução que intitula a pesquisa e concorre para o exercício da litigância com probidade e elegância, lastreada principalmente em contraditório regular e ampla defesa, potencialmente geradores do processo justo, mediante o deferimento e produção de prova admissível e pertinente, destaque-se, conclusivamente, que a relação jurídica instaurada em juízo (rectius, processual), entre outras características, autônoma, complexa, dinâmica e dialética, tem por exclusivo desiderato reanimar e consolidar a paz social, reconhecendo a quem de direito a almejada e valiosa titularidade sobre um bem da vida.  

Referências

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[1] GOMES, Orlando. Obrigações, 2 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense, 1968, p. 107-108.

[2] FARIAS, Cristiano Chaves de & ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral, 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 37.

[3] Idem, p. 36.

[4] Reportam-se os articulistas ao inquérito policial, previsto no artigo 5º do Código de Processo Penal.

[5] Locução que contém caráter inegavelmente pejorativo correspondente à uma conduta em que o agente, subvertendo o princípio da boa-fé, aufere vantagem, não necessariamente econômica, aproveitando-se da impercepção de outrem acerca daquela realidade. 

[6] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. Op. cit., p. 127.

[7] Mesmo entendimento sinalizado por MARTINS-COSTA, Judith. BRANCO, Gerson. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro, São Paulo Saraiva, 2002, p.199.

[8] SANTORO, Emílio. Estado de direito e interpretação: por uma concepção jusrealista e antiformalista do estado de direito, tradução de Maria Carmela Juan Buonfiglio e Giuseppe Tosi, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 102.

[9] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor: de acordo com o novo Código Civil, 2 ed. Rio de Janeiro: Aide, 2004.

[10] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 121.

[11] TELLES, Inocêncio Galvão. Introdução ao estudo do direito, vol. I e II, 11 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 248.

[12] ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Apelação Cível nº 0151933-02.2015.4.02.5109/RJ. Relator Desembargador William Douglas Resinente dos Santos. Julg.: 25.10.2021. Disponível em: https://juris.trf2.jus.br/. Acesso em: 23 jul. 2024.

[13] BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial nº 2034103/SP. Relator Ministro Moura Ribeiro. Terceira Turma. Julg.: 21.08.2023. Pub. DJe: 23.08.2023. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/. Acesso em: 23 jul. 2024.

[14] Certo que não terá lugar a réplica se a dinâmica processual, in casu, contiver revelia.

[15] LACERDA, Galeno. Despacho saneador, 2 ed. Porto Alegre: Fabris, 1985, p. 57.

[16] COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil, tradução de Benedicto Giaccobini, Campinas – São Paulo: RED Livros, 1999, p. 158.

[17] Idem, p. 158.

[18] AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Teoria geral do direito, 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 515, apud MITTERMAYER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal, Campinas: Bookseller, 1996, p. 75.

[19] CASTRO FILHO, Durval Pimenta de. Estudos preliminares de teoria geral do processo civil, 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 236.

[20] Leia-se: elemento revelador da verdade dos fatos.

[21] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. [Et al]. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil, 3 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

[22] LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de derecho procesal civil, traducción de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires: EJEA, 1976, p. 26.

A Reforma Tributária e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.


Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

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Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

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Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

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Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

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A Reforma Tributária e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)

Filipe Janson Lima Milhomem[1] e Fernando de Magalhães Furlan[2]

Resumo:

O presente artigo tem como objetivo geral analisar os impactos da criação do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)[3], inovação trazida pela Reforma Tributária, no federalismo fiscal brasileiro. Entre os objetivos específicos, busca-se apresentar a conformação tributária brasileira pré-reforma; entender a repartição das competências tributárias e sua importância para a persecução do interesse público; analisar as principais mudanças deflagradas pela alteração legislativa advinda da Emenda Constitucional n° 132/2023, com enfoque na constituição do Comitê Gestor do IBS. Além disso, o artigo se propõe a discutir se a transferência, pelos entes federativos, de atribuições decorrentes do poder de tributar, especialmente em relação às competências tributárias, ao referido Comitê, pode representar uma proposta tendente a abolir a forma federativa de Estado. A metodologia empregada é de caráter qualitativo, consistindo em uma pesquisa bibliográfica que abrange a análise de obras acadêmicas, artigos científicos, legislações e documentos oficiais. Concluímos que a atuação do Comitê Gestor do IBS mitiga a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e dos Munícipios, sem que isso, porém, signifique, por si só e a priori, uma afronta ao pacto federativo.

Palavras-chave: Reforma Tributária; Comitê Gestor do IBS; Pacto Federativo.

Abstract:

The general objective of this paper is to analyze the impacts of the creation of the IBS (Levy on Goods and Services) Steering Committee, an innovation brought about by the Tax Reform to the Brazilian fiscal federalism. The specific objectives include presenting the pre-reform Brazilian tax system, understanding the distribution of tax powers and its importance for pursuing the public interest, analyzing the main changes triggered by the legislative amendment brought about by Constitutional Amendment 132/2023, with a focus on the creation of the IBS Steering Committee and discussing whether the transfer by the federal entities of powers deriving from the right to tax to the aforementioned Committee may represent a proposal to abolish the federal form of State. The methodology employed is qualitative in nature, consisting of bibliographical research that includes the analysis of academic works, scientific articles, legislation and official documents. In the end, it was found that the actions of the IBS Steering Committee mitigate the autonomy of the states, the Federal District and the municipalities, but this does not in itself mean an affront to the federative pact.

Keywords: Tax Reform; IBS Management Committee; Federative Pact.

  1. INTRODUÇÃO

Para que um Estado federado exista, é necessário que os estados membros tenham a capacidade de determinar a sua própria estrutura institucional, permitindo a descentralização do poder e a viabilização da persecução do interesse público. Tal noção se estende ao âmbito fiscal, devendo os entes possuírem autonomia tributária, em homenagem ao federalismo fiscal.

Autonomia, segundo leciona Carvalho Filho (2022, p.05), “significa ter a entidade integrante da federação capacidade de auto-organização, autogoverno e autoadministração.” No caso desta última, para o seu exercício pleno, é imprescindível que o ente possa realizar o recolhimento e gerenciamento dos seus próprios recursos, especialmente no que toca a receita advinda dos tributos.

Contudo, a criação do Conselho Federativo, inovação trazida pela Emenda Constitucional n° 132/2023, parece ameaçar a referida autonomia, visto que há uma tendência à concentração da receita tributária, a qual está consubstanciada, por exemplo, na norma constante do inciso III do art. 156-B da proposta, cujos termos apontam que ao Conselho Federativo caberá “efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” (Brasil, 2023, p.1).

Da análise de tal previsão, assim como de outras que integram a proposta, verifica-se que há uma mitigação do poder dos entes federados de administrar os seus próprios recursos, vez que a competência que antes era por eles exercida, é transferida ao Conselho. Esta medida, pode representar um grave abalo para a autonomia dos entes federados e para o equilíbrio da federação, o que atenta diretamente contra a forma federativa de Estado, cláusula pétrea (art. 60, §4°, I, da Constituição Federal).

Ademais, um conselho com competências que são primariamente dos entes federados, enfraquecem os corpos legislativos competentes, os quais são as instâncias apropriadas para a proposição, análise, debate e resolução de assuntos tributários, sob jurisdição estadual e municipal. Tais entes legislativos (assembleias legislativas e câmaras de vereadores) são compostos por representantes eleitos pelo povo, legalmente autorizados a lidar com tais questões, ao contrário de um conselho composto por burocratas selecionados por critérios técnicos e distantes do escrutínio público.

Lado outro, é forçoso reconhecer que o atual sistema tributário nacional é demasiadamente complexo e defasado. Há uma infinidade de normas tributárias e constates disputas entre os entes federados (e.g. “guerra fiscal”). Nesse cenário, um conselho composto por representantes das pessoas políticas, responsável por coordenar a arrecadação, fiscalização, cobrança e distribuição das receitas dos tributos, pode significar um nível mais aprofundado de integração entre as entidades federativas, fortalecendo a busca por um federalismo fiscal cooperativo e equilibrado.

Assim, o presente artigo analisará, por meio de pesquisa bibliográfica, se o modelo proposto poderá acarretar a sujeição dos entes subnacionais ao ente central; situação que resultaria em perda de autonomia, estando, assim, viciada por inconstitucionalidade material à Emenda Constitucional n° 132/2023. Ou se, em sentido oposto, será um passo positivo na mitigação dos imbróglios presentes na atual conjuntura do tributarismo brasileiro, com os consequentes efeitos benéficos, tanto para os sujeitos passivos da relação jurídico-tributária (contribuintes), quanto para o federalismo.

  • BREVE RESTROPECTO HISTÓRICO DOS TRIBUTOS NO BRASIL

Para os fins do presente artigo, é essencial que façamos um análise histórico-evolutiva do Direito Tributário no Brasil, a fim de entendermos a conformação que este ramo teve ao longo dos séculos, e como ganhou os contornos atuais.

Nos primeiros 30 anos posteriores ao descobrimento do Brasil, com os portugueses com os olhos voltados para as Índias, a atividade predominante desenvolvida em solo nacional era a extração de pau-brasil. Sobre tal atividade, conforme Balthazar (2005), já incidia tributo, o qual era chamado de “Quinto do pau-brasil”.

O quinto era cobrado pela Coroa Portuguesa, detentora suprema das riquezas da, então, Ilha de Vera Cruz, de todos os particulares que exploravam a aludida madeira. Por não haver moeda corrente, explica Oliveira et al (2023), o tributo era pago “in natura”, isto é, com o próprio produto.

No período de 1530 a 1550, são editados dois importantes documentos por Portugal, a saber, a Carta de Doação e a Carta Foral. O primeiro, esclarece Balthazar (2005), disciplinava as doações de porções de terras aos representantes do Rei de Portugal na Colônia, os denominados donatários. Tem-se, portanto, a instituição das Capitanias Hereditárias, no total de 14. Já o segundo, tratava, sobretudo, das espécies de tributos a serem pagos pelos colonos e suas respectivas alíquotas.

Em 1560, com a comércio aquecido pela necessidade de mão de obra, e a instituição do pernicioso sistema escravocrata, iniciou-se a cobrança de tributos sobre as operações que envolviam exportação e alienação de escravos, que possuíam o status de res (coisa). Mudança significativa no sistema exposto, aduz Oliveira et al (2023), se deu quando o General Gomes Freire de Andrade, foi nomeado Vice-Rei, momento em que passaram a incidir tributos sobre outras mercadorias produzidas ou extraídas na colônia, tais como: algodão, açúcar, ouro e aguardente.

Neste período, ante a crise do mercado de açúcar, tem-se a inauguração do Ciclo do Ouro, em que milhares de colonos se dirigiam a Minas Gerais em busca de jazidas de metais e pedras preciosas. Sobre essa nova atividade econômica, aclara Mesgravis (2015), recaíam dois tipos principais de cobranças tributárias, quais sejam, o Quinto do ouro e a polêmica “Derrama. O quinto correspondia a 20% do ouro[4] extraído e registrado nas Casa de Fundição, o qual deveria ser pago para a Coroa. A Derrama, por sua vez, era uma espécie de constrição patrimonial forçada, motivada pelo inadimplemento do quinto devido.

Tal constrição, passou a ser usada massivamente durante a decadência da economia mineradora[5], ocasião em os colonos, aponta Balthazar (2005), acumularam diversas dívidas com o governo, vez que não tinham mais condições de pagar os tributos. Assim, a pesada carga tributária provocou inúmeros conflitos entre os colonos e Portugal, sendo a Inconfidência Mineira o mais conhecido deles.

A vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, que fugia da sanha imperialista de Napoleão, modificou profundamente a estrutura e o governo do Brasil da época. Com a abertura dos portos marítimos às nações amigas, Balthazar (2005) instrui que sobre os produtos importados passaram a incidir tributos cuja alíquota padrão era de 24% para os países aliados, com exceção da Inglaterra, cuja alíquota era de 15% e de Portugal, que era de 16%. Fato curioso é que, nessa época, já havia uma espécie de imunidade tributária para os livros, podendo ser essa a origem da imunidade de imprensa (livros, jornais, periódicos e papel), presente na Constituição de 1988.

Ademais, foram instituídos tributos sobre os prédios urbanos, no valor de 10% sobre o valor de lucro dos prédios, bem como nas transmissões imobiliárias e causa mortis. Em virtude da precária administração tributária, Oliveira et al (2023) afirma que era comum a ocorrência do fenômeno da bitributação, isto é, quando há incidência tributária mais de uma vez sobre o mesmo fato gerador.

Diante disso, a fim de dar mais eficiência ao sistema de cobranças e fiscalização tributária, destaca Oliveira et al (2023), são criados os Conselho da Fazenda, o Conselho Ultramarino e a Alfândega. A partir de tais estruturas, aumentou-se o escrutínio dos tributos devidos e sua arrecadação.

Em que pese o aumento das hipóteses de incidência e o fortalecimento do Fisco, leciona Linck (2009, p.89) que “a doutrina entende que esses tributos cobrados na época do Brasil Colonial não faziam parte de um conjunto harmônico de normas, de princípios, e de institutos, devidamente sistematizados, capazes e caracterizar um Direito Tributário brasileiro”.

Após o retorno da família real à Portugal e a Declaração da Independência, em 1822, com o país independente, assinala Oliveira et al (2023), surge a necessidade de erigir uma estrutura administrativa firme, funcional e efetiva, especialmente na seara tributária. Nesse diapasão, a Constituição de 1824, também conhecida como “Constituição da Mandioca[6], previa em seu art. 36 que era da Câmara o dever de criar tributos, além disso aduzia o art. 175, inciso XV, que “ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção dos seus deveres” (Brasil, 1824, p.1).

Nesse período, Dom Pedro I implementa uma minirreforma fiscal. Dentre as mudanças, conforme Ferreira (2012), houve a eliminação de certos tributos, como o Quinto do ouro (Decreto de 30 de agosto de 1828), e concessão de isenção a outros, como o de jornais e revistas. Além disso, minorou-se a alíquota sobre produtos como o charque, o sal, o trigo e o algodão.

Com o intuito de descentralizar o controle financeiro, Oliveira et al (2023) afirma que foram instituídas as chamadas tesourarias provinciais, órgãos incumbidos de gerir e estruturar a atividade financeira das regiões. Em virtude disso, as províncias puderam estabelecer os seus tributos e destinar o produto de sua arrecadação, como bem lhes aprouvesse.

Em 1834, por meio do Ato Adicional foram criadas as chamadas “Rendas Gerais”, “que definiu diversos tributos sobre diversos serviços e produtos, como: importação, exportação, compra de embarcações estrangeiras, estabelecimentos comerciais, mineração de ouro, entre outros” (Oliveira et al, 2023, p.1). 

A Constituição de 1891, promulgada após a Proclamação da República, também conhecida como Golpe Republicano, foi um importante passo na conformação do sistema tributário que conhecemos hoje. Com a adoção da forma federativa de Estado, leciona Linck (2009), os entes federados passaram a ter autonomia administrativa, política e financeira, passando a existir a possibilidade de a União e os estados instituírem e cobrarem os seus próprios tributos.

É sobre o manto daquela Magna Carta que surge o Imposto de Renda. Instituído pela Lei Orçamentária 4.625, seu art. 31 versava que “Fica instituído o imposto geral sobre a renda, que será devido, anualmente, por toda a pessoa física ou jurídica, residente no território do país, e incidirá, em cada caso, sobre o conjunto líquido dos rendimentos de qualquer origem” (Brasil, 1922, p.1).

Inaugurada a Era Vargas, promulga-se a Constituição de 1934. Essa, consoante Oliveira et al (2023), trouxe a vedação à bitributação de forma expressa e delimitou os tributos de competência da União e dos estados. Além disso, conferiu aos municípios competência tributária e criou as contribuições de melhoria.

As inovações daquela Lei Maior pavimentaram o caminho para a sistematização do Direito Tributário. Balthazar (2005, p.90) advoga que “se ainda não foi o texto que sistematizou a legislação tributária, firmou princípios antes ausentes das Cartas anteriores ou presentes de forma implícita ou ilimitada, como é o caso do princípio da imunidade recíproca“.

Sob o Estado Novo, fase ditatorial da Era Vargas, foi outorgada a Constituição de 1937. Salienta Balthazar (2005), que essa não albergou mudanças significativas, apenas pontuais, como, por exemplo, o imposto sobre indústria e profissões, anteriormente de competência privativa dos estados, foi transferida para os municípios (metade da arrecadação desse imposto já lhes pertencia). Superada a Ditadura Vargas, em 1946, mais uma Carta Magna é promulgada e que, quanto à matéria tributária, possibilitou:

[…] a cobrança de tributos extraordinários, para além daqueles definidos na Constituição em situações específicas. Acrescentou o princípio de capacidade contributiva, isto é, definiu como regra a necessidade de a União, Estados e Município considerarem quanto cada cidadão pode contribuir para uma cobrança mais justa de tributos e instituiu o princípio da anualidade, no qual as rendas e despesas eram avaliadas com a frequência anual (Oliveira et al, 2023, p.1).

 Primando pela clareza, a Lei Maior de 1946 discriminou as competências de cada ente federado, prevendo, a título de ilustração, em seu art. 15, que competia à União decretar impostos sobre a (I) importação de mercadorias de procedência estrangeira; (II) consumo de mercadorias; (III) produção, comércio, distribuição e consumo, e bem assim importação e exportação de lubrificantes e de combustíveis líquidos ou gasosos de qualquer origem ou natureza, estendendo-se esse regime, no que for aplicável, aos minerais do País e à energia elétrica; (IV) renda e proventos de qualquer natureza; (V) transferência de fundos para o exterior; (VI) negócios de sua economia, atos e instrumentos regulados por lei federal; e (VII)  propriedade territorial rural, (Brasil, 1946).

No que diz respeito aos impostos estaduais, o art. 19 definiu que os impostos que recaíam sobre a (I) transmissão de propriedade causa mortis; (II) vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive industriais, isenta, porém, a primeira operação do pequeno produtor; (III) exportação de mercadorias de sua produção para o estrangeiro, até o máximo de 5% (cinco por cento) ad valorem, vedados quaisquer adicionais; (IV) os atos regulados por lei estadual, os do serviço de sua Justiça e os negócios de sua economia, competiam aos estados (Brasil, 1946).

Desse modo, a Constituição, defende Linck (2009, p.91), “estabeleceu com maior clareza os repasses da União e dos estados das rendas obtidas através da tributação aos municípios e outorgou ao Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas, a fiscalização da administração financeira.”

Em 1964, após o golpe de Estado, instaura-se no Brasil a ferrenha Ditadura Militar. Com o fim de atender a uma política econômica arrojada, em 1965, é iniciada uma reforma tributária. Essa reforma, em conjunto com outras medidas adotadas, proporcionou o chamado Milagre Econômico, vez que estabeleceu:

[…] normas que determinavam a aquisição de recursos adicionais não-inflacionários para cobrir o déficit da União e que buscavam o equilíbrio das finanças com a economia mundial. Houve também a edição de leis que estabeleciam meios que facilitassem e que aperfeiçoassem a arrecadação fiscal, como, por exemplo, a Lei 4.506/64 que alterou a legislação do imposto sobre a renda; ainda, a criação de uma comissão especial formada por juristas e por técnicos do Ministério da Fazenda com a finalidade de elaborar um anteprojeto de emenda constitucional (Linck, 2009, p.92).

Nesse cenário, é aprovada a Emenda à Constituição n° 18/65, que, finalmente, deu os contornos normativos finais para o sistema tributário nacional. Essa, foi recepcionada pela Constituição de 1967, que passava a ter a previsão expressa de três espécies de tributos, a saber, impostos, taxas e contribuições de melhoria. Antes da Emenda, leciona Scaff (2014, p.1):

[…] a divisão da competência tributária se pautava por um critério meramente político, sem nenhuma correspondência econômica. A legislação de estados e municípios não possuía nenhum vínculo com as incidências federais, se constituindo em sistemas autônomos. Estados e municípios criavam incidências amparados no que atualmente se chama de “competência residual”, que antes era ampla em todos os entes federados e tornou-se centrada na União, onde remanesce até os dias atuais (embora hoje a amplitude da arrecadação federal ocorra no âmbito das contribuições, e não no dos impostos).

Diante disso, Linck (2009, p.92) assevera que tal emenda “surgiu para terminar de desenhar o sistema tributário brasileiro, uma vez que organizou de forma ordenada a cobrança dos tributos, ao limitar as competências e ao estabelecer os princípios que deveriam ser seguidos pelas administrações”.

No ano seguinte à publicação da referida emenda, foi instituído o Código Tributário Nacional (CTN), estabelecendo assim uma separação definitiva entre o Direito Tributário e o Direito Financeiro. A tributação, pelo espírito do CTN, para Linck (2009), deixou de ser apenas um meio para a manutenção do Estado, passando a assumir uma função mais ampla de política econômica.

O CTN apresentou ainda, em seu art. 3°, o conceito de tributo que é “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (Brasil, 1966, p.1).

Vale pontuar que, apesar da criação de um sistema tributário nacional, fundamentado em princípios e normas de competência, estabelecidos pela Constituição Federal, os anos subsequentes à sua promulgação foram marcados por uma fase obscura na história do Brasil. A Carta Magna e as legislações ordinárias, segundo Linck (2009), possuíam pouco valor diante dos Atos Institucionais[7], que emprestavam um verniz de legitimidade para o Estado autoritário e repressivo que o Governo Militar erigiu.

Contudo, ares democráticos passaram a soprar no Brasil. Em 1985 se encerra o Regime Ditatorial, sendo promulgada a atual Constituição Federal de 1988. Estribada em valores como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, a Lei Maior, defende Linck (2009), passa a privilegiar a isonomia tributária e a capacidade contributiva dos sujeitos passivos.

Nessa toada, para Linck (2009), com o advento da “Constituição Cidadã” (1988), o tributo perde seu caráter meramente arrecadatório, destinado apenas à preservação e funcionamento das pesadas engrenagens do Estado. Passa, então, a ser um valioso meio de garantia e patrocínio das políticas públicas e outras ações e diretrizes voltadas para a efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Assim, o estudo do Direito Tributário passou a ter como foco a busca pela harmonia entre o poder de tributar do Estado e os direitos fundamentais do contribuinte.

Ademais, buscando se adequar aos princípios, direitos e garantias constitucionais, o conceito de tributo é ampliado, passando a ser entendido como:

[…] uma fonte de recursos financeiros destinados ao custeio de despesas públicas gerais (art. 167, IV) ou especiais (arts. 149, 149-A e 195); (b) é instituído e cobrado pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (arts. 148, 149, 149-A, 153-156); (c) no exercício de um poder de tributar limitado (Seção II); (d) exigido de pessoas jurídicas ou físicas enquanto sujeitos passivos de relações obrigacionais (art. 150, § 7º); (e) em função de “fatos geradores” definidos em lei (arts. 146, III, “a”, e 150, III, “a”), que, por sua vez, podem ser atos administrativos ou dele decorrentes (art. 146, II e III), direitos ou negócios jurídicos de direito privado sem vinculação com uma ação estatal (arts. 153-156), tais como a propriedade de bens móveis (art. 155, III) e imóveis (arts. 153, VI, e 156, I), a importação de produtos (art. 153, I), operações de crédito, câmbio e seguro (art. 153, V), a transmissão causa mortis e doação de bens ou direitos (art. 155, I), a circulação de mercadorias (art. 155, II), a prestação de serviços (art. 156, III), entre outros mais (Sehn, p. 44, 2024).

No entanto, nem tudo são flores. Há ainda muitas fragilidades e desigualdades no sistema tributário vigente, especialmente no que diz respeito à efetivação da capacidade contributiva. A maior carga fiscal, advoga Balthazar (2005), está encerrada nos impostos indiretos, isto é, aqueles incidentes sobre o consumo. Em razão disso, uma pessoa de baixa renda tem, proporcionalmente, maior comprometimento de sua renda do que uma pessoa que dispõe de alto poder aquisitivo, o que contribui para o aprofundamento das desigualdades sociais.

  • COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

Um Estado federado é, por definição, um conjunto de entes livres. Tais entes possuem parcelas de poder, cuja distribuição é conferida, em regra, por lei. Uma das ramificações desse poder, ensina Carvalho Filho (2023), é a autonomia, caracterizada pela autoadministração, autogoverno e auto-organização.

Um fator de especial importância para a plenitude e manutenção da autonomia do ente federado, é a sua capacidade financeira, isto é, a disponibilidade de recursos capazes de viabilizar a consecução dos objetivos sociais, políticos e econômicos da entidade estatal. No cenário brasileiro, a arrecadação tributária é grande fonte de recursos públicos.  A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, em prestígio ao federalismo fiscal[8], possuem a capacidade de instituir e cobrar os seus próprios tributos, a fim de arrecadarem haveres para financiar o interesse público (Sehn, 2024).

Desse modo, para a existência de um federalismo saudável e equilibrado, é necessário que haja regras claras no que concerne à delimitação das competências tributárias e da repartição de receitas provenientes dos tributos. Competência tributária, leciona Mazza (2024), é a aptidão para criar, modificar, reduzir e extinguir tributos, por meio de lei, em observância ao princípio da legalidade. Como se depreende do próprio conceito, pode-se afirmar que a aludida competência é uma espécie de competência legislativa, cabendo ser exercida pelo Parlamento.

Por ser um tipo de competência legislativa, explica Mazza (2024), é a Constituição Federal que define as competências tributárias, isto é, ela que atribuirá ao ente os poderes inerentes à sua competência. Tendo isso em vista, a atual Carta Magna conferiu aos entes federados, ou seja, às pessoas jurídicas de direito público integrantes da Administração direta (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), a titularidade da competência tributária, a qual é indelegável. Desse modo, podemos asseverar que a Lei Maior não cria tributos, apenas atribui poder para que a entidade federativa competente o faça.

Ademais, cabe fazermos uma relevante distinção entre competência tributária e capacidade tributária ativa. A primeira, de viés legislativo e abstrato, leciona Mazza (2024), diz respeito à habilitação para criar tributos. Já, a segunda, de caráter administrativo e concreto, se refere ao exercício da aptidão para cobrar e arrecadar tributos, o que não deve ser feito, necessariamente, pela pessoa jurídica que o institui.

 Assim, de acordo Sabbag (2021), um ente pode criar tributo, mas outro o cobrar, sem que isso implique em delegação ou usurpação de competência. A esse fenômeno, damos o nome de parafiscalidade (art. 7°, do CTN)[9].

Faz-se, ainda, pertinente esclarecer que a Magna Carta, conforme expõe Mazza (2024), se valeu de diferentes métodos para repartir competências tributárias entre a União e os entes subnacionais, trazendo em seu bojo 5 (cinco) espécies de competência, a saber, competência privativa, comum, cumulativa, especial e residual.

Na privativa, afirma Sabbag (2021), determinado imposto é atribuído a um ente tributante, sendo que a Constituição prevê quais são os impostos e a quem lhes cabe. Assim, o Imposto sobre a Circulação de Bens e Serviços (ICMS) é conferido aos estados e ao Distrito Federal (no exercício de sua competência estadual) e o Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN) é atribuído aos municípios e ao Distrito Federal (no exercício de sua competência municipal).

Por sua vez, segundo Mazza (2024), a competência comum é concedida concomitantemente a todas as pessoas políticas, podendo ser usada quando essas realizarem o fato gerador[10] do tributo, o qual é vinculado a uma prestação do ente federativo (por exemplo, taxas devidas em razão do exercício do poder de polícia). Lado outro, expõe Sehn (2024), a competência cumulativa (art. 147, da CF) é aquela que habilita uma entidade federativa a cobrar e fiscalizar os seus tributos, além de tributos cuja competência caberia, originalmente, a outro ente federado. É o que ocorre com a União em relação aos territórios federais, por exemplo. A União passa a acumular a competência tributária estadual e, caso o território não seja divido municípios, também a competência tributária municipal. A título de exemplo e melhor visualização, tínhamos a competência cumulativa da União sobre o então território federal de Fernando de Noronha (hoje distrito estadual de Pernambuco), que, dada a exiguidade de seu território, não estava (e ainda não está) dividido em municípios.

Já a competência especial, aduz Sabbag (2021, p.50), pode ser entendida como sendo “o poder de instituir empréstimos compulsórios (art. 148 da CF) e contribuições especiais (art. 149 da CF)”.

 É válido mencionar, aclara Sabbag (2021), que tal tributo só pode ser usado em situações fáticas específicas, quais sejam: (I) calamidade pública, (II) guerra externa ou sua iminência e (III) investimento público de caráter urgente e relevante interesse nacional (art. 148, I e II, da CF c/c art. 15, I e II, do CTN).

Por fim, a competência residual (art. 154, I, e art. 195, § 4.º) diz respeito à possiblidade de a União instituir impostos que não estejam contemplados na Lei Maior, assim como outras fontes de contribuição para o financiamento da Seguridade Social[11], por meio de lei complementar. Ao tratar do assunto, Sabbag (2021, p.50) ensina que:

[…] No que tange aos impostos, a competência residual indica que o imposto novo deverá ser instituído, por lei complementar, pela União, obedecendo-se a duas limitações: (I) respeito ao princípio da não cumulatividade; e (II) proibição de coincidência entre o seu fato gerador ou a sua base de cálculo com o fato gerador ou a base de cálculo de outros impostos;

[…] Quanto às contribuições para a seguridade social, o raciocínio é parcialmente idêntico, tendo em vista o atrelamento textual do art. 195, § 4.º, da CF ao art. 154, I, da CF. Nessa medida, as contribuições residuais para a seguridade social devem respeitar os seguintes parâmetros: (I) instituição, por lei complementar, pela União; (II) respeito ao princípio da não cumulatividade; (III) proibição de coincidência entre o seu fato gerador ou a sua base de cálculo com o fato gerador ou a base de cálculo de outras contribuições.

Do exposto, não é temerário declarar que a competência tributária é um dos mais significativos instrumentos de descentralização política e financeira, que permite que cada um dos entes federados, em suas respectivas esferas de atuação, busquem a implementação do interesse público. Neste contexto, a distribuição de competências tributárias é uma afirmação da Federação brasileira. A despeito disso, o modelo vigente vem sofrendo críticas. Conforme entendem Marcus Abraham e João Ricardo Catarino (2018), o federalismo fiscal à brasileira é assimétrico, vez que a União, em comparação com as outras pessoas jurídicas da administração direta, concentra um número consideravelmente maior de competências, o que a coloca em um patamar de superioridade[12].

Assim, mostrava-se imperioso mudar a conformação tributária vigente, a fim de resolver mazelas como a da concentração de competências pela União, já aludida, assim como outras tão prementes quanto. Em vista disso e com o intuito de corrigir distorções e perniciosidades do sistema tributário nacional, foi proposta e promulgada a Emenda à Constituição n° 132/2023, a qual estudaremos mais detidamente a seguir.

  •  EMENDA CONSTITUCIONAL n°132/2023 E AS MAZELAS DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

O Sistema Tributário Brasileiro é, sem dúvida, um dos mais ultrapassados e problemáticos do mundo. A maioria dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, de acordo com Eduardo Maneira (2022), quanto à tributação do consumo, adotou, há décadas, o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), que possui uma alíquota padrão. No Brasil, há 5 (cinco) impostos que incidem sobre o consumo, com diferentes entes competentes para cobrá-los. Tal fato faz com que tenhamos um desenho tributário complexo e confuso, em sentido totalmente antagônico ao de outras nações mais desenvolvidas, o que nos coloca em uma posição de atraso e isolamento.

São inúmeros os entraves e distorções gerados pelo atual modelo tributário brasileiro. Porém, a fim de não sermos exaustivos, vamos nos ater aos pontos mais sensíveis, de acordo com Brasil (2023), quais sejam: base de cálculo fragmentada, cumulatividade, complexidade, guerra fiscal, opacidade e litigância exacerbada.

De início, é relevante pontuar que a incidência de alguns impostos sobre o consumo é determinada pela identificação de seus respectivos fatos geradores (fatos tributários imponíveis), isto é, a circulação de uma mercadoria ou a prestação de um serviço. Essa distinção, segundo Brasil (2023), nem sempre é simples, especialmente em um mercado cada vez mais permeado por produtos digitais, os quais, muitas vezes, ficam em uma zona cinzenta. Isso acaba por gerar insegurança para o contribuinte e conflitos de competência entre os entes tributantes.

 Outro embaraço, para Brasil (2023), é a cumulatividade, que impede o creditamento do sujeito passivo em relação aos tributos já recolhidos e assoberba a produção nacional, deixando o país em desvantagem competitiva em comparação com outros países. Tal cumulatividade, se dá tanto em razão dos “tributos cumulativos, como o ISS e a PIS/COFINS, no regime cumulativo; como também em razão das inúmeras restrições ao creditamento nos tributos não cumulativos, como o ICMS, a PIS/COFINS e o IPI não cumulativos” (Brasil, 2023, p.03).

Em continuação, temos a elevada complexidade do sistema tributário. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (2021)[13], desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, já foram editadas 466 mil normas que versam sobre matéria tributária, o que equivale a 37 normas tributárias por dia útil. Além disso, conforme estimativa do mesmo instituto, no Brasil, as empresas desembolsam, por ano, cerca de R$ 181 bilhões de reais, com o intuito de acompanharem as constantes mudanças legislativas. Desse modo, fica claro que esse emaranhado de normas contribui para a defasagem e evasão de investimentos no mercado interno e para desestimular a iniciativa privada.

Além disso, uma pesquisa realizada pela Doing Business (2021) com a PWC[14], revelou que no Brasil gasta-se, em média, 1.500 horas nos cálculos e adimplemento de tributos, um número que é consideravelmente maior do que o de outros países, conforme a figura 1:

Figura 1 – Ranking de complexidade tributária geral

             Fonte: IBS sistemas (2020) apud Doing Business Subnacional Brasil 2021

Acrescente-se a esse cenário, já demasiadamente caótico, a guerra fiscal travada entre as entidades federativas, sobretudo os estados. Muitos dos impostos são pagos no estado de origem (por exemplo, o Imposto sobre a Circulação de Bens e Serviços – ICMS). Em virtude disso, sustenta Brasil (2023) que, com o objetivo de atrair empresas para os seus territórios, as unidades federativas travam uma batalha ferrenha, se valendo, para vencê-la, de armas como a concessão de benefícios tributários, especialmente. Em decorrência disso, temos o estabelecimento de um entrave que só serve para aumentar as desigualdades regionais e desmantelar a harmonia federativa.

Outrossim, no que tange à opacidade do sistema, pode-se afirmar que:

[…] atualmente é praticamente impossível se saber a carga tributária efetivamente cobrada, dada a profusão de alíquotas, reduções de base de cálculo, benefícios fiscais e regimes especiais de tributação, além de haver incidência de tributos sobre tributos, cálculo por dentro, restrições à não cumulatividade e existência de créditos presumidos na cadeia (Brasil, 2023, p. 03).

Assim sendo, ante a ausência de transparência, mostra-se patente o predomínio da insegurança jurídica para o contribuinte. Por fim, o elevado grau de litigiosidade é outro fruto amargo que deriva do caos fiscal. A alta litigância fica demonstrada, de acordo o relatório “Justiça em Números”, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (2021)[15], no exorbitante número de execuções fiscais em curso nos tribunais nacionais[16], as quais já somavam 28,8 milhões, representando uma taxa de 89,7% de congestionamento. É o que se pode ver na representação gráfica retratada na figura 2:

Figura 2 – Série histórica do impacto da execução fiscal na taxa de congestionamento

  Fonte: Conselho Nacional de Justiça (2021)

Considerando esse quadro alarmante, em 2019, pontua Eduardo Maneira (2022), foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição n° 45, a qual, após longos debates e alterações nas duas Casas Legislativas, foi promulgada em 20/12/2023, redundando na Emenda Constitucional nº132/2023 (Reforma Tributária). Com foco na simplificação, na segurança jurídica, na alteração do modo de repartição de receitas e na eliminação da regressividade tributária, a Reforma Tributária buscou eliminar ou, ao menos, minorar as dificuldades supra referidas.

A Reforma tributária trouxe diversas mudanças para o sistema tributário nacional, sendo a criação do IVA dual, indubitavelmente, a mais significativa delas. O IVA, Imposto sobre Valor Agregado, representa a conjugação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e com o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), por isso a terminologia dual. E terá alíquota estimada em 27,27% (Mello, 2024).

A CBS, de competência da União, foi instituída para substituir o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), principais contribuições incidentes sobre o consumo (Spina, 2024). O IBS, por sua vez, foi criado em substituição ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias (ICMS), de competência dos estados e do Distrito Federal, e ao Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN), o qual é de competência dos municípios e do Distrito Federal (no exercício de sua atribuição municipal), segundo se vê na figura 3:

Figura 3– Nova configuração tributária  

Fonte: Agência Senado, 2023.

Para os fins do presente artigo, passaremos a destrinchar os aspectos relativos ao IBS.

Após a promulgação da Emenda Constitucional n°132, a Constituição Federal, em seu artigo 156-A, passou a prever a criação do IBS, uma espécie de imposto com gestão compartilhada entre os estados, o Distrito Federal e os municípios, e que será regulamentado por meio de lei complementar nacional (Brasil, 1988). Tal imposto tem por preceito a neutralidade, que nada mais é do que a tentativa de repelir distorções relativas ao consumo, e a padronização em todo o Brasil, o que produz simplificação e segurança jurídica, tanto para entes tributantes quanto para os contribuintes (Brasil, 2024).

Com a finalidade de atingir esses objetivos, o novo imposto em comento (i) terá tratamento legislativo uniforme em todo território nacional; (ii) não admitirá exceções relativas a benefícios e incentivos fiscais, salvo as previstas na Carta Magna; (iii) terá suas alíquotas-referência fixadas pelo Senado Federal e as alíquotas específicas definidas por cada ente competente, sendo que tais alíquotas devem ser as mesmas para todas as operações com bens materiais, imateriais, direitos ou serviços, com exceção das hipóteses previstas na Constituição[17] (Brasil, 1988).

Ademais, a instituição do IBS pretende acabar com a perniciosa dinâmica do imposto em cascata, em que o imposto incide em várias etapas do processo de circulação de mercadorias e impede o creditamento do contribuinte, deixando a operação complexa e custosa. Por isso, o IBS será (i) não cumulativo, isto é, haverá a compensação do imposto devido com o total arrecadado em todas as operações; (ii) não integrará a sua própria base de cálculo; (iii) será exigido pelo valor da soma das alíquotas do estado e do município final do negócio jurídico[18] (Brasil, 1988).

No que concerne à estrutura legislativa do IBS, a Lei Maior definiu que (i) é a própria Constituição que atribui competência para a regulamentação do IBS; (ii) tal regulamentação se dará por lei complementar que, no momento, está em fase de tramitação na casa revisora (Senado Federal), sob o nome Projeto de Lei Complementar n° 68/2024; (si) terá alíquota-referência estabelecida pelo Senado Federal; (iv) lei específica, editada pelos entes subnacionais, quais sejam, estados, Distrito Federal, e municípios, fixará alíquotas incidentes sobre as operações onerosas com bens ou serviços deflagradas nas zonas de sua competência, desde que sejam o destino (Brasil, 1988).

Em relação às imunidades dos IBS, isto é, situações em que não incidirá o imposto, mesmo que implementado o seu fato gerador, definiu o Projeto de Lei Complementar n° 68/2024, que são imunes (i) as exportações de bens e serviços para o estrangeiro; (ii) as transações deflagradas pelos entes políticos; (iii) as operações onerosas realizadas por entidades religiosas e templos de qualquer crença, incluindo suas organizações de assistência e beneficência; (iv) as operações desenvolvidas por partidos políticos, abrangendo também suas fundações, entidades sindicais representativas dos trabalhadores e instituições privadas sem fins lucrativos dedicadas à educação e assistência social; (v) as operações com livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão; (vi) prestações de serviços de comunicação, nas bandas de radiofrequência, nas modalidades de radiodifusão sonora e televisiva, destinadas à recepção livre e gratuita pelo público, dentre outras (Brasil, 2024).

Da análise das diretrizes, pode-se notar que, com a união das competências, somada à troca da incidência do tributo da origem para o destino, haverá uma maior uniformidade no tratamento do imposto pelos entes federados, o que, potencialmente, poderá conter as “guerras fiscais” entre eles, promovendo uma distribuição de renda mais equilibrada, além de mitigar as desigualdades regionais e aumentar a competitividade na iniciativa privada. Lado outro, conforme ensina Florêncio (2021, p. 116), a eliminação da competência exclusiva, pode extenuar “a possibilidade de os entes federados concederem benefícios fiscais, uma vez que estes não mais detêm a competência legislativa para outorga de isenções, nem a capacidade tributária ativa exclusiva para exigência do crédito tributário”.

Ao lado da uniformização, com o advento do IBS, temos também a simplificação do atual modelo praticado, vez que haverá maior clareza sobre a natureza da operação, a incidência do fato gerador e a atribuição de cobrança e arrecadação do ente, abolindo outro problema crônico do sistema tributário nacional que é o conflito de competências. Nesse sentido, ensina Albano (2024, p. 75) que:

[…] o IBS promete encerrar discussões outrora travadas a título de   conflito   de   competência decorrentes da dubiedade da natureza jurídica das operações sob   a   incidência   do   ISS, ICMS   ou   que   se encontravam no limbo. Situação esta que enseja   não   apenas   insegurança   jurídica   ao sujeito passivo   da   relação   tributária, como também aumenta exponencialmente o “custo Brasil”.

Vale mencionar que a Reforma Tributária estabeleceu um cronograma de substituição para a implementação dos novos tributos e a extinção dos antigos, o qual terá início em 2026. Ao longo deste período, o sistema tributário nacional se encontrará imerso em um regime de transição, no qual os novos tributos serão arrecadados simultaneamente aos antigos, os quais estão destinados ao aniquilamento gradual. A substituição total dos tributos mencionados se dará, somente, ao término do prazo previamente estipulado, qual seja, 2033 (Brasil, 2024). Vejamos na figura 4, abaixo, o esboço das modificações:

Figura 4– Transição Fiscal  

Fonte: Agência Câmara dos Deputados, 2024.

Por fim, a administração do IBS ficará a cargo do chamado Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, o qual foi introduzido no Sistema Tributário Nacional pela Reforma Tributária e cuja atuação será regida por lei complementar, atualmente em tramitação no Congresso Nacional (Brasil, 2023).

  • COMITÊ GESTOR DO IBS

O Comitê Gestor do Imposto Sobre Bens e Serviços (CG-IBS)[19], ainda em fase de apreciação e deliberação legislativa, no âmbito do Projeto de Lei Complementar n° 108/2024, possuirá, conforme o art. 156, §1°, da CF, natureza jurídica de “entidade pública sob regime especial[20], gozando de autonomia técnica, administrativa, orçamentária e financeira”. É por meio dele que os entes federados exercerão as competências administrativas relacionadas ao IBS, a saber, “I-editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto; II-arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre Estados, Distrito Federal e Municípios; III-decidir contencioso administrativo” (Brasil, 1988).

O desenho constitucional e institucional do Comitê buscou privilegiar a integração dos entes federativos e uma representatividade paritária, de modo que a entidade pública será composta por dois grupos, cada um com 27 membros, sendo um responsável por defender os interesses de cada estado e do Distrito Federal, e outro por representar o agrupamento de municípios e o Distrito Federal. Neste último caso, 14 (quatorze) dos 27 (vinte e sete) membros serão eleitos, por meio de votos com peso igual de cada Município, já os outros 13 (treze) serão escolhidos levando em consideração os votos de cada Município, ponderados pela população correspondente (Brasil, 1988).

Ademais, no tocante às deliberações no CG-IBS, temos que estas serão aprovadas, atendendo a um critério cumulativo, pela maioria absoluta dos representantes, isto é, 8 (oito membros) e “de representantes dos estados e do Distrito Federal que correspondam a mais de 50% (cinquenta por cento) da população do País” (Brasil, 1988, seção V-A, art. 156-B, §4°, inciso I, al “b”). Já em relação ao bloco municipal, faz-se necessária a maioria absoluta de seus membros participantes do Comitê para aprovação das resoluções. Ao comentar a estrutura de representação e os critérios de voto adotados, Albano (2024, p. 76) observa que:

O critério meramente quantitativo é aliado ao qualitativo de representação populacional em nível nacional. A exigência qualitativa cria um obstáculo à possibilidade de regionalização das   decisões.   É   dizer:   as   regiões   norte   e nordeste que representam 16 dos 27 componentes do bloco estadual de tal forma que, em conjunto, asseguraria a maioria em quórum, não representam o quantitativo populacional necessário à aprovação

A instauração do CG-IBS será, em um primeiro momento, custeada pela União no período de 2025 a 2028. Após o referido período, com a efetiva operacionalização do IBS, o financiamento da entidade será feito por meio de uma parcela do produto da arrecadação do imposto. Cabe mencionar que os valores despendidos pela União serão ressarcidos (Brasil, 2024).

Do ponto de vista de comando organizacional, é válido aduzir que o comitê será presidido por alguém com notório saber no campo da administração pública, sendo nomeado após deliberação e aprovação do Senado Federal, por sua maioria absoluta. Além disso, o presidente do comitê gestor, à semelhança dos ministros de Estado, poderá ser convocado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, assim como por suas respectivas comissões, para apresentar informações, sob sanção de incorrer em crime de responsabilidade (Brasil, 1988).

Por sua vez, o controle externo, ou seja, a fiscalização contábil, operacional, e patrimonial do CG-IBS, segundo art. 40 do PLP n° 108/24, ficará a cargo dos tribunais de contas estaduais ou municipais (Brasil, 2024).

É possível afirmar que algumas alterações deflagradas pela Reforma Tributária indicam a possibilidade de desmantelo da organização federativa do Estado, o que significaria malferir cláusula pétrea (art. 60, inciso IV, da CF). Nesse sentido, a primeira problemática que pode ser aventada, está relacionada à criação de um imposto, como é o caso do IBS, de gestão compartilhada, disciplinado por lei complementar federal (Brasil, 1988). Os impostos substituídos pelo IBS, quais sejam, ICMS e ISS, eram instituídos e tinham as suas alíquotas definidas, por lei, pelo ente competente para editá-la, no exercício de sua competência exclusiva, a qual é conferida pela Lei Maior.

Agora, é uma lei complementar, de caráter nacional, que ditará as regras que os entes federados deverão observar no tratamento do novo imposto. Destarte, aclara Albano (2024, p. 81) que “o ente não mais   terá   autonomia   para   definir   os elementos básicos do tributo, tais como o seu fato gerador, a sua base de cálculo, o sujeito passivo tributário e as penalidades. Diante disso, é forçoso reconhecer o incremento do poder federal e o consequente achatamento da autonomia dos entes federativos”.

Por outro lado, não se pode ignorar o fato de que uma harmonização legislativa teria o condão de arrefecer as guerras fiscais e mitigar as desigualdades regionais. A possibilidade de edições de leis autônomas pelos estados e municípios, muitas vezes, produz um cenário de insegurança jurídica e abala o equilíbrio federativo, vez que cada ente almeja atrair para si a receita advinda dos tributos. Assim, ensina Merheb (2024, p.1) que “[…] o prejuízo não é à autonomia e, sim, à predação fiscal, que expande distorções alocativas e incentiva a rivalidade”.

Outro ponto nevrálgico, e que merece atenção, diz respeito às competências do CG-IBS. Nota-se que a entidade passará a exercer as competências tributárias que atualmente cabem aos entes subnacionais. Atribuições como arrecadar o imposto, efetuar compensações, conceder benefícios, distribuir a receita da arrecadação, e decidir o contencioso administrativo não serão mais realizadas pelos próprios entes, mas sim pelo comitê gestor, o que pode produzir uma assimetria federativa (Brasil, 1988).

Dessa maneira, a atuação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios se restringirá a definir as alíquotas específicas do imposto quando forem destino da circulação de serviços ou mercadorias e a votarem no colegiado do CG-IBS, cujas regras de deliberação e aprovação foram retromencionadas. Acerca disso, Martins (2023, p.1) entende que:

A criação de uma entidade com competências próprias de ente federativo, esvazia a competência dos órgãos legislativos competentes, instâncias apropriadas para proposição, discussão, deliberação e decisão acerca de matérias tributárias de competência de estados e municípios. Órgãos legislativos estes compostos por representantes eleitos pelo povo, legitimados, portanto, para tratarem de tais assuntos, diferentemente de um conselho que será formado por burocratas escolhidos por critérios técnicos e longe dos olhos da população.

Contudo, em que pese a perda de parcela de autonomia pelos entes tributantes, o que se transferirá à entidade pública será, tão somente, o exercício da atividade em favor de uma integração e cooperação tributárias, preservando-se a titularidade desta, o que não implica, necessariamente, em uma proposta tendente a abolir a forma federativa de Estado. Tanto é assim, que as entidades subnacionais manterão sua ingerência sobre outras figuras tributárias que lhes competem, o que desnatura a ideia de elisão federativa (Albano, 2024, p.82).  

Ademais, a vedação à concessão de incentivos e benefícios fiscais, com exceção daqueles previstos na Constituição Federal, é mais uma questão sensível na conformação tributária dada pela Reforma. Com a instituição do IBS, as entidades políticas regionais e locais não mais poderão conferir benefícios fiscais em sua zona de competência. Tal medida se justifica pela necessidade de atingir o propósito da uniformização tributária pretendido pela Reforma, a fim de alcançar as benesses ligadas a essa harmonização, como segurança jurídica, correção das distorções fiscais, disparidades regionais e locais, dentre outras (Brasil, 1988).

Porém, é imperioso reconhecer que a aludida vedação retira parte da autonomia do ente tributante, o que por si só, não fere de morte a organização do Estado. Ainda subsistirão outras formas de gerar atratividade fiscal e estimular investimento, sem que isso represente discrepâncias e prélios aviltantes (Meherb, 2024, p.1).

É válido, ainda, aduzir que as entidades federativas perderam. em prol do CG-IBS, a legitimidade para resolver o contencioso administrativo em relação ao imposto. Caberá aos entes apenas lavrar os autos de infração, não possuindo mais poder para processá-los e julgá-los. Essa característica, combinada com outras já supramencionadas, torna o IBS uma espécie tributária sui generis, vez que a “[…] União institui o imposto; estados e municípios, instituem as alíquotas e fiscalizam o imposto; e o Comitê Gestor promove a arrecadação, a partilha do imposto e julga os processos administrativos tributários oriundos de autos de infração lavrados por estados e municípios” (Harada,2024, p.1).

Uma solução para a manutenção da autonomia e para fazer frente à ameaça de afronta à cláusula pétrea da forma federativa do Estado, é redesenhar a estrutura e as atribuições do CG-IBS, de modo a devolver aos entes subnacionais as competências que lhes são típicas e que decorrem do seu poder de tributar. Dessa maneira, manter-se-ia sua capacidade de autoadministração, o que permite maior efetividade na busca da realização do bem comum e do fortalecimento da estrutura financeira das entidades federadas (Martins, 2023, p.1).

Lado outro, manter o atual sistema é, indubitavelmente, conservar as anomalias que ele possui hoje. Vale dizer que mitigação de autonomia, não implica, em si mesma, em abolição do arcabouço federativo. Nessa toada, Albano (2024, p.82) assevera que:

[…] a criação de uma entidade pública composta   por representantes   dos entes federativos não denota, por si só, intuito de abolir a forma   federativa.   Na verdade, remodela os contornos federativos ao passo que substitui a multiplicidade legislativa, a ausência de uniformidade e o mau uso das políticas de incentivo por uma atuação integrada, concentrada em    uma entidade pública composta por representantes dos níveis federativos, em sua totalidade quanto estadual e majoritário quanto ao municipal. Pode-se, por assim dizer que em matéria de tributação sobre o consumo observa-se uma faceta do federalismo que pode ser denominada de integrativo-representativo já que:  integra os entes -em contraposição às autonomias estanques, isoladas e conflituosas -e o faz mediante a estruturação de uma entidade   representativa que deliberará os temas afetos ao tributo de competência compartilhada.

Teme-se que essa retirada de autonomia dos entes subnacionais, estribada no fundamento de aumento da cooperação federativa e na correção de problemas que há tempos afligem os contribuintes, seja apenas um subterfúgio para justificar uma centralização autoritária e cerceadora. Assim, corre-se o risco de que a idílica troca de benefícios mútuos, transforme-se, ao fim e ao cabo, na preponderância de um ente sobre outro, o que promoveria uma falência do federalismo fiscal (Conti; Mascarenhas, 2023, p. 125).

Entretanto, é irrefragável que a criação do IBS e do comitê responsável por gerí-lo, a priori, pode significar um passo importante para a reestruturação do nosso teratológico sistema tributário. A alteração do exercício direto, para uma atuação colegiada e representativa por parte dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, aliada a uma harmonização tributária, parece ser um caminho viável para a edificação de um sistema caracterizado pela simplicidade, transparência, justiça tributária, e cooperação. Assim, se bem implementada, pode ser uma inovação capaz de robustecer o pacto federativo, elevando a integração entre os entes pactuantes, além de fazer florescer esperanças de recuperação de uma máquina fiscal que há muito tempo respira por aparelhos.

  • CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com uma proposta arrojada e ambiciosa, a Reforma Tributária pretende, por meio do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), produzir uma profunda e bem-vinda reestruturação do sistema tributário brasileiro. Ao conjuminar o ICMS e o ISS, transformando-os em IBS, a alteração legislativa almeja simplificar o sistema, eliminar a perniciosa e contraproducente cumulatividade, além de propiciar maior transparência às operações tributárias. Tais mudanças são significativos avanços para o combate e eliminação dos vermes que corroem, há bastante tempo, o federalismo fiscal. A guerra fiscal entre os estados e a complexidade da legislação tributária estão entre eles.

Além disso, com uma reformulação da tributação sobre o consumo, que tanto aflige os contribuintes, especialmente os mais pobres, associada a uma mitigação das desigualdades regionais e locais, a Reforma Tributária busca promover a justiça tributária, privilegiando a capacidade contributiva e a criação de um ambiente saudável e atrativo para os negócios. Ao vedar as concessões de incentivos e benefícios fiscais e uniformizar a legislação, a receita do IBS pode ser redistribuída de modo mais igualitário, vez que se eliminam as distorções geradas pelas inúmeras leis autônomas, editadas pelos entes políticos, e a sanha competitiva entre eles. No entanto, este propósito somente poderá ser atingido se os entes subnacionais tiverem a liberdade de fixar as alíquotas do novo tributo, de forma a atender às necessidades regionais e locais.

É relevante pontuar que a substituição da antiga dinâmica tributária pela nova, a qual findará em 2033, exigirá articulação e colaboração entre diferentes níveis de governo. Nesse interregno, em que haverá a coexistência dos antigos e do novo imposto, será importante, para não dizer indispensável, a adoção de mecanismos que permitam uma transição suave e que minimizem os impactos negativos sobre a arrecadação. Desse modo, o aprimoramento da comunicação e educação fiscal para preparar os contribuintes e as administração tributária são peças-chave para o sucesso das alterações. 

A centralização, em um Comitê Gestor, das competências que antes eram exercidas pelos entes federados, representa uma transformação de paradigma na administração tributário-fiscal brasileira. Em que pese essa abordagem estar estribada na promessa de maior uniformidade e eficiência, é incontendível que ela suscita receios em relação à preservação da autonomia dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, corolário de uma federação. Dessa maneira, haverá a inarredável necessidade de equilibrar a integração e a cooperação entre os entes políticos, com a preservação de sua independência, com vistas a não se ultrapassar a linha tênue entre mitigação de autonomia e abolição do federalismo, o que tornaria parte da Reforma Tributária inconstitucional.

Assim, face ao exposto, aprioristicamente, não se pode afirmar taxativamente que a criação do IBS e do Comitê responsável por geri-lo sejam propostas tendentes a abolir a forma federativa de Estado. É fato, contudo, que os entes subnacionais terão um achatamento em sua autonomia, porém isso não leva necessariamente a uma corrosão do federalismo. A partir da implementação do novo modelo tributário, poderemos ter, na verdade, a celebração de uma repactuação federativa, marcada pela integração, cooperativismo e representatividade. Caberá, assim, em grande medida, ao Conselho Federativo e ao Comitê Gestor delinear o futuro de nosso sistema tributário pátrio.

REFERÊNCIAS

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33. OLIVEIRA, B. S. et al. O tributo ao longo da história no Brasil. Tributos e Desigualdades, online, p. 1, 4 abr. 2023. Disponível em: https://www.politize.com.br/tributos-e-desigualdade/o-tributo-ao-longo-da-historia-no-brasil/. Acesso em: 18 jun. 2024.

34. SABBAG, E. Direito Tributário Essencial. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9786559640317. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559640317/. Acesso em: 29 ago. 2024.

35. SCAFF, F.F. 50 anos de tributação e finanças como um desafio ao país. 2014.Disponível: https://www.conjur.com.br/2014-mar-25/contas-vista-50-anos-tributacao-quem-pensando-pais/. Acesso: 13 jun. 2024.

36. SEHN, S. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Grupo GEN, 2024. E-book. ISBN 9786559648634. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559648634/. Acesso em: 19 jun. 2024.

37. SPINA, Vanessa Damasceno Rosa. Reforma tributária: o IBS, a CBS e o processo judicial. Consultor Jurídico. Publicado em 24 de março de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-24/o-ibs-a-cbs-e-o-processo-judicial/. Acesso em: 02/12/2024.


[1]Graduando do Curso de Direito, do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. E-mail: filijanson@gmail.com.

[2] Professor do Curso de Direito, do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). E-mail: fernandomfurlan@gmail.com.

[3] De acordo com a Reforma Tributária, o IBS substituirá, gradativamente, o ICMS e o ISSQN.

[4] Balthazar (2005, p. 58) leciona que “Além do ouro, havia também o diamante, riqueza intensamente explorada e objeto da ação feroz do fisco lusitano. Os mesmos mecanismos de arrecadação utilizados nas regiões auríferas chegaram às áreas de diamante (Distrito Diamantino), só que de modo mais severo. Houve uma novidade, o Quinto foi substituído pelos contratos de monopólio”.

[5] A diminuição da produção aurífera também se refletiu nos rendimentos dos impostos de Entradas. Tratava-se da cobrança de uma taxa significativa sobre todos os artigos importados e exportados que era feita de acordo com o peso da mercadoria. Essa forma, um tanto estranha de cobrança, tinha grandes inconvenientes para o desenvolvimento da economia em geral e da atividade mineradora: produtos como ferramentas, ferro bruto e outros artigos necessários para desenvolver qualquer trabalho saíam muito caros, enquanto bens de luxo, como tecidos, joias, sapatos, saíam muito baratos, o que encorajava o consumo de ostentação (Mesgravis, 2015, p. 51).

[6] A Constituição de 1824 ficou conhecida como a “Constituição da Mandioca” porque estabelecia que somente brasileiros com renda anual similar a 150 alqueires de mandioca poderiam votar. 

[7] Os Atos Institucionais foram normas jurídicas excepcionais que suplantavam quaisquer outras, inclusive a Constituição, e foram editadas pelos comandantes das Forças Armadas ou pelo presidente da República durante o Regime Militar (1964-1985).

[8]    Segundo Elizabete Mello (2013. p.27): O    Federalismo    Fiscal    consubstancia    na divisão do poder de tributar entre os entes Federativos (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios).  Esse poder de    tributar    não    se    refere    apenas    à competência tributária de criar/instituir e legislar    sobre    os    tributos    descritos    na Constituição    Federal    de    1988 (artigos 145/149-A), mas    também    se    refere    à capacidade    tributária    para    fiscalizar    e arrecadar os tributos.

[9] Art. 7º A competência tributária é indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público a outra, nos termos do § 3º do art. 18 da Constituição”.

[10] Conforme disposição do art. 114 do Código Tributário Nacional, fato gerador é “a situação definida em lei como necessária e suficiente para a ocorrência da obrigação tributária”.

[11] Consoante o art. 1° da Lei 8.212/91, a Seguridade pode ser definida como sendo um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência e à assistência social”.

[12] Acerca disso, Marcus Abraham e João Ricardo Catarino (2018, p.199) lecionam que há uma […] preocupação quanto ao desequilíbrio do poder fi­scal entre os três entes federativos, uma vez que a indesejada concentração do poder no federalismo fi­scal brasileiro em favor da União, em detrimento dos Estados e Municípios, propicia negativas consequências, tais como: a) o enfraquecimento do processo democrático decorrente da luta entre as forças políticas regionais e a central; b) uma indesejada competição ­fiscal – vertical e horizontal – entre os entes federativos, conhecida como “guerra fi­scal”; c) a incapacidade de o governo central exercer satisfatoriamente sua função coordenadora em todo o território, gerando práticas autônomas dos governos regionais e locais incompatíveis com o interesse nacional; d) a minimização dos processos de redução das desigualdades regionais e do estímulo ao desenvolvimento social e econômico local.

[13] Disponível em: https://ibpt.org.br/em-media-legislacao-brasileira-edita-quase-40-normas-tributarias-por-dia-desde-1988-revela-estudo-do-ibpt/. Acesso em: 27/11/2024.

 

[15]Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf. Acesso em: 27/11/2024.

[16] Ainda segundo o relatório o maior impacto das execuções fiscais está na Justiça Estadual, que concentra 86% dos processos. A Justiça Federal responde por 14%; a Justiça do Trabalho por 0,2%; e a Justiça Eleitoral por apenas 0,01% (CNJ, 2021, p. 06).

[17] Art.156-A, §1º, VI, daConstituiçãoFederalde1988, incluído pela Emenda Constitucional nº132/2023.

[18] Art.156-A, §1º, VII, VIII, IX, da Constituição Federal de1988, incluído pela Emenda Constitucional nº132/2023.

[19] A instância máxima de decisões do CG-IBS será o Conselho Superior, a ser criado 120 dias após a sanção da lei complementar. O Conselho terá 54 membros remunerados: 27 indicados pelos governos dos estados e do Distrito Federal e outros 27 eleitos para representar os municípios e o DF. Também haverá número igual de suplentes. Além do Conselho Superior, outros órgãos do Comitê Gestor do IBS são: diretoria executiva, com ao menos nove diretorias; secretaria geral; assessoria de relações institucionais e federativas; corregedoria e auditoria interna. Fonte: Agência Senado.

[20] Uma entidade pública sob regime especial é, em regra, uma autarquia que possui características próprias que a diferenciam das autarquias comuns, como maior autonomia administrativa, técnica ou financeira. Essas prerrogativas devem estar previstas na lei de criação da autarquia. A Agência Senado informa que o Comitê Gestor não terá vinculação a nenhum órgão público. Contudo, de acordo com o Decreto-Lei 200/1967, artigo 4º, inciso II, que dispõe sobre a organização da Administração Federal: “[a] Administração Federal compreende: I – A Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios e II – A Administração Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria: a) Autarquias; b) Empresas Públicas; c) Sociedades de Economia Mista e d) fundações públicas”. E no artigo 19 prevê que: “[t]odo e qualquer órgão da Administração Federal, direta ou indireta, está sujeito à supervisão do Ministro de Estado competente”.

Extrafiscalidade na distribuição de renda no Brasil: análise dos instrumentos de política fiscal da Lei nº 14.754/23 (Lei das off-shore)

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.


Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

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Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

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Extrafiscalidade na distribuição de renda no Brasil: análise dos instrumentos de política fiscal da Lei nº 14.754/23 (Lei das off-shore)

Ester Ramos dos Santos Santiago[1] e Fernando de Magalhães Furlan[2]

Resumo:

O objetivo deste estudo é avaliar a efetividade da extrafiscalidade tributária na promoção da equidade econômica no Brasil. A pesquisa se dedicará à análise da concentração de renda sob a ótica da política fiscal, buscando identificar o papel dos instrumentos fiscais na redução das desigualdades. Em remate, a Lei nº 14.754/23 será abordada como um caso prático de política tributária progressiva, ilustrando as potencialidades e desafios dessa estratégia A justificativa reside na descomunal concentração de renda no país, ínsita em um sistema tributário de natureza essencialmente regressiva. A ineficiência das políticas fiscais na redistribuição de renda torna as transferências diretas uma medida paliativa, mas não estrutural, para combater as disparidades socioeconômicas. A tributação de fundos offshore e exclusivos, conforme prevista na referida legislação, representa uma ruptura paradigmática e um avanço significativo na política fiscal brasileira. Essa medida visa corrigir as distorções inerentes à estrutura tributária nacional, que, historicamente, sobrecarrega os segmentos de menor renda, por meio de impostos indiretos. Assim, ao canalizar recursos financeiros dos setores de alta concentração de renda para políticas públicas sociais, o Estado promove uma distribuição mais justa da renda, desde o processo de arrecadação. Embora a implementação desta nova imposição tributária possa não gerar impactos macroeconômicos imediatos e expressivos, sua implementação é essencial para a construção de um sistema tributário mais progressivo. Para alcançar os fins propostos, a pesquisa adotará uma abordagem metodológica indutiva, de natureza eminentemente bibliográfica, que incluirá análise de doutrina, artigos acadêmicos e relatórios sobre a estrutura tributária e econômica do Brasil, além da utilização de dados empíricos fornecidos pela Receita Federal do Brasil, IBGE, IPEA e outras fontes para mapear a distribuição da carga tributária e os impactos econômicos. Quanto à abordagem, adota uma perspectiva qualitativa e quantitativa; e em relação aos fins, é descritiva e exploratória.

Palavras-chave: Extrafiscalidade Tributária; Política Tributária Progressiva; Distribuição de Renda; Lei nº 14.754/23.

Abstract:

The objective of this study is to evaluate the effectiveness of tax extra-fiscality in promoting economic equity in Brazil. The research will focus on analyzing income concentration from the perspective of fiscal policy, seeking to identify the role of fiscal instruments in reducing inequalities. Finally, Law No. 14,754/23 will be addressed as a practical example of progressive tax policy, illustrating the potential and challenges of this strategy. The justification lies in the colossal concentration of income in the country, stemming from a tax system that is essentially regressive in nature. The inefficiency of fiscal policies in income redistribution makes direct transfers a palliative, but not structural, measure to combat socioeconomic disparities. The taxation of offshore and exclusive funds, as stipulated in the legislation, represents a paradigm shift and a significant advancement in Brazilian fiscal policy. This measure aims to correct the distortions inherent in the national tax structure, which historically overburdens lower-income segments through indirect taxes. By channeling financial resources from sectors with a high concentration of income to social public policies, this initiative promotes a fairer distribution of income during the collection process itself. While the implementation of this new tax measure may not generate immediate and significant macroeconomic impacts, it is essential for the construction of a more progressive tax system. To achieve the proposed goals, the research will adopt an inductive methodological approach, primarily relying on a bibliographic review. This will include an analysis of doctrine, academic articles, and reports on Brazil’s tax and economic structure. Additionally, the study will utilize empirical data from the Federal Revenue Service, IBGE, IPEA, and other sources to map the distribution of the tax burden and its economic impacts. Regarding the approach, it adopts both a qualitative and quantitative perspective; as for its purposes, it is descriptive and exploratory.

Keywords: Tax Extra-fiscality; Progressive Tax Policy; Income Distribution; Law No. 14.754/23.

1. Introdução

Com o fim do autoritarismo do regime militar e em resposta às demandas sociais, a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 estabeleceu uma nova ordem político-social, consolidando um Estado Democrático de Direito, com foco na justiça social. O deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara dos Deputados durante a promulgação da Constituição Federal de 88, destacou o influxo e o valimento das reivindicações populares, declarando: “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar.”[3]

A alarmante desigualdade histórica e as aspirações sociais, em um cenário de concentração de renda nas mãos de poucos e uma vasta massa populacional vivendo em condições de extrema pobreza e miséria, foram forças motrizes das lutas que resultaram na Constituição Federal de 1988. Dessarte, a Constituição, com seu caráter garantista, estabeleceu princípios tributários fundados na justiça fiscal e social, reconhecendo a necessidade de utilizar o sistema tributário como mecanismo para amenizar as disparidades socioeconômicas.

O artigo 170, inciso VII, da Constituição Federal de 1988 consagra a redução das desigualdades regionais e sociais como princípio fundamental da ordem econômica brasileira. Essa norma, alinhada a outros dispositivos constitucionais, visa garantir a todos uma existência digna, promovendo a distribuição equitativa da carga tributária e assegurando direitos sociais fundamentais, como educação, saúde e trabalho.

Paradoxalmente, a realidade brasileira é sublinhada por uma alta concentração de renda, com o 1% mais rico da população detendo 28,3% da renda total do país (Montferre, 2023). Sob a ótica estrita da política fiscal, não desconsiderando que a desigualdade é fruto de múltiplos fatores, a relação entre tributação e desigualdade revela que a neutralidade tributária, ao não considerar a capacidade contributiva dos indivíduos, tende a acentuar as disparidades existentes.

É patente o fato de que o sistema tributário brasileiro não satisfaz os princípios de justiça fiscal e social, nem o princípio da equidade, que preconiza uma tributação baseada na capacidade contributiva, de maneira oposta, perpetua a copiosa desigualdade de renda com uma tributação hegemonicamente regressiva.

Impende, ainda, frisar que a desigualdade não é apenas um problema moral, mas também um obstáculo ao desenvolvimento econômico e à coesão social do país. Com efeito, é inevitável a necessidade de ações afirmativas para mitigar as dissimilitudes sociais, especialmente em um contexto exacerbado pela pandemia de COVID-19[4], que acometeu o país em um quadro iminente de estagflação[5].

Diante disso, a pesquisa examina como os mecanismos tributários extrafiscais influenciam a distribuição de renda no Brasil, ilustrando a eficácia da Lei nº 14.754/23 e os desafios para promover uma distribuição mais equitativa.

Para compreender os desafios na promoção da equidade de renda no Brasil, é necessário realizar uma análise do cenário tributário e econômico atual. Assim, a seção inicial deste estudo visa identificar esses desafios por meio de uma revisão histórica do cenário tributário internacional, seguida de uma contextualização do panorama tributário e econômico atual do país.

Partindo do pressuposto que a política fiscal constitui um instrumento crucial no combate à desigualdade de renda e riqueza, conforme demonstrado em estudos empíricos mencionados na seção anterior, a segunda seção deste trabalho explora de forma abrangente como a extrafiscalidade tributária pode ser empregada como um instrumento de política fiscal, visando a construção de um sistema tributário mais progressivo.

Por derradeiro, a última seção deste estudo examina os mecanismos de extrafiscalidade tributária presentes na Lei nº 14.754/23, que tributa a renda obtida por pessoas físicas residentes no Brasil em aplicações financeiras no exterior, em entidades controladas e trusts, avaliando seu impacto na distribuição de riqueza.

2. Análise do panorama tributário e econômico atual

2.1. A influência das políticas tributárias na concentração de riqueza e desigualdade: um estudo comparativo entre EUA, Reino Unido e Europa Continental, no Século XX

Desde os estudos dos fisiocratas no século XVIII, a distribuição de riqueza e renda tem sido um tema central na economia. Os fisiocratas focavam na distribuição do excedente agrícola, por considerarem a agricultura como principal fonte de riqueza. Essa preocupação foi expandida pelos economistas clássicos, como Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx, que ampliaram a análise para outras formas de produção e para a distribuição do valor gerado pelo trabalho (Iturriet et al, 2016, p. 15).

No século XX, as conflagrações mundiais, com proeminência para a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), alinhadas às políticas públicas pós-guerra implementadas por cada nação, tiveram um papel fundamental na atenuação das disparidades sociais. No entanto, essa trajetória não foi linear. A partir dos anos 1970-1980, a desigualdade reacendeu em diversas nações, evidenciando a influência das dinâmicas institucionais e políticas específicas de cada país (Piketty, 2014, p. 307).

Insta salientar ainda que, ao longo do século XX, países que adotaram políticas fiscais mais progressivas, taxando de forma mais elevada a renda, a riqueza e as heranças de indivíduos e famílias mais abastados, conseguiram reduzir de maneira consistente a concentração de renda e riqueza. Nações como Japão, Suécia, França e Alemanha exemplificam essa tendência. Em contraste, sociedades com sistemas tributários mais liberais, como o Reino Unido e os Estados Unidos, enfrentaram desafios distributivos mais significativos, embora mitigados pela presença histórica de impostos quase confiscatórios sobre a transferência de riqueza (Humberto, 2011, p. 8).

Em resposta direta à Grande Depressão, entre as décadas de 1930 e 1970, o governo dos Estados Unidos, sob a liderança de Franklin D. Roosevelt, implementou um conjunto de políticas econômicas e sociais conhecido como New Deal. Essas políticas, lastreadas nos princípios da justiça social, visavam redistribuir a riqueza, elevando substancialmente a alíquota dos impostos sobre a renda dos mais ricos, que chegava a 80-90%. A concentração excessiva de renda e poder, segundo a análise da época, contribuíram diretamente para o colapso financeiro que precipitou a crise (Piketty, 2014, p. 628).

Sucede que, ao fim dos anos 1970, a narrativa de declínio econômico nos Estados Unidos tornou-se cada vez mais comum, com a mídia destacando o sucesso industrial da Alemanha e do Japão. No Reino Unido, o cenário era ainda mais preocupante, com o PIB per capita caindo abaixo dos níveis observados na Alemanha, França, Japão e, até mesmo, na Itália. Essa percepção de declínio e atraso foi um fator crucial no surgimento da “revolução conservadora”, que teve como principais líderes Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos (Piketty, 2014, p. 630-631).

A partir do decênio de 80, sob a influência de políticas neoliberais, tanto o governo americano, quanto o britânico mudaram radicalmente de direção. Influenciados por tais políticas, ambos países prometeram reduzir o Welfare State[6], as taxas de imposto sobre a renda dos mais ricos foram drasticamente reduzidas, caindo para 30-40% nos anos de 1980-2010. Esse movimento marcou uma reviravolta rumo a políticas que favoreciam o crescimento das grandes fortunas e a diminuição das intervenções estatais na economia (Piketty, 2014, p. 630-631).

Em comparação, países da Europa continental, como França e Alemanha, e o Japão, mantiveram maior estabilidade em suas políticas fiscais, conservando as alíquotas sobre as rendas mais altas em torno de 50-60%, entre 1930-2010. Embora esses países não tenham seguido o caminho de desregulamentação e corte de impostos dos anglo-saxões (Estados Unidos da América e Reino Unido), a taxa de crescimento do PIB per capita foi símil. Logo, as evidências empíricas sugerem que a redução da taxa marginal superior, uma política frequentemente associada à teoria da oferta[7], não é uma panaceia para o crescimento econômico (Piketty, 2014, p. 631-632).

É imperioso observar que a era Reagan-Thatcher, influenciada por pensadores como Friedrich Hayek e Milton Friedman, foi marcada por um desdobramento sinuoso das disparidades globais. As políticas associadas ao neoliberalismo, que incluem a redução de impostos para os mais abastados, a desregulamentação dos mercados e a privatização de empresas estatais, contribuíram para o enfraquecimento dos mecanismos de redistribuição de renda e a concentração de riqueza e poder em uma elite econômica restrita (Santos, 1999, p. 119).

Embora a retórica neoliberal defenda um mercado livre e a mínima intervenção estatal, na prática, o capitalismo exige concentração de poder econômico e intervenção estatal para operar de maneira eficaz, regular a economia, controlar monopólios e garantir a estabilidade. A falta de reconhecimento dessas necessidades práticas molda a política econômica e impacta adversamente a democracia, ao promover medidas que reduzem a intervenção estatal e nutrem uma utopia (Santos, 1999, p. 120-121).

Defender o capitalismo puro implica em rejeitar integralmente a Terceira Via[8], que procurou fugir da polarização característica da Guerra Fria. O sistema capitalista se desenvolveu ao longo da evolução social, incorporando características e contradições inerentes que não podem ser ignoradas. Apesar de sua promessa de eficiência e liberdade, o capitalismo laissez-faire[9] não elimina, mas sim intensifica, as contradições sociais; é imprescindível uma intervenção estatal para funcionamento do mercado e o impulsionamento do crescimento econômico e do emprego (Santos, 1999, p. 126-130)

Através de um decote da ascensão das políticas neoliberais nos EUA, é possível observar que a sua saída da recessão econômica foi às custas da população de baixa renda. Durante a administração Reagan, foi implementada uma série de políticas econômicas conhecidas como Reaganomics ou trickle-down economics, objetivando estimular o crescimento econômico por meio de cortes de impostos, especialmente para os mais abastados, e pela desregulamentação da economia, sob a premissa de que esses benefícios se alastrariam para o restante da sociedade (Komlos, 2018, p. 10-11).

Arthur Laffer postulou a existência de um ponto ideal de tributação, além do qual aumentos nas alíquotas podem comprometer a arrecadação. No entanto, os resultados práticos das políticas econômicas implementadas pelo Governo Reagan, que se fundamentaram, em parte, na curva de Laffer, não corresponderam às expectativas teóricas. Apesar de um crescimento econômico moderado, observou-se um esvaziamento da classe média, com os benefícios desse crescimento sendo direcionados demasiadamente para os mais ricos (Komlos, 2018, p. 11-13).

Dados do Country Economy indicam que, entre 1980 e 2001, o índice de desigualdade na distribuição de renda nos EUA aumentou em 24,2%.

A trajetória das políticas tributárias nos EUA demonstra como as escolhas políticas podem impactar sobremaneira a distribuição de renda e a estrutura social de um país. As políticas econômicas Reaganomics intensificaram a concentração de riqueza e aumentaram significativamente a dívida pública, que dobrou de 30% para 60% do PIB, gerando repercussões que suplantam o tênue crescimento econômico. Esse panorama sublinha a importância de políticas tributárias e econômicas na promoção de uma distribuição mais equitativa dos recursos (Komlos, 2018, p. 13).

A desigualdade não é um fenômeno natural, mas resulta em demasia de escolhas políticas e econômicas de cada Estado, desafiando a visão determinista da curva de Kuznets[10]. De maneira objetiva, verifica-se que a desigualdade é um componente multidimensional, moldado por aspectos históricos, institucionais e políticos, que influenciam a mobilidade social e as oportunidades de cada indivíduo (Piketty, 2014, p. 307, 347-350).

Em remate, para Piketty, em sua obra seminal O Capital no Século XXI, a desigualdade é um fenômeno hermético, resultado da interação de diversos fatores que são influenciados por aspectos institucionais — como leis, políticas governamentais e a atuação de instituições econômicas e sociais — que moldam a dinâmica entre o Estado e as elites econômicas, e fatores estruturais — como relações de poder dentro da sociedade, a organização da produção e as regras que governam a propriedade e o comércio. Esses aspectos se inter-relacionam de forma intrincada, contribuindo para a perpetuação ou mitigação das disparidades socioeconômicas.

2.2. Análise histórica e perspectivas do sistema tributário brasileiro, segundo Varsano

O sistema tributário hoje vigente no país é fruto de uma lenta evolução que se conforma às linhas gerais das teorias a respeito, tradicionalmente encontradas na literatura econômica” (Varsano, 1996, p.19). Em um primeiro momento, o sistema tributário brasileiro do início, do século XX, mantinha características herdadas do período imperial, com uma forte dependência dos impostos sobre o comércio exterior. Até a década de 1930, praticamente metade da receita pública brasileira provinha dos tributos sobre produtos estrangeiros que entravam no país (Varsano, 1996, p. 2).

A Constituição Republicana de 1891 preservou aspectos do sistema tributário antepositivo. Todavia, ao instituir o federalismo[11], conferiu autonomia financeira aos demais entes federativos, visando garantir que pudessem exercer as suas funções de maneira independente em relação à União. Essa medida, no entanto, demandou a criação de um sistema tributário mais complexo, com a adoção do regime de separação de fontes tributárias (Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891; Varsano, 1996, p. 2).

Diversas fontes de renda foram incorporadas à base tributária durante as primeiras décadas da República, como impostos sobre vencimentos pagos por cofres públicos e sobre benefícios distribuídos por sociedades anônimas.  Com a necessidade de financiar as crescentes despesas do Estado, somada a influência de modelos tributários de outros países e a pressão por uma maior justiça tributária, três décadas após a promulgação da Constituição de 1891, a lei nº 4.625 de 1922 instituiu um imposto de renda abrangente (Nóbrega, 2014, p. 28-29; Varsano, 1996, p. 2).

Art. 31. Fica instituído o imposto geral sobre a renda, que será devido, annualmente, por toda a pessoa physica ou juridica, residente no territorio do paiz, e incidirá, em cada caso, sobre o conjunto líquido dos rendimentos de qualquer origem (Brasil, 1922).

Rui Barbosa, primeiro ministro da Fazenda do período republicano, foi um defensor fervoroso do imposto sobre a renda, dedicando parte do seu relatório de janeiro de 1891 a essa temática. Ele abordou a história e a aplicação do imposto, enfatizando as suas qualidades como justo, indispensável e necessário. No entanto, destacou que, no Brasil, a atenção governamental estava predominantemente voltada para impostos indiretos, especialmente os direitos de alfândega, em detrimento do imposto sobre a renda (Nóbrega, 2014, p. 27).

Desde o início das discussões sobre o Imposto de Renda no Brasil, o princípio da justiça social, que preconiza a contribuição proporcional dos mais ricos para o financiamento do Estado, foi um dos principais argumentos em defesa desse tributo. No entanto, a implementação do IRPF enfrentou diversas resistências políticas. Após a sua instituição em 1922, o imposto passou por profusas modificações, sendo influenciado por debates nacionais e por tendências internacionais. A estrutura atual, com alíquotas progressivas, é resultado desse longo processo de construção (Cardoso, 2016, p. 41).

No que concerne à tributação interna sobre produtos, desde o ano seguinte à promulgação da Carta Republicana, vigorou um imposto sobre o fumo, estendendo a tributação a outros produtos, antes do final do século XIX, estabelecendo-se o imposto sobre o consumo. Em 1922, foi criado o imposto sobre vendas mercantis, que posteriormente foi denominado imposto sobre vendas e consignações e transferido para a competência estadual (Varsano, 1996, p. 2-3).

A Primeira Guerra Mundial provocou uma mudança no perfil da arrecadação, com uma maior ênfase nos impostos sobre o consumo interno. A Constituição de 1934 e as leis complementares posteriores introduziram mudanças significativas no sistema tributário brasileiro, diminuindo a dependência de impostos sobre o comércio exterior e aumentando a importância dos impostos sobre o consumo interno. Essa nova dinâmica, iniciada no início do século XX, se manteve ao longo das décadas seguintes, caracterizando o sistema tributário brasileiro até os dias atuais (Cardoso, 2016, p. 41; Varsano, 1996, p. 3).

Art. 8º Também compete privativamente aos Estados: 

I, decretar impostos sobre: 

d) consumo de combustiveis de motor de explosão; 

e) vendas e consignações effectuadas por commerciantes e productores, inclusive os industriaes, ficando isenta a primeira operação do pequeno productor, como tal definido na lei estadual; 

g) indústrias e profissões; 

f) exportação das mercadorias de sua producção até o maximo de dez por cento ad valorem, vedados quaesquer addicionaes; 

(Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1934)

Em virtude da Segunda Guerra Mundial a participação do imposto de importação na receita total reduziu bruscamente. Entre 1946 e 1966, a tributação passou a explorar, sobretudo, as bases domésticas de consumo, que, às vésperas da reforma de 1960, era responsável por mais de 45% da receita tributária da União. O Imposto de Vendas e Consignações correspondia a quase 90% da receita tributária estadual e o Imposto de Indústrias e Profissões, gerava quase 45% da receita tributária dos municípios (Varsano, 1996, p. 4-6).

Em 1952, o governo brasileiro criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) com o objetivo de atrair capital estrangeiro, por meio da oferta de incentivos e utilizando o Imposto sobre Produtos Importados como ferramenta de proteção à indústria nacional. Esse impulso à industrialização resultou em um aumento da despesa do Tesouro Nacional, que alcançou 13% do PIB, no início dos anos 60. Esse aumento nas despesas públicas não foi acompanhado por um crescimento equivalente das receitas (Varsano, 1996, p. 7).

Diante da crise econômica e política, surgiu a necessidade de uma reforma tributária para resolver o problema orçamentário e angariar recursos essenciais às demais reformas. Contudo, o que ocorreu foi uma reestruturação do aparelho arrecadador, gerando grande descontentamento entre as elites econômicas, devido à alta carga tributária sobre o setor produtivo, resultante da cumulatividade dos impostos sobre o consumo e do crescente imposto de renda sobre pessoas jurídicas, tornando ineficaz o aprimoramento do sistema arrecadatório (Varsano, 1996, p. 7-8).

Entre 1964 e 1966, foi implementado um novo sistema tributário no Brasil, cuja prioridade era restaurar as finanças federais e atender às demandas de alívio tributário dos setores empresariais, que sustentavam politicamente o regime. Nesse período, foram realizadas diversas reformas significativas: a administração fazendária foi reestruturada; o Imposto de Renda passou por revisões substanciais, resultando em um expressivo aumento da arrecadação; e o Imposto sobre o Consumo foi reformulado, originando o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) (Varsano, 1996, p. 9).

A reforma tributária da década de 1960, além de ter alcançado, com sucesso, o objetivo de restaurar rapidamente as finanças federais, com uma notável recuperação da receita do Tesouro Nacional, eliminou os impostos cumulativos, substituindo-os pelo Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), estabelecendo um sistema com objetivos econômicos, que servia como um instrumento estratégico para o crescimento acelerado, delineado pelos mandatários do período (Varsano, 1996, p. 9).

Logo, o foco principal era aumentar o esforço fiscal da sociedade para alcançar o equilíbrio orçamentário e gerar recursos para incentivos à acumulação de capital, visando a impulsionar o crescimento econômico, favorecendo os detentores da riqueza e negligenciando a equidade. De acordo com a estratégia traçada, o governo federal controlaria o processo de crescimento, centralizando decisões econômicas e moldando o setor privado, por meio de incentivos fiscais. Enquanto os estados e os municípios receberiam recursos suficientes para cumprir as suas funções sem prejudicar o crescimento (Varsano, 1996, p. 9-10).

Apesar da concessão intensa de incentivos fiscais, a carga tributária do Brasil manteve-se acima de 25% do PIB até 1978, com a União arrecadando cerca de 75% dos recursos. No entanto, desde 1970, o governo já percebia que esses incentivos estavam corroendo a receita excessivamente. Para reforçar suas fontes de financiamento, o governo federal introduziu o PIS (Programa de Integração Social), que trouxe de volta a cumulatividade na tributação. Além disso, determinou que parte dos incentivos fosse direcionada para programas sociais e de desenvolvimento regional, reduzindo os benefícios fiscais das empresas (Varsano, 1996, p. 10).

A partir de 1975, o sistema praticamente deixou de ser utilizado como um instrumento para implementar novas políticas econômicas e sociais. Isso se deu por diversos fatores, incluindo o esgotamento do modelo econômico adotado durante a fase do “milagre brasileiro”, incluindo a difusão de incentivos fiscais, que comprometeram a capacidade arrecadatória do Estado. As deficiências, em termos de equidade, se tornaram tão pronunciadas que ajustes na legislação do Imposto de Renda foram realizados em 1974 para mitigar a regressividade da tributação (Varsano, 1996, p. 11).

Com a Constituição de 1988 foi estabelecido um sistema tributário resultante de um processo participativo e democrático, com decisões de caráter eminentemente político, inobstante à competência técnica da equipe. Todavia, devido à dificuldade de coordenação e ao prazo apertado, esse processo constituinte ímpar na história do Brasil apresentava riscos. Como resultado, o sistema tributário emergente, definido nas comissões, acabou sendo insuficiente para financiar o Estado, consolidando um desequilíbrio orçamentário existente em vez de resolvê-lo (Varsano, 1996, p. 12-13).

Em suma, a descentralização ocorrida com o fortalecimento da Federação e autonomia fiscal dos estados e municípios não foi fruto de uma política deliberada, mas sim uma resposta a restrições fiscais. Isso resultou em uma queda na qualidade do sistema tributário, sem solucionar o desequilíbrio financeiro e fiscal, enquanto a capacidade dos governos subnacionais de atender às demandas sociais permaneceu limitada (Varsano, 1996, p. 16).

As iniciativas de correção das distorções arrecadatórias no Brasil, como a implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF)[12] e o Imposto Territorial Rural (ITR), não tiveram o impacto esperado. O IGF[13], apesar de previsto constitucionalmente, nunca foi regulamentado, permanecendo ineficaz como instrumento de redistribuição de riqueza. O ITR, por sua vez, tem tido um impacto limitado nas receitas fiscais, devido à baixa arrecadação, além de ter sua receita compartilhada com os municípios, o que dilui ainda mais a sua efetividade fiscal (Passos et al, 2018, p. 6).

A evolução da carga tributária brasileira revela um perfil distinto dos países da OCDE. Em 2015, a tributação sobre a renda, lucros e ganhos de capital no Brasil era consideravelmente inferior à média da OCDE, enquanto a tributação sobre bens e serviços era significativamente maior.   Essa composição atípica da carga tributária brasileira contribui para a acentuação das distorções econômicas observadas no país (Passos et al, 2018, p. 6).

As principais ineficiências tributárias do Brasil impactam não apenas a distribuição de renda, mas também a volatilidade do crescimento econômico, o baixo nível de investimento e a composição da carga tributária, máxime em relação à tributação sobre o capital e a organização dos tributos sobre bens e serviços. As principais ineficiências distributivas e arrecadatórias são a baixa tributação da renda e do capital, a fraca capacidade de arrecadação dos impostos sobre a propriedade e a ausência de regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (Passos et al, 2018, p. 7).

Como forma de resposta imediata às alarmantes desigualdades, na transição para o século XXI, houve uma crescente visibilidade e eficácia de projetos locais voltados para a garantia de uma renda mínima aos segmentos mais vulneráveis da população, que culminaram na promulgação da Lei nº 9.533/97, que instituiu o Programa Renda Mínima. Este marco legislativo sinalizou o início dos programas de transferência de renda, como uma resposta estruturada às demandas emergentes da população de baixa renda (Lício, 2004, p. 38).

Ocorre que, apesar de seus benefícios, os programas de transferência de renda enfrentam desafios e limitações notáveis, como a fragmentação de recursos e altos custos administrativos (Lício, 2004, p. 38). Ademais, as transferências diretas de renda, por si só, mostram-se insuficientes para corrigir os desequilíbrios macroeconômicos. O Brasil enfrenta profundas desigualdades estruturais, com grande parte da riqueza concentrada em uma pequena elite, onde o 1% mais rico[14] detém 11,77% da renda nacional (PNAD, 2024).

Promover a equidade de renda no Brasil requer não apenas políticas robustas de transferência de renda, mas concomitantemente políticas fiscais que corrijam os desequilíbrios macroeconômicos, fortalecendo a progressividade e a eficiência do sistema tributário. Enquanto as transferências desempenham um papel vital na conjuntura econômica, a política tributária emerge como uma ferramenta pujante na redução das disparidades econômicas e sociais, fazendo com que o Estado goze de um papel ativo no panorama distributivo (Rodrigo, 2016, p. 19).

2.3. Ineficiência tributária brasileira

Cesar Roxo Machado[15], em entrevista à Agência Senado, ressaltou que o sistema tributário brasileiro agrava a concentração de renda em vez de reduzi-la. Embora as reformas apresentadas ao Congresso Nacional frequentemente priorizem a simplificação dos tributos, elas negligenciam a busca por uma justiça tributária, que é crucial. Para ele, os tributos devem ser utilizados como ferramentas para reduzir as desigualdades sociais, não apenas por meio de políticas públicas, mas também no ato da arrecadação, onde os que possuem mais devem contribuir proporcionalmente mais do que aqueles com menos recursos (Westin, 2021).

Ainda de acordo com Cesar Roxo Machado, um dos grandes equívocos no debate sobre tributos no Brasil é a ideia de que a carga tributária no país é excessivamente alta. Ele esclarece que a carga tributária brasileira, representando 33% do PIB, é comparável à de países assistencialistas. Machado questiona: “[q]uando dizem que a carga tributária é alta, eu pergunto: ‘[a] carga é alta para quem?’. Ela só é alta para quem ganha pouco. Os pobres são os únicos que podem dizer que a carga tributária brasileira é alta.” (Westin, 2021).

É importante observar, ainda, que a regressividade do sistema tributário brasileiro, aliada à necessidade de complementar serviços públicos essenciais com recursos privados, impõe uma espécie de duplo pagamento à classe média. Assim, ela arca com uma parcela significativa da carga tributária e, simultaneamente, enfrenta altos custos privados para acessar serviços básicos de qualidade, como saúde e educação. Esse cenário exacerba a desigualdade social e limita a mobilidade social, dificultando a ascensão da classe média.

O impacto da carga tributária sobre a desigualdade deriva da distinção entre tributos diretos, sobretudo progressivos[16], visto que consideram a capacidade econômica do indivíduo, e indiretos, que taxam o consumo, ignorando à capacidade contributiva e resultando em encargo tributário mais penoso sobre a classe baixa, uma vez que a proporção de consumo em relação à renda é maior nas classes mais pobres do que nas mais ricas. Portanto, a progressividade geral do sistema tributário depende dos pesos atribuídos a cada tipo de tributação, o que resulta em uma nova distribuição de renda após a tributação (Rodrigo, 2016, p. 21).

O sistema tributário brasileiro é, senão regressivo quando analisado pela composição da arrecadação tributária, neutro do ponto de vista distributivo, quando considerados outros aspectos metodológicos da literatura especializada. De todo modo, tais fatores reforçam o inequívoco: o sistema tributário tem diminuto potencial para enfrentar a desigualdade, um dos maiores problemas socioeconômicos do país (Passos et al, 2018, pág. 2-3).

Antagonicamente, dados do Boletim de Estimativa da Carga Tributária Bruta do Governo Geral de 2023, publicado pelo Tesouro Nacional, revelam uma maior dependência de tributos sobre bens e serviços (ISS, ICMS, PIS/COFINS etc.) em comparação aos tributos sobre renda, lucros e ganhos de capital. Enquanto os tributos sobre bens e serviços correspondem a 12,68% do total de 24,19% do PIB do país, os tributos sobre renda, lucros e ganhos de capital representam 8,66% do PIB, com uma redução de 0,37 pontos percentuais em comparação ao ano anterior (Ministério da Fazenda, 2024).

O sistema tributário brasileiro é altamente adicto a impostos indiretos, de caráter intrinsecamente regressivo, que podem chegar a representar mais de 45,1% da receita tributária total do país. Por conseguinte, os brasileiros com menor renda desembolsam 21,2% de seus ganhos em impostos indiretos e 3,1% em impostos diretos. Em contrapartida, os brasileiros com maior renda pagam 7,8% de seus rendimentos totais em impostos indiretos e 10,9% em impostos diretos, comprometendo o princípio da capacidade contributiva (Pestana, 2024, p. 4-5).

Ao invés de promover a justiça social, a neutralidade do sistema tributário brasileiro, em sua atual estrutura, reforça e perpetua as desigualdades históricas. O senador Jaques Wagner (PT-BA), afirma que a isenção de Imposto de Renda a dividendos distribuídos a pessoas físicas destoa das políticas fiscais do resto do mundo, contribuindo para que o Brasil tenha um sistema tributário altamente regressivo, que não tributa a renda e o patrimônio dos mais ricos (Westin, 2021).

Ademais, enquanto a renda do trabalho é tributada de maneira progressiva, com alíquotas que podem chegar a 27,5%, os rendimentos provenientes de ganhos de capital muitas vezes são tributados a taxas significativamente mais baixas e lineares. Os ganhos líquidos mensais de até R$20 mil em operações na bolsa de valores de mercadorias, de futuros e assemelhadas, inclusive day trade, são tributadas à alíquota de 20% e as demais operações à alíquota de 15%, conforme dispõe a lei nº 11.033 de 2004.

O economista Eduardo Fagnani[17] ressalta a afirmação falaciosa de que a redistribuição da carga tributária, diminuindo o tributo dos desfavorecidos e o aumentando dos opulentos, por meio da tributação da renda e do patrimônio, é uma política peculiar a países de governo de esquerda. Na realidade, trata-se de uma política liberal, que foi um ponto de inflexão, tanto para a revitalização da economia norte-americana após a crise de 1929, quanto para a expansão das políticas sociais na Europa do pós-guerra (Westin, 2021).

Historicamente, o modelo de política fiscal brasileiro tem priorizado a eficiência econômica em detrimento da justiça distributiva, sob a premissa de que uma maior progressividade tributária poderia comprometer o crescimento econômico. Esse enfoque resultou em um sistema tributário com menor ênfase na redistribuição de renda e maior ênfase na eficiência arrecadatória, sustentado pela crença de que uma tributação menos progressiva poderia minimizar distorções econômicas e evitar a evasão de capitais para países com regimes fiscais mais favoráveis (Passos et al, 2018, p. 12).

É necessário equilibrar os aspectos da equidade, que se refere à justiça fiscal, e da eficiência, capacidade do sistema tributário de minimizar as distorções que a tributação pode causar na economia. Um sistema eficiente é capaz de arrecadar impostos sem causar interferências significativas na economia, evitando prejudicar a produção, o consumo ou os investimentos. Dessa forma, a formulação de políticas tributárias deve levar em conta tanto a necessidade de promover justiça social quanto a de evitar distorções econômicas, avaliando cuidadosamente os objetivos e interesses da sociedade (Passos et al, 2018, p. 6).

3. Extrafiscalidade como mecanismo de redistribuição de renda no Brasil

A obrigação tributária possui uma natureza peculiar que a distingue de outras relações jurídicas. Na relação jurídico-tributária, a obrigação surge da lei, ex lege, e não da vontade das partes, ex voluntate. Isso significa que não prevalece a liberdade de iniciativa ou contratual, tampouco a autonomia individual da vontade, mas sim a soberania estatal. Assim, as finanças públicas são oriundas das competências estabelecidas pela Constituição, das finalidades públicas e das despesas essenciais para a manutenção do Estado e a realização de seus objetivos constitucionais (Neto, 2012, p. 67).

O tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir; que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada (Brasil, 1966).

A função precípua arrecadatória do tributo é vinculada pela Constituição Federal, a qual estipula que o tributo é a principal fonte de receitas para o financiamento das competências institucionais do Estado Fiscal[18], ao passo que a restringe à exploração econômica e confere um papel secundário às demais formas de arrecadação de receitas públicas (Neto, 2012, p.67). Por meio do instrumento fiscal, “o Estado supre-se das economias privadas a fim de atender às carências políticas” (Quiroga, 2005, p. 560 apud Neto, 2012, p. 67).

A tributação, enquanto mecanismo de geração de recursos, desempenha um papel crucial no financiamento de políticas públicas destinadas à concretização de direitos fundamentais. Nesse sentido, as normas tributárias são vistas como instrumentos de custeio para a implementação de ações que visam à efetivação desses direitos. Particularmente relevantes são os direitos de segunda geração, como saúde, educação, previdência e assistência social, que requerem intervenções positivas do Estado, geralmente de elevado custo (Barros, 2017, p. 41).

Para viabilizar o custeio desses direitos, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 149, determina tributos específicos cuja arrecadação é vinculada a determinadas finalidades. Um exemplo claro é o artigo 195, que estabelece que a seguridade social será financiada por meio de contribuições sociais, evidenciando a conexão entre os direitos que integram a seguridade social — saúde, assistência e previdência — e os tributos designados para o seu financiamento, as contribuições (Barros, 2017, p. 41).

Por meio da política fiscal, o governo molda a economia valendo-se das exações e dos dispêndios. Essa ação se desenrola por intermédio das funções alocativa, distributiva e estabilizadora. A função alocativa consiste no fornecimento de bens públicos, que não possuem um acesso democratizado, suprindo necessidades básicas da sociedade. A função distributiva envolve mecanismos que ajustam a distribuição de forma mais equitativa, utilizando instrumentos como impostos progressivos, subsídios e transferências. Por fim, a função estabilizadora visa a garantir o crescimento da economia, do emprego e o controle da inflação (Mori, 2009, p. 22-23).

Nesse contexto, o governo exerce uma função crucial na regulação da economia. A trajetória do pensamento econômico sobre a intervenção estatal apresenta uma evolução significativa, transitando da crença na existência de mecanismos automáticos de ajuste econômico para a percepção da necessidade do Estado na estabilização do produto interno e do emprego. A Grande Depressão constituiu um marco decisivo. Naquela época, houve queda de 30% do PIB, entre 1929 e 1933, enquanto a taxa de desemprego alcançou 25,2%, em 1933, e a economia norte-americana demonstrou ausência de mecanismos automáticos eficazes para restabelecer o pleno emprego e a estabilidade dos preços (Mori, 2009, p. 24-25).

Decerto, o tributo é essencialmente instrumental. Todavia, a atividade tributária é inclinada para o alcance do interesse público de forma mediata, gerando receita pública (fiscalidade), e imediata, intervindo na ordem econômica (extrafiscalidade). No primeiro cenário, é perceptível uma estrita relação entre receita e despesa, sendo alcançado o interesse público no redirecionamento das verbas para a Administração Pública, a qual realiza o alcance direto do interesse público. No segundo cenário, o tributo deixa de ser um meio e torna-se um fim em si mesmo, atuando diretamente como instrumento de política pública, independente da realização da despesa pública. (Neto, 2012, p. 64)

Cabe notar que a distinção dos dois fundamentos não se dá, na prática, de forma perceptível, dado que não há dessemelhanças formais entre os tributos fiscais e extrafiscais, exceto no que concerne às derrogações e peculiaridades positivadas do fenômeno extrafiscal. Ademais, quanto à finalidade visada e à eficácia produzida, nota-se uma coexistência de ambos os fundamentos da norma tributária (Neto, 2012, p. 65-66).

A terminologia extrafiscalidade não se encontra positivada no ordenamento pátrio, originando-se de uma construção doutrinária. O vocábulo refere-se a uma situação atípica de exercício da competência tributária: elementos que extrapolam o interesse arrecadatório, preconizando o tratamento individualizado de situações específicas ou normas tributárias. Dessarte, a extrafiscalidade expõe uma faceta mais complexa dos tributos: como instrumentos de política pública, atuando na intervenção econômica e social (Neto, 2012, p. 62)

O prefixo “extra” do adjetivo “extrafiscal” apresenta certa ambiguidade, subentendendo-se que há a inclusão no discurso tributário de temas não pertinentes à sua matéria, devendo a tributação ser, em alguma medida, neutra. A neutralidade fiscal alvitra a não interferência do tributo no processo econômico, este não devendo alcançar outros fins, senão o arrecadatório. Afirmar que as exações não devem extrapolar a finalidade arrecadatória é assumir que, inevitavelmente, os tributos farão mais do que alimentar os cofres públicos (Neto, 2012, p. 62;75)

O pensamento de que o imposto tem funções econômicas, sociais e políticas, data da criação dos primeiros tributos. Nunca houve tributo neutro. Todos os impostos têm função social, econômica e política, inclusive aqueles que costumeiramente não são tidos por extrafiscais, porque os próprios impostos chamados de pura fiscalidade são transferidores de riquezas de uma para outra classe ou criadores de novas fontes de produção para o bem-estar social (Deodato, 1949, p. 147-148 apud Neto, 2012, p. 76).

Cumpre observar que a não interferência pode representar um “intervencionismo às avessas”, na medida em que contribui para a manutenção ou acentuação das desigualdades existentes. O direito tributário busca, principalmente, gerar receita para o Estado, mas também pode influenciar comportamentos, por meio da extrafiscalidade. A neutralidade do sistema tributário é, na verdade, direcionada a fins específicos e não é absoluta; ela visa evitar distorções e promover efeitos positivos que ajudem a cumprir objetivos constitucionais e garantir a isonomia (Neto, 2012, p. 92-93).

Uma análise intrigante sugere que a desigualdade de renda e riqueza possui um caráter inercial significativo, moldado por fatores estruturais e aspectos institucionais. Isso resulta em diversas decisões políticas que favorecem uma dinâmica entre o Estado e as elites econômicas. As instituições têm o potencial de mitigar a desigualdade por meio de intervenções tributárias, que podem criar oportunidades ou acarretar desvantagens. O sistema político institucional desempenha um papel crucial como mediador nas questões distributivas da economia (Silva, 2020, p. 44).

Desde 1988, diversas legislações foram implementadas para regulamentar e reformar o sistema tributário brasileiro. Mudanças significativas ocorreram em 1995 e 1996, com um pacote tributário destinado a estimular o investimento, o que gerou resultados contrários ao esperado. Recentemente, o debate nacional tem se concentrado na simplificação tributária e na diminuição da carga fiscal. Embora novas propostas visem a desonerar o setor produtivo — um aspecto crucial para o desenvolvimento — elas não são suficientes para garantir um crescimento inclusivo e uma sociedade mais justa, resultando em um foco na eficiência, em detrimento da equidade (Silva, 2020, p. 45).

Outra margem de interpretação que os étimos do termo extrafiscalidade sugere é de que o tributo pode alcançar outras finalidades além da arrecadatória e gerar mudanças significativas na conjuntura em que se encontra. É assumir que, inquestionavelmente, a atividade tributária suplanta o caráter instrumental e o elemento finalístico do tributo, influenciando a atividade econômica, realocando recursos e moldando as condutas dos contribuintes. A extrafiscalidade possibilita a análise da eficácia e da finalidade da matéria tributária, expandindo a interpretação das alusivas normas jurídicas (Neto, 2012, p. 62-63)

Infere-se que o termo extrafiscalidade abrange mais de um sentido, sendo aplicável em âmbitos distintos. Celso de Barros Netos (2012), elucida as diferentes exteriorizações do fenômeno da extrafiscalidade: (1) intento não financeiro que respalda o uso atípico do tributo; (2) regime jurídico especial, o qual expõe faceta diversa da arrecadação e impõe supressões à espécie; (3) leis e regulamentos que não apenas buscam a arrecadação de tributos (norma jurídica tributária extrafiscal) e (4) impactos sociais e econômicos gerando norma tributária. Nesse contexto, a extrafiscalidade é considerada uma abordagem eficaz (Neto, 2012, p. 80-84).

O sistema tributário brasileiro apresenta distorções que prejudicam a economia, especialmente quando analisado sob a ótica da eficiência tributária. Enquanto a equidade se preocupa com a isonomia entre contribuintes e sua capacidade de pagamento, a eficiência busca minimizar as distorções econômicas causadas pela tributação. Portanto, é crucial considerar os objetivos sociais ao projetar o sistema tributário, já que, em certos casos, eficiência e equidade podem exigir abordagens opostas para promover a justiça social. (Passos et al, 2018, p. 6).

As normas tributárias podem ser vistas como instrumentos essenciais para a efetivação de direitos fundamentais, especialmente aqueles de terceira geração. Nessa perspectiva, não se estabelece uma oposição entre tributos e direitos fundamentais, e a tributação não se limita a ser um mero meio de financiamento. Ao contrário, a legislação tributária desempenha um papel ativo na realização desses direitos, que são entendidos como metas a serem alcançadas. Um exemplo ilustrativo é a utilização de “normas tributárias indutoras” — por meio de agravamentos ou desonerações — direcionadas à proteção ambiental, conforme estipulado no artigo 225 da Constituição (Barros, 2017, p. 41).

É pertinente mencionar que a extrafiscalidade não se limita a uma única categoria tributária, manifestando-se pelas diversas espécies e por meio de diferentes mecanismos e formas. Isso abrange, desde a hipótese de incidência e as normas tributárias, até outras disposições que possam alterar os efeitos da norma original e a destinação específica dos recursos. A atuação extrafiscal pode ser exercida de maneira positiva, por meio de incentivos ou agravamentos, ou de forma negativa, por meio de desagravos, visando a alcançar as suas metas específicas. Insta salientar que a essência tributária da norma permanece inalterada, embora a sua finalidade seja extrafiscal (Neto, 2012, p. 95-96).

A política fiscal, ao utilizar a tributação como ferramenta, busca promover a justiça social, onde aqueles com maior capacidade contributiva pagam mais impostos, permitindo que o Estado invista em benefícios para toda a sociedade. Contudo, a realidade brasileira diverge desse modelo ideal. Ao contrário dos países da OCDE, que priorizam a tributação da renda e da riqueza, o Brasil impõe uma carga tributária maior sobre o consumo e a prestação de serviços, invertendo a lógica esperada (Silva, 2020, p. 64 e 65).

O imposto progressivo é um método relativamente liberal para diminuir desigualdades, pois mantém a livre concorrência e a propriedade privada, ao mesmo tempo que altera os incentivos privados de forma previsível e contínua, seguindo regras estabelecidas democraticamente em um Estado de direito. Esse tipo de imposto reflete um compromisso ideal entre justiça social e liberdade individual. Por isso, não é surpreendente que os países anglo-saxões, historicamente mais valorizadores das liberdades individuais, tenham avançado com mais firmeza na progressividade fiscal no século XX (Piketty, 2014, p. 627).

A questão dos impostos transcende a técnica, sendo fundamentalmente política e filosófica. Tradicionalmente, distingue-se entre impostos sobre a renda, sobre o capital e sobre o consumo. No entanto, um critério mais relevante para classificar os impostos é a sua natureza proporcional ou progressiva. Um imposto é considerado proporcional quando a taxa é a mesma para todos e é progressivo quando a taxa é maior para os mais ricos. Os impostos regressivos, por sua vez, são aqueles que a taxa diminui para os mais ricos, seja por escaparem do regime ordinário ou ou devido à estrutura do sistema, como ocorreu com o poll tax, que contribuiu para a queda de Margaret Thatcher em 1990 (Piketty, 2014, p. 612-614).

A progressividade fiscal tem um impacto significativo na desigualdade. A análise da progressividade exclusivamente com base na renda atual tende a subestimar a desigualdade, uma vez que não leva em conta a riqueza herdada, a qual é frequentemente sujeita a uma tributação inferior. Deste modo, ao incluir a herança na análise, a desigualdade se mostra ainda maior, especialmente entre os mais ricos. Logo, o imposto progressivo é essencial para o funcionamento do Estado de Bem-Estar Social, mas enfrenta desafios, como a escassez de discussões aprofundadas sobre sua relevância e a concorrência fiscal entre países, que possibilita indivíduos de alta renda eludirem a tributação (Piketty, 2014, p. 614-616).

4. Análise da extrafiscalidade da Lei nº 14.754/23: tributação de rendas no exterior e impacto na distribuição de riqueza

As estruturas societárias no exterior são os instrumentos financeiros mais utilizados pelos brasileiros para investir fora do país, sendo ordinariamente denominadas de entidades offshore[19] que, em sua maioria, estão localizadas em jurisdições consideradas paraísos fiscais[20] (Navarro, 2022, p. 196; Piovesan et al, 2023). A Medida Provisória nº 1.171, de abril de 2023, introduziu mudanças significativas na tributação de rendimentos auferidos por pessoas físicas residentes no Brasil, em investimentos no exterior, sujeitando-os ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), além de promover uma atualização na tabela progressiva do IRPF (Caldeira, 2023, p. 4).

As offshore são consideradas mais fáceis de manejar, em comparação com outros instrumentos de investimento internacional. Do ponto de vista legal, essas estruturas oferecem soluções eficazes para aqueles que desejam preservar e perpetuar o patrimônio alocado. Sob a perspectiva fiscal, destacam-se vantagens como a possibilidade de compensar ganhos e perdas na carteira de investimentos no exterior, consolidando os lucros e prejuízos na própria entidade. Para mais, havia a isenção de tributação sobre os lucros no país de domicílio da entidade offshore, bem como a possibilidade de diferimento do imposto de renda sobre eventuais lucros e ganhos (Navarro, 2022, 196).

Esses arranjos societários possibilitavam, ainda, o acúmulo de capital isento de tributação no exterior. Ao mesmo tempo que o diferimento[21] da tributação traz vantagens para o investidor, ele prejudica os interesses nacionais ao comprometer a equidade tributária e distorcer a alocação de recursos (Caldeira, 2023, p. 7). Um investidor que adquire um título do Tesouro de outro país é tributado no Brasil ao receber os juros. No entanto, ao utilizar empresas em jurisdições de baixa ou nula tributação, os juros ficavam isentos de impostos no Brasil, sendo a tributação aplicada apenas na transferência do lucro para a pessoa física, como em dividendos ou retiradas (Ministério da Fazenda, 2023, p. 6).

Verifica-se que o comprometimento do interesse nacional se manifesta no fato de que os aportes brasileiros estão sujeitos à tributação antes de qualquer reinvestimento (Ministério da Fazenda, 2023, p. 7). Isso leva a uma preferência por remeter recursos para o exterior, em vez de investir localmente, resultando em distorções no mercado. Dados do Ministério da Fazenda (2024) indicam que cerca de 100 mil brasileiros possuem ativos que somam mais de R$1 trilhão no exterior, os quais permaneciam quase isentos de tributação, até serem transferidos para o Brasil (Piovesan et al, 2023). Além disso, esse diferimento gera injustiça tributária e contribui para a concentração de renda, uma vez que favorece os contribuintes de alta renda, que são os principais detentores desses investimentos no exterior.

A discussão sobre a tributação de lucros em paraísos fiscais é longínqua. Ao longo dos anos, diversas propostas legislativas foram apresentadas com o objetivo de incluir esses rendimentos na base de cálculo do Imposto de Renda, como a Medida Provisória 627/2013, que propunha tributar esses lucros a 15%, e o Projeto de Lei 2.337/2021, que estabelecia alíquotas de até 27,5% (Ministério da Fazenda, 2023, p.7). A mais recente tentativa frustrada foi o texto da MP 1.171/23, incorporado à MP 1.172/23, que reajustou o salário-mínimo. Após negociações políticas, a MP 1.172/23 foi aprovada, sem a inclusão desse ponto (Piovesan et al, 2023).

A lei 14.754/2023 representa um avanço em relação a tentativas anteriores de regulamentar a tributação de investimentos no exterior. Oriunda do Projeto de Lei 4.173/2023, retoma a discussão sobre a tributação de rendimentos obtidos por brasileiros em fundos e outras entidades financeiras estrangeiras, similar ao que foi proposto na Medida Provisória 1171/23. A Exposição de Motivos[22] nº 00105/2023, relativa ao PL 4173/23, destaca a desigualdade e a regressividade do sistema tributário brasileiro. No que diz respeito aos trusts[23], instrumentos usados por famílias de alta renda para planejamento patrimonial e sucessório, aponta que a ausência de regulamentação sobre sua tributação cria insegurança jurídica.

A retromencionada legislação, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2023-2026), conduziu transmutações significativas no regime tributário nacional, especialmente no que concerne à tributação de ativos financeiros no exterior pertencentes a pessoas físicas residentes no Brasil. Isto posto, constata-se que esse novo encargo tributário suplanta a mera arrecadação, forcejando implementar as seguintes políticas públicas: (1) redistribuição de renda; (2) esquivança da evasão fiscal; e (3) fomento à transparência. Outrossim, viabiliza-se proveitos na melhora da competitividade das empresas brasileiras e fortalecimento da cooperação internacional.

Com o objetivo de tornar a tributação mais uniforme e progressiva, o §1º do art. 2º institui uma nova diretriz para a tributação dos rendimentos provenientes de capital aplicado no exterior, instituindo a alíquota única de 15% para esses haveres. O caput do artigo define que os rendimentos de capital obtidos fora do país devem ser declarados separadamente na Declaração de Ajuste Anual (DAA). No caso dos ganhos de capital obtidos por meio de alienação, baixa ou liquidação de bens e direitos localizados no exterior, que não sejam aplicações financeiras, a tributação segue normas específicas previstas na Lei nº 8.981/1995 (Brasil, 2023).

É facultado à pessoa física que possui uma entidade controlada no exterior a escolha pelo regime de transparência fiscal desta instituição, exclusivamente para fins de imposto de renda. Esse regime propende otimizar a tributação e impedir que a offshore seja empregada como um instrumento para adiar a incidência de tributos sobre lucros e rendimentos. A classificação dos bens da offshore como propriedade direta da pessoa física permite à Receita Federal garantir uma tributação mais imediata sobre o patrimônio e os rendimentos provenientes desses ativos (Ministério da Fazenda, 2023, p. 26).

Art. 8º Alternativamente ao disposto nos arts. 5º, 6º e 7º desta Lei, a pessoa física poderá optar por declarar os bens, direitos e obrigações detidos pela entidade controlada, direta ou indireta, no exterior como se fossem detidos diretamente pela pessoa física. (Brasil 2, 2023)

 O § 3º do art. 2º conserva a isenção para a variação cambial de depósitos não remunerados mantidos no exterior, revogando o § 4º do art. 25 da Lei nº 9.250/1995, aprimorando a redação do dispositivo para proporcionar maior segurança jurídica. Os §§ 4º e 5º do art. 2º incluem no Projeto as normas de tributação referentes aos ganhos obtidos com a alienação de moeda estrangeira em espécie, estabelecendo a isenção da incidência do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) até o limite de US$ 5.000,00 (cinco mil dólares americanos) (Brasil, 2023).

O art. 5º aborda questões relacionadas à subtributação dos lucros de sociedades e outras entidades, sejam elas personificadas ou não, localizadas no exterior e controladas por pessoas físicas residentes no Brasil, que se coadunam ao conceito de controlled foreign corporations (CFC), assegurando a tributação periódica desses rendimentos e evitando o deferimento tributário (Brasil, 2023).

Naturalmente, há um desestímulo à sonegação fiscal com uma tributação mais veemente aos rendimentos obtidos no exterior. Na DAA, o cidadão tributante deverá incluir todos os rendimentos provenientes de aplicações financeiras no exterior do ano-base, como juros recebidos e resgates de títulos, tanto de investimentos diretos quanto de empresas offshore, aplicando uma alíquota de 15%. A tributação ocorre quando os lucros são reconhecidos no balanço, independentemente da decisão sobre a distribuição de dividendos. A obrigatoriedade de declarar separadamente esses rendimentos viabiliza um aumento na transparência, na arrecadação e combate à evasão fiscal (Ministério da Fazenda, 2023, p. 4; 10-11).

Insta mencionar ainda que a tributação de trusts fundamenta-se no conceito de transparência fiscal, comumente aplicado em outros países para regulamentar esse instituto. Inicialmente, os ativos transferidos para o trust são considerados como pertencentes ao instituidor. Posteriormente, quando esses ativos são disponibilizados ao beneficiário ou no caso de falecimento do instituidor, eles são transferidos para a titularidade do beneficiário (Ministério da Fazenda, 2023, p. 12).

Art. 10. Para fins do disposto nesta Lei, os bens e direitos objeto de trust no exterior serão considerados da seguinte forma:

I – Permanecerão sob titularidade do instituidor após a instituição do trust; e

II – Passarão à titularidade do beneficiário no momento da distribuição pelo trust para o beneficiário ou do falecimento do instituidor, o que ocorrer primeiro.

(Brasil, 2023)

A legislação em pauta se caracteriza como uma norma redistributiva que visa corrigir as distorções no sistema tributário brasileiro, ao instituir a tributação sobre os rendimentos de investimentos no exterior, em demasia realizados pela classe abastada da sociedade. Essa medida tem como objetivo decrescer a concentração de riqueza e promover uma distribuição mais equitativa dos recursos. O vácuo legislativo anterior produzia injustiças fiscais, à medida que consentia com o acúmulo de capital dos contribuintes de alta renda sem o devido aporte tributário (Ministério da Fazenda, 2023, p. 8).

Pode-se concluir que a tributação de pessoas físicas tem o potencial de introduzir um certo grau de progressividade no sistema, tendo em vista a viabilidade de graduação dos impostos pessoais, em função da renda auferida pelo contribuinte, em contraste com a tributação de empresas, que tendem a ser regressiva. Deste modo, fica evidente que o aprimoramento da administração tributária é fundamental para garantir a qualidade do sistema tributário (Piketty, 2014, p. 632).

5. Considerações finais

A querela sobre a distribuição de riqueza e renda tem sido um ponto crucial nas discussões econômicas, ao longo da história. A ideologia neoliberal do século XX, ao enfraquecer os instrumentos de redistribuição de renda, contribuiu para a formação de uma aristocracia moderna, concentrando riqueza em uma elite econômica. Desse modo, o contexto histórico e político-tributário global evidencia a necessidade da intervenção estatal para alcançar uma sociedade mais alinhada a um ideal democrático.

Como reação às crescentes desigualdades, o Brasil tem intensificado a implementação de programas de transferência de renda. Entretanto, a eficácia desses programas é limitada, uma vez que, isoladamente, não corrigem os desequilíbrios macroeconômicos, funcionando como medidas paliativas. Portanto, torna-se essencial a coadjuvação de políticas tributárias com as de transferência de renda para alcançar resultados mais abrangentes.

Logo, as fissuras centrais do sistema tributário brasileiro afetam não só a distribuição de renda, mas também o crescimento econômico, o nível reduzido de investimentos e a eficiência da carga tributária, especialmente no que diz respeito à tributação do capital e à organização dos tributos sobre bens e serviços.

É certo que a ação primeva das exações é o financiamento do Estado. Todavia este não é o depauperamento de seus efeitos. A tributação tem o potencial de influir na alocação de recursos econômicos e nos comportamentos presentes no sistema fiscal, contribuindo para uma distribuição mais equitativa da renda por meio da extrafiscalidade, dentre outros objetivos econômico-sociais.

Nessa vereda, a extrafiscalidade se revela um instrumental estratégico para a condução das políticas públicas, permitindo que o Estado, por meio da modulação da carga tributária, direcione as atividades econômicas e sociais para o alcance de objetivos específicos. Ao romper com o princípio da neutralidade fiscal cega e irrestrita, a tributação passa a ser utilizada como um mecanismo de intervenção estatal, viabilizando a redistribuição de renda e o desenvolvimento econômico.

Em síntese, a extrafiscalidade, ao transformar o sistema tributário em um instrumento de engenharia social, permite ao Estado direcionar o desenvolvimento econômico e social, promovendo a equidade, a eficiência econômica e a sustentabilidade. Ao adotar uma perspectiva multidimensional da política fiscal, o Estado pode conciliar os objetivos de crescimento econômico com a promoção da justiça social.

Posta assim a questão, frisa-se que a transformação necessária da política fiscal não se resume à simples elevação da carga tributária para alguns segmentos da população e à redução para outros. Ela exige uma análise crítica e uma otimização da eficiência do gasto público, reconhecendo que a forma como o governo aloca os recursos arrecadados é tão importante quanto a maneira de arrecadá-los.

Dessa maneira, a redistribuição de renda eficiente visa a alcançar a igualdade material, uma questão principiológica constitucional, e não somente penalizar os mais abastados, mas acorrer aos menos favorecidos e fomentar o desenvolvimento social.

Nesse contexto, a Lei nº 14.754/23, que dispõe sobre a tributação de aplicações financeiras e rendimentos no Brasil e no exterior, representa um avanço significativo na busca por maior equidade no sistema tributário brasileiro. Essa legislação surge como uma resposta à injustiça fiscal gerada por investimentos em paraísos fiscais, que nada contribuem com a evolução da sociedade e da economia brasileiras.

Com a intensificação da taxação de rendas superiores e a promoção da progressividade fiscal, a normativa busca contribuir para uma distribuição mais justa da riqueza, incorporando dispositivos que promovem maior transparência e evitam a fuga de capitais, assegurando que todos cumpram suas obrigações tributárias, independentemente da localização dos investimentos.

Em linhas gerais, ao tributar rendas que anteriormente escapavam à tributação, essa medida reduz a regressividade do sistema tributário, alinhando-o aos princípios de justiça social e equidade da Constituição de 1988, avançando para um sistema tributário mais justo e eficiente, com uma cobrança tributária mais equitativa e uma diminuição das possibilidades de evasão fiscal.

A desigualdade não é um fenômeno orgânico, mas decorre, em grande parte, das decisões políticas e econômicas adotadas por cada Estado. Este trabalho, de caráter eminentemente teórico, destaca uma problemática que intensifica a natureza multidimensional da inequidade de renda, sem pretender oferecer uma solução definitiva ou uma panaceia para essa questão histórica.

Ao ensejo da conclusão deste artigo, é fundamental reconhecer que a integração entre normas tributárias e direitos fundamentais não apenas reforça a função do sistema tributário como meio de financiamento, mas também o posiciona como um agente ativo na promoção de objetivos sociais. Assim, a tributação pode ser uma ferramenta poderosa para fomentar políticas públicas que visem à justiça social, à sustentabilidade e à igualdade, refletindo um compromisso com a realização plena dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.

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[1]Graduanda do curso de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – UNICEPLAC. E-mail: esterramosdpdf@gmail.com.

[2] Professor do curso de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – UNICEPLAC. Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne).

[3]Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, publicado no DANC de 5 de outubro de 1988, p. 14380-14382.

[4] Em 11 de março de 2020, o surto do SARS-CoV-2 foi caracterizado pela OMS como uma pandemia (OPAS).

[5]O neologismo denota um cenário de estagnação econômica combinada com inflação elevada, além do aumento do desemprego (Banco Mundial).

[6] Estado de Bem-Estar Social (do inglês, Welfare State) é um modelo de governo assistencialista e intervencionista.

[7] A ‘supply-side econonomics’ (economia do lado da oferta), defende que cortes significativos de impostos para indivíduos e corporações, juntamente com a desregulamentação e incentivos para investimentos, podem aumentar a oferta de bens e serviços, levando ao crescimento econômico sem inflação. Baseada na Lei de Say e apoiada por economistas clássicos e monetaristas, essa abordagem também é criticada pelos keynesianos, que acreditam que a demanda agregada é o principal motor da economia.

[8] Corrente ideológica da social-democracia que consiste em propor um modelo econômico que combina a proteção social com a eficiência do mercado, buscando um equilíbrio entre a intervenção estatal e a liberdade econômica.

[9] Expressão Francesa que significa “deixe fazer”. Ela simboliza o liberalismo econômico na sua forma mais pura, defendendo que o mercado deve funcionar sem intervenções do governo. 

[10] Teoria econômica proposta pelo economista Simon Kuznets, que descreve a relação entre o desenvolvimento econômico e a desigualdade de renda em uma sociedade. Segundo essa teoria, o crescimento econômico tende, em primeiro plano, a aumentar a desigualdade de renda. Contudo, no seu estágio mais avançado, observa-se uma diminuição orgânica das disparidades econômicas (Piketty, 2014)

[11] Forma de organização do Estado em que os entes federados são dotados de autonomia administrativa, política, tributária e financeira e se aliam na criação de um governo central por meio de um pacto federativo. O Federalismo surgiu da necessidade, principalmente, de países com grandes extensões territoriais descentralizar o seu poder. Nesses países, há diversidades culturais, climáticas, sociais e econômicas, de modo que as necessidades e prioridades diferem muito de uma região para a outra (Enap, 2017, p. 7).

[12] Países que cobram IGF: Espanha, Noruega, Suíça, Argentina, Bolívia, Uruguai e Colômbia.

[13] O Brasil apresentou proposta no G20 para criar um imposto global sobre grandes fortunas para financiar o enfrentamento das mudanças climáticas e da pobreza extrema, angariando a simpatia de algumas das nações mais poderosas do planeta para a iniciativa. Ministros da Alemanha, da França e da Espanha expressaram entusiasmo pela ideia, e a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), prometeu ajuda para tirá-la do papel (Balthazar, 2024).

[14] Outra forma de estudarmos a desigualdade de rendimentos, além do cálculo do Índice de Gini, é analisando os percentis de renda. Os percentis, decis e quantis são calculados ordenando a população de forma crescente a partir do nível de renda. Se uma economia possui 100 pessoas, por exemplo, ordenam-se essas pessoas por ordem de renda e divide-se a população em grupos com o mesmo número de pessoas. Assim, se existem 10 subsegmentos, temos os decis – cada grupo contendo 10% da população. Por fim, os dados ainda podem ser subdivididos em percentis, neste caso a população é dividida em centésimas partes, cada parte teria 1% dos dados. Para calcular uma medida de distribuição de renda, obtemos a renda apropriada por cada um dos decis da distribuição de renda, juntamente com o último percentil, que é o valor equivalente ao 1% mais rico da população. (PNAD, 2024).

[15]  Vice-presidente de Assuntos Tributários da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) (Agência Senado, Westin, 2021)

[16] Aumento (diminuição) da alíquota conforme o montante sujeito à cobrança aumenta (Rodrigo, 2016)

[17] Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Agência Senado, Westin, 2021)

[18] A doutrina chama de “Estado Fiscal” o modelo de estado cujas necessidades são essencialmente cobertas por impostos. A ideia de Estado Fiscal pode ser entendida como a projeção financeira do Estado de Direito (Neto, 2012, p.67).

[19] Offshore é um termo utilizado para designar “empresas” constituídas no exterior. Essas empresas podem ser uma sociedade limitada, ou uma sociedade por ações, como conhecemos no Brasil. Além disso, a depender da lei do país em que são constituídas, as offshores podem ser constituídas como sociedades ou entidades não personificadas, que não têm equivalente no Brasil, como partnerships, foundations e fundos de investimento com normas bem diferentes dos fundos brasileiros. Nos fundos de investimento com classes de cotas (como os segregated portfolio funds), cada classe de cotas deve ser considerada como uma entidade separada (Ministério da Fazenda, 2023, p. 5).

[20] Os brasileiros podem constituir empresa em qualquer país, seguindo a lei daquele país. No entanto, para investimentos financeiros, tipicamente, as off-shores são constituídas em países que não tributam a renda, ou que a tributam a alíquotas muito baixas, conhecidos como paraísos fiscais. A definição legal de jurisdição de tributação favorecida e de regimes fiscais privilegiados constam do art. 24 e do art. 24-A da Lei no 9.430, de 1996 (Ministério da Fazenda, 2023, p.8).

[21] Diferimento tributário é permitir a postergação do recolhimento do imposto até um momento futuro, que pode demorar muitos anos para ocorrer (Ministério da Fazenda, 2023, p.7).

[22] A exposição de motivos é um texto que acompanha proposições legislativas (p.e. projetos de lei), explicando a proposta e as razões para a edição e aprovação da norma proposta. 

[23] Os trusts são contratos regidos por lei estrangeira que trazem regras de destinação do patrimônio das pessoas que o instituem (“instituidores”) para os seus herdeiros (“beneficiários”). Os trusts funcionam como uma espécie de testamento mais sofisticado. O patrimônio fica em nome de um terceiro, que pode ser uma empresa especializada ou uma pessoa (“trustee”). O trust pode conter termos, encargos e condições para distribuição do patrimônio aos herdeiros (Ministério da Fazenda, 2023, p.12).

A regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

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A regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade

Pedro Victhor Gomes Lacerda

Resumo

Nos últimos anos, tem havido um crescente interesse na regulação de tecnologias emergentes, como a inteligência artificial e a blockchain. No entanto, a regulação por meio da tecnologia apresenta desafios únicos, uma vez que essas tecnologias são complexas e dinâmicas, com efeitos imprevisíveis e difíceis de avaliar. A economia da complexidade oferece uma estrutura teórica para entender esses desafios e explorar as possibilidades e limites da regulação pela tecnologia. Este artigo tem como objetivo discutir as implicações da economia da complexidade para a regulação pela tecnologia e destacar as questões críticas que precisam ser abordadas para alcançar uma regulação eficaz e equitativa. Nessa perspectiva, será abordado o papel da regulação na tecnologia, bem como as implicações da regulação pela tecnologia para a governança democrática, a justiça social e a responsabilidade. Por fim, serão apresentadas algumas perspectivas futuras para a regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade.

Introdução

A crescente utilização dos algoritmos em todos os aspectos da nossa vida. A evolução da tecnologia, a popularização de tecnologias pessoais como os computadores e os celulares alinhados com a popularização e o “fácil acesso” à internet colocaram a internet no centro das discussões de várias áreas acadêmicas. Reflexo desse fenômeno, as empresas de tecnologia hoje são posicionadas como as mais influentes do mundo, sendo protagonistas nas discussões que envolvem tecnologia e a proteção de direitos pessoais (ULBRICHT; YEUNG, 2022).

Os governos, universidades e o setor privado vêm fazendo grandes investimentos para não apenas para coletar e armazenar dados, mas também para descobrir maneiras de extrair novos conhecimentos dos crescentes bancos de dados (MEDINA, 2015).

A cultura da alta tecnologia é tomada por um entusiasmo – também movido por interesses capitalistas – que celebra a tecnologia como uma solução mágica para os problemas sociais, ao mesmo tempo em que abraça valores como a individualidade, responsabilidade social e superioridade do poder inovativo do setor privado frente ao poder estatal.

Apesar do entusiasmo com as infinitas possibilidades oferecidas pelo avanço da tecnologia, o crescimento desorganizado das inovações tecnológicas pode trazer riscos à direitos até então bem definidos e protegidos pelo direito.

O avanço da tecnologia e sua relação com a proteção de direitos pessoais e coletivos exige, portanto, uma revisitação às categorias jurídicas e uma adaptação da regulação existente (FRAZÃO, 2017).

Os primórdios da regulação pela tecnologia

Em meados da década de 1990, em um contexto de euforia pós-comunista, com a consolidação do poder político dos Estados Unidos, surgiu no ocidente um novo tipo de sociedade que, ao contrário da experiência comunista recém fracassada, prometia liberdade irrestrita e um ambiente completamente livre das amarras estatais.

O ciberespaço surgiu de uma experiência militar dos Estados Unidos, e prometia um tipo de sociedade que o espaço real nunca permitiria, onde não só as leis do mundo físico não se aplicariam no ambiente virtual, mas, na visão do movimento libertário, o governo por uma questão de legitimidade não poderia regular o ciberespaço.

Lessig (2000) afirma que a mão invisível do ciberespaço – ou seja, o processo espontâneo de desenvolvimento e regulação do ambiente digital – está construindo uma arquitetura exatamente oposta à que existia em sua concepção inicial. Antes vista como um ambiente de liberdade e privacidade, hoje a arquitetura da internet é usada para coletar dados, monitorar comportamentos e controlar informações (PASQUALE, 2015).

Reindeberg (1997) entende que o código atua como uma restrição ao comportamento humano no ciberespaço, cunhando o conceito de “Lex Informatica” como o conjunto de regras para fluxos de informação impostas pela tecnologia e redes de comunicação. De acordo com esse conceito, o código é tratado como lei (code is law), ou seja, a arquitetura do código é tratada como o meio mais eficaz de regulação do comportamento.

Basicamente, duas correntes teóricas divergem acerca do tratamento regulatório da regulação do ciberespaço. O ciberlibertarianismo argumenta que, uma vez que as leis do mundo físico estão sujeitas à territorialidade e jurisdição, não seria possível aplicá-las ao ambiente transfronteiriço do mundo virtual. Não obstante, ainda defendem que haveria uma ilegitimidade legislativa, visto que, sendo o ciberespaço um ambiente único e integrado, não haveria

autoridade ou Estado com legitimidade para impor restrições ao mundo digital. Nesse sentindo, defendem que a regulação digital deve ocorrer por outros meios que não pelos dispositivos jurídicos tradicionais do direito.

O ciberpaternalismo, por sua vez, afirma que as atividades desenvolvidas na internet se assemelham a atividades transnacionais que, se acontecessem no mundo físico, seriam reguladas. Assim, buscam integrar a arquitetura da internet ao contexto fático e jurídico do mundo físico, de modo que as ações praticadas no ciberespaço sejam amparadas pelas mesmas normas do mundo físico, porém com o auxílio de tecnologias adaptativas para o ambiente digital.

Entretanto, Ostercamp (2021) afirma que ambas as correntes apresentam fragilidades, pois assumem implicitamente que o código é capaz de exercer o controle perfeito do ambiente digital, seja por meio da autorregulação, seja por meio de uma autoridade estatal. O autor afirma que o código pode ser contornado, e que o controle imperfeito exercido pelo código deixa lacunas regulatórias que podem ser preenchidas por outros fatores, como a influência das leis, mercados ou normas sociais.

De Fillipi e Hassan (2016), ao tratar da regulação no contexto do blockchain, sugerem uma transição do code is law para o code as law, onde o código pode ser usado para implementar regras específicas no ambiente tecnológico. Entretanto, tal medida também esbarra em limitações provenientes da natureza incompatível do direito com o código. A linguagem utilizada pelo código é específica e literal, enquanto a linguagem jurídica possui uma textura aberta e generalizada, para que o dispositivo legal possa se subsumir às situações da vida cotidiana com maior facilidade, deixando a cargo do julgador a aplicação da norma em cada caso concreto.

Converter a linguagem natural do direito para a linguagem binária do código é um desafio para os juristas e programadores. Apesar de haver exemplos de aplicação desse tipo técnica, como os smart contracts, à medida que o cenário fático se torna mais complexo, também é mais desafiador programar normas que se adaptem a cenários mais complexos e com mais variáveis.

Para além das teorias de code is law e code as law, Ostercamp sugere uma descrição alternativa conhecida como code and law, onde defende que a regulação do ciberespaço não é puramente arquitetônica, mas um híbrido de arquitetura e processo social. Para além da

arquitetura do código, algumas funções regulatórias são determinadas por seres humanos por meio de leis e hierarquias.

Segundo Hidelbrandt (2016), em razão da interdependência entre direito e tecnologia, é fundamental que juristas e cientistas da computação se comuniquem e colaborem de maneira mais cooperativa para que compreendam as perspectivas e necessidades uns dos outros. Tal medida, contudo, envolve uma abordagem interdisciplinar e a atuação de vários outros agentes públicos e privados que têm interesses e objetivos diversos em pauta.

Regulação pela tecnologia

A regulação pela tecnologia, denominada por Ulbricht e Yeung (2022) como “regulação algorítmica”, pode ser definida como as tentativas conscientes de gerenciar riscos ou alterar comportamentos para alcançar um objetivo “pré-especificado”. Essas tentativas ocorrem por meio de procedimentos codificados para solucionar um problema por meio da transformação de dados de entrada em um resultado desejado (YEUNG, 2018).

Esse conceito direciona sua atenção a analisar como os sistemas computacionais são projetados, configurados e implementados para atingir um propósito específico, bem como os impactos sociais causados por esses mecanismos. A dificuldade de compreender o algoritmo em sua totalidade pode levar a uma concepção equivocada do algoritmo como um processo isolado, ou uma falha em perceber como o poder pode ser exercido através da tecnologia (BEER, 2017).

A regulação algorítmica pode ser entendida como um processo que envolve essencialmente três componentes: (i) o estabelecimento de padrões; (ii) a coleta de informações; e (iii) a aplicação de padrões e modificações de comportamento. No primeiro nível, definem-se as normas e os critérios que devem ser atendidos pelo sistema algorítmico para atingir o objetivo determinado; no segundo nível, atua-se de forma reativa (detectando violações com base em dados históricos) ou preditiva (aplicando algoritmos de aprendizado para prever e interferir em comportamentos futuros); por fim, no último nível o sistema pode administrar uma sanção especificada automaticamente ou fornecer assistência a um tomador de decisões humano (YEUNG, 2018).

Hildebrandt (2018) divide a regulação algorítmica em duas: (i) code driven regulation, onde os algoritmos podem operar automaticamente e modificar o comportamento dos usuários

sem a necessidade de intervenção humana direta, e (ii) data driven regulation, onde os algoritmos preditivos usam dados para monitorar e prever comportamentos a fim de fornecer suporte ou aconselhamento de decisão.

Na regulação orientada por código (code driven regulation), o comportamento a ser regulado depende de uma série de condições “se isso” e ações correspondentes “então aquilo” (em inglês, “if this, then that”, ou IFTTT). Ou seja, se uma determinada condição for atendida, uma ação será tomada automaticamente sem a necessidade de intervenção humana. Segundo Hitelbrand, esse tipo de lógica é determinística e previsível, pois quem determina “isso” como condição do “aquilo” decide o output do sistema, que não tem qualquer discrição.

Tais decisões podem ser visualizadas como uma árvore onde, a depender da entrada, os caminhos serão traçados de maneiras diferentes e, consequentemente, a decisões diferentes e pré-determinadas. Entretanto, a regulação nesse contexto depende de como as normas (legais ou não) foram traduzidas para o código de computador.

Quanto à essa questão, Ostercamp (2021) afirma que, embora o código que integre a lei possa permitir a execução automática ex-ante, a generalidade do código e a reatividade das formas tradicionais do direito podem resultar no código ultrapassando o desenvolvimento do direito tradicional, levando ao surgimento cíclico de novas tecnologias que se diferenciam das restrições legais impostas.

Já na regulação orientada por dados (data-driven regulation), o código é informado pelos dados nos quais foi treinado em vez de ser informado por especialistas que traduziram as regras e as colocaram no código. Esse modelo de regulação utiliza técnicas como machine learning e análise de dados para monitorar, prever e influenciar o comportamento das pessoas e organizações.

A regulação orientada por código, como dito, pressupõe saídas pré-determinadas pelo programador, de acordo com a lógica IFTTT. Nesse sentido, é essencial que a estrutura do código que determina suas decisões finais a partir dos inputs gerados pelos usuários seja transparente para que os usuários entendam como as decisões são tomadas e como as regras são aplicadas.

Também é essencial que os usuários tenham a possibilidade de contestar decisões que consideram injustas ou equivocadas, o que só será possível a partir da obtenção de informações acerca do funcionamento do próprio código. No fim das contas, a regulação orientada por

código é um reflexo das decisões humanas automatizadas, de modo que o código não fala por si, mas apenas executa os comandos pré-determinados pelos desenvolvedores que, por sua vez, podem refletir seus próprios vieses e crenças no algoritmo.

Já a regulação orientada por dados, embora seja uma poderosa ferramenta para identificar tendências e padrões, também apresenta riscos significativos. Se os dados utilizados para alimentar o algoritmo não forem representativos ou não incluírem todas as variáveis relevantes, as decisões tomadas com base nesses dados podem ser parciais ou discriminatórias.

Em alguns casos, os algoritmos podem tomar decisões não compreensíveis para o humano. Isso ocorre porque tais decisões são baseadas em modelos matemáticos complexos que podem ser difíceis de compreender até mesmo para especialistas em dados, o que pode tornar a decisão algorítmica ocasionalmente “irrefutável”, não por sua lógica absoluta, mas pela dificuldade de destrinchar os passos que levaram à decisão.

O conjunto desses fatores compõe o processo de regulação algorítmica, onde os sistemas regulatórios são continuamente avaliados e ajustados para garantir a conformidade com os padrões estabelecidos. Entretanto, é preciso refletir sobre como os padrões são estabelecidos e quem é responsável por esse tipo de decisão, pois a depender de quem escolhe a tecnologia e os fins de sua utilização, tanto a estrutura social quanto estatal podem ser alteradas de acordo com a alocação de direitos e de recursos (FRAZÃO, 2017).

O poder social dos algoritmos

Para aprofundar como o algoritmo e seu processo de formação interagem com a sociedade, é preciso, primeiramente, definir como abordá-lo. Existem diversas formas de se tratar o assunto, assumindo o algoritmo como um conjunto de linhas de código, como objetos ou até mesmo como processos sociais.

De toda forma, não é possível separar o algoritmo do contexto social em que está inserido e constantemente aprimorado. Abordá-lo como um objeto puramente técnico que tem como objetivo racionalizar as tomadas de decisão humanas seria ignorar todo o contexto de seu desenvolvimento. Os algoritmos são modelados a partir de visões de mundo e com objetivos previamente definidos que certamente influenciam sua forma de comportamento e os processos de ajustes e recodificação a depender do resultado gerado (BEER, 2017).

Latour (1994), a partir de sua concepção da teoria ator-rede – um conjunto de atores humanos e não-humanos conectados a partir de relações de interdependência –, ajuda a entender como uma ampla variedade de atores (programadores, designers, usuários, dados, plataformas etc.) nesse contexto interagem para criar e moldar o funcionamento do algoritmo.

Portanto, o algoritmo não seria uma entidade autônoma e independente, mas o resultado da interação de pessoas e organizações que participam da sua criação e modificação. Os algoritmos, nessa perspectiva, não são construídos a partir de um conjunto objetivo de dados ou regras, mas sim moldados por interesses, visões de mundo e perspectiva dos atores envolvidos.

Burrell e Fourcade (2021) defendem a existência de uma nova classe na sociedade digitalizada, composta por um grupo formado essencialmente por desenvolvedores de software, CEOs de empresas de tecnologia, investidores e professores de ciência da computação e engenharia, a qual denominam “the coding elite”.

Essa elite tem como principal habilidade a capacidade de entender e criar códigos algorítmicos. A referida comunidade é altamente influente na sociedade digital e circula por diferentes posições de poder em startups, grandes empresas de tecnologia, laboratórios de pesquisa e desenvolvimento e salas de aula. Inclusive os autores definem como problemática a relação entre indústria e academia, tendo em vista que profissionais com papéis estratégicos em grandes indústrias também figuram no corpo docente das mais influentes universidades que contribuem para a criação do conhecimento tecnológico. Tal relação resulta em uma linha tênue entre o conhecimento científico e os interesses corporativos, visto que os precursores das teorias acadêmicas também são os executivos das grandes empresas de tecnologia. Desse modo, há de se questionar até que ponto as discussões acadêmicas não estariam sendo pautadas por interesses empresariais.

A elite do código expõe de forma clara uma segregação epistemológica crucial para entender a regulação algorítmica e o desenvolvimento dos processos tecnológicos: o grau de compreensão do código. Se somente os programadores e profissionais da tecnologia da informação são capazes de compreender a estrutura dos códigos que são utilizados em todos os âmbitos da vida cotidiana, estes se comunicam entre si em uma linguagem não acessível para o restante da sociedade, o que prejudica a forma do diálogo aberto da sociedade quanto aos paradigmas tecnológicos enfrentados atualmente.

Pasquale (2015) afirma que, em razão do contexto de seu desenvolvimento, os algoritmos se tornaram verdadeiras “caixas-pretas”, que dependem de processos computacionais sofisticados e são protegidos como segredos comerciais. Entretanto, esses algoritmos são capazes de exercer ou influenciar tomadas de decisão com consequências substanciais em diversas áreas da sociedade, o que demanda uma maior responsabilidade e, portanto, transparência por parte dos desenvolvedores desses algoritmos.

A abordagem sociológica da construção algorítmica mostra como a construção do código não é linear ou objetiva, mas movida por uma variedade de interesses, atores e contextos que tornam o desenvolvimento do código imprevisível. Nesse sentido, ao abordar a perspectiva econômica da regulação pela tecnologia, é necessário também recorrer à uma abordagem que não seja refém de mecanismos determinísticos ou absolutos, visto que o contexto da evolução tecnológica é formado por uma variedade de fatores e elementos.

A regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade

O desenvolvimento tecnológico de maneira geral e a regulação pela tecnologia podem ter um impacto significativo na economia. Embora sejam nítidos os avanços proporcionados pela tecnologia, o seu mau uso pode trazer sérias consequências em termos de segurança, privacidade, concorrência etc.

Brian Arthur (2013) defende, sob a ótica da economia da complexidade, que o não- equilíbrio é o estado natural da economia, que está sempre aberta a reações. Uma das principais razões desse estado natural de desequilíbrio é a inovação tecnológica.

Arthur (2009) afirma que a economia é uma expressão de suas tecnologias. A economia, segundo o autor, é moldada e influenciada pelas tecnologias que são utilizadas nas atividades econômicas e sociais. As tecnologias moldam a estrutura econômica, enquanto a economia medeia a criação de novas tecnologias.

A economia, portanto, não seria simplesmente um recipiente para as atividades econômicas, mas uma ecologia complexa de tecnologias, decisões e atividades que estão continuamente se reformando e criando nichos de oportunidade para novas tecnologias emergirem. O caráter da economia muda à medida que novas tecnologias são introduzidas e novas oportunidades são criadas.

Os processos tecnológicos também estão ligados à determinismos advindos da economia neoclássica. Mirowski (2002) alerta sobre o surgimento de uma classe de economistas que acreditam que os computadores podem ser usados para criar modelos econômicos precisos e, portanto, prever o comportamento econômico futuro. De acordo com essa linha de pensamento, os economistas argumentam que a grande capacidade de processamento de dados e variáveis podem permitir a construção de modelos econômicos precisos como nunca visto antes.

Esse pensamento é criticado por Skidelski (2020), que afirma que, como os profissionais da tecnologia, economistas acreditam que, com dados e poder de processamento suficientes, podem “quebrar o código” do comportamento humano. Essa prática advém da redução das estruturas sociais à meras transações econômicas e do tratamento do homem como agente racional, ignorando ou reduzindo demasiadamente o impacto das relações sociais e de variáveis endógenas na análise econômica.

Essa crença, segundo Mirowski (2002), é influenciada pelo aumento da confiança na tecnologia e na ciência. Entretanto, é preciso agir com cautela, pois essa crença pode levar a uma confiança excessiva nos modelos econômicos e à negligência de fatores que não podem ser tão facilmente quantificados ou incorporados aos modelos.

O que esses economistas não levam em conta é que, conforme levantado por Burrell e Fourcade (2021), a elite do código utiliza-se de argumentos baseados em economia comportamental e psicologia social para justificar suas decisões, muitas vezes recorrendo a comparações entre tomadores de decisão humanos e ferramentas algorítmicas, mas em testes projetados para favorecer o código.

Apesar de parecerem argumentos cientificamente embasados e objetivos (o que, em tese, blindariam o próprio algoritmo de questionamentos), muitas vezes estes são estruturados de forma a favorecer os interesses técnicos. Ao comparar a eficiência algorítmica com a tomada de decisão humana, não se leva em consideração, por exemplo, que a tomada de decisão algorítmica também pode ser influenciada por preconceitos ou desigualdades originalmente pertencentes aos humanos e refletidas na criação do código.

O uso prático da matemática é um dos fatores que influenciam a utilização do argumento da objetividade do código. Assim como a linguagem matemática ocidental e sua suposta linguagem neutra e objetiva é utilizada como argumento basilar da economia mainstream, os

processos matemáticos por trás dos algoritmos são usados como justificativa para um output

preciso nas tomadas de decisão.

A visão mais aceita sobre as estruturas matemáticas é que estas são realizações racionais e científicas resultadas de um processo produção intelectual cumulativa, de onde surgiu a ciência moderna e, por consequência, realizações tecnológicas disruptivas. Entretanto, não se questiona se tais estruturas tem a capacidade de suprimir a consciência moral dos indivíduos como agentes livres e de valor para a sociedade. Ou seja, o fato de que as estruturas matemáticas são concebidas e implementadas sem levar em consideração as implicações sociais e éticas do comportamento humano pode ter consequências negativas na sociedade (DE CASTRO, 2019).

Ao fazer esse tipo de análise, não se leva em conta outros fatores que não a objetividade matemática da economia neoclássica. Quando essa objetividade pretensiosamente imparcial é aplicada nos modelos regulatórios tecnológicos, o debate sobre regulação pela tecnologia pode se tornar cada vez mais enviesado e, portanto, mais periculoso aos usuários e à toda sociedade.

A análise da regulação tecnológica como propriedade emergente de um sistema maior permite combinar a análise da regulação como resultado de tomadas de decisão intencionais dos agentes com a compreensão das propriedades do sistema no qual a regulação ocorre e que a torna possível (ANTONELLI, 2011).

Desse modo, é necessário refletir sobre a eficiência dos algoritmos não só na regulação de cenários complexos, mas também levando em consideração que o desenvolvimento dos algoritmos e suas utilizações são movidos por diferentes agentes, interesses e objetivos, sendo imperioso tratar do tema de maneira cautelosa e sem abraçar a suposta objetividade por trás dos modelos criados.

Riscos e perspectivas

Diante do cenário tratado, é possível discutir sobre quais são as perspectivas para o uso da tecnologia como regulação, bem como quais riscos estão relacionados à essa utilização, e o que pode ser feito para superar os problemas apresentados.

Pasquale aponta como um dos riscos da regulação algorítmica a discriminação, ou seja, o viés algorítmico utilizado nas decisões. No caso da regulação orientada por código, esse viés já se torna presente na própria estruturação do algoritmo, quando o desenvolvedor impõe seus próprios vieses no código, de modo que a tomada de decisões será feita a partir da visão de

mundo do próprio desenvolvedor. Esse processo pode acontecer tanto de forma inconsciente quanto de forma proposital, porém implícita, já que os interesses dos criadores dos algoritmos podem estar presentes no código de forma a influenciar as decisões finais.

Já no caso da regulação orientada por dados, os algoritmos podem ser treinados em dados que contêm preconceitos ou desigualdades, absorvendo os padrões dos dados de treinamento e usando esses padrões para tomar novas decisões ou formular novos entendimentos.

Se um algoritmo de contratação for treinado com um conjunto de dados que contém uma proporção muito maior de homens do que mulheres, o algoritmo pode aprender a favorecer os candidatos de sexo masculino. A falta de diversidade nos dados de treinamento também pode levar a uma exclusão sistemática de certos grupos sociais.

Como observou Ferguson (2017) ao analisar o uso do processamento de dados nos departamentos de polícia dos Estados Unidos, se os dados históricos refletirem preconceitos ou práticas discriminatórias, os algoritmos podem perpetuar essas práticas e excluir grupos sociais específicos do policiamento adequado e da justiça criminal.

Outro desafio da regulação pela tecnologia é a falta de transparência dos algoritmos. O’Neil (2017) afirma que a falta de explicabilidade dos algoritmos os tornam problemáticos ao dificultar a avaliação de como estão sendo usados e quais as consequências de suas decisões. Se não é possível saber como um algoritmo toma uma decisão, não é possível avaliar se esta é justa ou não.

Kearns e Roth (2019) também aduzem que essa falta de transparência pode levar a uma falta de confiança nos algoritmos. Se as pessoas não entendem como os algoritmos funcionam e como eles chegam às suas conclusões, é menos provável que confiem neles. Isso pode ser especialmente problemático em determinadas áreas, pois o questionamento no funcionamento dos algoritmos pode levar as pessoas a evitar tratamentos ou diagnósticos na área da saúde, ou até mesmo a questionar processos democráticos eleitorais auditados por algoritmos.

Os algoritmos têm sido automatizados para decisões desde a avaliação de crédito até a contratação em um emprego. São muitas decisões que podem alterar significativamente a vida das pessoas e que, até o momento, são bastante obscuras. Desse modo, é urgente a necessidade de obter um grau de transparência nesse processo que dê à sociedade a segurança de que todos estão sendo avaliados de maneira ética, justa e imparcial.

Quanto à responsabilidade algorítmica, existe uma lacuna interpretativa entre o direito e a tecnologia que não deixa claro quem é responsável pelas decisões tomadas pelos algoritmos. Os algoritmos podem ser altamente complexos e envolver uma variedade de processos, o que pode tornar difícil determinar quem é responsável por decisões específicas.

Eubanks (2018) enfatiza que essa questão é especialmente complexa e problemática, pois nos casos de regulação orientada por código, por exemplo, as pessoas que projetam o código não influenciam diretamente em suas decisões. Além disso, se os dados usados para treinamento desses algoritmos estão contaminados em termos de preconceitos e discriminação, qual seria então o grau de responsabilidade de quem coletou os dados e aplicou no algoritmo? Ou de quem apenas estruturou o código?

Essas são questões ainda sem qualquer resposta definitiva, mas que precisam urgentemente serem refletidas à luz dos avanços tecnológicos e da proteção jurídica tutelada pelo direito. De todo modo, a tecnologia continua vinculada à presença humana, nem que de modo a delegar ou transferir a máquinas a capacidade de decidir (FRAZÃO 2017).

Conclusão

Conforme abordado no âmbito deste trabalho, a regulação pela tecnologia está inserida em um sistema complexo, imprevisível e sujeito a mudanças não-lineares, o que pode levar (e tem levado) a consequências imprevistas e indesejadas, enfrentando desafios devido à natureza dinâmica das mudanças tecnológicas.

Há a crescente necessidade de criação de mecanismos institucionais eficazes para controlar o amplo alcance de ameaças, riscos e impactos adversos que os algoritmos podem causar da sociedade e na vida individual. Nesse sentido, Ulbricht e Yeung (2022) consideram que a regulação estatal é uma opção mais eficaz do que a autorregulação, pois oferece garantias e mecanismos regulatórios baseados no poder coercitivo estatal.

É importante evitar uma visão simplista de que a inovação tecnológica ou necessariamente a melhor forma de promover avanços na sociedade. Em verdade, é necessário que se pense de forma criativa e adaptativa sobre como a estrutura das organizações, processos políticos e sociais podem ser melhorados, e como a tecnologia pode contribuir para esse avanço (MEDINA, 2015).

De fato, a tecnologia proporciona avanços científicos e sociais significativos, que são capazes de mudar a vida de uma pessoa ou de toda uma sociedade. Por outro lado, à medida que o avanço tecnológico fornece novas possibilidades de melhoria, também apresenta novos riscos aos direitos tutelados pelo Estado. É preciso, portanto, encontrar o equilíbrio entre inovação tecnológica e proteção a garantias e direitos individuais e coletivos.

Além do mais, conforme aponta Lessig, é preciso observar até que ponto os criadores de código têm um compromisso com a sociedade, e até que ponto sua maior motivação é agradar outros interessados, como acionistas e empresas privadas.

Deve-se, também, levar em consideração o contexto de criação e desenvolvimento das tecnologias, para que os humanos se mantenham no controle final das tecnologias. Ao pensar em regulação por tecnologias, pensa-se em humanos sendo substituídos por máquinas, entretanto, as máquinas muitas vezes são reguladoras ineficazes, especialmente em ambientes complexos.

Enquanto problemas mais simples podem ser solucionados por meio de códigos binários, questões mais complexas ou que envolvem atividades no mundo real geralmente precisam de regulamentação por meio da lei. Portanto, é essencial a busca pelo equilíbrio entre automação e controle humano, pensando, além da inovação por si mesma, nas implicações sociais e políticas da utilização de novas tecnologias.

Referências bibliográficas

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Vantagens e Desvantagens do Compartilhamento de Informações sobre Preços de Medicamentos entre Países

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito pelo IDP/DF

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


Vantagens e Desvantagens do Compartilhamento de Informações sobre Preços de Medicamentos entre Países

Andrey Vilas Boas de Freitas

Resumo

O artigo explora o conceito de compartilhamento de preços de medicamentos entre diferentes países, destacando sua relevância no contexto global de saúde e identificando seus impactos econômicos e regulatórios. A prática visa reduzir a desigualdade de preços e melhorar o acesso a medicamentos, especialmente em países de baixa e média renda. São apresentados os objetivos principais do compartilhamento de preços, que incluem a redução de preços de medicamentos, aumento da transparência e promoção de políticas de preços mais justas. A discussão abrange os desafios enfrentados pelos países ao implementar essa prática, como a resistência de empresas farmacêuticas e a variação nas políticas de saúde. O artigo também analisa diferentes modelos de compartilhamento de preços utilizados em diversos países, bem como suas vantagens e limitações, dependendo do contexto econômico e regulatório local. São apresentados exemplos de países que implementaram práticas de compartilhamento de preços, incluindo as iniciativas na União Europeia, oferecendo insights sobre os resultados alcançados e as lições aprendidas. A conclusão resume os principais achados do artigo e discute as implicações futuras do compartilhamento de preços de medicamentos. O artigo conclui que, embora o compartilhamento de preços possa oferecer benefícios significativos, sua eficácia depende de uma abordagem coordenada e adaptada às necessidades locais.

Palavras-chave: Compartilhamento de Preços, Medicamentos, Transparência de Preços, Acesso a Medicamentos, Modelos de Preços, Negociação de Preços, Regulação de Medicamentos.

Introdução

O compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos tem sido amplamente debatido como uma estratégia potencial para promover maior transparência e equidade nos mercados farmacêuticos globais. Com a crescente preocupação sobre os altos custos dos medicamentos e o acesso desigual a tratamentos essenciais, diversas partes interessadas, incluindo governos, organizações internacionais e empresas farmacêuticas, têm explorado a viabilidade dessa prática. O objetivo principal do compartilhamento de preços é permitir uma comparação mais eficiente entre diferentes mercados e promover uma negociação mais justa, reduzindo as disparidades de preços e facilitando o acesso a medicamentos.

Este artigo se propõe a analisar as principais vantagens e desvantagens do compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos, com base no relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). [1] O relatório da OCDE fornece uma visão detalhada sobre como o compartilhamento de preços pode influenciar a política farmacêutica global e quais são os desafios associados à sua implementação. Entre os benefícios identificados, estão a possibilidade de uma maior transparência, a redução das discrepâncias de preços entre países e a promoção de uma concorrência mais saudável no setor farmacêutico. No entanto, também existem desvantagens potenciais, como a resistência das empresas farmacêuticas e as complexidades regulatórias envolvidas.

Ao explorar essas questões, o artigo pretende fornecer uma compreensão abrangente sobre como o compartilhamento de preços pode moldar o futuro da política farmacêutica e quais são as implicações para os países em desenvolvimento e desenvolvidos. A análise se baseia em exemplos práticos e estudos de caso apresentados no relatório da OCDE, destacando as lições aprendidas e as recomendações para uma implementação bem-sucedida desta prática.

Vantagens

1. Fortalecimento da Capacidade de Negociação

Uma das principais vantagens do compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos é o fortalecimento da capacidade de negociação dos países, especialmente daqueles com mercados farmacêuticos menores ou com menor poder de barganha em relação às grandes empresas farmacêuticas. Países com economias mais modestas ou com menor volume de compras tendem a ter dificuldades para negociar preços mais baixos em relação aos medicamentos de alto custo. Sem informações precisas e comparativas sobre os preços praticados em outras regiões, esses governos ficam em desvantagem ao tentar negociar condições mais favoráveis, sendo muitas vezes forçados a aceitar os preços iniciais oferecidos pelos fabricantes.

No entanto, o acesso a dados de preços praticados em outros países pode transformar essa dinâmica. Quando os governos têm à disposição informações sobre os valores pagos por outros países, especialmente aqueles com mercados semelhantes, eles podem argumentar de forma mais eficaz nas negociações. O conhecimento de que uma empresa farmacêutica ofereceu preços mais baixos em uma jurisdição pode ser usado como um ponto de pressão, incentivando a empresa a estender condições semelhantes a outros países. Essa transparência nas informações aumenta a competitividade do mercado e pode forçar os fabricantes a oferecerem preços mais equilibrados e acessíveis.

Além disso, o compartilhamento de informações pode criar uma espécie de “efeito cascata” nas negociações. Se um país consegue negociar um preço mais baixo com base nas informações de outro, esse preço reduzido pode, por sua vez, ser usado como referência para futuros acordos em outras nações. Isso gera uma cadeia de negociações mais favorável globalmente, à medida que mais países passam a se beneficiar dessas informações compartilhadas.

As economias geradas por negociações mais informadas podem ser substanciais. Em muitos casos, os custos com medicamentos representam uma parte significativa do orçamento de saúde pública. Portanto, qualquer redução nos preços dos medicamentos pode liberar recursos que podem ser reinvestidos em outras áreas prioritárias, como a ampliação do acesso a tratamentos ou a melhoria de infraestruturas de saúde. Para países com orçamentos de saúde mais apertados, como nações de baixa e média renda, essa capacidade de negociar preços mais competitivos pode ser crucial para garantir o acesso da população a medicamentos essenciais, especialmente em áreas como doenças crônicas ou medicamentos de alto custo, como aqueles para o tratamento de câncer e doenças raras.

Assim, o compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos não só fortalece a capacidade de negociação dos governos, como também promove uma maior equidade no acesso a medicamentos em diferentes regiões do mundo.

2. Promoção da Transparência

O aumento da transparência nas transações pode desempenhar um papel crucial na redução das disparidades de preços de medicamentos entre países. Atualmente, há uma grande variação nos preços que diferentes países pagam pelos mesmos medicamentos, o que é amplamente influenciado por fatores como o poder econômico, o volume de compras e as políticas de saúde de cada nação. Essas disparidades muitas vezes resultam em medicamentos inacessíveis para países de baixa e média renda, exacerbando as desigualdades globais no acesso a tratamentos essenciais.

Com uma maior transparência, essas discrepâncias podem ser reduzidas, já que os países com menor poder de barganha podem utilizar as informações de preços pagos por países economicamente mais fortes como referência em suas negociações. Isso promoveria uma maior justiça no acesso a medicamentos essenciais, especialmente aqueles voltados para o tratamento de doenças graves, como HIV, câncer e doenças raras, cujos custos elevados tornam o acesso desigual um problema crítico em diversas partes do mundo.

A transparência também contribui para a criação de um ambiente de maior confiança entre governos e fabricantes de medicamentos. A falta de visibilidade nas transações atuais, nas quais muitos acordos de preço incluem cláusulas de confidencialidade que escondem os descontos e rebates aplicados, pode gerar desconfiança e levar a percepções de que as negociações são injustas ou desvantajosas para determinados países. Ao tornar os preços mais visíveis, os governos podem avaliar melhor o que está sendo oferecido e tomar decisões mais informadas, baseadas em dados concretos.

Essa transparência ajuda a nivelar o campo de jogo, tornando as negociações mais equilibradas e menos propensas a serem influenciadas por táticas comerciais desiguais. Além disso, ao revelar os preços reais pagos por outros países, especialmente aqueles com economias e condições de mercado semelhantes, as empresas farmacêuticas podem ser incentivadas a adotar práticas de precificação mais consistentes e justas em diferentes regiões. Isso não apenas cria um ambiente de mercado mais previsível e equitativo, mas também fortalece a percepção pública de que o acesso a medicamentos está sendo tratado de maneira justa.

Outra consequência positiva do aumento da transparência é que ele pode incentivar os fabricantes de medicamentos a se engajarem em práticas comerciais mais responsáveis e éticas. Quando os preços e as condições de venda são transparentes, as empresas têm menos espaço para discriminar entre mercados, e isso pode pressioná-las a oferecer preços mais acessíveis de forma mais ampla. Assim, a transparência pode funcionar como uma força moralizante no mercado, reduzindo as práticas de preços excessivos em países mais vulneráveis.

Em última análise, a transparência não beneficia apenas os governos, mas também as próprias empresas farmacêuticas. Ao fortalecer a confiança nas negociações e promover a previsibilidade no mercado global, as empresas podem construir relações de longo prazo mais sólidas com os governos, minimizando conflitos e facilitando a entrada em novos mercados. Esse ambiente de confiança e cooperação pode, por sua vez, acelerar o acesso de novos medicamentos a mercados globais, beneficiando tanto os fabricantes quanto os pacientes que precisam de tratamentos essenciais.

Portanto, ao promover maior transparência nas transações, não apenas se reduz as disparidades de preços entre países, mas também se cria um ambiente de maior equidade, confiança e justiça, beneficiando tanto os sistemas de saúde pública quanto a indústria farmacêutica.

3. Aprimoramento do Planejamento Orçamentário

Com acesso a informações mais precisas sobre os preços de medicamentos em diferentes mercados, os governos podem otimizar significativamente seu planejamento orçamentário e a alocação de recursos, resultando em uma gestão financeira mais eficiente e estratégica. Quando os responsáveis pelo orçamento da saúde pública sabem exatamente quanto outros países estão pagando por medicamentos semelhantes, eles podem fazer previsões mais realistas sobre os custos que enfrentarão ao negociar com as empresas farmacêuticas. Esse conhecimento permite que o orçamento de saúde seja estruturado com maior precisão, reduzindo a probabilidade de déficits ou de gastos excessivos, especialmente em áreas críticas como a compra de medicamentos de alto custo para doenças crônicas ou raras.

Essa melhoria no planejamento orçamentário é especialmente relevante para países que utilizam mecanismos de preços de referência externos (External Reference Pricing – ERP). O ERP é uma estratégia comum, na qual os preços de medicamentos em um país são estabelecidos com base em benchmarks de preços praticados em outros países. Com informações detalhadas sobre os preços reais — não apenas os preços de lista, mas também os preços líquidos após descontos e reembolsos —, os países podem ajustar seus próprios preços de maneira mais eficaz. Isso lhes confere uma posição mais vantajosa para negociar com fabricantes, reduzindo a possibilidade de pagar mais do que outras nações em situações comparáveis.

Além disso, o uso de dados de ERP mais precisos também evita que os governos tomem decisões orçamentárias com base em preços desatualizados ou irrealistas. Em muitos casos, os preços de referência publicados em plataformas internacionais não refletem os preços reais pagos após as negociações confidenciais entre países e fabricantes. Isso pode levar a uma alocação inadequada de recursos, uma vez que os países, ao se basearem em preços de lista inflacionados, podem reservar mais fundos do que o necessário para a compra de medicamentos, em detrimento de outras áreas prioritárias do sistema de saúde. Com o compartilhamento mais amplo de informações sobre os preços líquidos, os governos podem ajustar essas alocações com base em dados reais, possibilitando um uso mais eficiente dos recursos disponíveis.

Além disso, esse acesso a informações mais precisas permite que os países respondam mais rapidamente às mudanças no mercado de medicamentos. Se um país sabe que o preço de um medicamento específico caiu significativamente em outra jurisdição, ele pode negociar rapidamente condições semelhantes, ajustando seus planos de compra e redistribuindo os recursos economizados para outras áreas de necessidade, como infraestrutura hospitalar, campanhas de prevenção de doenças ou aquisição de novos medicamentos que antes eram inacessíveis devido aos custos elevados.

Por fim, o impacto de um planejamento orçamentário mais refinado se traduz diretamente na capacidade de fornecer acesso mais amplo e equitativo aos medicamentos para a população. Países que gerenciam seus recursos de maneira mais eficiente são capazes de ampliar seus programas de saúde, garantindo que os tratamentos estejam disponíveis para um maior número de pacientes, sem comprometer a sustentabilidade fiscal de seus sistemas de saúde. Assim, o acesso a informações precisas sobre preços em diferentes mercados não é apenas uma ferramenta de controle financeiro, mas um fator determinante na promoção de sistemas de saúde mais justos e eficientes.

Em resumo, a transparência nas informações de preços oferece aos governos uma base sólida para melhorar a alocação de recursos e maximizar o impacto do orçamento da saúde. Isso é especialmente crucial para aqueles que utilizam mecanismos de preços de referência externos, onde o acesso a dados precisos sobre os preços praticados internacionalmente pode fazer a diferença entre um sistema de saúde sustentável e acessível e um sistema sobrecarregado por custos desnecessários.

4. Facilitação de Compras Conjuntas

Iniciativas de compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos têm o potencial de facilitar consideravelmente programas de compras conjuntas entre países, uma estratégia que pode resultar em economias substanciais. Ao se unirem para adquirir medicamentos em volumes maiores, países podem negociar diretamente com os fabricantes de maneira mais competitiva, aproveitando o poder de compra ampliado que esses consórcios proporcionam. Esse aumento no volume total de compras permite que os países obtenham descontos significativos, o que seria mais difícil de alcançar individualmente, especialmente para países menores com menor demanda de mercado.

Quando vários países se unem para negociar conjuntamente, a balança de poder nas negociações se inclina em favor dos compradores, uma vez que as empresas farmacêuticas ficam mais dispostas a oferecer condições de preço mais atrativas em troca do acesso a mercados maiores e de vendas garantidas em maiores quantidades. Esse tipo de coordenação é crucial para os sistemas de saúde que enfrentam desafios financeiros e pressões orçamentárias, particularmente quando se trata de medicamentos de alto custo ou aqueles voltados para o tratamento de doenças raras, onde os preços podem ser exorbitantes.

Essa estratégia é especialmente relevante em iniciativas regionais ou multilaterais, como o EURIPID na União Europeia. O EURIPID (European Integrated Price Information Database) é uma iniciativa cooperativa que visa promover a transparência nos preços de medicamentos em países europeus. Trata-se de uma base de dados não comercial que permite o compartilhamento de informações sobre os preços oficiais de medicamentos entre os países membros. Criado como uma plataforma para ajudar na regulação e definição de políticas de preços de medicamentos, o EURIPID se tornou um recurso valioso para governos que buscam usar informações precisas e atualizadas de preços para melhorar seus sistemas de saúde.

O principal objetivo do EURIPID é fornecer informações padronizadas e comparáveis sobre os preços de medicamentos em diferentes países, facilitando o uso dessas informações em processos de preço de referência externo (External Reference Pricing – ERP). No ERP, os países comparam os preços de medicamentos praticados em outros mercados para definir suas próprias políticas de preços. O EURIPID oferece aos países membros um ponto de referência confiável, permitindo a tomada de decisões mais informadas e baseadas em dados concretos, minimizando o risco de pagar preços inflacionados.

A base de dados EURIPID contém informações detalhadas sobre os preços de medicamentos, como o preço de lista ex-fábrica, que é o valor inicial estabelecido pelo fabricante, geralmente utilizado como referência para negociações posteriores. Esses dados são atualizados regularmente pelos países participantes, o que assegura que as informações sejam precisas e refletiam a realidade do mercado farmacêutico em tempo real. A plataforma é aberta a países da União Europeia (UE), do Espaço Econômico Europeu (EEE), além de outros países europeus que não são membros da UE. Entre os participantes, estão nações como Alemanha, França, Itália, Espanha, Reino Unido, Suécia, Noruega, Suíça e Israel. A participação no EURIPID é voluntária, e cada país pode decidir o tipo de informação que vai compartilhar, embora a maioria dos países opte por compartilhar os preços de medicamentos de venda ao público e os preços máximos regulamentados.

A plataforma permite que os governos obtenham informações sobre medicamentos tanto on-patent (medicamentos patenteados) quanto off-patent (genéricos e similares), oferecendo uma visão ampla do mercado. O foco principal do EURIPID são os medicamentos reembolsáveis, ou seja, aqueles cujos custos são em parte ou totalmente cobertos pelos sistemas de saúde pública dos países.

Um dos grandes benefícios do EURIPID é a transparência que ele proporciona, especialmente em um mercado farmacêutico que, tradicionalmente, tem sido marcado por acordos confidenciais entre fabricantes e governos. Ao ter acesso a preços comparáveis de medicamentos, os países podem evitar pagar mais por um medicamento do que seus vizinhos, promovendo um mercado mais justo e competitivo.

Além disso, a plataforma facilita o intercâmbio de informações entre os governos, criando um ambiente de cooperação que pode levar a iniciativas de compras conjuntas. Isso é particularmente importante para países menores ou com menor poder de compra, que podem negociar preços mais competitivos ao se unir a outros países em grandes aquisições.

Apesar dos benefícios, o EURIPID enfrenta alguns desafios. Um dos principais é a questão da confidencialidade. Muitos países, ao negociar preços com as empresas farmacêuticas, aceitam cláusulas de confidencialidade que impedem a divulgação dos preços reais (preços após descontos e rebates). Como resultado, o EURIPID se baseia principalmente em preços de lista, que podem não refletir os valores finais pagos pelos governos após negociações. Isso limita a eficácia do sistema para países que buscam ter uma visão mais precisa dos preços reais no mercado.

Outro desafio é que nem todos os países membros da UE participam da iniciativa, e a cobertura de certos medicamentos pode ser desigual. Além disso, a complexidade dos sistemas de precificação de medicamentos, que variam significativamente entre os países, torna difícil a comparação direta de preços, mesmo com a padronização dos dados.

O EURIPID é uma ferramenta poderosa para promover a transparência e facilitar a colaboração entre países na área da saúde. Ao permitir o compartilhamento de informações padronizadas sobre os preços de medicamentos, o sistema ajuda a garantir que os governos possam tomar decisões de precificação mais justas e informadas, potencialmente gerando economias substanciais. Ao usar essas plataformas de informação, os países podem não apenas obter acesso a dados precisos sobre o que outros pagam por medicamentos, mas também organizar esforços de compra coletiva para maximizar os descontos disponíveis. Isso cria uma sinergia, onde o conhecimento compartilhado e o esforço coletivo se traduzem em reduções de custos significativas para todos os envolvidos.

Além disso, essas iniciativas multilaterais de compras conjuntas permitem uma melhor distribuição de riscos e responsabilidades entre os países participantes. Quando países compram em conjunto, o risco de flutuações de preços ou de falta de fornecimento é diluído entre as nações envolvidas, proporcionando maior segurança tanto na disponibilidade de medicamentos quanto na estabilidade dos preços. Esse tipo de cooperação também fortalece as relações diplomáticas e econômicas entre os países, uma vez que o sucesso de programas de compras conjuntas depende de uma coordenação eficiente e de confiança mútua.

Para países que enfrentam dificuldades financeiras ou têm um mercado farmacêutico limitado, a participação em programas de compras conjuntas é uma oportunidade estratégica de obter acesso a medicamentos que, de outra forma, seriam inacessíveis devido aos altos custos. O impacto disso é particularmente relevante para medicamentos inovadores ou de última geração, como os tratamentos para câncer, medicamentos biológicos ou terapias para doenças raras, cujos preços podem ser proibitivos em negociações individuais.

Por fim, a economia gerada por essas compras conjuntas pode ser reinvestida em outras áreas do sistema de saúde, melhorando o acesso a tratamentos, fortalecendo a infraestrutura hospitalar, ou expandindo programas de prevenção e educação em saúde. O sucesso dessas iniciativas regionais e multilaterais, como o EURIPID, serve de modelo para outros países e regiões que buscam formas de reduzir os custos com medicamentos enquanto garantem um fornecimento sustentável e equitativo para suas populações.

Em suma, o compartilhamento de informações de preços e a organização de compras conjuntas entre países não apenas ampliam o poder de negociação, mas também promovem uma gestão mais eficiente dos recursos públicos. Através de iniciativas como o EURIPID, os países podem maximizar os benefícios econômicos e logísticos de comprar em grande escala, fortalecendo seus sistemas de saúde e ampliando o acesso da população a medicamentos essenciais.

Desvantagens

1. Barreiras Legais e Contratuais

Um dos maiores desafios para o compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos são, sem dúvida, as barreiras legais e contratuais que permeiam o setor farmacêutico global. Essas barreiras são formadas por uma combinação de acordos confidenciais estabelecidos entre governos e fabricantes de medicamentos, além de legislações nacionais que protegem essas transações, tornando difícil a implementação de um sistema de compartilhamento de preços que seja verdadeiramente funcional e transparente.

As barreiras legais são especialmente problemáticas, uma vez que cada país possui suas próprias regulamentações sobre transparência de preços e divulgação de dados comerciais. Em muitos países, os preços dos medicamentos estão sujeitos a regulamentações rigorosas que incluem a proteção de segredos comerciais. Isso significa que os governos, mesmo quando conseguem negociar preços mais baixos através de descontos e rebates, não podem legalmente divulgar esses valores, pois estão obrigados a manter sigilo sobre as condições específicas dos acordos com os fabricantes.

A legislação de proteção ao segredo comercial é amplamente aplicada para resguardar os interesses comerciais das empresas farmacêuticas, que alegam que a divulgação de preços negociados poderia prejudicar sua competitividade em diferentes mercados. Por exemplo, se uma empresa oferece um desconto substancial para um país, mas esse preço se torna público, outros mercados podem exigir o mesmo desconto, o que poderia reduzir significativamente a margem de lucro da empresa em regiões mais rentáveis. Por isso, as cláusulas de confidencialidade são usadas para proteger essa informação e impedir a criação de precedentes internacionais que possam comprometer suas estratégias de precificação.

Além disso, em alguns países, há leis específicas que obrigam os governos a manterem confidenciais os detalhes dos acordos de compra de medicamentos. Em nações como os Estados Unidos, por exemplo, a Lei de Segredos Comerciais impõe restrições severas à divulgação de informações comerciais sensíveis, incluindo preços de medicamentos após negociações. Esse tipo de legislação torna praticamente impossível que as autoridades de saúde compartilhem informações sobre os preços reais que estão pagando, mesmo que isso fosse benéfico para o mercado global.

No âmbito contratual, muitos acordos firmados entre governos e fabricantes de medicamentos incluem cláusulas de confidencialidade estritas, que proíbem a divulgação pública dos preços acordados após descontos, rebates ou qualquer outro tipo de concessão financeira. Esses acordos são rotineiramente utilizados em negociações envolvendo medicamentos de alto custo, onde os fabricantes oferecem descontos consideráveis para garantir a venda de seus produtos, mas exigem que esses valores sejam mantidos em sigilo para proteger seus interesses em outros mercados.

Essas cláusulas contratuais são projetadas para proteger os modelos de precificação discriminatória que as empresas farmacêuticas utilizam globalmente. Esse modelo permite que os fabricantes ajustem os preços de acordo com a capacidade de pagamento de cada país ou região, o que, em teoria, pode tornar medicamentos acessíveis em mercados mais pobres. No entanto, a manutenção desses acordos confidenciais impede que os governos de outros países tenham acesso a informações reais de preços, o que poderia ajudá-los a negociar de forma mais eficiente e justa.

Ademais, a existência de cláusulas de confidencialidade em praticamente todos os grandes acordos de compra de medicamentos limita a cooperatividade internacional. Mesmo que alguns países estejam dispostos a compartilhar informações, eles ficam legalmente impedidos de fazê-lo devido às restrições contratuais. A quebra dessas cláusulas pode resultar em litígios jurídicos onerosos, além de prejudicar as relações entre governos e fabricantes, o que dissuade os países de compartilhar dados sensíveis, mesmo em redes fechadas de cooperação.

Essas barreiras legais e contratuais tornam a criação de um sistema de compartilhamento de preços de medicamentos amplamente funcional um desafio considerável. Embora exista um interesse crescente por parte dos países em aumentar a transparência nos preços, as restrições impostas pelos acordos comerciais e pela legislação interna limitam drasticamente o que pode ser compartilhado. Para que um sistema internacional de compartilhamento de informações de preços seja viável, seria necessário uma série de reformas legais e regulatórias em muitos países, além de uma reestruturação significativa dos contratos comerciais com as indústrias farmacêuticas.

Um exemplo claro desse desafio é o fato de que, mesmo em iniciativas regionais, como o EURIPID na União Europeia, os países compartilham principalmente preços de lista de medicamentos, que muitas vezes não refletem os valores reais pagos após as negociações. Os preços de lista, que são os preços iniciais oferecidos pelos fabricantes, podem ser muito mais elevados do que os preços finais, o que limita a utilidade dessas informações para outros países que estão tentando negociar. A falta de transparência sobre os preços líquidos — aqueles que refletem descontos e concessões — impede que o sistema de referência de preços funcione de forma eficaz.

Além disso, qualquer esforço para criar um sistema de compartilhamento funcional exigiria que as empresas farmacêuticas estivessem dispostas a renegociar suas cláusulas de confidencialidade e aceitassem uma maior transparência, o que não é fácil de alcançar. As empresas têm fortes incentivos para manter seus preços confidenciais, já que isso lhes permite ajustar estrategicamente os preços conforme o mercado, maximizando seus lucros.

Portanto, as barreiras legais e contratuais representam um dos maiores obstáculos para o compartilhamento efetivo de informações sobre preços de medicamentos. Embora haja um movimento global em prol da transparência e da cooperação internacional, a proteção dos interesses comerciais e os acordos confidenciais permanecem desafios formidáveis. Superar esses obstáculos exigirá um diálogo constante entre governos, reguladores e a indústria farmacêutica, bem como a implementação de políticas internacionais que possam equilibrar a necessidade de transparência com a proteção de informações comerciais sensíveis.

2. Desalinhamento de Interesses Entre Países

Nem todos os países estão dispostos a compartilhar as informações de forma igualitária, e esse desequilíbrio de interesses representa um dos maiores desafios para a implementação de iniciativas globais de compartilhamento de preços de medicamentos. Embora exista um interesse claro por parte de muitos governos em acessar informações sobre os preços pagos por outros países, principalmente para melhorar sua capacidade de negociação, apenas uma minoria está disposta a divulgar seus próprios dados. Esse desalinhamento de incentivos cria uma barreira significativa à viabilidade de sistemas cooperativos de transparência de preços.

Muitos países, especialmente aqueles com menos poder de compra ou economias menores, veem o acesso a informações de preços internacionais como uma oportunidade crucial para nivelar o campo de negociação com as grandes empresas farmacêuticas. Para essas nações, saber quanto outros países pagam pelos mesmos medicamentos é uma forma de garantir que não estão sendo penalizadas com preços inflacionados. Elas podem usar esses dados para pressionar por condições mais justas e para assegurar que seus cidadãos tenham acesso aos medicamentos a um custo sustentável.

Por outro lado, os países que conseguem negociar preços significativamente mais baixos, muitas vezes devido ao seu poder de mercado ou ao volume de compras, são relutantes em compartilhar essas informações. Isso se deve, em parte, ao medo de perder sua vantagem competitiva nas negociações com a indústria farmacêutica. Se os preços que eles negociaram forem tornados públicos, outros países podem exigir os mesmos descontos, o que poderia comprometer os benefícios que esses países conseguiram em suas negociações exclusivas.

Além disso, países com economias maiores e mais robustas, que muitas vezes são capazes de negociar diretamente com grandes descontos, temem que, ao compartilhar essas informações, possam afetar negativamente seus relacionamentos comerciais com as empresas farmacêuticas. Esses fabricantes, ao perceberem que seus descontos estão sendo divulgados internacionalmente, poderiam se tornar mais reticentes em conceder reduções substanciais no futuro, prejudicando assim os acordos exclusivos que esses países desfrutam.

Esse desalinhamento entre o interesse em acessar dados e a disposição para compartilhá-los cria um grande impasse para a criação de um sistema global de compartilhamento de preços. Para que essas iniciativas sejam eficazes, é necessário que haja reciprocidade — ou seja, todos os países que se beneficiam do acesso às informações devem estar dispostos a fornecer seus próprios dados. Quando essa reciprocidade não é alcançada, o sistema perde legitimidade e eficácia, já que apenas uma parte das informações estará disponível para os demais participantes.

Esse cenário de interesses conflitantes também coloca em risco a confiabilidade e a abrangência dos dados que são compartilhados. Se apenas alguns países estiverem dispostos a divulgar seus preços, e outros optarem por manter sigilo, o valor dos dados disponíveis será reduzido, dificultando a criação de uma base de dados sólida que possa realmente apoiar as negociações globais e regionais. Além disso, a falta de cooperação entre os países mais influentes no mercado farmacêutico pode dissuadir nações menores de participarem dessas iniciativas, uma vez que não há garantias de que obterão as informações que realmente precisam.

Por exemplo, em iniciativas como o EURIPID e outras plataformas regionais de compartilhamento de preços, esse desequilíbrio já é visível. Alguns países participantes estão dispostos a compartilhar apenas preços de lista, que muitas vezes não refletem os preços reais após descontos e rebates. Enquanto isso, países que desejam acessar informações sobre preços líquidos — aqueles que mostram o valor final pago, incluindo descontos — frequentemente ficam frustrados, já que as informações de que realmente precisam não estão disponíveis devido às restrições contratuais e legais impostas por outros membros do sistema.

O efeito desse desalinhamento de interesses na viabilidade de iniciativas globais de compartilhamento de preços é profundo. A confiança é um componente essencial para o sucesso dessas iniciativas, e quando alguns países não estão dispostos a compartilhar informações importantes, isso enfraquece a confiança mútua entre os participantes. Sem um acordo claro de que todos os membros de uma iniciativa de compartilhamento de informações estarão comprometidos com a reciprocidade, será difícil estabelecer um sistema funcional que possa beneficiar todos os envolvidos.

Além disso, a falta de compartilhamento equitativo de informações também pode aumentar as desigualdades globais no acesso a medicamentos. Países com maior poder de compra continuarão a negociar preços mais baixos em segredo, enquanto aqueles com menos influência terão que pagar preços mais elevados, perpetuando as disparidades no acesso a medicamentos essenciais. Essas dinâmicas minam os objetivos fundamentais das iniciativas de compartilhamento de preços, que são justamente promover a equidade e melhorar o acesso global a medicamentos.

Por fim, é importante reconhecer que, sem um maior equilíbrio entre o interesse em acessar e a disposição em compartilhar informações, essas iniciativas correm o risco de se tornarem ferramentas incompletas e, em última análise, ineficazes. A construção de um sistema de compartilhamento global de preços de medicamentos exigirá compromissos tanto de países grandes quanto pequenos, além de reformas nas práticas de negociação e políticas de transparência que incentivem todos a contribuir igualmente.

O desalinhamento entre os países no que diz respeito ao compartilhamento de informações de preços de medicamentos é uma barreira significativa para a criação de um sistema global funcional e eficaz. Embora muitos estejam ansiosos para acessar esses dados, a relutância de alguns em compartilhar suas próprias informações impede o desenvolvimento de um sistema verdadeiramente transparente e equitativo. Superar essa barreira exigirá diálogo internacional, confiança mútua e compromissos recíprocos, além de uma reflexão profunda sobre a importância da transparência para o bem-estar global e o acesso justo a medicamentos.

3. Impacto no Acesso a Medicamentos

Há preocupações significativas de que a maior transparência nos preços de medicamentos possa, em certos casos, ter o efeito inverso ao desejado, levando ao aumento dos preços em mercados que atualmente pagam menos pelos mesmos medicamentos. Embora a transparência seja geralmente vista como uma medida que promove equidade e justiça no acesso, o comportamento das empresas farmacêuticas em um ambiente mais transparente pode acabar criando dinâmicas de precificação mais complexas e, potencialmente, prejudiciais a determinados mercados.

Quando as informações sobre os preços negociados em diferentes países são tornadas públicas, existe o risco de que os fabricantes de medicamentos reajam negativamente. Esses fabricantes, ao verem que seus descontos concedidos em determinados mercados estão sendo divulgados, podem adotar uma postura defensiva, temendo que outros países exijam os mesmos preços reduzidos. Em resposta, as empresas podem tentar ajustar suas estratégias de precificação para minimizar as perdas, o que pode resultar em aumentos de preços em mercados que anteriormente pagavam menos.

Esse fenômeno pode ocorrer porque as empresas farmacêuticas, ao enfrentar a pressão para igualar os preços em vários mercados, podem optar por nivelar os preços por cima, elevando os preços nos mercados que atualmente desfrutam de condições mais favoráveis. Esse comportamento é particularmente relevante para países de baixa e média renda, que muitas vezes recebem medicamentos a preços mais baixos como resultado de negociações individualizadas ou de políticas diferenciadas de precificação. No entanto, se as empresas começarem a perceber que esses preços mais baixos estão sendo comparados globalmente, podem ser menos propensas a oferecer tais concessões no futuro, buscando um modelo de precificação mais uniforme e, potencialmente, mais elevado.

Os fabricantes de medicamentos podem, de fato, resistir a acordos de preço mais baixos ao saber que, em um ambiente de maior transparência, esses valores podem se tornar públicos e repercutir em outros mercados. A indústria farmacêutica – que historicamente adota estratégias de discriminação de preços, ou seja, ajusta os preços conforme o poder aquisitivo e as características de cada mercado – pode ser forçada a rever essa abordagem. Se os preços reduzidos para mercados mais vulneráveis forem revelados, os países economicamente mais fortes podem pressionar por condições similares, ameaçando a margem de lucro das empresas nos mercados mais rentáveis.

Nessa situação, os fabricantes podem, em vez de continuar a conceder descontos, adotar uma postura mais rígida, optando por uniformizar os preços em um patamar mais elevado, eliminando as grandes diferenças entre países. Em última análise, essa reação pode desfavorecer os mercados que hoje conseguem negociar preços mais acessíveis, já que a divulgação de dados pode levar os fabricantes a tentarem evitar perdas em mercados mais lucrativos, impondo condições menos favoráveis em todos os lugares. Esse tipo de ajuste estratégico na precificação global pode prejudicar diretamente os países que mais dependem de preços baixos para garantir o acesso a medicamentos essenciais.

A precificação discriminatória tem sido uma prática comum no setor farmacêutico, permitindo que os fabricantes ajustem os preços de acordo com a realidade econômica de cada país. Em muitos casos, isso permite que países de baixa e média renda obtenham medicamentos a preços mais acessíveis, enquanto os países mais ricos pagam valores mais altos. No entanto, a transparência pode desequilibrar essa estratégia, já que as nações mais ricas, ao terem acesso a informações sobre os preços mais baixos praticados em mercados menos favorecidos, podem exigir a mesma redução de custos.

Por exemplo, um medicamento que é vendido a um preço reduzido em um país de baixa renda pode ser alvo de negociações em países desenvolvidos que querem igualar esse valor. Nesse cenário, as empresas podem se sentir pressionadas a reequilibrar seus modelos de precificação. Elas podem tentar compensar a perda potencial em mercados de alta renda elevando os preços nos países que, anteriormente, tinham vantagens ao negociar em condições mais favoráveis.

Além disso, a pressão para manter a lucratividade global pode levar as empresas a repensarem suas políticas de descontos, o que prejudicaria especialmente os mercados que dependem desses descontos para garantir o acesso a medicamentos caros, como os tratamentos de doenças raras e os medicamentos oncológicos. O resultado pode ser um acesso reduzido em países mais vulneráveis, justamente o oposto do que as políticas de transparência pretendem alcançar.

A resistência dos fabricantes a acordos de preço mais baixos, com medo de que esses valores se tornem públicos, também pode ter consequências políticas. Os governos, especialmente em mercados de alta renda, podem se ver pressionados por suas populações a reduzir os custos dos medicamentos, com base nas informações transparentes que indicam que outros países estão pagando menos pelos mesmos produtos. Isso pode levar a conflitos nas negociações entre governos e empresas farmacêuticas, que buscarão proteger suas margens de lucro, e, como consequência, pode retardar o acesso a medicamentos em certos mercados enquanto as negociações se arrastam.

Além disso, a transparência pode gerar instabilidade nos mercados farmacêuticos globais, à medida que as empresas tentam reformular suas estratégias de precificação para evitar os efeitos da divulgação de dados sensíveis. Isso pode causar incertezas sobre os preços de novos medicamentos e tornar as negociações mais difíceis, especialmente em um ambiente em que os governos estão cada vez mais preocupados com a sustentabilidade dos sistemas de saúde e a escalada dos custos dos medicamentos.

Embora a transparência nos preços de medicamentos seja, em teoria, uma ferramenta poderosa para promover a equidade e o acesso global, há preocupações legítimas de que ela possa levar a efeitos colaterais indesejados, como o aumento dos preços em mercados que atualmente pagam menos. O comportamento defensivo dos fabricantes, que podem resistir a conceder descontos ou ajustar seus preços globalmente para proteger seus lucros, pode minar os objetivos de políticas de transparência e resultar em condições menos favoráveis para os mercados mais vulneráveis. A transparência precisa, portanto, ser implementada com cautela, considerando as complexidades do mercado farmacêutico global e os incentivos comerciais das empresas, para garantir que os benefícios superem os riscos e que o acesso a medicamentos seja realmente ampliado de forma equitativa.

4. Complexidade das Negociações

O compartilhamento de informações de preços pode tornar as negociações com fabricantes mais complexas, pois as empresas podem ajustar suas estratégias globais de precificação. Isso pode criar desafios para os países, que precisariam equilibrar a transparência com a proteção de sua capacidade de obter descontos confidenciais.

Esse equilíbrio é essencial, já que muitos países enfrentam barreiras legais e contratuais para compartilhar preços reais. Enquanto a transparência de preços ajuda a melhorar a accountability e a reduzir custos em saúde, a divulgação irrestrita de preços pode expor informações estratégicas, levando os fabricantes a aumentarem os preços em países com maior capacidade de pagamento para compensar eventuais descontos em países com menor capacidade. Isso pode inviabilizar acordos de preços confidenciais, que muitas vezes são necessários para garantir o acesso a medicamentos de alto custo, como remédios para doenças raras e medicamentos órfãos.

Além disso, o aumento da complexidade das negociações internacionais de preços pode influenciar a sustentabilidade dos sistemas de saúde, especialmente em mercados menores que dependem da capacidade de negociação coletiva ou de acordos regionais. Diversos países preferem compartilhar informações em redes fechadas e controladas, em vez de divulgá-las publicamente, como uma forma de mitigar o impacto negativo que a divulgação aberta dos preços pode ter sobre as negociações e a estabilidade de mercado.

Conclusão

O compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos entre países oferece várias vantagens, incluindo o fortalecimento da negociação e a promoção da transparência. A troca de dados permite que países, especialmente aqueles com menor poder de barganha, se beneficiem de negociações mais informadas e estratégias de precificação baseadas em referências internacionais. Além disso, ao promover a transparência, pode-se reduzir a assimetria de informações que favorece os fabricantes, melhorando a eficiência dos gastos públicos com saúde e facilitando o acesso a medicamentos essenciais.

No entanto, as barreiras legais e o desalinhamento de interesses entre os países representam desafios significativos para a implementação de um sistema eficaz de compartilhamento de preços. Conforme detalhado no relatório da OCDE, muitos países enfrentam restrições legais que impedem a divulgação de preços reais devido a cláusulas de confidencialidade inseridas em acordos contratuais com fabricantes. Essas cláusulas muitas vezes são fundamentais para assegurar descontos ou condições vantajosas de fornecimento, especialmente em mercados de medicamentos de alto custo, como os medicamentos órfãos e de terapias avançadas.

Outro obstáculo importante é o desalinhamento de interesses entre os países. Países com maior capacidade econômica podem não estar dispostos a compartilhar seus preços reais, temendo que isso impacte negativamente suas negociações futuras. Como o relatório aponta, mesmo que haja interesse em acessar informações de outros países, há uma relutância significativa em compartilhar os próprios dados, o que cria um ciclo de falta de cooperação que limita a efetividade de iniciativas de transparência.

Para que essa prática seja viável, será necessária uma colaboração internacional cuidadosa e ajustes nas regulamentações que governam a confidencialidade dos preços. Países terão que trabalhar juntos para criar mecanismos que equilibrem a transparência com a necessidade de proteger negociações estratégicas. Um exemplo de solução pode ser a criação de redes fechadas de compartilhamento de informações, nas quais os dados são trocados de forma confidencial entre autoridades competentes. Além disso, mudanças nas legislações nacionais, como a revisão de cláusulas de confidencialidade e a flexibilização das normas de transparência, serão essenciais para superar as barreiras legais e criar um ambiente de maior cooperação global.

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Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996