Texto para discussão

A Reforma Tributária e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

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Ficha catalográfica

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A Reforma Tributária e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)

Filipe Janson Lima Milhomem[1] e Fernando de Magalhães Furlan[2]

Resumo:

O presente artigo tem como objetivo geral analisar os impactos da criação do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)[3], inovação trazida pela Reforma Tributária, no federalismo fiscal brasileiro. Entre os objetivos específicos, busca-se apresentar a conformação tributária brasileira pré-reforma; entender a repartição das competências tributárias e sua importância para a persecução do interesse público; analisar as principais mudanças deflagradas pela alteração legislativa advinda da Emenda Constitucional n° 132/2023, com enfoque na constituição do Comitê Gestor do IBS. Além disso, o artigo se propõe a discutir se a transferência, pelos entes federativos, de atribuições decorrentes do poder de tributar, especialmente em relação às competências tributárias, ao referido Comitê, pode representar uma proposta tendente a abolir a forma federativa de Estado. A metodologia empregada é de caráter qualitativo, consistindo em uma pesquisa bibliográfica que abrange a análise de obras acadêmicas, artigos científicos, legislações e documentos oficiais. Concluímos que a atuação do Comitê Gestor do IBS mitiga a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e dos Munícipios, sem que isso, porém, signifique, por si só e a priori, uma afronta ao pacto federativo.

Palavras-chave: Reforma Tributária; Comitê Gestor do IBS; Pacto Federativo.

Abstract:

The general objective of this paper is to analyze the impacts of the creation of the IBS (Levy on Goods and Services) Steering Committee, an innovation brought about by the Tax Reform to the Brazilian fiscal federalism. The specific objectives include presenting the pre-reform Brazilian tax system, understanding the distribution of tax powers and its importance for pursuing the public interest, analyzing the main changes triggered by the legislative amendment brought about by Constitutional Amendment 132/2023, with a focus on the creation of the IBS Steering Committee and discussing whether the transfer by the federal entities of powers deriving from the right to tax to the aforementioned Committee may represent a proposal to abolish the federal form of State. The methodology employed is qualitative in nature, consisting of bibliographical research that includes the analysis of academic works, scientific articles, legislation and official documents. In the end, it was found that the actions of the IBS Steering Committee mitigate the autonomy of the states, the Federal District and the municipalities, but this does not in itself mean an affront to the federative pact.

Keywords: Tax Reform; IBS Management Committee; Federative Pact.

  1. INTRODUÇÃO

Para que um Estado federado exista, é necessário que os estados membros tenham a capacidade de determinar a sua própria estrutura institucional, permitindo a descentralização do poder e a viabilização da persecução do interesse público. Tal noção se estende ao âmbito fiscal, devendo os entes possuírem autonomia tributária, em homenagem ao federalismo fiscal.

Autonomia, segundo leciona Carvalho Filho (2022, p.05), “significa ter a entidade integrante da federação capacidade de auto-organização, autogoverno e autoadministração.” No caso desta última, para o seu exercício pleno, é imprescindível que o ente possa realizar o recolhimento e gerenciamento dos seus próprios recursos, especialmente no que toca a receita advinda dos tributos.

Contudo, a criação do Conselho Federativo, inovação trazida pela Emenda Constitucional n° 132/2023, parece ameaçar a referida autonomia, visto que há uma tendência à concentração da receita tributária, a qual está consubstanciada, por exemplo, na norma constante do inciso III do art. 156-B da proposta, cujos termos apontam que ao Conselho Federativo caberá “efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” (Brasil, 2023, p.1).

Da análise de tal previsão, assim como de outras que integram a proposta, verifica-se que há uma mitigação do poder dos entes federados de administrar os seus próprios recursos, vez que a competência que antes era por eles exercida, é transferida ao Conselho. Esta medida, pode representar um grave abalo para a autonomia dos entes federados e para o equilíbrio da federação, o que atenta diretamente contra a forma federativa de Estado, cláusula pétrea (art. 60, §4°, I, da Constituição Federal).

Ademais, um conselho com competências que são primariamente dos entes federados, enfraquecem os corpos legislativos competentes, os quais são as instâncias apropriadas para a proposição, análise, debate e resolução de assuntos tributários, sob jurisdição estadual e municipal. Tais entes legislativos (assembleias legislativas e câmaras de vereadores) são compostos por representantes eleitos pelo povo, legalmente autorizados a lidar com tais questões, ao contrário de um conselho composto por burocratas selecionados por critérios técnicos e distantes do escrutínio público.

Lado outro, é forçoso reconhecer que o atual sistema tributário nacional é demasiadamente complexo e defasado. Há uma infinidade de normas tributárias e constates disputas entre os entes federados (e.g. “guerra fiscal”). Nesse cenário, um conselho composto por representantes das pessoas políticas, responsável por coordenar a arrecadação, fiscalização, cobrança e distribuição das receitas dos tributos, pode significar um nível mais aprofundado de integração entre as entidades federativas, fortalecendo a busca por um federalismo fiscal cooperativo e equilibrado.

Assim, o presente artigo analisará, por meio de pesquisa bibliográfica, se o modelo proposto poderá acarretar a sujeição dos entes subnacionais ao ente central; situação que resultaria em perda de autonomia, estando, assim, viciada por inconstitucionalidade material à Emenda Constitucional n° 132/2023. Ou se, em sentido oposto, será um passo positivo na mitigação dos imbróglios presentes na atual conjuntura do tributarismo brasileiro, com os consequentes efeitos benéficos, tanto para os sujeitos passivos da relação jurídico-tributária (contribuintes), quanto para o federalismo.

  • BREVE RESTROPECTO HISTÓRICO DOS TRIBUTOS NO BRASIL

Para os fins do presente artigo, é essencial que façamos um análise histórico-evolutiva do Direito Tributário no Brasil, a fim de entendermos a conformação que este ramo teve ao longo dos séculos, e como ganhou os contornos atuais.

Nos primeiros 30 anos posteriores ao descobrimento do Brasil, com os portugueses com os olhos voltados para as Índias, a atividade predominante desenvolvida em solo nacional era a extração de pau-brasil. Sobre tal atividade, conforme Balthazar (2005), já incidia tributo, o qual era chamado de “Quinto do pau-brasil”.

O quinto era cobrado pela Coroa Portuguesa, detentora suprema das riquezas da, então, Ilha de Vera Cruz, de todos os particulares que exploravam a aludida madeira. Por não haver moeda corrente, explica Oliveira et al (2023), o tributo era pago “in natura”, isto é, com o próprio produto.

No período de 1530 a 1550, são editados dois importantes documentos por Portugal, a saber, a Carta de Doação e a Carta Foral. O primeiro, esclarece Balthazar (2005), disciplinava as doações de porções de terras aos representantes do Rei de Portugal na Colônia, os denominados donatários. Tem-se, portanto, a instituição das Capitanias Hereditárias, no total de 14. Já o segundo, tratava, sobretudo, das espécies de tributos a serem pagos pelos colonos e suas respectivas alíquotas.

Em 1560, com a comércio aquecido pela necessidade de mão de obra, e a instituição do pernicioso sistema escravocrata, iniciou-se a cobrança de tributos sobre as operações que envolviam exportação e alienação de escravos, que possuíam o status de res (coisa). Mudança significativa no sistema exposto, aduz Oliveira et al (2023), se deu quando o General Gomes Freire de Andrade, foi nomeado Vice-Rei, momento em que passaram a incidir tributos sobre outras mercadorias produzidas ou extraídas na colônia, tais como: algodão, açúcar, ouro e aguardente.

Neste período, ante a crise do mercado de açúcar, tem-se a inauguração do Ciclo do Ouro, em que milhares de colonos se dirigiam a Minas Gerais em busca de jazidas de metais e pedras preciosas. Sobre essa nova atividade econômica, aclara Mesgravis (2015), recaíam dois tipos principais de cobranças tributárias, quais sejam, o Quinto do ouro e a polêmica “Derrama. O quinto correspondia a 20% do ouro[4] extraído e registrado nas Casa de Fundição, o qual deveria ser pago para a Coroa. A Derrama, por sua vez, era uma espécie de constrição patrimonial forçada, motivada pelo inadimplemento do quinto devido.

Tal constrição, passou a ser usada massivamente durante a decadência da economia mineradora[5], ocasião em os colonos, aponta Balthazar (2005), acumularam diversas dívidas com o governo, vez que não tinham mais condições de pagar os tributos. Assim, a pesada carga tributária provocou inúmeros conflitos entre os colonos e Portugal, sendo a Inconfidência Mineira o mais conhecido deles.

A vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, que fugia da sanha imperialista de Napoleão, modificou profundamente a estrutura e o governo do Brasil da época. Com a abertura dos portos marítimos às nações amigas, Balthazar (2005) instrui que sobre os produtos importados passaram a incidir tributos cuja alíquota padrão era de 24% para os países aliados, com exceção da Inglaterra, cuja alíquota era de 15% e de Portugal, que era de 16%. Fato curioso é que, nessa época, já havia uma espécie de imunidade tributária para os livros, podendo ser essa a origem da imunidade de imprensa (livros, jornais, periódicos e papel), presente na Constituição de 1988.

Ademais, foram instituídos tributos sobre os prédios urbanos, no valor de 10% sobre o valor de lucro dos prédios, bem como nas transmissões imobiliárias e causa mortis. Em virtude da precária administração tributária, Oliveira et al (2023) afirma que era comum a ocorrência do fenômeno da bitributação, isto é, quando há incidência tributária mais de uma vez sobre o mesmo fato gerador.

Diante disso, a fim de dar mais eficiência ao sistema de cobranças e fiscalização tributária, destaca Oliveira et al (2023), são criados os Conselho da Fazenda, o Conselho Ultramarino e a Alfândega. A partir de tais estruturas, aumentou-se o escrutínio dos tributos devidos e sua arrecadação.

Em que pese o aumento das hipóteses de incidência e o fortalecimento do Fisco, leciona Linck (2009, p.89) que “a doutrina entende que esses tributos cobrados na época do Brasil Colonial não faziam parte de um conjunto harmônico de normas, de princípios, e de institutos, devidamente sistematizados, capazes e caracterizar um Direito Tributário brasileiro”.

Após o retorno da família real à Portugal e a Declaração da Independência, em 1822, com o país independente, assinala Oliveira et al (2023), surge a necessidade de erigir uma estrutura administrativa firme, funcional e efetiva, especialmente na seara tributária. Nesse diapasão, a Constituição de 1824, também conhecida como “Constituição da Mandioca[6], previa em seu art. 36 que era da Câmara o dever de criar tributos, além disso aduzia o art. 175, inciso XV, que “ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção dos seus deveres” (Brasil, 1824, p.1).

Nesse período, Dom Pedro I implementa uma minirreforma fiscal. Dentre as mudanças, conforme Ferreira (2012), houve a eliminação de certos tributos, como o Quinto do ouro (Decreto de 30 de agosto de 1828), e concessão de isenção a outros, como o de jornais e revistas. Além disso, minorou-se a alíquota sobre produtos como o charque, o sal, o trigo e o algodão.

Com o intuito de descentralizar o controle financeiro, Oliveira et al (2023) afirma que foram instituídas as chamadas tesourarias provinciais, órgãos incumbidos de gerir e estruturar a atividade financeira das regiões. Em virtude disso, as províncias puderam estabelecer os seus tributos e destinar o produto de sua arrecadação, como bem lhes aprouvesse.

Em 1834, por meio do Ato Adicional foram criadas as chamadas “Rendas Gerais”, “que definiu diversos tributos sobre diversos serviços e produtos, como: importação, exportação, compra de embarcações estrangeiras, estabelecimentos comerciais, mineração de ouro, entre outros” (Oliveira et al, 2023, p.1). 

A Constituição de 1891, promulgada após a Proclamação da República, também conhecida como Golpe Republicano, foi um importante passo na conformação do sistema tributário que conhecemos hoje. Com a adoção da forma federativa de Estado, leciona Linck (2009), os entes federados passaram a ter autonomia administrativa, política e financeira, passando a existir a possibilidade de a União e os estados instituírem e cobrarem os seus próprios tributos.

É sobre o manto daquela Magna Carta que surge o Imposto de Renda. Instituído pela Lei Orçamentária 4.625, seu art. 31 versava que “Fica instituído o imposto geral sobre a renda, que será devido, anualmente, por toda a pessoa física ou jurídica, residente no território do país, e incidirá, em cada caso, sobre o conjunto líquido dos rendimentos de qualquer origem” (Brasil, 1922, p.1).

Inaugurada a Era Vargas, promulga-se a Constituição de 1934. Essa, consoante Oliveira et al (2023), trouxe a vedação à bitributação de forma expressa e delimitou os tributos de competência da União e dos estados. Além disso, conferiu aos municípios competência tributária e criou as contribuições de melhoria.

As inovações daquela Lei Maior pavimentaram o caminho para a sistematização do Direito Tributário. Balthazar (2005, p.90) advoga que “se ainda não foi o texto que sistematizou a legislação tributária, firmou princípios antes ausentes das Cartas anteriores ou presentes de forma implícita ou ilimitada, como é o caso do princípio da imunidade recíproca“.

Sob o Estado Novo, fase ditatorial da Era Vargas, foi outorgada a Constituição de 1937. Salienta Balthazar (2005), que essa não albergou mudanças significativas, apenas pontuais, como, por exemplo, o imposto sobre indústria e profissões, anteriormente de competência privativa dos estados, foi transferida para os municípios (metade da arrecadação desse imposto já lhes pertencia). Superada a Ditadura Vargas, em 1946, mais uma Carta Magna é promulgada e que, quanto à matéria tributária, possibilitou:

[…] a cobrança de tributos extraordinários, para além daqueles definidos na Constituição em situações específicas. Acrescentou o princípio de capacidade contributiva, isto é, definiu como regra a necessidade de a União, Estados e Município considerarem quanto cada cidadão pode contribuir para uma cobrança mais justa de tributos e instituiu o princípio da anualidade, no qual as rendas e despesas eram avaliadas com a frequência anual (Oliveira et al, 2023, p.1).

 Primando pela clareza, a Lei Maior de 1946 discriminou as competências de cada ente federado, prevendo, a título de ilustração, em seu art. 15, que competia à União decretar impostos sobre a (I) importação de mercadorias de procedência estrangeira; (II) consumo de mercadorias; (III) produção, comércio, distribuição e consumo, e bem assim importação e exportação de lubrificantes e de combustíveis líquidos ou gasosos de qualquer origem ou natureza, estendendo-se esse regime, no que for aplicável, aos minerais do País e à energia elétrica; (IV) renda e proventos de qualquer natureza; (V) transferência de fundos para o exterior; (VI) negócios de sua economia, atos e instrumentos regulados por lei federal; e (VII)  propriedade territorial rural, (Brasil, 1946).

No que diz respeito aos impostos estaduais, o art. 19 definiu que os impostos que recaíam sobre a (I) transmissão de propriedade causa mortis; (II) vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive industriais, isenta, porém, a primeira operação do pequeno produtor; (III) exportação de mercadorias de sua produção para o estrangeiro, até o máximo de 5% (cinco por cento) ad valorem, vedados quaisquer adicionais; (IV) os atos regulados por lei estadual, os do serviço de sua Justiça e os negócios de sua economia, competiam aos estados (Brasil, 1946).

Desse modo, a Constituição, defende Linck (2009, p.91), “estabeleceu com maior clareza os repasses da União e dos estados das rendas obtidas através da tributação aos municípios e outorgou ao Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas, a fiscalização da administração financeira.”

Em 1964, após o golpe de Estado, instaura-se no Brasil a ferrenha Ditadura Militar. Com o fim de atender a uma política econômica arrojada, em 1965, é iniciada uma reforma tributária. Essa reforma, em conjunto com outras medidas adotadas, proporcionou o chamado Milagre Econômico, vez que estabeleceu:

[…] normas que determinavam a aquisição de recursos adicionais não-inflacionários para cobrir o déficit da União e que buscavam o equilíbrio das finanças com a economia mundial. Houve também a edição de leis que estabeleciam meios que facilitassem e que aperfeiçoassem a arrecadação fiscal, como, por exemplo, a Lei 4.506/64 que alterou a legislação do imposto sobre a renda; ainda, a criação de uma comissão especial formada por juristas e por técnicos do Ministério da Fazenda com a finalidade de elaborar um anteprojeto de emenda constitucional (Linck, 2009, p.92).

Nesse cenário, é aprovada a Emenda à Constituição n° 18/65, que, finalmente, deu os contornos normativos finais para o sistema tributário nacional. Essa, foi recepcionada pela Constituição de 1967, que passava a ter a previsão expressa de três espécies de tributos, a saber, impostos, taxas e contribuições de melhoria. Antes da Emenda, leciona Scaff (2014, p.1):

[…] a divisão da competência tributária se pautava por um critério meramente político, sem nenhuma correspondência econômica. A legislação de estados e municípios não possuía nenhum vínculo com as incidências federais, se constituindo em sistemas autônomos. Estados e municípios criavam incidências amparados no que atualmente se chama de “competência residual”, que antes era ampla em todos os entes federados e tornou-se centrada na União, onde remanesce até os dias atuais (embora hoje a amplitude da arrecadação federal ocorra no âmbito das contribuições, e não no dos impostos).

Diante disso, Linck (2009, p.92) assevera que tal emenda “surgiu para terminar de desenhar o sistema tributário brasileiro, uma vez que organizou de forma ordenada a cobrança dos tributos, ao limitar as competências e ao estabelecer os princípios que deveriam ser seguidos pelas administrações”.

No ano seguinte à publicação da referida emenda, foi instituído o Código Tributário Nacional (CTN), estabelecendo assim uma separação definitiva entre o Direito Tributário e o Direito Financeiro. A tributação, pelo espírito do CTN, para Linck (2009), deixou de ser apenas um meio para a manutenção do Estado, passando a assumir uma função mais ampla de política econômica.

O CTN apresentou ainda, em seu art. 3°, o conceito de tributo que é “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (Brasil, 1966, p.1).

Vale pontuar que, apesar da criação de um sistema tributário nacional, fundamentado em princípios e normas de competência, estabelecidos pela Constituição Federal, os anos subsequentes à sua promulgação foram marcados por uma fase obscura na história do Brasil. A Carta Magna e as legislações ordinárias, segundo Linck (2009), possuíam pouco valor diante dos Atos Institucionais[7], que emprestavam um verniz de legitimidade para o Estado autoritário e repressivo que o Governo Militar erigiu.

Contudo, ares democráticos passaram a soprar no Brasil. Em 1985 se encerra o Regime Ditatorial, sendo promulgada a atual Constituição Federal de 1988. Estribada em valores como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, a Lei Maior, defende Linck (2009), passa a privilegiar a isonomia tributária e a capacidade contributiva dos sujeitos passivos.

Nessa toada, para Linck (2009), com o advento da “Constituição Cidadã” (1988), o tributo perde seu caráter meramente arrecadatório, destinado apenas à preservação e funcionamento das pesadas engrenagens do Estado. Passa, então, a ser um valioso meio de garantia e patrocínio das políticas públicas e outras ações e diretrizes voltadas para a efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Assim, o estudo do Direito Tributário passou a ter como foco a busca pela harmonia entre o poder de tributar do Estado e os direitos fundamentais do contribuinte.

Ademais, buscando se adequar aos princípios, direitos e garantias constitucionais, o conceito de tributo é ampliado, passando a ser entendido como:

[…] uma fonte de recursos financeiros destinados ao custeio de despesas públicas gerais (art. 167, IV) ou especiais (arts. 149, 149-A e 195); (b) é instituído e cobrado pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (arts. 148, 149, 149-A, 153-156); (c) no exercício de um poder de tributar limitado (Seção II); (d) exigido de pessoas jurídicas ou físicas enquanto sujeitos passivos de relações obrigacionais (art. 150, § 7º); (e) em função de “fatos geradores” definidos em lei (arts. 146, III, “a”, e 150, III, “a”), que, por sua vez, podem ser atos administrativos ou dele decorrentes (art. 146, II e III), direitos ou negócios jurídicos de direito privado sem vinculação com uma ação estatal (arts. 153-156), tais como a propriedade de bens móveis (art. 155, III) e imóveis (arts. 153, VI, e 156, I), a importação de produtos (art. 153, I), operações de crédito, câmbio e seguro (art. 153, V), a transmissão causa mortis e doação de bens ou direitos (art. 155, I), a circulação de mercadorias (art. 155, II), a prestação de serviços (art. 156, III), entre outros mais (Sehn, p. 44, 2024).

No entanto, nem tudo são flores. Há ainda muitas fragilidades e desigualdades no sistema tributário vigente, especialmente no que diz respeito à efetivação da capacidade contributiva. A maior carga fiscal, advoga Balthazar (2005), está encerrada nos impostos indiretos, isto é, aqueles incidentes sobre o consumo. Em razão disso, uma pessoa de baixa renda tem, proporcionalmente, maior comprometimento de sua renda do que uma pessoa que dispõe de alto poder aquisitivo, o que contribui para o aprofundamento das desigualdades sociais.

  • COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

Um Estado federado é, por definição, um conjunto de entes livres. Tais entes possuem parcelas de poder, cuja distribuição é conferida, em regra, por lei. Uma das ramificações desse poder, ensina Carvalho Filho (2023), é a autonomia, caracterizada pela autoadministração, autogoverno e auto-organização.

Um fator de especial importância para a plenitude e manutenção da autonomia do ente federado, é a sua capacidade financeira, isto é, a disponibilidade de recursos capazes de viabilizar a consecução dos objetivos sociais, políticos e econômicos da entidade estatal. No cenário brasileiro, a arrecadação tributária é grande fonte de recursos públicos.  A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, em prestígio ao federalismo fiscal[8], possuem a capacidade de instituir e cobrar os seus próprios tributos, a fim de arrecadarem haveres para financiar o interesse público (Sehn, 2024).

Desse modo, para a existência de um federalismo saudável e equilibrado, é necessário que haja regras claras no que concerne à delimitação das competências tributárias e da repartição de receitas provenientes dos tributos. Competência tributária, leciona Mazza (2024), é a aptidão para criar, modificar, reduzir e extinguir tributos, por meio de lei, em observância ao princípio da legalidade. Como se depreende do próprio conceito, pode-se afirmar que a aludida competência é uma espécie de competência legislativa, cabendo ser exercida pelo Parlamento.

Por ser um tipo de competência legislativa, explica Mazza (2024), é a Constituição Federal que define as competências tributárias, isto é, ela que atribuirá ao ente os poderes inerentes à sua competência. Tendo isso em vista, a atual Carta Magna conferiu aos entes federados, ou seja, às pessoas jurídicas de direito público integrantes da Administração direta (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), a titularidade da competência tributária, a qual é indelegável. Desse modo, podemos asseverar que a Lei Maior não cria tributos, apenas atribui poder para que a entidade federativa competente o faça.

Ademais, cabe fazermos uma relevante distinção entre competência tributária e capacidade tributária ativa. A primeira, de viés legislativo e abstrato, leciona Mazza (2024), diz respeito à habilitação para criar tributos. Já, a segunda, de caráter administrativo e concreto, se refere ao exercício da aptidão para cobrar e arrecadar tributos, o que não deve ser feito, necessariamente, pela pessoa jurídica que o institui.

 Assim, de acordo Sabbag (2021), um ente pode criar tributo, mas outro o cobrar, sem que isso implique em delegação ou usurpação de competência. A esse fenômeno, damos o nome de parafiscalidade (art. 7°, do CTN)[9].

Faz-se, ainda, pertinente esclarecer que a Magna Carta, conforme expõe Mazza (2024), se valeu de diferentes métodos para repartir competências tributárias entre a União e os entes subnacionais, trazendo em seu bojo 5 (cinco) espécies de competência, a saber, competência privativa, comum, cumulativa, especial e residual.

Na privativa, afirma Sabbag (2021), determinado imposto é atribuído a um ente tributante, sendo que a Constituição prevê quais são os impostos e a quem lhes cabe. Assim, o Imposto sobre a Circulação de Bens e Serviços (ICMS) é conferido aos estados e ao Distrito Federal (no exercício de sua competência estadual) e o Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN) é atribuído aos municípios e ao Distrito Federal (no exercício de sua competência municipal).

Por sua vez, segundo Mazza (2024), a competência comum é concedida concomitantemente a todas as pessoas políticas, podendo ser usada quando essas realizarem o fato gerador[10] do tributo, o qual é vinculado a uma prestação do ente federativo (por exemplo, taxas devidas em razão do exercício do poder de polícia). Lado outro, expõe Sehn (2024), a competência cumulativa (art. 147, da CF) é aquela que habilita uma entidade federativa a cobrar e fiscalizar os seus tributos, além de tributos cuja competência caberia, originalmente, a outro ente federado. É o que ocorre com a União em relação aos territórios federais, por exemplo. A União passa a acumular a competência tributária estadual e, caso o território não seja divido municípios, também a competência tributária municipal. A título de exemplo e melhor visualização, tínhamos a competência cumulativa da União sobre o então território federal de Fernando de Noronha (hoje distrito estadual de Pernambuco), que, dada a exiguidade de seu território, não estava (e ainda não está) dividido em municípios.

Já a competência especial, aduz Sabbag (2021, p.50), pode ser entendida como sendo “o poder de instituir empréstimos compulsórios (art. 148 da CF) e contribuições especiais (art. 149 da CF)”.

 É válido mencionar, aclara Sabbag (2021), que tal tributo só pode ser usado em situações fáticas específicas, quais sejam: (I) calamidade pública, (II) guerra externa ou sua iminência e (III) investimento público de caráter urgente e relevante interesse nacional (art. 148, I e II, da CF c/c art. 15, I e II, do CTN).

Por fim, a competência residual (art. 154, I, e art. 195, § 4.º) diz respeito à possiblidade de a União instituir impostos que não estejam contemplados na Lei Maior, assim como outras fontes de contribuição para o financiamento da Seguridade Social[11], por meio de lei complementar. Ao tratar do assunto, Sabbag (2021, p.50) ensina que:

[…] No que tange aos impostos, a competência residual indica que o imposto novo deverá ser instituído, por lei complementar, pela União, obedecendo-se a duas limitações: (I) respeito ao princípio da não cumulatividade; e (II) proibição de coincidência entre o seu fato gerador ou a sua base de cálculo com o fato gerador ou a base de cálculo de outros impostos;

[…] Quanto às contribuições para a seguridade social, o raciocínio é parcialmente idêntico, tendo em vista o atrelamento textual do art. 195, § 4.º, da CF ao art. 154, I, da CF. Nessa medida, as contribuições residuais para a seguridade social devem respeitar os seguintes parâmetros: (I) instituição, por lei complementar, pela União; (II) respeito ao princípio da não cumulatividade; (III) proibição de coincidência entre o seu fato gerador ou a sua base de cálculo com o fato gerador ou a base de cálculo de outras contribuições.

Do exposto, não é temerário declarar que a competência tributária é um dos mais significativos instrumentos de descentralização política e financeira, que permite que cada um dos entes federados, em suas respectivas esferas de atuação, busquem a implementação do interesse público. Neste contexto, a distribuição de competências tributárias é uma afirmação da Federação brasileira. A despeito disso, o modelo vigente vem sofrendo críticas. Conforme entendem Marcus Abraham e João Ricardo Catarino (2018), o federalismo fiscal à brasileira é assimétrico, vez que a União, em comparação com as outras pessoas jurídicas da administração direta, concentra um número consideravelmente maior de competências, o que a coloca em um patamar de superioridade[12].

Assim, mostrava-se imperioso mudar a conformação tributária vigente, a fim de resolver mazelas como a da concentração de competências pela União, já aludida, assim como outras tão prementes quanto. Em vista disso e com o intuito de corrigir distorções e perniciosidades do sistema tributário nacional, foi proposta e promulgada a Emenda à Constituição n° 132/2023, a qual estudaremos mais detidamente a seguir.

  •  EMENDA CONSTITUCIONAL n°132/2023 E AS MAZELAS DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

O Sistema Tributário Brasileiro é, sem dúvida, um dos mais ultrapassados e problemáticos do mundo. A maioria dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, de acordo com Eduardo Maneira (2022), quanto à tributação do consumo, adotou, há décadas, o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), que possui uma alíquota padrão. No Brasil, há 5 (cinco) impostos que incidem sobre o consumo, com diferentes entes competentes para cobrá-los. Tal fato faz com que tenhamos um desenho tributário complexo e confuso, em sentido totalmente antagônico ao de outras nações mais desenvolvidas, o que nos coloca em uma posição de atraso e isolamento.

São inúmeros os entraves e distorções gerados pelo atual modelo tributário brasileiro. Porém, a fim de não sermos exaustivos, vamos nos ater aos pontos mais sensíveis, de acordo com Brasil (2023), quais sejam: base de cálculo fragmentada, cumulatividade, complexidade, guerra fiscal, opacidade e litigância exacerbada.

De início, é relevante pontuar que a incidência de alguns impostos sobre o consumo é determinada pela identificação de seus respectivos fatos geradores (fatos tributários imponíveis), isto é, a circulação de uma mercadoria ou a prestação de um serviço. Essa distinção, segundo Brasil (2023), nem sempre é simples, especialmente em um mercado cada vez mais permeado por produtos digitais, os quais, muitas vezes, ficam em uma zona cinzenta. Isso acaba por gerar insegurança para o contribuinte e conflitos de competência entre os entes tributantes.

 Outro embaraço, para Brasil (2023), é a cumulatividade, que impede o creditamento do sujeito passivo em relação aos tributos já recolhidos e assoberba a produção nacional, deixando o país em desvantagem competitiva em comparação com outros países. Tal cumulatividade, se dá tanto em razão dos “tributos cumulativos, como o ISS e a PIS/COFINS, no regime cumulativo; como também em razão das inúmeras restrições ao creditamento nos tributos não cumulativos, como o ICMS, a PIS/COFINS e o IPI não cumulativos” (Brasil, 2023, p.03).

Em continuação, temos a elevada complexidade do sistema tributário. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (2021)[13], desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, já foram editadas 466 mil normas que versam sobre matéria tributária, o que equivale a 37 normas tributárias por dia útil. Além disso, conforme estimativa do mesmo instituto, no Brasil, as empresas desembolsam, por ano, cerca de R$ 181 bilhões de reais, com o intuito de acompanharem as constantes mudanças legislativas. Desse modo, fica claro que esse emaranhado de normas contribui para a defasagem e evasão de investimentos no mercado interno e para desestimular a iniciativa privada.

Além disso, uma pesquisa realizada pela Doing Business (2021) com a PWC[14], revelou que no Brasil gasta-se, em média, 1.500 horas nos cálculos e adimplemento de tributos, um número que é consideravelmente maior do que o de outros países, conforme a figura 1:

Figura 1 – Ranking de complexidade tributária geral

             Fonte: IBS sistemas (2020) apud Doing Business Subnacional Brasil 2021

Acrescente-se a esse cenário, já demasiadamente caótico, a guerra fiscal travada entre as entidades federativas, sobretudo os estados. Muitos dos impostos são pagos no estado de origem (por exemplo, o Imposto sobre a Circulação de Bens e Serviços – ICMS). Em virtude disso, sustenta Brasil (2023) que, com o objetivo de atrair empresas para os seus territórios, as unidades federativas travam uma batalha ferrenha, se valendo, para vencê-la, de armas como a concessão de benefícios tributários, especialmente. Em decorrência disso, temos o estabelecimento de um entrave que só serve para aumentar as desigualdades regionais e desmantelar a harmonia federativa.

Outrossim, no que tange à opacidade do sistema, pode-se afirmar que:

[…] atualmente é praticamente impossível se saber a carga tributária efetivamente cobrada, dada a profusão de alíquotas, reduções de base de cálculo, benefícios fiscais e regimes especiais de tributação, além de haver incidência de tributos sobre tributos, cálculo por dentro, restrições à não cumulatividade e existência de créditos presumidos na cadeia (Brasil, 2023, p. 03).

Assim sendo, ante a ausência de transparência, mostra-se patente o predomínio da insegurança jurídica para o contribuinte. Por fim, o elevado grau de litigiosidade é outro fruto amargo que deriva do caos fiscal. A alta litigância fica demonstrada, de acordo o relatório “Justiça em Números”, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (2021)[15], no exorbitante número de execuções fiscais em curso nos tribunais nacionais[16], as quais já somavam 28,8 milhões, representando uma taxa de 89,7% de congestionamento. É o que se pode ver na representação gráfica retratada na figura 2:

Figura 2 – Série histórica do impacto da execução fiscal na taxa de congestionamento

  Fonte: Conselho Nacional de Justiça (2021)

Considerando esse quadro alarmante, em 2019, pontua Eduardo Maneira (2022), foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição n° 45, a qual, após longos debates e alterações nas duas Casas Legislativas, foi promulgada em 20/12/2023, redundando na Emenda Constitucional nº132/2023 (Reforma Tributária). Com foco na simplificação, na segurança jurídica, na alteração do modo de repartição de receitas e na eliminação da regressividade tributária, a Reforma Tributária buscou eliminar ou, ao menos, minorar as dificuldades supra referidas.

A Reforma tributária trouxe diversas mudanças para o sistema tributário nacional, sendo a criação do IVA dual, indubitavelmente, a mais significativa delas. O IVA, Imposto sobre Valor Agregado, representa a conjugação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e com o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), por isso a terminologia dual. E terá alíquota estimada em 27,27% (Mello, 2024).

A CBS, de competência da União, foi instituída para substituir o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), principais contribuições incidentes sobre o consumo (Spina, 2024). O IBS, por sua vez, foi criado em substituição ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias (ICMS), de competência dos estados e do Distrito Federal, e ao Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN), o qual é de competência dos municípios e do Distrito Federal (no exercício de sua atribuição municipal), segundo se vê na figura 3:

Figura 3– Nova configuração tributária  

Fonte: Agência Senado, 2023.

Para os fins do presente artigo, passaremos a destrinchar os aspectos relativos ao IBS.

Após a promulgação da Emenda Constitucional n°132, a Constituição Federal, em seu artigo 156-A, passou a prever a criação do IBS, uma espécie de imposto com gestão compartilhada entre os estados, o Distrito Federal e os municípios, e que será regulamentado por meio de lei complementar nacional (Brasil, 1988). Tal imposto tem por preceito a neutralidade, que nada mais é do que a tentativa de repelir distorções relativas ao consumo, e a padronização em todo o Brasil, o que produz simplificação e segurança jurídica, tanto para entes tributantes quanto para os contribuintes (Brasil, 2024).

Com a finalidade de atingir esses objetivos, o novo imposto em comento (i) terá tratamento legislativo uniforme em todo território nacional; (ii) não admitirá exceções relativas a benefícios e incentivos fiscais, salvo as previstas na Carta Magna; (iii) terá suas alíquotas-referência fixadas pelo Senado Federal e as alíquotas específicas definidas por cada ente competente, sendo que tais alíquotas devem ser as mesmas para todas as operações com bens materiais, imateriais, direitos ou serviços, com exceção das hipóteses previstas na Constituição[17] (Brasil, 1988).

Ademais, a instituição do IBS pretende acabar com a perniciosa dinâmica do imposto em cascata, em que o imposto incide em várias etapas do processo de circulação de mercadorias e impede o creditamento do contribuinte, deixando a operação complexa e custosa. Por isso, o IBS será (i) não cumulativo, isto é, haverá a compensação do imposto devido com o total arrecadado em todas as operações; (ii) não integrará a sua própria base de cálculo; (iii) será exigido pelo valor da soma das alíquotas do estado e do município final do negócio jurídico[18] (Brasil, 1988).

No que concerne à estrutura legislativa do IBS, a Lei Maior definiu que (i) é a própria Constituição que atribui competência para a regulamentação do IBS; (ii) tal regulamentação se dará por lei complementar que, no momento, está em fase de tramitação na casa revisora (Senado Federal), sob o nome Projeto de Lei Complementar n° 68/2024; (si) terá alíquota-referência estabelecida pelo Senado Federal; (iv) lei específica, editada pelos entes subnacionais, quais sejam, estados, Distrito Federal, e municípios, fixará alíquotas incidentes sobre as operações onerosas com bens ou serviços deflagradas nas zonas de sua competência, desde que sejam o destino (Brasil, 1988).

Em relação às imunidades dos IBS, isto é, situações em que não incidirá o imposto, mesmo que implementado o seu fato gerador, definiu o Projeto de Lei Complementar n° 68/2024, que são imunes (i) as exportações de bens e serviços para o estrangeiro; (ii) as transações deflagradas pelos entes políticos; (iii) as operações onerosas realizadas por entidades religiosas e templos de qualquer crença, incluindo suas organizações de assistência e beneficência; (iv) as operações desenvolvidas por partidos políticos, abrangendo também suas fundações, entidades sindicais representativas dos trabalhadores e instituições privadas sem fins lucrativos dedicadas à educação e assistência social; (v) as operações com livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão; (vi) prestações de serviços de comunicação, nas bandas de radiofrequência, nas modalidades de radiodifusão sonora e televisiva, destinadas à recepção livre e gratuita pelo público, dentre outras (Brasil, 2024).

Da análise das diretrizes, pode-se notar que, com a união das competências, somada à troca da incidência do tributo da origem para o destino, haverá uma maior uniformidade no tratamento do imposto pelos entes federados, o que, potencialmente, poderá conter as “guerras fiscais” entre eles, promovendo uma distribuição de renda mais equilibrada, além de mitigar as desigualdades regionais e aumentar a competitividade na iniciativa privada. Lado outro, conforme ensina Florêncio (2021, p. 116), a eliminação da competência exclusiva, pode extenuar “a possibilidade de os entes federados concederem benefícios fiscais, uma vez que estes não mais detêm a competência legislativa para outorga de isenções, nem a capacidade tributária ativa exclusiva para exigência do crédito tributário”.

Ao lado da uniformização, com o advento do IBS, temos também a simplificação do atual modelo praticado, vez que haverá maior clareza sobre a natureza da operação, a incidência do fato gerador e a atribuição de cobrança e arrecadação do ente, abolindo outro problema crônico do sistema tributário nacional que é o conflito de competências. Nesse sentido, ensina Albano (2024, p. 75) que:

[…] o IBS promete encerrar discussões outrora travadas a título de   conflito   de   competência decorrentes da dubiedade da natureza jurídica das operações sob   a   incidência   do   ISS, ICMS   ou   que   se encontravam no limbo. Situação esta que enseja   não   apenas   insegurança   jurídica   ao sujeito passivo   da   relação   tributária, como também aumenta exponencialmente o “custo Brasil”.

Vale mencionar que a Reforma Tributária estabeleceu um cronograma de substituição para a implementação dos novos tributos e a extinção dos antigos, o qual terá início em 2026. Ao longo deste período, o sistema tributário nacional se encontrará imerso em um regime de transição, no qual os novos tributos serão arrecadados simultaneamente aos antigos, os quais estão destinados ao aniquilamento gradual. A substituição total dos tributos mencionados se dará, somente, ao término do prazo previamente estipulado, qual seja, 2033 (Brasil, 2024). Vejamos na figura 4, abaixo, o esboço das modificações:

Figura 4– Transição Fiscal  

Fonte: Agência Câmara dos Deputados, 2024.

Por fim, a administração do IBS ficará a cargo do chamado Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, o qual foi introduzido no Sistema Tributário Nacional pela Reforma Tributária e cuja atuação será regida por lei complementar, atualmente em tramitação no Congresso Nacional (Brasil, 2023).

  • COMITÊ GESTOR DO IBS

O Comitê Gestor do Imposto Sobre Bens e Serviços (CG-IBS)[19], ainda em fase de apreciação e deliberação legislativa, no âmbito do Projeto de Lei Complementar n° 108/2024, possuirá, conforme o art. 156, §1°, da CF, natureza jurídica de “entidade pública sob regime especial[20], gozando de autonomia técnica, administrativa, orçamentária e financeira”. É por meio dele que os entes federados exercerão as competências administrativas relacionadas ao IBS, a saber, “I-editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto; II-arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre Estados, Distrito Federal e Municípios; III-decidir contencioso administrativo” (Brasil, 1988).

O desenho constitucional e institucional do Comitê buscou privilegiar a integração dos entes federativos e uma representatividade paritária, de modo que a entidade pública será composta por dois grupos, cada um com 27 membros, sendo um responsável por defender os interesses de cada estado e do Distrito Federal, e outro por representar o agrupamento de municípios e o Distrito Federal. Neste último caso, 14 (quatorze) dos 27 (vinte e sete) membros serão eleitos, por meio de votos com peso igual de cada Município, já os outros 13 (treze) serão escolhidos levando em consideração os votos de cada Município, ponderados pela população correspondente (Brasil, 1988).

Ademais, no tocante às deliberações no CG-IBS, temos que estas serão aprovadas, atendendo a um critério cumulativo, pela maioria absoluta dos representantes, isto é, 8 (oito membros) e “de representantes dos estados e do Distrito Federal que correspondam a mais de 50% (cinquenta por cento) da população do País” (Brasil, 1988, seção V-A, art. 156-B, §4°, inciso I, al “b”). Já em relação ao bloco municipal, faz-se necessária a maioria absoluta de seus membros participantes do Comitê para aprovação das resoluções. Ao comentar a estrutura de representação e os critérios de voto adotados, Albano (2024, p. 76) observa que:

O critério meramente quantitativo é aliado ao qualitativo de representação populacional em nível nacional. A exigência qualitativa cria um obstáculo à possibilidade de regionalização das   decisões.   É   dizer:   as   regiões   norte   e nordeste que representam 16 dos 27 componentes do bloco estadual de tal forma que, em conjunto, asseguraria a maioria em quórum, não representam o quantitativo populacional necessário à aprovação

A instauração do CG-IBS será, em um primeiro momento, custeada pela União no período de 2025 a 2028. Após o referido período, com a efetiva operacionalização do IBS, o financiamento da entidade será feito por meio de uma parcela do produto da arrecadação do imposto. Cabe mencionar que os valores despendidos pela União serão ressarcidos (Brasil, 2024).

Do ponto de vista de comando organizacional, é válido aduzir que o comitê será presidido por alguém com notório saber no campo da administração pública, sendo nomeado após deliberação e aprovação do Senado Federal, por sua maioria absoluta. Além disso, o presidente do comitê gestor, à semelhança dos ministros de Estado, poderá ser convocado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, assim como por suas respectivas comissões, para apresentar informações, sob sanção de incorrer em crime de responsabilidade (Brasil, 1988).

Por sua vez, o controle externo, ou seja, a fiscalização contábil, operacional, e patrimonial do CG-IBS, segundo art. 40 do PLP n° 108/24, ficará a cargo dos tribunais de contas estaduais ou municipais (Brasil, 2024).

É possível afirmar que algumas alterações deflagradas pela Reforma Tributária indicam a possibilidade de desmantelo da organização federativa do Estado, o que significaria malferir cláusula pétrea (art. 60, inciso IV, da CF). Nesse sentido, a primeira problemática que pode ser aventada, está relacionada à criação de um imposto, como é o caso do IBS, de gestão compartilhada, disciplinado por lei complementar federal (Brasil, 1988). Os impostos substituídos pelo IBS, quais sejam, ICMS e ISS, eram instituídos e tinham as suas alíquotas definidas, por lei, pelo ente competente para editá-la, no exercício de sua competência exclusiva, a qual é conferida pela Lei Maior.

Agora, é uma lei complementar, de caráter nacional, que ditará as regras que os entes federados deverão observar no tratamento do novo imposto. Destarte, aclara Albano (2024, p. 81) que “o ente não mais   terá   autonomia   para   definir   os elementos básicos do tributo, tais como o seu fato gerador, a sua base de cálculo, o sujeito passivo tributário e as penalidades. Diante disso, é forçoso reconhecer o incremento do poder federal e o consequente achatamento da autonomia dos entes federativos”.

Por outro lado, não se pode ignorar o fato de que uma harmonização legislativa teria o condão de arrefecer as guerras fiscais e mitigar as desigualdades regionais. A possibilidade de edições de leis autônomas pelos estados e municípios, muitas vezes, produz um cenário de insegurança jurídica e abala o equilíbrio federativo, vez que cada ente almeja atrair para si a receita advinda dos tributos. Assim, ensina Merheb (2024, p.1) que “[…] o prejuízo não é à autonomia e, sim, à predação fiscal, que expande distorções alocativas e incentiva a rivalidade”.

Outro ponto nevrálgico, e que merece atenção, diz respeito às competências do CG-IBS. Nota-se que a entidade passará a exercer as competências tributárias que atualmente cabem aos entes subnacionais. Atribuições como arrecadar o imposto, efetuar compensações, conceder benefícios, distribuir a receita da arrecadação, e decidir o contencioso administrativo não serão mais realizadas pelos próprios entes, mas sim pelo comitê gestor, o que pode produzir uma assimetria federativa (Brasil, 1988).

Dessa maneira, a atuação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios se restringirá a definir as alíquotas específicas do imposto quando forem destino da circulação de serviços ou mercadorias e a votarem no colegiado do CG-IBS, cujas regras de deliberação e aprovação foram retromencionadas. Acerca disso, Martins (2023, p.1) entende que:

A criação de uma entidade com competências próprias de ente federativo, esvazia a competência dos órgãos legislativos competentes, instâncias apropriadas para proposição, discussão, deliberação e decisão acerca de matérias tributárias de competência de estados e municípios. Órgãos legislativos estes compostos por representantes eleitos pelo povo, legitimados, portanto, para tratarem de tais assuntos, diferentemente de um conselho que será formado por burocratas escolhidos por critérios técnicos e longe dos olhos da população.

Contudo, em que pese a perda de parcela de autonomia pelos entes tributantes, o que se transferirá à entidade pública será, tão somente, o exercício da atividade em favor de uma integração e cooperação tributárias, preservando-se a titularidade desta, o que não implica, necessariamente, em uma proposta tendente a abolir a forma federativa de Estado. Tanto é assim, que as entidades subnacionais manterão sua ingerência sobre outras figuras tributárias que lhes competem, o que desnatura a ideia de elisão federativa (Albano, 2024, p.82).  

Ademais, a vedação à concessão de incentivos e benefícios fiscais, com exceção daqueles previstos na Constituição Federal, é mais uma questão sensível na conformação tributária dada pela Reforma. Com a instituição do IBS, as entidades políticas regionais e locais não mais poderão conferir benefícios fiscais em sua zona de competência. Tal medida se justifica pela necessidade de atingir o propósito da uniformização tributária pretendido pela Reforma, a fim de alcançar as benesses ligadas a essa harmonização, como segurança jurídica, correção das distorções fiscais, disparidades regionais e locais, dentre outras (Brasil, 1988).

Porém, é imperioso reconhecer que a aludida vedação retira parte da autonomia do ente tributante, o que por si só, não fere de morte a organização do Estado. Ainda subsistirão outras formas de gerar atratividade fiscal e estimular investimento, sem que isso represente discrepâncias e prélios aviltantes (Meherb, 2024, p.1).

É válido, ainda, aduzir que as entidades federativas perderam. em prol do CG-IBS, a legitimidade para resolver o contencioso administrativo em relação ao imposto. Caberá aos entes apenas lavrar os autos de infração, não possuindo mais poder para processá-los e julgá-los. Essa característica, combinada com outras já supramencionadas, torna o IBS uma espécie tributária sui generis, vez que a “[…] União institui o imposto; estados e municípios, instituem as alíquotas e fiscalizam o imposto; e o Comitê Gestor promove a arrecadação, a partilha do imposto e julga os processos administrativos tributários oriundos de autos de infração lavrados por estados e municípios” (Harada,2024, p.1).

Uma solução para a manutenção da autonomia e para fazer frente à ameaça de afronta à cláusula pétrea da forma federativa do Estado, é redesenhar a estrutura e as atribuições do CG-IBS, de modo a devolver aos entes subnacionais as competências que lhes são típicas e que decorrem do seu poder de tributar. Dessa maneira, manter-se-ia sua capacidade de autoadministração, o que permite maior efetividade na busca da realização do bem comum e do fortalecimento da estrutura financeira das entidades federadas (Martins, 2023, p.1).

Lado outro, manter o atual sistema é, indubitavelmente, conservar as anomalias que ele possui hoje. Vale dizer que mitigação de autonomia, não implica, em si mesma, em abolição do arcabouço federativo. Nessa toada, Albano (2024, p.82) assevera que:

[…] a criação de uma entidade pública composta   por representantes   dos entes federativos não denota, por si só, intuito de abolir a forma   federativa.   Na verdade, remodela os contornos federativos ao passo que substitui a multiplicidade legislativa, a ausência de uniformidade e o mau uso das políticas de incentivo por uma atuação integrada, concentrada em    uma entidade pública composta por representantes dos níveis federativos, em sua totalidade quanto estadual e majoritário quanto ao municipal. Pode-se, por assim dizer que em matéria de tributação sobre o consumo observa-se uma faceta do federalismo que pode ser denominada de integrativo-representativo já que:  integra os entes -em contraposição às autonomias estanques, isoladas e conflituosas -e o faz mediante a estruturação de uma entidade   representativa que deliberará os temas afetos ao tributo de competência compartilhada.

Teme-se que essa retirada de autonomia dos entes subnacionais, estribada no fundamento de aumento da cooperação federativa e na correção de problemas que há tempos afligem os contribuintes, seja apenas um subterfúgio para justificar uma centralização autoritária e cerceadora. Assim, corre-se o risco de que a idílica troca de benefícios mútuos, transforme-se, ao fim e ao cabo, na preponderância de um ente sobre outro, o que promoveria uma falência do federalismo fiscal (Conti; Mascarenhas, 2023, p. 125).

Entretanto, é irrefragável que a criação do IBS e do comitê responsável por gerí-lo, a priori, pode significar um passo importante para a reestruturação do nosso teratológico sistema tributário. A alteração do exercício direto, para uma atuação colegiada e representativa por parte dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, aliada a uma harmonização tributária, parece ser um caminho viável para a edificação de um sistema caracterizado pela simplicidade, transparência, justiça tributária, e cooperação. Assim, se bem implementada, pode ser uma inovação capaz de robustecer o pacto federativo, elevando a integração entre os entes pactuantes, além de fazer florescer esperanças de recuperação de uma máquina fiscal que há muito tempo respira por aparelhos.

  • CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com uma proposta arrojada e ambiciosa, a Reforma Tributária pretende, por meio do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), produzir uma profunda e bem-vinda reestruturação do sistema tributário brasileiro. Ao conjuminar o ICMS e o ISS, transformando-os em IBS, a alteração legislativa almeja simplificar o sistema, eliminar a perniciosa e contraproducente cumulatividade, além de propiciar maior transparência às operações tributárias. Tais mudanças são significativos avanços para o combate e eliminação dos vermes que corroem, há bastante tempo, o federalismo fiscal. A guerra fiscal entre os estados e a complexidade da legislação tributária estão entre eles.

Além disso, com uma reformulação da tributação sobre o consumo, que tanto aflige os contribuintes, especialmente os mais pobres, associada a uma mitigação das desigualdades regionais e locais, a Reforma Tributária busca promover a justiça tributária, privilegiando a capacidade contributiva e a criação de um ambiente saudável e atrativo para os negócios. Ao vedar as concessões de incentivos e benefícios fiscais e uniformizar a legislação, a receita do IBS pode ser redistribuída de modo mais igualitário, vez que se eliminam as distorções geradas pelas inúmeras leis autônomas, editadas pelos entes políticos, e a sanha competitiva entre eles. No entanto, este propósito somente poderá ser atingido se os entes subnacionais tiverem a liberdade de fixar as alíquotas do novo tributo, de forma a atender às necessidades regionais e locais.

É relevante pontuar que a substituição da antiga dinâmica tributária pela nova, a qual findará em 2033, exigirá articulação e colaboração entre diferentes níveis de governo. Nesse interregno, em que haverá a coexistência dos antigos e do novo imposto, será importante, para não dizer indispensável, a adoção de mecanismos que permitam uma transição suave e que minimizem os impactos negativos sobre a arrecadação. Desse modo, o aprimoramento da comunicação e educação fiscal para preparar os contribuintes e as administração tributária são peças-chave para o sucesso das alterações. 

A centralização, em um Comitê Gestor, das competências que antes eram exercidas pelos entes federados, representa uma transformação de paradigma na administração tributário-fiscal brasileira. Em que pese essa abordagem estar estribada na promessa de maior uniformidade e eficiência, é incontendível que ela suscita receios em relação à preservação da autonomia dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, corolário de uma federação. Dessa maneira, haverá a inarredável necessidade de equilibrar a integração e a cooperação entre os entes políticos, com a preservação de sua independência, com vistas a não se ultrapassar a linha tênue entre mitigação de autonomia e abolição do federalismo, o que tornaria parte da Reforma Tributária inconstitucional.

Assim, face ao exposto, aprioristicamente, não se pode afirmar taxativamente que a criação do IBS e do Comitê responsável por geri-lo sejam propostas tendentes a abolir a forma federativa de Estado. É fato, contudo, que os entes subnacionais terão um achatamento em sua autonomia, porém isso não leva necessariamente a uma corrosão do federalismo. A partir da implementação do novo modelo tributário, poderemos ter, na verdade, a celebração de uma repactuação federativa, marcada pela integração, cooperativismo e representatividade. Caberá, assim, em grande medida, ao Conselho Federativo e ao Comitê Gestor delinear o futuro de nosso sistema tributário pátrio.

REFERÊNCIAS

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2. BALTHAZAR, U C. História do Direito Tributário no Brasil: 01. ed. Florianópolis: Fundação Boiteux,2005.Disponível em: https://pt.slideshare.net/slideshow/histria-do-tributo-no-brasil-ubaldo-cesar-balthazar/25075566#20. Acesso em 15 jun. 2024.

3. BANCO MUNDIAL. Doing Business Subnacional Brasil 2021. Washington, DC: Banco Mundial, 2021. Disponível em: https://subnational.doingbusiness.org/pt/reports/subnational-reports/brazil. Acesso em: 26 ago.2024.

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5. BRASIL. [Constituição (1891)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891. Rio de Janeiro: Presidência da República, 1891. Disponível em https://www.planalto.gov.br/cciviL_03/Constituicao/Constituicao91. Acesso em: 14 jun. 2024.

6. BRASIL. [Constituição (1934)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Rio de Janeiro: Presidência da República, 1934. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm. Acesso em: 16 jun. 2022.

7. BRASIL. [Constituição (1937)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1937. Rio de Janeiro: Presidência da República, 1937. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm. Acesso em: 17 jun. 2022.

8. BRASIL. [Constituição (1946)]. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Rio de Janeiro: Presidência da República, 1946. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/cciviL_03////Constituicao/Constituicao46.htm. Acesso em: 17 jun. 2022.

9. BRASIL. [Constituição (1967)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Brasília: Presidência da República,1967. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm. Acesso em: 18 jun. 2024.

10. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República,1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 jun. 2024.

11. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Complementar n° 68/2024. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços – IBS, a Contribuição Social sobre Bens e Serviços – CBS e o Imposto Seletivo – IS e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2414157&filename=PLP%2068/2024. Acesso em: 22 out.2024.

12. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Complementar n° 108/2024. Institui o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços – CG-IBS, dispõe sobre o processo administrativo tributário relativo ao lançamento de ofício do Imposto sobre Bens e Serviços – IBS, sobre a distribuição para os entes federativos do produto da arrecadação do IBS, e sobre o Imposto sobre Transmissão Causa mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD, e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2433204&filename=PLP%20108/2024. Acesso em: 22 out.2024.

13. BRASIL. Lei n° 5172, de 25 de outubro de 1966 [Código Tributário Nacional]. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Brasília: Presidência da República, 1966. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 11 ago. 2024

14. BRASIL. Emenda Constitucional n° 132 de 20 de dezembro de 2023.Altera o Sistema Tributário Nacional. Brasília: Presidência da República, 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc132.htm. Acesso em: 28 mar. 2024.

15. BRASIL. Ministério da Fazenda. Assessoria Especial de Comunicação Social. Reforma Tributária-Perguntas e Respostas. Brasília: Ministério da Fazenda, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/reforma-tributaria/arquivos/perguntas-e-respostas-reforma-tributaria_.pdf. Acesso em: 26 ago.2024.

16. BRASIL. Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Brasília: Presidência da República,1991. Disponível em:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm. Acesso em: 27 ago. 2024.

17. CARVALHO FILHO, J.S. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559774265. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559774265/.Acesso em: 05 mai. 2024.

18. CATARINO, J. R., e ABRAHAM, M. O Federalismo Fiscal no Brasil e na União Europeia.Rei – Revista Estudos Institucionais, 4(1), 186–210. Disponível em: https://doi.org/10.21783/rei.v4i1.26. Acesso em: 25 ago. 2024.

19. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Justiça em números 2022.Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf. Acesso em: 28 ago.2024.

20. CONTI, José Maurício e MASCARENHAS, Caio Gama. O debate da reforma tributária leva o direito financeiro a sério? Migalhas. Publicado em 24 de janeiro de 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/400788/o-debate-da-reforma-tributaria-leva-o-direito-financeiro-a-serio. Acesso em: 02/12/2024.

21. FERREIRA, L.C. Evolução histórica da tributação no Brasil e algumas sugestões para a reforma tributária. Dissertação (Mestrado em Ciências Cont. Atuariais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, p. 131. 2012. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/1503. Acesso em: 10 ago. 2024.

22. FLORÊNCIO, Paulo Henrique Procópio. O novo IBS como alternativa à guerra fiscal do ICMS: um estudo das soluções e do risco de violação ao pacto federativo. São Paulo – SP. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. 2021, p. 111-126. Disponível em: https://revistas.pge.sp.gov.br/index.php/revistapegesp/article/view/740/1441. Acesso em: 02/12/2024.

23. GOMES, Fabio L. Reforma Tributária: tributação, desenvolvimento e economia digital. São Paulo: Grupo Almedina, 2022. E-book. ISBN 9786556274409. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786556274409/. Acesso em: 15 ago. 2024.

24. IBS SISTEMAS. Complexidade Tributária: 1500 horas só pagando impostos.s.l.Disponível em:https://ibssistemas.com.br/complexidade-tributaria-1500-horas-so-pagando-impostos/. Acesso em: 25 ago. 2024.

25. INSTITUTO BRASILEIRO DE PLANEJAMENTO E TRIBUTAÇÃO. Estudo Quantidade de Normas 35 Anos CF – 2023. Disponível: https://ibpt.com.br/estudo-quantidade-de-normas-35-anos-cf-2023/. Acesso em: 14 ago. 2024.

26. LINCK, J.C. A evolução histórica do direito tributário e do pensamento tributário. Revista da FESDT n.4, 2009. Disponível em: https://www.fesdt.org.br/docs/revistas/4/artigos/12.pdf. Acesso: 16 jun.2024.

27. MANEIRA, Eduardo. IVA à brasileira. Folha de São Paulo. Coluna Opinião. https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/12/iva-a-brasileira-em-2033.shtml. Acesso em 02/12/2024.

28. MARTINS, Alberto André Barreto. Reforma tributária: a inconstitucionalidade do conselho federativo. JOTA. Publicado em 23/11/2023. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/reforma-tributaria-a-inconstitucionalidade-do-conselho-federativo. Acesso em: 02/12/2024.

29. MAZZA, Alexandre. Curso de Direito Tributário. São Paulo: SaraivaJur, 2024, 10ª ed.

30. MELLO, E. R. Direito fundamental a uma tributação justa. São Paulo:Atlas,2013.

31. MERHEB, Pedro. O futuro legislativo da regulamentação da reforma tributária. Consultor Jurídico. Publicado em 2 de março de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-02/o-futuro-legislativo-da-regulamentacao-da-reforma-tributaria/. Acesso em: 02/12/2024.

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33. OLIVEIRA, B. S. et al. O tributo ao longo da história no Brasil. Tributos e Desigualdades, online, p. 1, 4 abr. 2023. Disponível em: https://www.politize.com.br/tributos-e-desigualdade/o-tributo-ao-longo-da-historia-no-brasil/. Acesso em: 18 jun. 2024.

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35. SCAFF, F.F. 50 anos de tributação e finanças como um desafio ao país. 2014.Disponível: https://www.conjur.com.br/2014-mar-25/contas-vista-50-anos-tributacao-quem-pensando-pais/. Acesso: 13 jun. 2024.

36. SEHN, S. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Grupo GEN, 2024. E-book. ISBN 9786559648634. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559648634/. Acesso em: 19 jun. 2024.

37. SPINA, Vanessa Damasceno Rosa. Reforma tributária: o IBS, a CBS e o processo judicial. Consultor Jurídico. Publicado em 24 de março de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-24/o-ibs-a-cbs-e-o-processo-judicial/. Acesso em: 02/12/2024.


[1]Graduando do Curso de Direito, do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. E-mail: filijanson@gmail.com.

[2] Professor do Curso de Direito, do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). E-mail: fernandomfurlan@gmail.com.

[3] De acordo com a Reforma Tributária, o IBS substituirá, gradativamente, o ICMS e o ISSQN.

[4] Balthazar (2005, p. 58) leciona que “Além do ouro, havia também o diamante, riqueza intensamente explorada e objeto da ação feroz do fisco lusitano. Os mesmos mecanismos de arrecadação utilizados nas regiões auríferas chegaram às áreas de diamante (Distrito Diamantino), só que de modo mais severo. Houve uma novidade, o Quinto foi substituído pelos contratos de monopólio”.

[5] A diminuição da produção aurífera também se refletiu nos rendimentos dos impostos de Entradas. Tratava-se da cobrança de uma taxa significativa sobre todos os artigos importados e exportados que era feita de acordo com o peso da mercadoria. Essa forma, um tanto estranha de cobrança, tinha grandes inconvenientes para o desenvolvimento da economia em geral e da atividade mineradora: produtos como ferramentas, ferro bruto e outros artigos necessários para desenvolver qualquer trabalho saíam muito caros, enquanto bens de luxo, como tecidos, joias, sapatos, saíam muito baratos, o que encorajava o consumo de ostentação (Mesgravis, 2015, p. 51).

[6] A Constituição de 1824 ficou conhecida como a “Constituição da Mandioca” porque estabelecia que somente brasileiros com renda anual similar a 150 alqueires de mandioca poderiam votar. 

[7] Os Atos Institucionais foram normas jurídicas excepcionais que suplantavam quaisquer outras, inclusive a Constituição, e foram editadas pelos comandantes das Forças Armadas ou pelo presidente da República durante o Regime Militar (1964-1985).

[8]    Segundo Elizabete Mello (2013. p.27): O    Federalismo    Fiscal    consubstancia    na divisão do poder de tributar entre os entes Federativos (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios).  Esse poder de    tributar    não    se    refere    apenas    à competência tributária de criar/instituir e legislar    sobre    os    tributos    descritos    na Constituição    Federal    de    1988 (artigos 145/149-A), mas    também    se    refere    à capacidade    tributária    para    fiscalizar    e arrecadar os tributos.

[9] Art. 7º A competência tributária é indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público a outra, nos termos do § 3º do art. 18 da Constituição”.

[10] Conforme disposição do art. 114 do Código Tributário Nacional, fato gerador é “a situação definida em lei como necessária e suficiente para a ocorrência da obrigação tributária”.

[11] Consoante o art. 1° da Lei 8.212/91, a Seguridade pode ser definida como sendo um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência e à assistência social”.

[12] Acerca disso, Marcus Abraham e João Ricardo Catarino (2018, p.199) lecionam que há uma […] preocupação quanto ao desequilíbrio do poder fi­scal entre os três entes federativos, uma vez que a indesejada concentração do poder no federalismo fi­scal brasileiro em favor da União, em detrimento dos Estados e Municípios, propicia negativas consequências, tais como: a) o enfraquecimento do processo democrático decorrente da luta entre as forças políticas regionais e a central; b) uma indesejada competição ­fiscal – vertical e horizontal – entre os entes federativos, conhecida como “guerra fi­scal”; c) a incapacidade de o governo central exercer satisfatoriamente sua função coordenadora em todo o território, gerando práticas autônomas dos governos regionais e locais incompatíveis com o interesse nacional; d) a minimização dos processos de redução das desigualdades regionais e do estímulo ao desenvolvimento social e econômico local.

[13] Disponível em: https://ibpt.org.br/em-media-legislacao-brasileira-edita-quase-40-normas-tributarias-por-dia-desde-1988-revela-estudo-do-ibpt/. Acesso em: 27/11/2024.

 

[15]Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf. Acesso em: 27/11/2024.

[16] Ainda segundo o relatório o maior impacto das execuções fiscais está na Justiça Estadual, que concentra 86% dos processos. A Justiça Federal responde por 14%; a Justiça do Trabalho por 0,2%; e a Justiça Eleitoral por apenas 0,01% (CNJ, 2021, p. 06).

[17] Art.156-A, §1º, VI, daConstituiçãoFederalde1988, incluído pela Emenda Constitucional nº132/2023.

[18] Art.156-A, §1º, VII, VIII, IX, da Constituição Federal de1988, incluído pela Emenda Constitucional nº132/2023.

[19] A instância máxima de decisões do CG-IBS será o Conselho Superior, a ser criado 120 dias após a sanção da lei complementar. O Conselho terá 54 membros remunerados: 27 indicados pelos governos dos estados e do Distrito Federal e outros 27 eleitos para representar os municípios e o DF. Também haverá número igual de suplentes. Além do Conselho Superior, outros órgãos do Comitê Gestor do IBS são: diretoria executiva, com ao menos nove diretorias; secretaria geral; assessoria de relações institucionais e federativas; corregedoria e auditoria interna. Fonte: Agência Senado.

[20] Uma entidade pública sob regime especial é, em regra, uma autarquia que possui características próprias que a diferenciam das autarquias comuns, como maior autonomia administrativa, técnica ou financeira. Essas prerrogativas devem estar previstas na lei de criação da autarquia. A Agência Senado informa que o Comitê Gestor não terá vinculação a nenhum órgão público. Contudo, de acordo com o Decreto-Lei 200/1967, artigo 4º, inciso II, que dispõe sobre a organização da Administração Federal: “[a] Administração Federal compreende: I – A Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios e II – A Administração Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria: a) Autarquias; b) Empresas Públicas; c) Sociedades de Economia Mista e d) fundações públicas”. E no artigo 19 prevê que: “[t]odo e qualquer órgão da Administração Federal, direta ou indireta, está sujeito à supervisão do Ministro de Estado competente”.

Extrafiscalidade na distribuição de renda no Brasil: análise dos instrumentos de política fiscal da Lei nº 14.754/23 (Lei das off-shore)

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.


Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

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Extrafiscalidade na distribuição de renda no Brasil: análise dos instrumentos de política fiscal da Lei nº 14.754/23 (Lei das off-shore)

Ester Ramos dos Santos Santiago[1] e Fernando de Magalhães Furlan[2]

Resumo:

O objetivo deste estudo é avaliar a efetividade da extrafiscalidade tributária na promoção da equidade econômica no Brasil. A pesquisa se dedicará à análise da concentração de renda sob a ótica da política fiscal, buscando identificar o papel dos instrumentos fiscais na redução das desigualdades. Em remate, a Lei nº 14.754/23 será abordada como um caso prático de política tributária progressiva, ilustrando as potencialidades e desafios dessa estratégia A justificativa reside na descomunal concentração de renda no país, ínsita em um sistema tributário de natureza essencialmente regressiva. A ineficiência das políticas fiscais na redistribuição de renda torna as transferências diretas uma medida paliativa, mas não estrutural, para combater as disparidades socioeconômicas. A tributação de fundos offshore e exclusivos, conforme prevista na referida legislação, representa uma ruptura paradigmática e um avanço significativo na política fiscal brasileira. Essa medida visa corrigir as distorções inerentes à estrutura tributária nacional, que, historicamente, sobrecarrega os segmentos de menor renda, por meio de impostos indiretos. Assim, ao canalizar recursos financeiros dos setores de alta concentração de renda para políticas públicas sociais, o Estado promove uma distribuição mais justa da renda, desde o processo de arrecadação. Embora a implementação desta nova imposição tributária possa não gerar impactos macroeconômicos imediatos e expressivos, sua implementação é essencial para a construção de um sistema tributário mais progressivo. Para alcançar os fins propostos, a pesquisa adotará uma abordagem metodológica indutiva, de natureza eminentemente bibliográfica, que incluirá análise de doutrina, artigos acadêmicos e relatórios sobre a estrutura tributária e econômica do Brasil, além da utilização de dados empíricos fornecidos pela Receita Federal do Brasil, IBGE, IPEA e outras fontes para mapear a distribuição da carga tributária e os impactos econômicos. Quanto à abordagem, adota uma perspectiva qualitativa e quantitativa; e em relação aos fins, é descritiva e exploratória.

Palavras-chave: Extrafiscalidade Tributária; Política Tributária Progressiva; Distribuição de Renda; Lei nº 14.754/23.

Abstract:

The objective of this study is to evaluate the effectiveness of tax extra-fiscality in promoting economic equity in Brazil. The research will focus on analyzing income concentration from the perspective of fiscal policy, seeking to identify the role of fiscal instruments in reducing inequalities. Finally, Law No. 14,754/23 will be addressed as a practical example of progressive tax policy, illustrating the potential and challenges of this strategy. The justification lies in the colossal concentration of income in the country, stemming from a tax system that is essentially regressive in nature. The inefficiency of fiscal policies in income redistribution makes direct transfers a palliative, but not structural, measure to combat socioeconomic disparities. The taxation of offshore and exclusive funds, as stipulated in the legislation, represents a paradigm shift and a significant advancement in Brazilian fiscal policy. This measure aims to correct the distortions inherent in the national tax structure, which historically overburdens lower-income segments through indirect taxes. By channeling financial resources from sectors with a high concentration of income to social public policies, this initiative promotes a fairer distribution of income during the collection process itself. While the implementation of this new tax measure may not generate immediate and significant macroeconomic impacts, it is essential for the construction of a more progressive tax system. To achieve the proposed goals, the research will adopt an inductive methodological approach, primarily relying on a bibliographic review. This will include an analysis of doctrine, academic articles, and reports on Brazil’s tax and economic structure. Additionally, the study will utilize empirical data from the Federal Revenue Service, IBGE, IPEA, and other sources to map the distribution of the tax burden and its economic impacts. Regarding the approach, it adopts both a qualitative and quantitative perspective; as for its purposes, it is descriptive and exploratory.

Keywords: Tax Extra-fiscality; Progressive Tax Policy; Income Distribution; Law No. 14.754/23.

1. Introdução

Com o fim do autoritarismo do regime militar e em resposta às demandas sociais, a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 estabeleceu uma nova ordem político-social, consolidando um Estado Democrático de Direito, com foco na justiça social. O deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara dos Deputados durante a promulgação da Constituição Federal de 88, destacou o influxo e o valimento das reivindicações populares, declarando: “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar.”[3]

A alarmante desigualdade histórica e as aspirações sociais, em um cenário de concentração de renda nas mãos de poucos e uma vasta massa populacional vivendo em condições de extrema pobreza e miséria, foram forças motrizes das lutas que resultaram na Constituição Federal de 1988. Dessarte, a Constituição, com seu caráter garantista, estabeleceu princípios tributários fundados na justiça fiscal e social, reconhecendo a necessidade de utilizar o sistema tributário como mecanismo para amenizar as disparidades socioeconômicas.

O artigo 170, inciso VII, da Constituição Federal de 1988 consagra a redução das desigualdades regionais e sociais como princípio fundamental da ordem econômica brasileira. Essa norma, alinhada a outros dispositivos constitucionais, visa garantir a todos uma existência digna, promovendo a distribuição equitativa da carga tributária e assegurando direitos sociais fundamentais, como educação, saúde e trabalho.

Paradoxalmente, a realidade brasileira é sublinhada por uma alta concentração de renda, com o 1% mais rico da população detendo 28,3% da renda total do país (Montferre, 2023). Sob a ótica estrita da política fiscal, não desconsiderando que a desigualdade é fruto de múltiplos fatores, a relação entre tributação e desigualdade revela que a neutralidade tributária, ao não considerar a capacidade contributiva dos indivíduos, tende a acentuar as disparidades existentes.

É patente o fato de que o sistema tributário brasileiro não satisfaz os princípios de justiça fiscal e social, nem o princípio da equidade, que preconiza uma tributação baseada na capacidade contributiva, de maneira oposta, perpetua a copiosa desigualdade de renda com uma tributação hegemonicamente regressiva.

Impende, ainda, frisar que a desigualdade não é apenas um problema moral, mas também um obstáculo ao desenvolvimento econômico e à coesão social do país. Com efeito, é inevitável a necessidade de ações afirmativas para mitigar as dissimilitudes sociais, especialmente em um contexto exacerbado pela pandemia de COVID-19[4], que acometeu o país em um quadro iminente de estagflação[5].

Diante disso, a pesquisa examina como os mecanismos tributários extrafiscais influenciam a distribuição de renda no Brasil, ilustrando a eficácia da Lei nº 14.754/23 e os desafios para promover uma distribuição mais equitativa.

Para compreender os desafios na promoção da equidade de renda no Brasil, é necessário realizar uma análise do cenário tributário e econômico atual. Assim, a seção inicial deste estudo visa identificar esses desafios por meio de uma revisão histórica do cenário tributário internacional, seguida de uma contextualização do panorama tributário e econômico atual do país.

Partindo do pressuposto que a política fiscal constitui um instrumento crucial no combate à desigualdade de renda e riqueza, conforme demonstrado em estudos empíricos mencionados na seção anterior, a segunda seção deste trabalho explora de forma abrangente como a extrafiscalidade tributária pode ser empregada como um instrumento de política fiscal, visando a construção de um sistema tributário mais progressivo.

Por derradeiro, a última seção deste estudo examina os mecanismos de extrafiscalidade tributária presentes na Lei nº 14.754/23, que tributa a renda obtida por pessoas físicas residentes no Brasil em aplicações financeiras no exterior, em entidades controladas e trusts, avaliando seu impacto na distribuição de riqueza.

2. Análise do panorama tributário e econômico atual

2.1. A influência das políticas tributárias na concentração de riqueza e desigualdade: um estudo comparativo entre EUA, Reino Unido e Europa Continental, no Século XX

Desde os estudos dos fisiocratas no século XVIII, a distribuição de riqueza e renda tem sido um tema central na economia. Os fisiocratas focavam na distribuição do excedente agrícola, por considerarem a agricultura como principal fonte de riqueza. Essa preocupação foi expandida pelos economistas clássicos, como Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx, que ampliaram a análise para outras formas de produção e para a distribuição do valor gerado pelo trabalho (Iturriet et al, 2016, p. 15).

No século XX, as conflagrações mundiais, com proeminência para a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), alinhadas às políticas públicas pós-guerra implementadas por cada nação, tiveram um papel fundamental na atenuação das disparidades sociais. No entanto, essa trajetória não foi linear. A partir dos anos 1970-1980, a desigualdade reacendeu em diversas nações, evidenciando a influência das dinâmicas institucionais e políticas específicas de cada país (Piketty, 2014, p. 307).

Insta salientar ainda que, ao longo do século XX, países que adotaram políticas fiscais mais progressivas, taxando de forma mais elevada a renda, a riqueza e as heranças de indivíduos e famílias mais abastados, conseguiram reduzir de maneira consistente a concentração de renda e riqueza. Nações como Japão, Suécia, França e Alemanha exemplificam essa tendência. Em contraste, sociedades com sistemas tributários mais liberais, como o Reino Unido e os Estados Unidos, enfrentaram desafios distributivos mais significativos, embora mitigados pela presença histórica de impostos quase confiscatórios sobre a transferência de riqueza (Humberto, 2011, p. 8).

Em resposta direta à Grande Depressão, entre as décadas de 1930 e 1970, o governo dos Estados Unidos, sob a liderança de Franklin D. Roosevelt, implementou um conjunto de políticas econômicas e sociais conhecido como New Deal. Essas políticas, lastreadas nos princípios da justiça social, visavam redistribuir a riqueza, elevando substancialmente a alíquota dos impostos sobre a renda dos mais ricos, que chegava a 80-90%. A concentração excessiva de renda e poder, segundo a análise da época, contribuíram diretamente para o colapso financeiro que precipitou a crise (Piketty, 2014, p. 628).

Sucede que, ao fim dos anos 1970, a narrativa de declínio econômico nos Estados Unidos tornou-se cada vez mais comum, com a mídia destacando o sucesso industrial da Alemanha e do Japão. No Reino Unido, o cenário era ainda mais preocupante, com o PIB per capita caindo abaixo dos níveis observados na Alemanha, França, Japão e, até mesmo, na Itália. Essa percepção de declínio e atraso foi um fator crucial no surgimento da “revolução conservadora”, que teve como principais líderes Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos (Piketty, 2014, p. 630-631).

A partir do decênio de 80, sob a influência de políticas neoliberais, tanto o governo americano, quanto o britânico mudaram radicalmente de direção. Influenciados por tais políticas, ambos países prometeram reduzir o Welfare State[6], as taxas de imposto sobre a renda dos mais ricos foram drasticamente reduzidas, caindo para 30-40% nos anos de 1980-2010. Esse movimento marcou uma reviravolta rumo a políticas que favoreciam o crescimento das grandes fortunas e a diminuição das intervenções estatais na economia (Piketty, 2014, p. 630-631).

Em comparação, países da Europa continental, como França e Alemanha, e o Japão, mantiveram maior estabilidade em suas políticas fiscais, conservando as alíquotas sobre as rendas mais altas em torno de 50-60%, entre 1930-2010. Embora esses países não tenham seguido o caminho de desregulamentação e corte de impostos dos anglo-saxões (Estados Unidos da América e Reino Unido), a taxa de crescimento do PIB per capita foi símil. Logo, as evidências empíricas sugerem que a redução da taxa marginal superior, uma política frequentemente associada à teoria da oferta[7], não é uma panaceia para o crescimento econômico (Piketty, 2014, p. 631-632).

É imperioso observar que a era Reagan-Thatcher, influenciada por pensadores como Friedrich Hayek e Milton Friedman, foi marcada por um desdobramento sinuoso das disparidades globais. As políticas associadas ao neoliberalismo, que incluem a redução de impostos para os mais abastados, a desregulamentação dos mercados e a privatização de empresas estatais, contribuíram para o enfraquecimento dos mecanismos de redistribuição de renda e a concentração de riqueza e poder em uma elite econômica restrita (Santos, 1999, p. 119).

Embora a retórica neoliberal defenda um mercado livre e a mínima intervenção estatal, na prática, o capitalismo exige concentração de poder econômico e intervenção estatal para operar de maneira eficaz, regular a economia, controlar monopólios e garantir a estabilidade. A falta de reconhecimento dessas necessidades práticas molda a política econômica e impacta adversamente a democracia, ao promover medidas que reduzem a intervenção estatal e nutrem uma utopia (Santos, 1999, p. 120-121).

Defender o capitalismo puro implica em rejeitar integralmente a Terceira Via[8], que procurou fugir da polarização característica da Guerra Fria. O sistema capitalista se desenvolveu ao longo da evolução social, incorporando características e contradições inerentes que não podem ser ignoradas. Apesar de sua promessa de eficiência e liberdade, o capitalismo laissez-faire[9] não elimina, mas sim intensifica, as contradições sociais; é imprescindível uma intervenção estatal para funcionamento do mercado e o impulsionamento do crescimento econômico e do emprego (Santos, 1999, p. 126-130)

Através de um decote da ascensão das políticas neoliberais nos EUA, é possível observar que a sua saída da recessão econômica foi às custas da população de baixa renda. Durante a administração Reagan, foi implementada uma série de políticas econômicas conhecidas como Reaganomics ou trickle-down economics, objetivando estimular o crescimento econômico por meio de cortes de impostos, especialmente para os mais abastados, e pela desregulamentação da economia, sob a premissa de que esses benefícios se alastrariam para o restante da sociedade (Komlos, 2018, p. 10-11).

Arthur Laffer postulou a existência de um ponto ideal de tributação, além do qual aumentos nas alíquotas podem comprometer a arrecadação. No entanto, os resultados práticos das políticas econômicas implementadas pelo Governo Reagan, que se fundamentaram, em parte, na curva de Laffer, não corresponderam às expectativas teóricas. Apesar de um crescimento econômico moderado, observou-se um esvaziamento da classe média, com os benefícios desse crescimento sendo direcionados demasiadamente para os mais ricos (Komlos, 2018, p. 11-13).

Dados do Country Economy indicam que, entre 1980 e 2001, o índice de desigualdade na distribuição de renda nos EUA aumentou em 24,2%.

A trajetória das políticas tributárias nos EUA demonstra como as escolhas políticas podem impactar sobremaneira a distribuição de renda e a estrutura social de um país. As políticas econômicas Reaganomics intensificaram a concentração de riqueza e aumentaram significativamente a dívida pública, que dobrou de 30% para 60% do PIB, gerando repercussões que suplantam o tênue crescimento econômico. Esse panorama sublinha a importância de políticas tributárias e econômicas na promoção de uma distribuição mais equitativa dos recursos (Komlos, 2018, p. 13).

A desigualdade não é um fenômeno natural, mas resulta em demasia de escolhas políticas e econômicas de cada Estado, desafiando a visão determinista da curva de Kuznets[10]. De maneira objetiva, verifica-se que a desigualdade é um componente multidimensional, moldado por aspectos históricos, institucionais e políticos, que influenciam a mobilidade social e as oportunidades de cada indivíduo (Piketty, 2014, p. 307, 347-350).

Em remate, para Piketty, em sua obra seminal O Capital no Século XXI, a desigualdade é um fenômeno hermético, resultado da interação de diversos fatores que são influenciados por aspectos institucionais — como leis, políticas governamentais e a atuação de instituições econômicas e sociais — que moldam a dinâmica entre o Estado e as elites econômicas, e fatores estruturais — como relações de poder dentro da sociedade, a organização da produção e as regras que governam a propriedade e o comércio. Esses aspectos se inter-relacionam de forma intrincada, contribuindo para a perpetuação ou mitigação das disparidades socioeconômicas.

2.2. Análise histórica e perspectivas do sistema tributário brasileiro, segundo Varsano

O sistema tributário hoje vigente no país é fruto de uma lenta evolução que se conforma às linhas gerais das teorias a respeito, tradicionalmente encontradas na literatura econômica” (Varsano, 1996, p.19). Em um primeiro momento, o sistema tributário brasileiro do início, do século XX, mantinha características herdadas do período imperial, com uma forte dependência dos impostos sobre o comércio exterior. Até a década de 1930, praticamente metade da receita pública brasileira provinha dos tributos sobre produtos estrangeiros que entravam no país (Varsano, 1996, p. 2).

A Constituição Republicana de 1891 preservou aspectos do sistema tributário antepositivo. Todavia, ao instituir o federalismo[11], conferiu autonomia financeira aos demais entes federativos, visando garantir que pudessem exercer as suas funções de maneira independente em relação à União. Essa medida, no entanto, demandou a criação de um sistema tributário mais complexo, com a adoção do regime de separação de fontes tributárias (Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891; Varsano, 1996, p. 2).

Diversas fontes de renda foram incorporadas à base tributária durante as primeiras décadas da República, como impostos sobre vencimentos pagos por cofres públicos e sobre benefícios distribuídos por sociedades anônimas.  Com a necessidade de financiar as crescentes despesas do Estado, somada a influência de modelos tributários de outros países e a pressão por uma maior justiça tributária, três décadas após a promulgação da Constituição de 1891, a lei nº 4.625 de 1922 instituiu um imposto de renda abrangente (Nóbrega, 2014, p. 28-29; Varsano, 1996, p. 2).

Art. 31. Fica instituído o imposto geral sobre a renda, que será devido, annualmente, por toda a pessoa physica ou juridica, residente no territorio do paiz, e incidirá, em cada caso, sobre o conjunto líquido dos rendimentos de qualquer origem (Brasil, 1922).

Rui Barbosa, primeiro ministro da Fazenda do período republicano, foi um defensor fervoroso do imposto sobre a renda, dedicando parte do seu relatório de janeiro de 1891 a essa temática. Ele abordou a história e a aplicação do imposto, enfatizando as suas qualidades como justo, indispensável e necessário. No entanto, destacou que, no Brasil, a atenção governamental estava predominantemente voltada para impostos indiretos, especialmente os direitos de alfândega, em detrimento do imposto sobre a renda (Nóbrega, 2014, p. 27).

Desde o início das discussões sobre o Imposto de Renda no Brasil, o princípio da justiça social, que preconiza a contribuição proporcional dos mais ricos para o financiamento do Estado, foi um dos principais argumentos em defesa desse tributo. No entanto, a implementação do IRPF enfrentou diversas resistências políticas. Após a sua instituição em 1922, o imposto passou por profusas modificações, sendo influenciado por debates nacionais e por tendências internacionais. A estrutura atual, com alíquotas progressivas, é resultado desse longo processo de construção (Cardoso, 2016, p. 41).

No que concerne à tributação interna sobre produtos, desde o ano seguinte à promulgação da Carta Republicana, vigorou um imposto sobre o fumo, estendendo a tributação a outros produtos, antes do final do século XIX, estabelecendo-se o imposto sobre o consumo. Em 1922, foi criado o imposto sobre vendas mercantis, que posteriormente foi denominado imposto sobre vendas e consignações e transferido para a competência estadual (Varsano, 1996, p. 2-3).

A Primeira Guerra Mundial provocou uma mudança no perfil da arrecadação, com uma maior ênfase nos impostos sobre o consumo interno. A Constituição de 1934 e as leis complementares posteriores introduziram mudanças significativas no sistema tributário brasileiro, diminuindo a dependência de impostos sobre o comércio exterior e aumentando a importância dos impostos sobre o consumo interno. Essa nova dinâmica, iniciada no início do século XX, se manteve ao longo das décadas seguintes, caracterizando o sistema tributário brasileiro até os dias atuais (Cardoso, 2016, p. 41; Varsano, 1996, p. 3).

Art. 8º Também compete privativamente aos Estados: 

I, decretar impostos sobre: 

d) consumo de combustiveis de motor de explosão; 

e) vendas e consignações effectuadas por commerciantes e productores, inclusive os industriaes, ficando isenta a primeira operação do pequeno productor, como tal definido na lei estadual; 

g) indústrias e profissões; 

f) exportação das mercadorias de sua producção até o maximo de dez por cento ad valorem, vedados quaesquer addicionaes; 

(Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1934)

Em virtude da Segunda Guerra Mundial a participação do imposto de importação na receita total reduziu bruscamente. Entre 1946 e 1966, a tributação passou a explorar, sobretudo, as bases domésticas de consumo, que, às vésperas da reforma de 1960, era responsável por mais de 45% da receita tributária da União. O Imposto de Vendas e Consignações correspondia a quase 90% da receita tributária estadual e o Imposto de Indústrias e Profissões, gerava quase 45% da receita tributária dos municípios (Varsano, 1996, p. 4-6).

Em 1952, o governo brasileiro criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) com o objetivo de atrair capital estrangeiro, por meio da oferta de incentivos e utilizando o Imposto sobre Produtos Importados como ferramenta de proteção à indústria nacional. Esse impulso à industrialização resultou em um aumento da despesa do Tesouro Nacional, que alcançou 13% do PIB, no início dos anos 60. Esse aumento nas despesas públicas não foi acompanhado por um crescimento equivalente das receitas (Varsano, 1996, p. 7).

Diante da crise econômica e política, surgiu a necessidade de uma reforma tributária para resolver o problema orçamentário e angariar recursos essenciais às demais reformas. Contudo, o que ocorreu foi uma reestruturação do aparelho arrecadador, gerando grande descontentamento entre as elites econômicas, devido à alta carga tributária sobre o setor produtivo, resultante da cumulatividade dos impostos sobre o consumo e do crescente imposto de renda sobre pessoas jurídicas, tornando ineficaz o aprimoramento do sistema arrecadatório (Varsano, 1996, p. 7-8).

Entre 1964 e 1966, foi implementado um novo sistema tributário no Brasil, cuja prioridade era restaurar as finanças federais e atender às demandas de alívio tributário dos setores empresariais, que sustentavam politicamente o regime. Nesse período, foram realizadas diversas reformas significativas: a administração fazendária foi reestruturada; o Imposto de Renda passou por revisões substanciais, resultando em um expressivo aumento da arrecadação; e o Imposto sobre o Consumo foi reformulado, originando o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) (Varsano, 1996, p. 9).

A reforma tributária da década de 1960, além de ter alcançado, com sucesso, o objetivo de restaurar rapidamente as finanças federais, com uma notável recuperação da receita do Tesouro Nacional, eliminou os impostos cumulativos, substituindo-os pelo Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), estabelecendo um sistema com objetivos econômicos, que servia como um instrumento estratégico para o crescimento acelerado, delineado pelos mandatários do período (Varsano, 1996, p. 9).

Logo, o foco principal era aumentar o esforço fiscal da sociedade para alcançar o equilíbrio orçamentário e gerar recursos para incentivos à acumulação de capital, visando a impulsionar o crescimento econômico, favorecendo os detentores da riqueza e negligenciando a equidade. De acordo com a estratégia traçada, o governo federal controlaria o processo de crescimento, centralizando decisões econômicas e moldando o setor privado, por meio de incentivos fiscais. Enquanto os estados e os municípios receberiam recursos suficientes para cumprir as suas funções sem prejudicar o crescimento (Varsano, 1996, p. 9-10).

Apesar da concessão intensa de incentivos fiscais, a carga tributária do Brasil manteve-se acima de 25% do PIB até 1978, com a União arrecadando cerca de 75% dos recursos. No entanto, desde 1970, o governo já percebia que esses incentivos estavam corroendo a receita excessivamente. Para reforçar suas fontes de financiamento, o governo federal introduziu o PIS (Programa de Integração Social), que trouxe de volta a cumulatividade na tributação. Além disso, determinou que parte dos incentivos fosse direcionada para programas sociais e de desenvolvimento regional, reduzindo os benefícios fiscais das empresas (Varsano, 1996, p. 10).

A partir de 1975, o sistema praticamente deixou de ser utilizado como um instrumento para implementar novas políticas econômicas e sociais. Isso se deu por diversos fatores, incluindo o esgotamento do modelo econômico adotado durante a fase do “milagre brasileiro”, incluindo a difusão de incentivos fiscais, que comprometeram a capacidade arrecadatória do Estado. As deficiências, em termos de equidade, se tornaram tão pronunciadas que ajustes na legislação do Imposto de Renda foram realizados em 1974 para mitigar a regressividade da tributação (Varsano, 1996, p. 11).

Com a Constituição de 1988 foi estabelecido um sistema tributário resultante de um processo participativo e democrático, com decisões de caráter eminentemente político, inobstante à competência técnica da equipe. Todavia, devido à dificuldade de coordenação e ao prazo apertado, esse processo constituinte ímpar na história do Brasil apresentava riscos. Como resultado, o sistema tributário emergente, definido nas comissões, acabou sendo insuficiente para financiar o Estado, consolidando um desequilíbrio orçamentário existente em vez de resolvê-lo (Varsano, 1996, p. 12-13).

Em suma, a descentralização ocorrida com o fortalecimento da Federação e autonomia fiscal dos estados e municípios não foi fruto de uma política deliberada, mas sim uma resposta a restrições fiscais. Isso resultou em uma queda na qualidade do sistema tributário, sem solucionar o desequilíbrio financeiro e fiscal, enquanto a capacidade dos governos subnacionais de atender às demandas sociais permaneceu limitada (Varsano, 1996, p. 16).

As iniciativas de correção das distorções arrecadatórias no Brasil, como a implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF)[12] e o Imposto Territorial Rural (ITR), não tiveram o impacto esperado. O IGF[13], apesar de previsto constitucionalmente, nunca foi regulamentado, permanecendo ineficaz como instrumento de redistribuição de riqueza. O ITR, por sua vez, tem tido um impacto limitado nas receitas fiscais, devido à baixa arrecadação, além de ter sua receita compartilhada com os municípios, o que dilui ainda mais a sua efetividade fiscal (Passos et al, 2018, p. 6).

A evolução da carga tributária brasileira revela um perfil distinto dos países da OCDE. Em 2015, a tributação sobre a renda, lucros e ganhos de capital no Brasil era consideravelmente inferior à média da OCDE, enquanto a tributação sobre bens e serviços era significativamente maior.   Essa composição atípica da carga tributária brasileira contribui para a acentuação das distorções econômicas observadas no país (Passos et al, 2018, p. 6).

As principais ineficiências tributárias do Brasil impactam não apenas a distribuição de renda, mas também a volatilidade do crescimento econômico, o baixo nível de investimento e a composição da carga tributária, máxime em relação à tributação sobre o capital e a organização dos tributos sobre bens e serviços. As principais ineficiências distributivas e arrecadatórias são a baixa tributação da renda e do capital, a fraca capacidade de arrecadação dos impostos sobre a propriedade e a ausência de regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (Passos et al, 2018, p. 7).

Como forma de resposta imediata às alarmantes desigualdades, na transição para o século XXI, houve uma crescente visibilidade e eficácia de projetos locais voltados para a garantia de uma renda mínima aos segmentos mais vulneráveis da população, que culminaram na promulgação da Lei nº 9.533/97, que instituiu o Programa Renda Mínima. Este marco legislativo sinalizou o início dos programas de transferência de renda, como uma resposta estruturada às demandas emergentes da população de baixa renda (Lício, 2004, p. 38).

Ocorre que, apesar de seus benefícios, os programas de transferência de renda enfrentam desafios e limitações notáveis, como a fragmentação de recursos e altos custos administrativos (Lício, 2004, p. 38). Ademais, as transferências diretas de renda, por si só, mostram-se insuficientes para corrigir os desequilíbrios macroeconômicos. O Brasil enfrenta profundas desigualdades estruturais, com grande parte da riqueza concentrada em uma pequena elite, onde o 1% mais rico[14] detém 11,77% da renda nacional (PNAD, 2024).

Promover a equidade de renda no Brasil requer não apenas políticas robustas de transferência de renda, mas concomitantemente políticas fiscais que corrijam os desequilíbrios macroeconômicos, fortalecendo a progressividade e a eficiência do sistema tributário. Enquanto as transferências desempenham um papel vital na conjuntura econômica, a política tributária emerge como uma ferramenta pujante na redução das disparidades econômicas e sociais, fazendo com que o Estado goze de um papel ativo no panorama distributivo (Rodrigo, 2016, p. 19).

2.3. Ineficiência tributária brasileira

Cesar Roxo Machado[15], em entrevista à Agência Senado, ressaltou que o sistema tributário brasileiro agrava a concentração de renda em vez de reduzi-la. Embora as reformas apresentadas ao Congresso Nacional frequentemente priorizem a simplificação dos tributos, elas negligenciam a busca por uma justiça tributária, que é crucial. Para ele, os tributos devem ser utilizados como ferramentas para reduzir as desigualdades sociais, não apenas por meio de políticas públicas, mas também no ato da arrecadação, onde os que possuem mais devem contribuir proporcionalmente mais do que aqueles com menos recursos (Westin, 2021).

Ainda de acordo com Cesar Roxo Machado, um dos grandes equívocos no debate sobre tributos no Brasil é a ideia de que a carga tributária no país é excessivamente alta. Ele esclarece que a carga tributária brasileira, representando 33% do PIB, é comparável à de países assistencialistas. Machado questiona: “[q]uando dizem que a carga tributária é alta, eu pergunto: ‘[a] carga é alta para quem?’. Ela só é alta para quem ganha pouco. Os pobres são os únicos que podem dizer que a carga tributária brasileira é alta.” (Westin, 2021).

É importante observar, ainda, que a regressividade do sistema tributário brasileiro, aliada à necessidade de complementar serviços públicos essenciais com recursos privados, impõe uma espécie de duplo pagamento à classe média. Assim, ela arca com uma parcela significativa da carga tributária e, simultaneamente, enfrenta altos custos privados para acessar serviços básicos de qualidade, como saúde e educação. Esse cenário exacerba a desigualdade social e limita a mobilidade social, dificultando a ascensão da classe média.

O impacto da carga tributária sobre a desigualdade deriva da distinção entre tributos diretos, sobretudo progressivos[16], visto que consideram a capacidade econômica do indivíduo, e indiretos, que taxam o consumo, ignorando à capacidade contributiva e resultando em encargo tributário mais penoso sobre a classe baixa, uma vez que a proporção de consumo em relação à renda é maior nas classes mais pobres do que nas mais ricas. Portanto, a progressividade geral do sistema tributário depende dos pesos atribuídos a cada tipo de tributação, o que resulta em uma nova distribuição de renda após a tributação (Rodrigo, 2016, p. 21).

O sistema tributário brasileiro é, senão regressivo quando analisado pela composição da arrecadação tributária, neutro do ponto de vista distributivo, quando considerados outros aspectos metodológicos da literatura especializada. De todo modo, tais fatores reforçam o inequívoco: o sistema tributário tem diminuto potencial para enfrentar a desigualdade, um dos maiores problemas socioeconômicos do país (Passos et al, 2018, pág. 2-3).

Antagonicamente, dados do Boletim de Estimativa da Carga Tributária Bruta do Governo Geral de 2023, publicado pelo Tesouro Nacional, revelam uma maior dependência de tributos sobre bens e serviços (ISS, ICMS, PIS/COFINS etc.) em comparação aos tributos sobre renda, lucros e ganhos de capital. Enquanto os tributos sobre bens e serviços correspondem a 12,68% do total de 24,19% do PIB do país, os tributos sobre renda, lucros e ganhos de capital representam 8,66% do PIB, com uma redução de 0,37 pontos percentuais em comparação ao ano anterior (Ministério da Fazenda, 2024).

O sistema tributário brasileiro é altamente adicto a impostos indiretos, de caráter intrinsecamente regressivo, que podem chegar a representar mais de 45,1% da receita tributária total do país. Por conseguinte, os brasileiros com menor renda desembolsam 21,2% de seus ganhos em impostos indiretos e 3,1% em impostos diretos. Em contrapartida, os brasileiros com maior renda pagam 7,8% de seus rendimentos totais em impostos indiretos e 10,9% em impostos diretos, comprometendo o princípio da capacidade contributiva (Pestana, 2024, p. 4-5).

Ao invés de promover a justiça social, a neutralidade do sistema tributário brasileiro, em sua atual estrutura, reforça e perpetua as desigualdades históricas. O senador Jaques Wagner (PT-BA), afirma que a isenção de Imposto de Renda a dividendos distribuídos a pessoas físicas destoa das políticas fiscais do resto do mundo, contribuindo para que o Brasil tenha um sistema tributário altamente regressivo, que não tributa a renda e o patrimônio dos mais ricos (Westin, 2021).

Ademais, enquanto a renda do trabalho é tributada de maneira progressiva, com alíquotas que podem chegar a 27,5%, os rendimentos provenientes de ganhos de capital muitas vezes são tributados a taxas significativamente mais baixas e lineares. Os ganhos líquidos mensais de até R$20 mil em operações na bolsa de valores de mercadorias, de futuros e assemelhadas, inclusive day trade, são tributadas à alíquota de 20% e as demais operações à alíquota de 15%, conforme dispõe a lei nº 11.033 de 2004.

O economista Eduardo Fagnani[17] ressalta a afirmação falaciosa de que a redistribuição da carga tributária, diminuindo o tributo dos desfavorecidos e o aumentando dos opulentos, por meio da tributação da renda e do patrimônio, é uma política peculiar a países de governo de esquerda. Na realidade, trata-se de uma política liberal, que foi um ponto de inflexão, tanto para a revitalização da economia norte-americana após a crise de 1929, quanto para a expansão das políticas sociais na Europa do pós-guerra (Westin, 2021).

Historicamente, o modelo de política fiscal brasileiro tem priorizado a eficiência econômica em detrimento da justiça distributiva, sob a premissa de que uma maior progressividade tributária poderia comprometer o crescimento econômico. Esse enfoque resultou em um sistema tributário com menor ênfase na redistribuição de renda e maior ênfase na eficiência arrecadatória, sustentado pela crença de que uma tributação menos progressiva poderia minimizar distorções econômicas e evitar a evasão de capitais para países com regimes fiscais mais favoráveis (Passos et al, 2018, p. 12).

É necessário equilibrar os aspectos da equidade, que se refere à justiça fiscal, e da eficiência, capacidade do sistema tributário de minimizar as distorções que a tributação pode causar na economia. Um sistema eficiente é capaz de arrecadar impostos sem causar interferências significativas na economia, evitando prejudicar a produção, o consumo ou os investimentos. Dessa forma, a formulação de políticas tributárias deve levar em conta tanto a necessidade de promover justiça social quanto a de evitar distorções econômicas, avaliando cuidadosamente os objetivos e interesses da sociedade (Passos et al, 2018, p. 6).

3. Extrafiscalidade como mecanismo de redistribuição de renda no Brasil

A obrigação tributária possui uma natureza peculiar que a distingue de outras relações jurídicas. Na relação jurídico-tributária, a obrigação surge da lei, ex lege, e não da vontade das partes, ex voluntate. Isso significa que não prevalece a liberdade de iniciativa ou contratual, tampouco a autonomia individual da vontade, mas sim a soberania estatal. Assim, as finanças públicas são oriundas das competências estabelecidas pela Constituição, das finalidades públicas e das despesas essenciais para a manutenção do Estado e a realização de seus objetivos constitucionais (Neto, 2012, p. 67).

O tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir; que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada (Brasil, 1966).

A função precípua arrecadatória do tributo é vinculada pela Constituição Federal, a qual estipula que o tributo é a principal fonte de receitas para o financiamento das competências institucionais do Estado Fiscal[18], ao passo que a restringe à exploração econômica e confere um papel secundário às demais formas de arrecadação de receitas públicas (Neto, 2012, p.67). Por meio do instrumento fiscal, “o Estado supre-se das economias privadas a fim de atender às carências políticas” (Quiroga, 2005, p. 560 apud Neto, 2012, p. 67).

A tributação, enquanto mecanismo de geração de recursos, desempenha um papel crucial no financiamento de políticas públicas destinadas à concretização de direitos fundamentais. Nesse sentido, as normas tributárias são vistas como instrumentos de custeio para a implementação de ações que visam à efetivação desses direitos. Particularmente relevantes são os direitos de segunda geração, como saúde, educação, previdência e assistência social, que requerem intervenções positivas do Estado, geralmente de elevado custo (Barros, 2017, p. 41).

Para viabilizar o custeio desses direitos, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 149, determina tributos específicos cuja arrecadação é vinculada a determinadas finalidades. Um exemplo claro é o artigo 195, que estabelece que a seguridade social será financiada por meio de contribuições sociais, evidenciando a conexão entre os direitos que integram a seguridade social — saúde, assistência e previdência — e os tributos designados para o seu financiamento, as contribuições (Barros, 2017, p. 41).

Por meio da política fiscal, o governo molda a economia valendo-se das exações e dos dispêndios. Essa ação se desenrola por intermédio das funções alocativa, distributiva e estabilizadora. A função alocativa consiste no fornecimento de bens públicos, que não possuem um acesso democratizado, suprindo necessidades básicas da sociedade. A função distributiva envolve mecanismos que ajustam a distribuição de forma mais equitativa, utilizando instrumentos como impostos progressivos, subsídios e transferências. Por fim, a função estabilizadora visa a garantir o crescimento da economia, do emprego e o controle da inflação (Mori, 2009, p. 22-23).

Nesse contexto, o governo exerce uma função crucial na regulação da economia. A trajetória do pensamento econômico sobre a intervenção estatal apresenta uma evolução significativa, transitando da crença na existência de mecanismos automáticos de ajuste econômico para a percepção da necessidade do Estado na estabilização do produto interno e do emprego. A Grande Depressão constituiu um marco decisivo. Naquela época, houve queda de 30% do PIB, entre 1929 e 1933, enquanto a taxa de desemprego alcançou 25,2%, em 1933, e a economia norte-americana demonstrou ausência de mecanismos automáticos eficazes para restabelecer o pleno emprego e a estabilidade dos preços (Mori, 2009, p. 24-25).

Decerto, o tributo é essencialmente instrumental. Todavia, a atividade tributária é inclinada para o alcance do interesse público de forma mediata, gerando receita pública (fiscalidade), e imediata, intervindo na ordem econômica (extrafiscalidade). No primeiro cenário, é perceptível uma estrita relação entre receita e despesa, sendo alcançado o interesse público no redirecionamento das verbas para a Administração Pública, a qual realiza o alcance direto do interesse público. No segundo cenário, o tributo deixa de ser um meio e torna-se um fim em si mesmo, atuando diretamente como instrumento de política pública, independente da realização da despesa pública. (Neto, 2012, p. 64)

Cabe notar que a distinção dos dois fundamentos não se dá, na prática, de forma perceptível, dado que não há dessemelhanças formais entre os tributos fiscais e extrafiscais, exceto no que concerne às derrogações e peculiaridades positivadas do fenômeno extrafiscal. Ademais, quanto à finalidade visada e à eficácia produzida, nota-se uma coexistência de ambos os fundamentos da norma tributária (Neto, 2012, p. 65-66).

A terminologia extrafiscalidade não se encontra positivada no ordenamento pátrio, originando-se de uma construção doutrinária. O vocábulo refere-se a uma situação atípica de exercício da competência tributária: elementos que extrapolam o interesse arrecadatório, preconizando o tratamento individualizado de situações específicas ou normas tributárias. Dessarte, a extrafiscalidade expõe uma faceta mais complexa dos tributos: como instrumentos de política pública, atuando na intervenção econômica e social (Neto, 2012, p. 62)

O prefixo “extra” do adjetivo “extrafiscal” apresenta certa ambiguidade, subentendendo-se que há a inclusão no discurso tributário de temas não pertinentes à sua matéria, devendo a tributação ser, em alguma medida, neutra. A neutralidade fiscal alvitra a não interferência do tributo no processo econômico, este não devendo alcançar outros fins, senão o arrecadatório. Afirmar que as exações não devem extrapolar a finalidade arrecadatória é assumir que, inevitavelmente, os tributos farão mais do que alimentar os cofres públicos (Neto, 2012, p. 62;75)

O pensamento de que o imposto tem funções econômicas, sociais e políticas, data da criação dos primeiros tributos. Nunca houve tributo neutro. Todos os impostos têm função social, econômica e política, inclusive aqueles que costumeiramente não são tidos por extrafiscais, porque os próprios impostos chamados de pura fiscalidade são transferidores de riquezas de uma para outra classe ou criadores de novas fontes de produção para o bem-estar social (Deodato, 1949, p. 147-148 apud Neto, 2012, p. 76).

Cumpre observar que a não interferência pode representar um “intervencionismo às avessas”, na medida em que contribui para a manutenção ou acentuação das desigualdades existentes. O direito tributário busca, principalmente, gerar receita para o Estado, mas também pode influenciar comportamentos, por meio da extrafiscalidade. A neutralidade do sistema tributário é, na verdade, direcionada a fins específicos e não é absoluta; ela visa evitar distorções e promover efeitos positivos que ajudem a cumprir objetivos constitucionais e garantir a isonomia (Neto, 2012, p. 92-93).

Uma análise intrigante sugere que a desigualdade de renda e riqueza possui um caráter inercial significativo, moldado por fatores estruturais e aspectos institucionais. Isso resulta em diversas decisões políticas que favorecem uma dinâmica entre o Estado e as elites econômicas. As instituições têm o potencial de mitigar a desigualdade por meio de intervenções tributárias, que podem criar oportunidades ou acarretar desvantagens. O sistema político institucional desempenha um papel crucial como mediador nas questões distributivas da economia (Silva, 2020, p. 44).

Desde 1988, diversas legislações foram implementadas para regulamentar e reformar o sistema tributário brasileiro. Mudanças significativas ocorreram em 1995 e 1996, com um pacote tributário destinado a estimular o investimento, o que gerou resultados contrários ao esperado. Recentemente, o debate nacional tem se concentrado na simplificação tributária e na diminuição da carga fiscal. Embora novas propostas visem a desonerar o setor produtivo — um aspecto crucial para o desenvolvimento — elas não são suficientes para garantir um crescimento inclusivo e uma sociedade mais justa, resultando em um foco na eficiência, em detrimento da equidade (Silva, 2020, p. 45).

Outra margem de interpretação que os étimos do termo extrafiscalidade sugere é de que o tributo pode alcançar outras finalidades além da arrecadatória e gerar mudanças significativas na conjuntura em que se encontra. É assumir que, inquestionavelmente, a atividade tributária suplanta o caráter instrumental e o elemento finalístico do tributo, influenciando a atividade econômica, realocando recursos e moldando as condutas dos contribuintes. A extrafiscalidade possibilita a análise da eficácia e da finalidade da matéria tributária, expandindo a interpretação das alusivas normas jurídicas (Neto, 2012, p. 62-63)

Infere-se que o termo extrafiscalidade abrange mais de um sentido, sendo aplicável em âmbitos distintos. Celso de Barros Netos (2012), elucida as diferentes exteriorizações do fenômeno da extrafiscalidade: (1) intento não financeiro que respalda o uso atípico do tributo; (2) regime jurídico especial, o qual expõe faceta diversa da arrecadação e impõe supressões à espécie; (3) leis e regulamentos que não apenas buscam a arrecadação de tributos (norma jurídica tributária extrafiscal) e (4) impactos sociais e econômicos gerando norma tributária. Nesse contexto, a extrafiscalidade é considerada uma abordagem eficaz (Neto, 2012, p. 80-84).

O sistema tributário brasileiro apresenta distorções que prejudicam a economia, especialmente quando analisado sob a ótica da eficiência tributária. Enquanto a equidade se preocupa com a isonomia entre contribuintes e sua capacidade de pagamento, a eficiência busca minimizar as distorções econômicas causadas pela tributação. Portanto, é crucial considerar os objetivos sociais ao projetar o sistema tributário, já que, em certos casos, eficiência e equidade podem exigir abordagens opostas para promover a justiça social. (Passos et al, 2018, p. 6).

As normas tributárias podem ser vistas como instrumentos essenciais para a efetivação de direitos fundamentais, especialmente aqueles de terceira geração. Nessa perspectiva, não se estabelece uma oposição entre tributos e direitos fundamentais, e a tributação não se limita a ser um mero meio de financiamento. Ao contrário, a legislação tributária desempenha um papel ativo na realização desses direitos, que são entendidos como metas a serem alcançadas. Um exemplo ilustrativo é a utilização de “normas tributárias indutoras” — por meio de agravamentos ou desonerações — direcionadas à proteção ambiental, conforme estipulado no artigo 225 da Constituição (Barros, 2017, p. 41).

É pertinente mencionar que a extrafiscalidade não se limita a uma única categoria tributária, manifestando-se pelas diversas espécies e por meio de diferentes mecanismos e formas. Isso abrange, desde a hipótese de incidência e as normas tributárias, até outras disposições que possam alterar os efeitos da norma original e a destinação específica dos recursos. A atuação extrafiscal pode ser exercida de maneira positiva, por meio de incentivos ou agravamentos, ou de forma negativa, por meio de desagravos, visando a alcançar as suas metas específicas. Insta salientar que a essência tributária da norma permanece inalterada, embora a sua finalidade seja extrafiscal (Neto, 2012, p. 95-96).

A política fiscal, ao utilizar a tributação como ferramenta, busca promover a justiça social, onde aqueles com maior capacidade contributiva pagam mais impostos, permitindo que o Estado invista em benefícios para toda a sociedade. Contudo, a realidade brasileira diverge desse modelo ideal. Ao contrário dos países da OCDE, que priorizam a tributação da renda e da riqueza, o Brasil impõe uma carga tributária maior sobre o consumo e a prestação de serviços, invertendo a lógica esperada (Silva, 2020, p. 64 e 65).

O imposto progressivo é um método relativamente liberal para diminuir desigualdades, pois mantém a livre concorrência e a propriedade privada, ao mesmo tempo que altera os incentivos privados de forma previsível e contínua, seguindo regras estabelecidas democraticamente em um Estado de direito. Esse tipo de imposto reflete um compromisso ideal entre justiça social e liberdade individual. Por isso, não é surpreendente que os países anglo-saxões, historicamente mais valorizadores das liberdades individuais, tenham avançado com mais firmeza na progressividade fiscal no século XX (Piketty, 2014, p. 627).

A questão dos impostos transcende a técnica, sendo fundamentalmente política e filosófica. Tradicionalmente, distingue-se entre impostos sobre a renda, sobre o capital e sobre o consumo. No entanto, um critério mais relevante para classificar os impostos é a sua natureza proporcional ou progressiva. Um imposto é considerado proporcional quando a taxa é a mesma para todos e é progressivo quando a taxa é maior para os mais ricos. Os impostos regressivos, por sua vez, são aqueles que a taxa diminui para os mais ricos, seja por escaparem do regime ordinário ou ou devido à estrutura do sistema, como ocorreu com o poll tax, que contribuiu para a queda de Margaret Thatcher em 1990 (Piketty, 2014, p. 612-614).

A progressividade fiscal tem um impacto significativo na desigualdade. A análise da progressividade exclusivamente com base na renda atual tende a subestimar a desigualdade, uma vez que não leva em conta a riqueza herdada, a qual é frequentemente sujeita a uma tributação inferior. Deste modo, ao incluir a herança na análise, a desigualdade se mostra ainda maior, especialmente entre os mais ricos. Logo, o imposto progressivo é essencial para o funcionamento do Estado de Bem-Estar Social, mas enfrenta desafios, como a escassez de discussões aprofundadas sobre sua relevância e a concorrência fiscal entre países, que possibilita indivíduos de alta renda eludirem a tributação (Piketty, 2014, p. 614-616).

4. Análise da extrafiscalidade da Lei nº 14.754/23: tributação de rendas no exterior e impacto na distribuição de riqueza

As estruturas societárias no exterior são os instrumentos financeiros mais utilizados pelos brasileiros para investir fora do país, sendo ordinariamente denominadas de entidades offshore[19] que, em sua maioria, estão localizadas em jurisdições consideradas paraísos fiscais[20] (Navarro, 2022, p. 196; Piovesan et al, 2023). A Medida Provisória nº 1.171, de abril de 2023, introduziu mudanças significativas na tributação de rendimentos auferidos por pessoas físicas residentes no Brasil, em investimentos no exterior, sujeitando-os ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), além de promover uma atualização na tabela progressiva do IRPF (Caldeira, 2023, p. 4).

As offshore são consideradas mais fáceis de manejar, em comparação com outros instrumentos de investimento internacional. Do ponto de vista legal, essas estruturas oferecem soluções eficazes para aqueles que desejam preservar e perpetuar o patrimônio alocado. Sob a perspectiva fiscal, destacam-se vantagens como a possibilidade de compensar ganhos e perdas na carteira de investimentos no exterior, consolidando os lucros e prejuízos na própria entidade. Para mais, havia a isenção de tributação sobre os lucros no país de domicílio da entidade offshore, bem como a possibilidade de diferimento do imposto de renda sobre eventuais lucros e ganhos (Navarro, 2022, 196).

Esses arranjos societários possibilitavam, ainda, o acúmulo de capital isento de tributação no exterior. Ao mesmo tempo que o diferimento[21] da tributação traz vantagens para o investidor, ele prejudica os interesses nacionais ao comprometer a equidade tributária e distorcer a alocação de recursos (Caldeira, 2023, p. 7). Um investidor que adquire um título do Tesouro de outro país é tributado no Brasil ao receber os juros. No entanto, ao utilizar empresas em jurisdições de baixa ou nula tributação, os juros ficavam isentos de impostos no Brasil, sendo a tributação aplicada apenas na transferência do lucro para a pessoa física, como em dividendos ou retiradas (Ministério da Fazenda, 2023, p. 6).

Verifica-se que o comprometimento do interesse nacional se manifesta no fato de que os aportes brasileiros estão sujeitos à tributação antes de qualquer reinvestimento (Ministério da Fazenda, 2023, p. 7). Isso leva a uma preferência por remeter recursos para o exterior, em vez de investir localmente, resultando em distorções no mercado. Dados do Ministério da Fazenda (2024) indicam que cerca de 100 mil brasileiros possuem ativos que somam mais de R$1 trilhão no exterior, os quais permaneciam quase isentos de tributação, até serem transferidos para o Brasil (Piovesan et al, 2023). Além disso, esse diferimento gera injustiça tributária e contribui para a concentração de renda, uma vez que favorece os contribuintes de alta renda, que são os principais detentores desses investimentos no exterior.

A discussão sobre a tributação de lucros em paraísos fiscais é longínqua. Ao longo dos anos, diversas propostas legislativas foram apresentadas com o objetivo de incluir esses rendimentos na base de cálculo do Imposto de Renda, como a Medida Provisória 627/2013, que propunha tributar esses lucros a 15%, e o Projeto de Lei 2.337/2021, que estabelecia alíquotas de até 27,5% (Ministério da Fazenda, 2023, p.7). A mais recente tentativa frustrada foi o texto da MP 1.171/23, incorporado à MP 1.172/23, que reajustou o salário-mínimo. Após negociações políticas, a MP 1.172/23 foi aprovada, sem a inclusão desse ponto (Piovesan et al, 2023).

A lei 14.754/2023 representa um avanço em relação a tentativas anteriores de regulamentar a tributação de investimentos no exterior. Oriunda do Projeto de Lei 4.173/2023, retoma a discussão sobre a tributação de rendimentos obtidos por brasileiros em fundos e outras entidades financeiras estrangeiras, similar ao que foi proposto na Medida Provisória 1171/23. A Exposição de Motivos[22] nº 00105/2023, relativa ao PL 4173/23, destaca a desigualdade e a regressividade do sistema tributário brasileiro. No que diz respeito aos trusts[23], instrumentos usados por famílias de alta renda para planejamento patrimonial e sucessório, aponta que a ausência de regulamentação sobre sua tributação cria insegurança jurídica.

A retromencionada legislação, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2023-2026), conduziu transmutações significativas no regime tributário nacional, especialmente no que concerne à tributação de ativos financeiros no exterior pertencentes a pessoas físicas residentes no Brasil. Isto posto, constata-se que esse novo encargo tributário suplanta a mera arrecadação, forcejando implementar as seguintes políticas públicas: (1) redistribuição de renda; (2) esquivança da evasão fiscal; e (3) fomento à transparência. Outrossim, viabiliza-se proveitos na melhora da competitividade das empresas brasileiras e fortalecimento da cooperação internacional.

Com o objetivo de tornar a tributação mais uniforme e progressiva, o §1º do art. 2º institui uma nova diretriz para a tributação dos rendimentos provenientes de capital aplicado no exterior, instituindo a alíquota única de 15% para esses haveres. O caput do artigo define que os rendimentos de capital obtidos fora do país devem ser declarados separadamente na Declaração de Ajuste Anual (DAA). No caso dos ganhos de capital obtidos por meio de alienação, baixa ou liquidação de bens e direitos localizados no exterior, que não sejam aplicações financeiras, a tributação segue normas específicas previstas na Lei nº 8.981/1995 (Brasil, 2023).

É facultado à pessoa física que possui uma entidade controlada no exterior a escolha pelo regime de transparência fiscal desta instituição, exclusivamente para fins de imposto de renda. Esse regime propende otimizar a tributação e impedir que a offshore seja empregada como um instrumento para adiar a incidência de tributos sobre lucros e rendimentos. A classificação dos bens da offshore como propriedade direta da pessoa física permite à Receita Federal garantir uma tributação mais imediata sobre o patrimônio e os rendimentos provenientes desses ativos (Ministério da Fazenda, 2023, p. 26).

Art. 8º Alternativamente ao disposto nos arts. 5º, 6º e 7º desta Lei, a pessoa física poderá optar por declarar os bens, direitos e obrigações detidos pela entidade controlada, direta ou indireta, no exterior como se fossem detidos diretamente pela pessoa física. (Brasil 2, 2023)

 O § 3º do art. 2º conserva a isenção para a variação cambial de depósitos não remunerados mantidos no exterior, revogando o § 4º do art. 25 da Lei nº 9.250/1995, aprimorando a redação do dispositivo para proporcionar maior segurança jurídica. Os §§ 4º e 5º do art. 2º incluem no Projeto as normas de tributação referentes aos ganhos obtidos com a alienação de moeda estrangeira em espécie, estabelecendo a isenção da incidência do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) até o limite de US$ 5.000,00 (cinco mil dólares americanos) (Brasil, 2023).

O art. 5º aborda questões relacionadas à subtributação dos lucros de sociedades e outras entidades, sejam elas personificadas ou não, localizadas no exterior e controladas por pessoas físicas residentes no Brasil, que se coadunam ao conceito de controlled foreign corporations (CFC), assegurando a tributação periódica desses rendimentos e evitando o deferimento tributário (Brasil, 2023).

Naturalmente, há um desestímulo à sonegação fiscal com uma tributação mais veemente aos rendimentos obtidos no exterior. Na DAA, o cidadão tributante deverá incluir todos os rendimentos provenientes de aplicações financeiras no exterior do ano-base, como juros recebidos e resgates de títulos, tanto de investimentos diretos quanto de empresas offshore, aplicando uma alíquota de 15%. A tributação ocorre quando os lucros são reconhecidos no balanço, independentemente da decisão sobre a distribuição de dividendos. A obrigatoriedade de declarar separadamente esses rendimentos viabiliza um aumento na transparência, na arrecadação e combate à evasão fiscal (Ministério da Fazenda, 2023, p. 4; 10-11).

Insta mencionar ainda que a tributação de trusts fundamenta-se no conceito de transparência fiscal, comumente aplicado em outros países para regulamentar esse instituto. Inicialmente, os ativos transferidos para o trust são considerados como pertencentes ao instituidor. Posteriormente, quando esses ativos são disponibilizados ao beneficiário ou no caso de falecimento do instituidor, eles são transferidos para a titularidade do beneficiário (Ministério da Fazenda, 2023, p. 12).

Art. 10. Para fins do disposto nesta Lei, os bens e direitos objeto de trust no exterior serão considerados da seguinte forma:

I – Permanecerão sob titularidade do instituidor após a instituição do trust; e

II – Passarão à titularidade do beneficiário no momento da distribuição pelo trust para o beneficiário ou do falecimento do instituidor, o que ocorrer primeiro.

(Brasil, 2023)

A legislação em pauta se caracteriza como uma norma redistributiva que visa corrigir as distorções no sistema tributário brasileiro, ao instituir a tributação sobre os rendimentos de investimentos no exterior, em demasia realizados pela classe abastada da sociedade. Essa medida tem como objetivo decrescer a concentração de riqueza e promover uma distribuição mais equitativa dos recursos. O vácuo legislativo anterior produzia injustiças fiscais, à medida que consentia com o acúmulo de capital dos contribuintes de alta renda sem o devido aporte tributário (Ministério da Fazenda, 2023, p. 8).

Pode-se concluir que a tributação de pessoas físicas tem o potencial de introduzir um certo grau de progressividade no sistema, tendo em vista a viabilidade de graduação dos impostos pessoais, em função da renda auferida pelo contribuinte, em contraste com a tributação de empresas, que tendem a ser regressiva. Deste modo, fica evidente que o aprimoramento da administração tributária é fundamental para garantir a qualidade do sistema tributário (Piketty, 2014, p. 632).

5. Considerações finais

A querela sobre a distribuição de riqueza e renda tem sido um ponto crucial nas discussões econômicas, ao longo da história. A ideologia neoliberal do século XX, ao enfraquecer os instrumentos de redistribuição de renda, contribuiu para a formação de uma aristocracia moderna, concentrando riqueza em uma elite econômica. Desse modo, o contexto histórico e político-tributário global evidencia a necessidade da intervenção estatal para alcançar uma sociedade mais alinhada a um ideal democrático.

Como reação às crescentes desigualdades, o Brasil tem intensificado a implementação de programas de transferência de renda. Entretanto, a eficácia desses programas é limitada, uma vez que, isoladamente, não corrigem os desequilíbrios macroeconômicos, funcionando como medidas paliativas. Portanto, torna-se essencial a coadjuvação de políticas tributárias com as de transferência de renda para alcançar resultados mais abrangentes.

Logo, as fissuras centrais do sistema tributário brasileiro afetam não só a distribuição de renda, mas também o crescimento econômico, o nível reduzido de investimentos e a eficiência da carga tributária, especialmente no que diz respeito à tributação do capital e à organização dos tributos sobre bens e serviços.

É certo que a ação primeva das exações é o financiamento do Estado. Todavia este não é o depauperamento de seus efeitos. A tributação tem o potencial de influir na alocação de recursos econômicos e nos comportamentos presentes no sistema fiscal, contribuindo para uma distribuição mais equitativa da renda por meio da extrafiscalidade, dentre outros objetivos econômico-sociais.

Nessa vereda, a extrafiscalidade se revela um instrumental estratégico para a condução das políticas públicas, permitindo que o Estado, por meio da modulação da carga tributária, direcione as atividades econômicas e sociais para o alcance de objetivos específicos. Ao romper com o princípio da neutralidade fiscal cega e irrestrita, a tributação passa a ser utilizada como um mecanismo de intervenção estatal, viabilizando a redistribuição de renda e o desenvolvimento econômico.

Em síntese, a extrafiscalidade, ao transformar o sistema tributário em um instrumento de engenharia social, permite ao Estado direcionar o desenvolvimento econômico e social, promovendo a equidade, a eficiência econômica e a sustentabilidade. Ao adotar uma perspectiva multidimensional da política fiscal, o Estado pode conciliar os objetivos de crescimento econômico com a promoção da justiça social.

Posta assim a questão, frisa-se que a transformação necessária da política fiscal não se resume à simples elevação da carga tributária para alguns segmentos da população e à redução para outros. Ela exige uma análise crítica e uma otimização da eficiência do gasto público, reconhecendo que a forma como o governo aloca os recursos arrecadados é tão importante quanto a maneira de arrecadá-los.

Dessa maneira, a redistribuição de renda eficiente visa a alcançar a igualdade material, uma questão principiológica constitucional, e não somente penalizar os mais abastados, mas acorrer aos menos favorecidos e fomentar o desenvolvimento social.

Nesse contexto, a Lei nº 14.754/23, que dispõe sobre a tributação de aplicações financeiras e rendimentos no Brasil e no exterior, representa um avanço significativo na busca por maior equidade no sistema tributário brasileiro. Essa legislação surge como uma resposta à injustiça fiscal gerada por investimentos em paraísos fiscais, que nada contribuem com a evolução da sociedade e da economia brasileiras.

Com a intensificação da taxação de rendas superiores e a promoção da progressividade fiscal, a normativa busca contribuir para uma distribuição mais justa da riqueza, incorporando dispositivos que promovem maior transparência e evitam a fuga de capitais, assegurando que todos cumpram suas obrigações tributárias, independentemente da localização dos investimentos.

Em linhas gerais, ao tributar rendas que anteriormente escapavam à tributação, essa medida reduz a regressividade do sistema tributário, alinhando-o aos princípios de justiça social e equidade da Constituição de 1988, avançando para um sistema tributário mais justo e eficiente, com uma cobrança tributária mais equitativa e uma diminuição das possibilidades de evasão fiscal.

A desigualdade não é um fenômeno orgânico, mas decorre, em grande parte, das decisões políticas e econômicas adotadas por cada Estado. Este trabalho, de caráter eminentemente teórico, destaca uma problemática que intensifica a natureza multidimensional da inequidade de renda, sem pretender oferecer uma solução definitiva ou uma panaceia para essa questão histórica.

Ao ensejo da conclusão deste artigo, é fundamental reconhecer que a integração entre normas tributárias e direitos fundamentais não apenas reforça a função do sistema tributário como meio de financiamento, mas também o posiciona como um agente ativo na promoção de objetivos sociais. Assim, a tributação pode ser uma ferramenta poderosa para fomentar políticas públicas que visem à justiça social, à sustentabilidade e à igualdade, refletindo um compromisso com a realização plena dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.

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[1]Graduanda do curso de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – UNICEPLAC. E-mail: esterramosdpdf@gmail.com.

[2] Professor do curso de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – UNICEPLAC. Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne).

[3]Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, publicado no DANC de 5 de outubro de 1988, p. 14380-14382.

[4] Em 11 de março de 2020, o surto do SARS-CoV-2 foi caracterizado pela OMS como uma pandemia (OPAS).

[5]O neologismo denota um cenário de estagnação econômica combinada com inflação elevada, além do aumento do desemprego (Banco Mundial).

[6] Estado de Bem-Estar Social (do inglês, Welfare State) é um modelo de governo assistencialista e intervencionista.

[7] A ‘supply-side econonomics’ (economia do lado da oferta), defende que cortes significativos de impostos para indivíduos e corporações, juntamente com a desregulamentação e incentivos para investimentos, podem aumentar a oferta de bens e serviços, levando ao crescimento econômico sem inflação. Baseada na Lei de Say e apoiada por economistas clássicos e monetaristas, essa abordagem também é criticada pelos keynesianos, que acreditam que a demanda agregada é o principal motor da economia.

[8] Corrente ideológica da social-democracia que consiste em propor um modelo econômico que combina a proteção social com a eficiência do mercado, buscando um equilíbrio entre a intervenção estatal e a liberdade econômica.

[9] Expressão Francesa que significa “deixe fazer”. Ela simboliza o liberalismo econômico na sua forma mais pura, defendendo que o mercado deve funcionar sem intervenções do governo. 

[10] Teoria econômica proposta pelo economista Simon Kuznets, que descreve a relação entre o desenvolvimento econômico e a desigualdade de renda em uma sociedade. Segundo essa teoria, o crescimento econômico tende, em primeiro plano, a aumentar a desigualdade de renda. Contudo, no seu estágio mais avançado, observa-se uma diminuição orgânica das disparidades econômicas (Piketty, 2014)

[11] Forma de organização do Estado em que os entes federados são dotados de autonomia administrativa, política, tributária e financeira e se aliam na criação de um governo central por meio de um pacto federativo. O Federalismo surgiu da necessidade, principalmente, de países com grandes extensões territoriais descentralizar o seu poder. Nesses países, há diversidades culturais, climáticas, sociais e econômicas, de modo que as necessidades e prioridades diferem muito de uma região para a outra (Enap, 2017, p. 7).

[12] Países que cobram IGF: Espanha, Noruega, Suíça, Argentina, Bolívia, Uruguai e Colômbia.

[13] O Brasil apresentou proposta no G20 para criar um imposto global sobre grandes fortunas para financiar o enfrentamento das mudanças climáticas e da pobreza extrema, angariando a simpatia de algumas das nações mais poderosas do planeta para a iniciativa. Ministros da Alemanha, da França e da Espanha expressaram entusiasmo pela ideia, e a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), prometeu ajuda para tirá-la do papel (Balthazar, 2024).

[14] Outra forma de estudarmos a desigualdade de rendimentos, além do cálculo do Índice de Gini, é analisando os percentis de renda. Os percentis, decis e quantis são calculados ordenando a população de forma crescente a partir do nível de renda. Se uma economia possui 100 pessoas, por exemplo, ordenam-se essas pessoas por ordem de renda e divide-se a população em grupos com o mesmo número de pessoas. Assim, se existem 10 subsegmentos, temos os decis – cada grupo contendo 10% da população. Por fim, os dados ainda podem ser subdivididos em percentis, neste caso a população é dividida em centésimas partes, cada parte teria 1% dos dados. Para calcular uma medida de distribuição de renda, obtemos a renda apropriada por cada um dos decis da distribuição de renda, juntamente com o último percentil, que é o valor equivalente ao 1% mais rico da população. (PNAD, 2024).

[15]  Vice-presidente de Assuntos Tributários da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) (Agência Senado, Westin, 2021)

[16] Aumento (diminuição) da alíquota conforme o montante sujeito à cobrança aumenta (Rodrigo, 2016)

[17] Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Agência Senado, Westin, 2021)

[18] A doutrina chama de “Estado Fiscal” o modelo de estado cujas necessidades são essencialmente cobertas por impostos. A ideia de Estado Fiscal pode ser entendida como a projeção financeira do Estado de Direito (Neto, 2012, p.67).

[19] Offshore é um termo utilizado para designar “empresas” constituídas no exterior. Essas empresas podem ser uma sociedade limitada, ou uma sociedade por ações, como conhecemos no Brasil. Além disso, a depender da lei do país em que são constituídas, as offshores podem ser constituídas como sociedades ou entidades não personificadas, que não têm equivalente no Brasil, como partnerships, foundations e fundos de investimento com normas bem diferentes dos fundos brasileiros. Nos fundos de investimento com classes de cotas (como os segregated portfolio funds), cada classe de cotas deve ser considerada como uma entidade separada (Ministério da Fazenda, 2023, p. 5).

[20] Os brasileiros podem constituir empresa em qualquer país, seguindo a lei daquele país. No entanto, para investimentos financeiros, tipicamente, as off-shores são constituídas em países que não tributam a renda, ou que a tributam a alíquotas muito baixas, conhecidos como paraísos fiscais. A definição legal de jurisdição de tributação favorecida e de regimes fiscais privilegiados constam do art. 24 e do art. 24-A da Lei no 9.430, de 1996 (Ministério da Fazenda, 2023, p.8).

[21] Diferimento tributário é permitir a postergação do recolhimento do imposto até um momento futuro, que pode demorar muitos anos para ocorrer (Ministério da Fazenda, 2023, p.7).

[22] A exposição de motivos é um texto que acompanha proposições legislativas (p.e. projetos de lei), explicando a proposta e as razões para a edição e aprovação da norma proposta. 

[23] Os trusts são contratos regidos por lei estrangeira que trazem regras de destinação do patrimônio das pessoas que o instituem (“instituidores”) para os seus herdeiros (“beneficiários”). Os trusts funcionam como uma espécie de testamento mais sofisticado. O patrimônio fica em nome de um terceiro, que pode ser uma empresa especializada ou uma pessoa (“trustee”). O trust pode conter termos, encargos e condições para distribuição do patrimônio aos herdeiros (Ministério da Fazenda, 2023, p.12).

A regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


A regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade

Pedro Victhor Gomes Lacerda

Resumo

Nos últimos anos, tem havido um crescente interesse na regulação de tecnologias emergentes, como a inteligência artificial e a blockchain. No entanto, a regulação por meio da tecnologia apresenta desafios únicos, uma vez que essas tecnologias são complexas e dinâmicas, com efeitos imprevisíveis e difíceis de avaliar. A economia da complexidade oferece uma estrutura teórica para entender esses desafios e explorar as possibilidades e limites da regulação pela tecnologia. Este artigo tem como objetivo discutir as implicações da economia da complexidade para a regulação pela tecnologia e destacar as questões críticas que precisam ser abordadas para alcançar uma regulação eficaz e equitativa. Nessa perspectiva, será abordado o papel da regulação na tecnologia, bem como as implicações da regulação pela tecnologia para a governança democrática, a justiça social e a responsabilidade. Por fim, serão apresentadas algumas perspectivas futuras para a regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade.

Introdução

A crescente utilização dos algoritmos em todos os aspectos da nossa vida. A evolução da tecnologia, a popularização de tecnologias pessoais como os computadores e os celulares alinhados com a popularização e o “fácil acesso” à internet colocaram a internet no centro das discussões de várias áreas acadêmicas. Reflexo desse fenômeno, as empresas de tecnologia hoje são posicionadas como as mais influentes do mundo, sendo protagonistas nas discussões que envolvem tecnologia e a proteção de direitos pessoais (ULBRICHT; YEUNG, 2022).

Os governos, universidades e o setor privado vêm fazendo grandes investimentos para não apenas para coletar e armazenar dados, mas também para descobrir maneiras de extrair novos conhecimentos dos crescentes bancos de dados (MEDINA, 2015).

A cultura da alta tecnologia é tomada por um entusiasmo – também movido por interesses capitalistas – que celebra a tecnologia como uma solução mágica para os problemas sociais, ao mesmo tempo em que abraça valores como a individualidade, responsabilidade social e superioridade do poder inovativo do setor privado frente ao poder estatal.

Apesar do entusiasmo com as infinitas possibilidades oferecidas pelo avanço da tecnologia, o crescimento desorganizado das inovações tecnológicas pode trazer riscos à direitos até então bem definidos e protegidos pelo direito.

O avanço da tecnologia e sua relação com a proteção de direitos pessoais e coletivos exige, portanto, uma revisitação às categorias jurídicas e uma adaptação da regulação existente (FRAZÃO, 2017).

Os primórdios da regulação pela tecnologia

Em meados da década de 1990, em um contexto de euforia pós-comunista, com a consolidação do poder político dos Estados Unidos, surgiu no ocidente um novo tipo de sociedade que, ao contrário da experiência comunista recém fracassada, prometia liberdade irrestrita e um ambiente completamente livre das amarras estatais.

O ciberespaço surgiu de uma experiência militar dos Estados Unidos, e prometia um tipo de sociedade que o espaço real nunca permitiria, onde não só as leis do mundo físico não se aplicariam no ambiente virtual, mas, na visão do movimento libertário, o governo por uma questão de legitimidade não poderia regular o ciberespaço.

Lessig (2000) afirma que a mão invisível do ciberespaço – ou seja, o processo espontâneo de desenvolvimento e regulação do ambiente digital – está construindo uma arquitetura exatamente oposta à que existia em sua concepção inicial. Antes vista como um ambiente de liberdade e privacidade, hoje a arquitetura da internet é usada para coletar dados, monitorar comportamentos e controlar informações (PASQUALE, 2015).

Reindeberg (1997) entende que o código atua como uma restrição ao comportamento humano no ciberespaço, cunhando o conceito de “Lex Informatica” como o conjunto de regras para fluxos de informação impostas pela tecnologia e redes de comunicação. De acordo com esse conceito, o código é tratado como lei (code is law), ou seja, a arquitetura do código é tratada como o meio mais eficaz de regulação do comportamento.

Basicamente, duas correntes teóricas divergem acerca do tratamento regulatório da regulação do ciberespaço. O ciberlibertarianismo argumenta que, uma vez que as leis do mundo físico estão sujeitas à territorialidade e jurisdição, não seria possível aplicá-las ao ambiente transfronteiriço do mundo virtual. Não obstante, ainda defendem que haveria uma ilegitimidade legislativa, visto que, sendo o ciberespaço um ambiente único e integrado, não haveria

autoridade ou Estado com legitimidade para impor restrições ao mundo digital. Nesse sentindo, defendem que a regulação digital deve ocorrer por outros meios que não pelos dispositivos jurídicos tradicionais do direito.

O ciberpaternalismo, por sua vez, afirma que as atividades desenvolvidas na internet se assemelham a atividades transnacionais que, se acontecessem no mundo físico, seriam reguladas. Assim, buscam integrar a arquitetura da internet ao contexto fático e jurídico do mundo físico, de modo que as ações praticadas no ciberespaço sejam amparadas pelas mesmas normas do mundo físico, porém com o auxílio de tecnologias adaptativas para o ambiente digital.

Entretanto, Ostercamp (2021) afirma que ambas as correntes apresentam fragilidades, pois assumem implicitamente que o código é capaz de exercer o controle perfeito do ambiente digital, seja por meio da autorregulação, seja por meio de uma autoridade estatal. O autor afirma que o código pode ser contornado, e que o controle imperfeito exercido pelo código deixa lacunas regulatórias que podem ser preenchidas por outros fatores, como a influência das leis, mercados ou normas sociais.

De Fillipi e Hassan (2016), ao tratar da regulação no contexto do blockchain, sugerem uma transição do code is law para o code as law, onde o código pode ser usado para implementar regras específicas no ambiente tecnológico. Entretanto, tal medida também esbarra em limitações provenientes da natureza incompatível do direito com o código. A linguagem utilizada pelo código é específica e literal, enquanto a linguagem jurídica possui uma textura aberta e generalizada, para que o dispositivo legal possa se subsumir às situações da vida cotidiana com maior facilidade, deixando a cargo do julgador a aplicação da norma em cada caso concreto.

Converter a linguagem natural do direito para a linguagem binária do código é um desafio para os juristas e programadores. Apesar de haver exemplos de aplicação desse tipo técnica, como os smart contracts, à medida que o cenário fático se torna mais complexo, também é mais desafiador programar normas que se adaptem a cenários mais complexos e com mais variáveis.

Para além das teorias de code is law e code as law, Ostercamp sugere uma descrição alternativa conhecida como code and law, onde defende que a regulação do ciberespaço não é puramente arquitetônica, mas um híbrido de arquitetura e processo social. Para além da

arquitetura do código, algumas funções regulatórias são determinadas por seres humanos por meio de leis e hierarquias.

Segundo Hidelbrandt (2016), em razão da interdependência entre direito e tecnologia, é fundamental que juristas e cientistas da computação se comuniquem e colaborem de maneira mais cooperativa para que compreendam as perspectivas e necessidades uns dos outros. Tal medida, contudo, envolve uma abordagem interdisciplinar e a atuação de vários outros agentes públicos e privados que têm interesses e objetivos diversos em pauta.

Regulação pela tecnologia

A regulação pela tecnologia, denominada por Ulbricht e Yeung (2022) como “regulação algorítmica”, pode ser definida como as tentativas conscientes de gerenciar riscos ou alterar comportamentos para alcançar um objetivo “pré-especificado”. Essas tentativas ocorrem por meio de procedimentos codificados para solucionar um problema por meio da transformação de dados de entrada em um resultado desejado (YEUNG, 2018).

Esse conceito direciona sua atenção a analisar como os sistemas computacionais são projetados, configurados e implementados para atingir um propósito específico, bem como os impactos sociais causados por esses mecanismos. A dificuldade de compreender o algoritmo em sua totalidade pode levar a uma concepção equivocada do algoritmo como um processo isolado, ou uma falha em perceber como o poder pode ser exercido através da tecnologia (BEER, 2017).

A regulação algorítmica pode ser entendida como um processo que envolve essencialmente três componentes: (i) o estabelecimento de padrões; (ii) a coleta de informações; e (iii) a aplicação de padrões e modificações de comportamento. No primeiro nível, definem-se as normas e os critérios que devem ser atendidos pelo sistema algorítmico para atingir o objetivo determinado; no segundo nível, atua-se de forma reativa (detectando violações com base em dados históricos) ou preditiva (aplicando algoritmos de aprendizado para prever e interferir em comportamentos futuros); por fim, no último nível o sistema pode administrar uma sanção especificada automaticamente ou fornecer assistência a um tomador de decisões humano (YEUNG, 2018).

Hildebrandt (2018) divide a regulação algorítmica em duas: (i) code driven regulation, onde os algoritmos podem operar automaticamente e modificar o comportamento dos usuários

sem a necessidade de intervenção humana direta, e (ii) data driven regulation, onde os algoritmos preditivos usam dados para monitorar e prever comportamentos a fim de fornecer suporte ou aconselhamento de decisão.

Na regulação orientada por código (code driven regulation), o comportamento a ser regulado depende de uma série de condições “se isso” e ações correspondentes “então aquilo” (em inglês, “if this, then that”, ou IFTTT). Ou seja, se uma determinada condição for atendida, uma ação será tomada automaticamente sem a necessidade de intervenção humana. Segundo Hitelbrand, esse tipo de lógica é determinística e previsível, pois quem determina “isso” como condição do “aquilo” decide o output do sistema, que não tem qualquer discrição.

Tais decisões podem ser visualizadas como uma árvore onde, a depender da entrada, os caminhos serão traçados de maneiras diferentes e, consequentemente, a decisões diferentes e pré-determinadas. Entretanto, a regulação nesse contexto depende de como as normas (legais ou não) foram traduzidas para o código de computador.

Quanto à essa questão, Ostercamp (2021) afirma que, embora o código que integre a lei possa permitir a execução automática ex-ante, a generalidade do código e a reatividade das formas tradicionais do direito podem resultar no código ultrapassando o desenvolvimento do direito tradicional, levando ao surgimento cíclico de novas tecnologias que se diferenciam das restrições legais impostas.

Já na regulação orientada por dados (data-driven regulation), o código é informado pelos dados nos quais foi treinado em vez de ser informado por especialistas que traduziram as regras e as colocaram no código. Esse modelo de regulação utiliza técnicas como machine learning e análise de dados para monitorar, prever e influenciar o comportamento das pessoas e organizações.

A regulação orientada por código, como dito, pressupõe saídas pré-determinadas pelo programador, de acordo com a lógica IFTTT. Nesse sentido, é essencial que a estrutura do código que determina suas decisões finais a partir dos inputs gerados pelos usuários seja transparente para que os usuários entendam como as decisões são tomadas e como as regras são aplicadas.

Também é essencial que os usuários tenham a possibilidade de contestar decisões que consideram injustas ou equivocadas, o que só será possível a partir da obtenção de informações acerca do funcionamento do próprio código. No fim das contas, a regulação orientada por

código é um reflexo das decisões humanas automatizadas, de modo que o código não fala por si, mas apenas executa os comandos pré-determinados pelos desenvolvedores que, por sua vez, podem refletir seus próprios vieses e crenças no algoritmo.

Já a regulação orientada por dados, embora seja uma poderosa ferramenta para identificar tendências e padrões, também apresenta riscos significativos. Se os dados utilizados para alimentar o algoritmo não forem representativos ou não incluírem todas as variáveis relevantes, as decisões tomadas com base nesses dados podem ser parciais ou discriminatórias.

Em alguns casos, os algoritmos podem tomar decisões não compreensíveis para o humano. Isso ocorre porque tais decisões são baseadas em modelos matemáticos complexos que podem ser difíceis de compreender até mesmo para especialistas em dados, o que pode tornar a decisão algorítmica ocasionalmente “irrefutável”, não por sua lógica absoluta, mas pela dificuldade de destrinchar os passos que levaram à decisão.

O conjunto desses fatores compõe o processo de regulação algorítmica, onde os sistemas regulatórios são continuamente avaliados e ajustados para garantir a conformidade com os padrões estabelecidos. Entretanto, é preciso refletir sobre como os padrões são estabelecidos e quem é responsável por esse tipo de decisão, pois a depender de quem escolhe a tecnologia e os fins de sua utilização, tanto a estrutura social quanto estatal podem ser alteradas de acordo com a alocação de direitos e de recursos (FRAZÃO, 2017).

O poder social dos algoritmos

Para aprofundar como o algoritmo e seu processo de formação interagem com a sociedade, é preciso, primeiramente, definir como abordá-lo. Existem diversas formas de se tratar o assunto, assumindo o algoritmo como um conjunto de linhas de código, como objetos ou até mesmo como processos sociais.

De toda forma, não é possível separar o algoritmo do contexto social em que está inserido e constantemente aprimorado. Abordá-lo como um objeto puramente técnico que tem como objetivo racionalizar as tomadas de decisão humanas seria ignorar todo o contexto de seu desenvolvimento. Os algoritmos são modelados a partir de visões de mundo e com objetivos previamente definidos que certamente influenciam sua forma de comportamento e os processos de ajustes e recodificação a depender do resultado gerado (BEER, 2017).

Latour (1994), a partir de sua concepção da teoria ator-rede – um conjunto de atores humanos e não-humanos conectados a partir de relações de interdependência –, ajuda a entender como uma ampla variedade de atores (programadores, designers, usuários, dados, plataformas etc.) nesse contexto interagem para criar e moldar o funcionamento do algoritmo.

Portanto, o algoritmo não seria uma entidade autônoma e independente, mas o resultado da interação de pessoas e organizações que participam da sua criação e modificação. Os algoritmos, nessa perspectiva, não são construídos a partir de um conjunto objetivo de dados ou regras, mas sim moldados por interesses, visões de mundo e perspectiva dos atores envolvidos.

Burrell e Fourcade (2021) defendem a existência de uma nova classe na sociedade digitalizada, composta por um grupo formado essencialmente por desenvolvedores de software, CEOs de empresas de tecnologia, investidores e professores de ciência da computação e engenharia, a qual denominam “the coding elite”.

Essa elite tem como principal habilidade a capacidade de entender e criar códigos algorítmicos. A referida comunidade é altamente influente na sociedade digital e circula por diferentes posições de poder em startups, grandes empresas de tecnologia, laboratórios de pesquisa e desenvolvimento e salas de aula. Inclusive os autores definem como problemática a relação entre indústria e academia, tendo em vista que profissionais com papéis estratégicos em grandes indústrias também figuram no corpo docente das mais influentes universidades que contribuem para a criação do conhecimento tecnológico. Tal relação resulta em uma linha tênue entre o conhecimento científico e os interesses corporativos, visto que os precursores das teorias acadêmicas também são os executivos das grandes empresas de tecnologia. Desse modo, há de se questionar até que ponto as discussões acadêmicas não estariam sendo pautadas por interesses empresariais.

A elite do código expõe de forma clara uma segregação epistemológica crucial para entender a regulação algorítmica e o desenvolvimento dos processos tecnológicos: o grau de compreensão do código. Se somente os programadores e profissionais da tecnologia da informação são capazes de compreender a estrutura dos códigos que são utilizados em todos os âmbitos da vida cotidiana, estes se comunicam entre si em uma linguagem não acessível para o restante da sociedade, o que prejudica a forma do diálogo aberto da sociedade quanto aos paradigmas tecnológicos enfrentados atualmente.

Pasquale (2015) afirma que, em razão do contexto de seu desenvolvimento, os algoritmos se tornaram verdadeiras “caixas-pretas”, que dependem de processos computacionais sofisticados e são protegidos como segredos comerciais. Entretanto, esses algoritmos são capazes de exercer ou influenciar tomadas de decisão com consequências substanciais em diversas áreas da sociedade, o que demanda uma maior responsabilidade e, portanto, transparência por parte dos desenvolvedores desses algoritmos.

A abordagem sociológica da construção algorítmica mostra como a construção do código não é linear ou objetiva, mas movida por uma variedade de interesses, atores e contextos que tornam o desenvolvimento do código imprevisível. Nesse sentido, ao abordar a perspectiva econômica da regulação pela tecnologia, é necessário também recorrer à uma abordagem que não seja refém de mecanismos determinísticos ou absolutos, visto que o contexto da evolução tecnológica é formado por uma variedade de fatores e elementos.

A regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade

O desenvolvimento tecnológico de maneira geral e a regulação pela tecnologia podem ter um impacto significativo na economia. Embora sejam nítidos os avanços proporcionados pela tecnologia, o seu mau uso pode trazer sérias consequências em termos de segurança, privacidade, concorrência etc.

Brian Arthur (2013) defende, sob a ótica da economia da complexidade, que o não- equilíbrio é o estado natural da economia, que está sempre aberta a reações. Uma das principais razões desse estado natural de desequilíbrio é a inovação tecnológica.

Arthur (2009) afirma que a economia é uma expressão de suas tecnologias. A economia, segundo o autor, é moldada e influenciada pelas tecnologias que são utilizadas nas atividades econômicas e sociais. As tecnologias moldam a estrutura econômica, enquanto a economia medeia a criação de novas tecnologias.

A economia, portanto, não seria simplesmente um recipiente para as atividades econômicas, mas uma ecologia complexa de tecnologias, decisões e atividades que estão continuamente se reformando e criando nichos de oportunidade para novas tecnologias emergirem. O caráter da economia muda à medida que novas tecnologias são introduzidas e novas oportunidades são criadas.

Os processos tecnológicos também estão ligados à determinismos advindos da economia neoclássica. Mirowski (2002) alerta sobre o surgimento de uma classe de economistas que acreditam que os computadores podem ser usados para criar modelos econômicos precisos e, portanto, prever o comportamento econômico futuro. De acordo com essa linha de pensamento, os economistas argumentam que a grande capacidade de processamento de dados e variáveis podem permitir a construção de modelos econômicos precisos como nunca visto antes.

Esse pensamento é criticado por Skidelski (2020), que afirma que, como os profissionais da tecnologia, economistas acreditam que, com dados e poder de processamento suficientes, podem “quebrar o código” do comportamento humano. Essa prática advém da redução das estruturas sociais à meras transações econômicas e do tratamento do homem como agente racional, ignorando ou reduzindo demasiadamente o impacto das relações sociais e de variáveis endógenas na análise econômica.

Essa crença, segundo Mirowski (2002), é influenciada pelo aumento da confiança na tecnologia e na ciência. Entretanto, é preciso agir com cautela, pois essa crença pode levar a uma confiança excessiva nos modelos econômicos e à negligência de fatores que não podem ser tão facilmente quantificados ou incorporados aos modelos.

O que esses economistas não levam em conta é que, conforme levantado por Burrell e Fourcade (2021), a elite do código utiliza-se de argumentos baseados em economia comportamental e psicologia social para justificar suas decisões, muitas vezes recorrendo a comparações entre tomadores de decisão humanos e ferramentas algorítmicas, mas em testes projetados para favorecer o código.

Apesar de parecerem argumentos cientificamente embasados e objetivos (o que, em tese, blindariam o próprio algoritmo de questionamentos), muitas vezes estes são estruturados de forma a favorecer os interesses técnicos. Ao comparar a eficiência algorítmica com a tomada de decisão humana, não se leva em consideração, por exemplo, que a tomada de decisão algorítmica também pode ser influenciada por preconceitos ou desigualdades originalmente pertencentes aos humanos e refletidas na criação do código.

O uso prático da matemática é um dos fatores que influenciam a utilização do argumento da objetividade do código. Assim como a linguagem matemática ocidental e sua suposta linguagem neutra e objetiva é utilizada como argumento basilar da economia mainstream, os

processos matemáticos por trás dos algoritmos são usados como justificativa para um output

preciso nas tomadas de decisão.

A visão mais aceita sobre as estruturas matemáticas é que estas são realizações racionais e científicas resultadas de um processo produção intelectual cumulativa, de onde surgiu a ciência moderna e, por consequência, realizações tecnológicas disruptivas. Entretanto, não se questiona se tais estruturas tem a capacidade de suprimir a consciência moral dos indivíduos como agentes livres e de valor para a sociedade. Ou seja, o fato de que as estruturas matemáticas são concebidas e implementadas sem levar em consideração as implicações sociais e éticas do comportamento humano pode ter consequências negativas na sociedade (DE CASTRO, 2019).

Ao fazer esse tipo de análise, não se leva em conta outros fatores que não a objetividade matemática da economia neoclássica. Quando essa objetividade pretensiosamente imparcial é aplicada nos modelos regulatórios tecnológicos, o debate sobre regulação pela tecnologia pode se tornar cada vez mais enviesado e, portanto, mais periculoso aos usuários e à toda sociedade.

A análise da regulação tecnológica como propriedade emergente de um sistema maior permite combinar a análise da regulação como resultado de tomadas de decisão intencionais dos agentes com a compreensão das propriedades do sistema no qual a regulação ocorre e que a torna possível (ANTONELLI, 2011).

Desse modo, é necessário refletir sobre a eficiência dos algoritmos não só na regulação de cenários complexos, mas também levando em consideração que o desenvolvimento dos algoritmos e suas utilizações são movidos por diferentes agentes, interesses e objetivos, sendo imperioso tratar do tema de maneira cautelosa e sem abraçar a suposta objetividade por trás dos modelos criados.

Riscos e perspectivas

Diante do cenário tratado, é possível discutir sobre quais são as perspectivas para o uso da tecnologia como regulação, bem como quais riscos estão relacionados à essa utilização, e o que pode ser feito para superar os problemas apresentados.

Pasquale aponta como um dos riscos da regulação algorítmica a discriminação, ou seja, o viés algorítmico utilizado nas decisões. No caso da regulação orientada por código, esse viés já se torna presente na própria estruturação do algoritmo, quando o desenvolvedor impõe seus próprios vieses no código, de modo que a tomada de decisões será feita a partir da visão de

mundo do próprio desenvolvedor. Esse processo pode acontecer tanto de forma inconsciente quanto de forma proposital, porém implícita, já que os interesses dos criadores dos algoritmos podem estar presentes no código de forma a influenciar as decisões finais.

Já no caso da regulação orientada por dados, os algoritmos podem ser treinados em dados que contêm preconceitos ou desigualdades, absorvendo os padrões dos dados de treinamento e usando esses padrões para tomar novas decisões ou formular novos entendimentos.

Se um algoritmo de contratação for treinado com um conjunto de dados que contém uma proporção muito maior de homens do que mulheres, o algoritmo pode aprender a favorecer os candidatos de sexo masculino. A falta de diversidade nos dados de treinamento também pode levar a uma exclusão sistemática de certos grupos sociais.

Como observou Ferguson (2017) ao analisar o uso do processamento de dados nos departamentos de polícia dos Estados Unidos, se os dados históricos refletirem preconceitos ou práticas discriminatórias, os algoritmos podem perpetuar essas práticas e excluir grupos sociais específicos do policiamento adequado e da justiça criminal.

Outro desafio da regulação pela tecnologia é a falta de transparência dos algoritmos. O’Neil (2017) afirma que a falta de explicabilidade dos algoritmos os tornam problemáticos ao dificultar a avaliação de como estão sendo usados e quais as consequências de suas decisões. Se não é possível saber como um algoritmo toma uma decisão, não é possível avaliar se esta é justa ou não.

Kearns e Roth (2019) também aduzem que essa falta de transparência pode levar a uma falta de confiança nos algoritmos. Se as pessoas não entendem como os algoritmos funcionam e como eles chegam às suas conclusões, é menos provável que confiem neles. Isso pode ser especialmente problemático em determinadas áreas, pois o questionamento no funcionamento dos algoritmos pode levar as pessoas a evitar tratamentos ou diagnósticos na área da saúde, ou até mesmo a questionar processos democráticos eleitorais auditados por algoritmos.

Os algoritmos têm sido automatizados para decisões desde a avaliação de crédito até a contratação em um emprego. São muitas decisões que podem alterar significativamente a vida das pessoas e que, até o momento, são bastante obscuras. Desse modo, é urgente a necessidade de obter um grau de transparência nesse processo que dê à sociedade a segurança de que todos estão sendo avaliados de maneira ética, justa e imparcial.

Quanto à responsabilidade algorítmica, existe uma lacuna interpretativa entre o direito e a tecnologia que não deixa claro quem é responsável pelas decisões tomadas pelos algoritmos. Os algoritmos podem ser altamente complexos e envolver uma variedade de processos, o que pode tornar difícil determinar quem é responsável por decisões específicas.

Eubanks (2018) enfatiza que essa questão é especialmente complexa e problemática, pois nos casos de regulação orientada por código, por exemplo, as pessoas que projetam o código não influenciam diretamente em suas decisões. Além disso, se os dados usados para treinamento desses algoritmos estão contaminados em termos de preconceitos e discriminação, qual seria então o grau de responsabilidade de quem coletou os dados e aplicou no algoritmo? Ou de quem apenas estruturou o código?

Essas são questões ainda sem qualquer resposta definitiva, mas que precisam urgentemente serem refletidas à luz dos avanços tecnológicos e da proteção jurídica tutelada pelo direito. De todo modo, a tecnologia continua vinculada à presença humana, nem que de modo a delegar ou transferir a máquinas a capacidade de decidir (FRAZÃO 2017).

Conclusão

Conforme abordado no âmbito deste trabalho, a regulação pela tecnologia está inserida em um sistema complexo, imprevisível e sujeito a mudanças não-lineares, o que pode levar (e tem levado) a consequências imprevistas e indesejadas, enfrentando desafios devido à natureza dinâmica das mudanças tecnológicas.

Há a crescente necessidade de criação de mecanismos institucionais eficazes para controlar o amplo alcance de ameaças, riscos e impactos adversos que os algoritmos podem causar da sociedade e na vida individual. Nesse sentido, Ulbricht e Yeung (2022) consideram que a regulação estatal é uma opção mais eficaz do que a autorregulação, pois oferece garantias e mecanismos regulatórios baseados no poder coercitivo estatal.

É importante evitar uma visão simplista de que a inovação tecnológica ou necessariamente a melhor forma de promover avanços na sociedade. Em verdade, é necessário que se pense de forma criativa e adaptativa sobre como a estrutura das organizações, processos políticos e sociais podem ser melhorados, e como a tecnologia pode contribuir para esse avanço (MEDINA, 2015).

De fato, a tecnologia proporciona avanços científicos e sociais significativos, que são capazes de mudar a vida de uma pessoa ou de toda uma sociedade. Por outro lado, à medida que o avanço tecnológico fornece novas possibilidades de melhoria, também apresenta novos riscos aos direitos tutelados pelo Estado. É preciso, portanto, encontrar o equilíbrio entre inovação tecnológica e proteção a garantias e direitos individuais e coletivos.

Além do mais, conforme aponta Lessig, é preciso observar até que ponto os criadores de código têm um compromisso com a sociedade, e até que ponto sua maior motivação é agradar outros interessados, como acionistas e empresas privadas.

Deve-se, também, levar em consideração o contexto de criação e desenvolvimento das tecnologias, para que os humanos se mantenham no controle final das tecnologias. Ao pensar em regulação por tecnologias, pensa-se em humanos sendo substituídos por máquinas, entretanto, as máquinas muitas vezes são reguladoras ineficazes, especialmente em ambientes complexos.

Enquanto problemas mais simples podem ser solucionados por meio de códigos binários, questões mais complexas ou que envolvem atividades no mundo real geralmente precisam de regulamentação por meio da lei. Portanto, é essencial a busca pelo equilíbrio entre automação e controle humano, pensando, além da inovação por si mesma, nas implicações sociais e políticas da utilização de novas tecnologias.

Referências bibliográficas

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FRAZÃO, Ana. Premissas para a reflexão sobre a regulação da tecnologia: Para que deve servir a regulação da tecnologia? Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e- analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/premissas-para-a-reflexao-sobre-a-  regulacao-da-tecnologia-16112017>.

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YEUNG, Karen. Algorithmic regulation: A critical interrogation. Regulation & Governance,

v. 12, n. 4, p. 505-523, 2018.


Vantagens e Desvantagens do Compartilhamento de Informações sobre Preços de Medicamentos entre Países

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito pelo IDP/DF

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

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Vantagens e Desvantagens do Compartilhamento de Informações sobre Preços de Medicamentos entre Países

Andrey Vilas Boas de Freitas

Resumo

O artigo explora o conceito de compartilhamento de preços de medicamentos entre diferentes países, destacando sua relevância no contexto global de saúde e identificando seus impactos econômicos e regulatórios. A prática visa reduzir a desigualdade de preços e melhorar o acesso a medicamentos, especialmente em países de baixa e média renda. São apresentados os objetivos principais do compartilhamento de preços, que incluem a redução de preços de medicamentos, aumento da transparência e promoção de políticas de preços mais justas. A discussão abrange os desafios enfrentados pelos países ao implementar essa prática, como a resistência de empresas farmacêuticas e a variação nas políticas de saúde. O artigo também analisa diferentes modelos de compartilhamento de preços utilizados em diversos países, bem como suas vantagens e limitações, dependendo do contexto econômico e regulatório local. São apresentados exemplos de países que implementaram práticas de compartilhamento de preços, incluindo as iniciativas na União Europeia, oferecendo insights sobre os resultados alcançados e as lições aprendidas. A conclusão resume os principais achados do artigo e discute as implicações futuras do compartilhamento de preços de medicamentos. O artigo conclui que, embora o compartilhamento de preços possa oferecer benefícios significativos, sua eficácia depende de uma abordagem coordenada e adaptada às necessidades locais.

Palavras-chave: Compartilhamento de Preços, Medicamentos, Transparência de Preços, Acesso a Medicamentos, Modelos de Preços, Negociação de Preços, Regulação de Medicamentos.

Introdução

O compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos tem sido amplamente debatido como uma estratégia potencial para promover maior transparência e equidade nos mercados farmacêuticos globais. Com a crescente preocupação sobre os altos custos dos medicamentos e o acesso desigual a tratamentos essenciais, diversas partes interessadas, incluindo governos, organizações internacionais e empresas farmacêuticas, têm explorado a viabilidade dessa prática. O objetivo principal do compartilhamento de preços é permitir uma comparação mais eficiente entre diferentes mercados e promover uma negociação mais justa, reduzindo as disparidades de preços e facilitando o acesso a medicamentos.

Este artigo se propõe a analisar as principais vantagens e desvantagens do compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos, com base no relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). [1] O relatório da OCDE fornece uma visão detalhada sobre como o compartilhamento de preços pode influenciar a política farmacêutica global e quais são os desafios associados à sua implementação. Entre os benefícios identificados, estão a possibilidade de uma maior transparência, a redução das discrepâncias de preços entre países e a promoção de uma concorrência mais saudável no setor farmacêutico. No entanto, também existem desvantagens potenciais, como a resistência das empresas farmacêuticas e as complexidades regulatórias envolvidas.

Ao explorar essas questões, o artigo pretende fornecer uma compreensão abrangente sobre como o compartilhamento de preços pode moldar o futuro da política farmacêutica e quais são as implicações para os países em desenvolvimento e desenvolvidos. A análise se baseia em exemplos práticos e estudos de caso apresentados no relatório da OCDE, destacando as lições aprendidas e as recomendações para uma implementação bem-sucedida desta prática.

Vantagens

1. Fortalecimento da Capacidade de Negociação

Uma das principais vantagens do compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos é o fortalecimento da capacidade de negociação dos países, especialmente daqueles com mercados farmacêuticos menores ou com menor poder de barganha em relação às grandes empresas farmacêuticas. Países com economias mais modestas ou com menor volume de compras tendem a ter dificuldades para negociar preços mais baixos em relação aos medicamentos de alto custo. Sem informações precisas e comparativas sobre os preços praticados em outras regiões, esses governos ficam em desvantagem ao tentar negociar condições mais favoráveis, sendo muitas vezes forçados a aceitar os preços iniciais oferecidos pelos fabricantes.

No entanto, o acesso a dados de preços praticados em outros países pode transformar essa dinâmica. Quando os governos têm à disposição informações sobre os valores pagos por outros países, especialmente aqueles com mercados semelhantes, eles podem argumentar de forma mais eficaz nas negociações. O conhecimento de que uma empresa farmacêutica ofereceu preços mais baixos em uma jurisdição pode ser usado como um ponto de pressão, incentivando a empresa a estender condições semelhantes a outros países. Essa transparência nas informações aumenta a competitividade do mercado e pode forçar os fabricantes a oferecerem preços mais equilibrados e acessíveis.

Além disso, o compartilhamento de informações pode criar uma espécie de “efeito cascata” nas negociações. Se um país consegue negociar um preço mais baixo com base nas informações de outro, esse preço reduzido pode, por sua vez, ser usado como referência para futuros acordos em outras nações. Isso gera uma cadeia de negociações mais favorável globalmente, à medida que mais países passam a se beneficiar dessas informações compartilhadas.

As economias geradas por negociações mais informadas podem ser substanciais. Em muitos casos, os custos com medicamentos representam uma parte significativa do orçamento de saúde pública. Portanto, qualquer redução nos preços dos medicamentos pode liberar recursos que podem ser reinvestidos em outras áreas prioritárias, como a ampliação do acesso a tratamentos ou a melhoria de infraestruturas de saúde. Para países com orçamentos de saúde mais apertados, como nações de baixa e média renda, essa capacidade de negociar preços mais competitivos pode ser crucial para garantir o acesso da população a medicamentos essenciais, especialmente em áreas como doenças crônicas ou medicamentos de alto custo, como aqueles para o tratamento de câncer e doenças raras.

Assim, o compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos não só fortalece a capacidade de negociação dos governos, como também promove uma maior equidade no acesso a medicamentos em diferentes regiões do mundo.

2. Promoção da Transparência

O aumento da transparência nas transações pode desempenhar um papel crucial na redução das disparidades de preços de medicamentos entre países. Atualmente, há uma grande variação nos preços que diferentes países pagam pelos mesmos medicamentos, o que é amplamente influenciado por fatores como o poder econômico, o volume de compras e as políticas de saúde de cada nação. Essas disparidades muitas vezes resultam em medicamentos inacessíveis para países de baixa e média renda, exacerbando as desigualdades globais no acesso a tratamentos essenciais.

Com uma maior transparência, essas discrepâncias podem ser reduzidas, já que os países com menor poder de barganha podem utilizar as informações de preços pagos por países economicamente mais fortes como referência em suas negociações. Isso promoveria uma maior justiça no acesso a medicamentos essenciais, especialmente aqueles voltados para o tratamento de doenças graves, como HIV, câncer e doenças raras, cujos custos elevados tornam o acesso desigual um problema crítico em diversas partes do mundo.

A transparência também contribui para a criação de um ambiente de maior confiança entre governos e fabricantes de medicamentos. A falta de visibilidade nas transações atuais, nas quais muitos acordos de preço incluem cláusulas de confidencialidade que escondem os descontos e rebates aplicados, pode gerar desconfiança e levar a percepções de que as negociações são injustas ou desvantajosas para determinados países. Ao tornar os preços mais visíveis, os governos podem avaliar melhor o que está sendo oferecido e tomar decisões mais informadas, baseadas em dados concretos.

Essa transparência ajuda a nivelar o campo de jogo, tornando as negociações mais equilibradas e menos propensas a serem influenciadas por táticas comerciais desiguais. Além disso, ao revelar os preços reais pagos por outros países, especialmente aqueles com economias e condições de mercado semelhantes, as empresas farmacêuticas podem ser incentivadas a adotar práticas de precificação mais consistentes e justas em diferentes regiões. Isso não apenas cria um ambiente de mercado mais previsível e equitativo, mas também fortalece a percepção pública de que o acesso a medicamentos está sendo tratado de maneira justa.

Outra consequência positiva do aumento da transparência é que ele pode incentivar os fabricantes de medicamentos a se engajarem em práticas comerciais mais responsáveis e éticas. Quando os preços e as condições de venda são transparentes, as empresas têm menos espaço para discriminar entre mercados, e isso pode pressioná-las a oferecer preços mais acessíveis de forma mais ampla. Assim, a transparência pode funcionar como uma força moralizante no mercado, reduzindo as práticas de preços excessivos em países mais vulneráveis.

Em última análise, a transparência não beneficia apenas os governos, mas também as próprias empresas farmacêuticas. Ao fortalecer a confiança nas negociações e promover a previsibilidade no mercado global, as empresas podem construir relações de longo prazo mais sólidas com os governos, minimizando conflitos e facilitando a entrada em novos mercados. Esse ambiente de confiança e cooperação pode, por sua vez, acelerar o acesso de novos medicamentos a mercados globais, beneficiando tanto os fabricantes quanto os pacientes que precisam de tratamentos essenciais.

Portanto, ao promover maior transparência nas transações, não apenas se reduz as disparidades de preços entre países, mas também se cria um ambiente de maior equidade, confiança e justiça, beneficiando tanto os sistemas de saúde pública quanto a indústria farmacêutica.

3. Aprimoramento do Planejamento Orçamentário

Com acesso a informações mais precisas sobre os preços de medicamentos em diferentes mercados, os governos podem otimizar significativamente seu planejamento orçamentário e a alocação de recursos, resultando em uma gestão financeira mais eficiente e estratégica. Quando os responsáveis pelo orçamento da saúde pública sabem exatamente quanto outros países estão pagando por medicamentos semelhantes, eles podem fazer previsões mais realistas sobre os custos que enfrentarão ao negociar com as empresas farmacêuticas. Esse conhecimento permite que o orçamento de saúde seja estruturado com maior precisão, reduzindo a probabilidade de déficits ou de gastos excessivos, especialmente em áreas críticas como a compra de medicamentos de alto custo para doenças crônicas ou raras.

Essa melhoria no planejamento orçamentário é especialmente relevante para países que utilizam mecanismos de preços de referência externos (External Reference Pricing – ERP). O ERP é uma estratégia comum, na qual os preços de medicamentos em um país são estabelecidos com base em benchmarks de preços praticados em outros países. Com informações detalhadas sobre os preços reais — não apenas os preços de lista, mas também os preços líquidos após descontos e reembolsos —, os países podem ajustar seus próprios preços de maneira mais eficaz. Isso lhes confere uma posição mais vantajosa para negociar com fabricantes, reduzindo a possibilidade de pagar mais do que outras nações em situações comparáveis.

Além disso, o uso de dados de ERP mais precisos também evita que os governos tomem decisões orçamentárias com base em preços desatualizados ou irrealistas. Em muitos casos, os preços de referência publicados em plataformas internacionais não refletem os preços reais pagos após as negociações confidenciais entre países e fabricantes. Isso pode levar a uma alocação inadequada de recursos, uma vez que os países, ao se basearem em preços de lista inflacionados, podem reservar mais fundos do que o necessário para a compra de medicamentos, em detrimento de outras áreas prioritárias do sistema de saúde. Com o compartilhamento mais amplo de informações sobre os preços líquidos, os governos podem ajustar essas alocações com base em dados reais, possibilitando um uso mais eficiente dos recursos disponíveis.

Além disso, esse acesso a informações mais precisas permite que os países respondam mais rapidamente às mudanças no mercado de medicamentos. Se um país sabe que o preço de um medicamento específico caiu significativamente em outra jurisdição, ele pode negociar rapidamente condições semelhantes, ajustando seus planos de compra e redistribuindo os recursos economizados para outras áreas de necessidade, como infraestrutura hospitalar, campanhas de prevenção de doenças ou aquisição de novos medicamentos que antes eram inacessíveis devido aos custos elevados.

Por fim, o impacto de um planejamento orçamentário mais refinado se traduz diretamente na capacidade de fornecer acesso mais amplo e equitativo aos medicamentos para a população. Países que gerenciam seus recursos de maneira mais eficiente são capazes de ampliar seus programas de saúde, garantindo que os tratamentos estejam disponíveis para um maior número de pacientes, sem comprometer a sustentabilidade fiscal de seus sistemas de saúde. Assim, o acesso a informações precisas sobre preços em diferentes mercados não é apenas uma ferramenta de controle financeiro, mas um fator determinante na promoção de sistemas de saúde mais justos e eficientes.

Em resumo, a transparência nas informações de preços oferece aos governos uma base sólida para melhorar a alocação de recursos e maximizar o impacto do orçamento da saúde. Isso é especialmente crucial para aqueles que utilizam mecanismos de preços de referência externos, onde o acesso a dados precisos sobre os preços praticados internacionalmente pode fazer a diferença entre um sistema de saúde sustentável e acessível e um sistema sobrecarregado por custos desnecessários.

4. Facilitação de Compras Conjuntas

Iniciativas de compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos têm o potencial de facilitar consideravelmente programas de compras conjuntas entre países, uma estratégia que pode resultar em economias substanciais. Ao se unirem para adquirir medicamentos em volumes maiores, países podem negociar diretamente com os fabricantes de maneira mais competitiva, aproveitando o poder de compra ampliado que esses consórcios proporcionam. Esse aumento no volume total de compras permite que os países obtenham descontos significativos, o que seria mais difícil de alcançar individualmente, especialmente para países menores com menor demanda de mercado.

Quando vários países se unem para negociar conjuntamente, a balança de poder nas negociações se inclina em favor dos compradores, uma vez que as empresas farmacêuticas ficam mais dispostas a oferecer condições de preço mais atrativas em troca do acesso a mercados maiores e de vendas garantidas em maiores quantidades. Esse tipo de coordenação é crucial para os sistemas de saúde que enfrentam desafios financeiros e pressões orçamentárias, particularmente quando se trata de medicamentos de alto custo ou aqueles voltados para o tratamento de doenças raras, onde os preços podem ser exorbitantes.

Essa estratégia é especialmente relevante em iniciativas regionais ou multilaterais, como o EURIPID na União Europeia. O EURIPID (European Integrated Price Information Database) é uma iniciativa cooperativa que visa promover a transparência nos preços de medicamentos em países europeus. Trata-se de uma base de dados não comercial que permite o compartilhamento de informações sobre os preços oficiais de medicamentos entre os países membros. Criado como uma plataforma para ajudar na regulação e definição de políticas de preços de medicamentos, o EURIPID se tornou um recurso valioso para governos que buscam usar informações precisas e atualizadas de preços para melhorar seus sistemas de saúde.

O principal objetivo do EURIPID é fornecer informações padronizadas e comparáveis sobre os preços de medicamentos em diferentes países, facilitando o uso dessas informações em processos de preço de referência externo (External Reference Pricing – ERP). No ERP, os países comparam os preços de medicamentos praticados em outros mercados para definir suas próprias políticas de preços. O EURIPID oferece aos países membros um ponto de referência confiável, permitindo a tomada de decisões mais informadas e baseadas em dados concretos, minimizando o risco de pagar preços inflacionados.

A base de dados EURIPID contém informações detalhadas sobre os preços de medicamentos, como o preço de lista ex-fábrica, que é o valor inicial estabelecido pelo fabricante, geralmente utilizado como referência para negociações posteriores. Esses dados são atualizados regularmente pelos países participantes, o que assegura que as informações sejam precisas e refletiam a realidade do mercado farmacêutico em tempo real. A plataforma é aberta a países da União Europeia (UE), do Espaço Econômico Europeu (EEE), além de outros países europeus que não são membros da UE. Entre os participantes, estão nações como Alemanha, França, Itália, Espanha, Reino Unido, Suécia, Noruega, Suíça e Israel. A participação no EURIPID é voluntária, e cada país pode decidir o tipo de informação que vai compartilhar, embora a maioria dos países opte por compartilhar os preços de medicamentos de venda ao público e os preços máximos regulamentados.

A plataforma permite que os governos obtenham informações sobre medicamentos tanto on-patent (medicamentos patenteados) quanto off-patent (genéricos e similares), oferecendo uma visão ampla do mercado. O foco principal do EURIPID são os medicamentos reembolsáveis, ou seja, aqueles cujos custos são em parte ou totalmente cobertos pelos sistemas de saúde pública dos países.

Um dos grandes benefícios do EURIPID é a transparência que ele proporciona, especialmente em um mercado farmacêutico que, tradicionalmente, tem sido marcado por acordos confidenciais entre fabricantes e governos. Ao ter acesso a preços comparáveis de medicamentos, os países podem evitar pagar mais por um medicamento do que seus vizinhos, promovendo um mercado mais justo e competitivo.

Além disso, a plataforma facilita o intercâmbio de informações entre os governos, criando um ambiente de cooperação que pode levar a iniciativas de compras conjuntas. Isso é particularmente importante para países menores ou com menor poder de compra, que podem negociar preços mais competitivos ao se unir a outros países em grandes aquisições.

Apesar dos benefícios, o EURIPID enfrenta alguns desafios. Um dos principais é a questão da confidencialidade. Muitos países, ao negociar preços com as empresas farmacêuticas, aceitam cláusulas de confidencialidade que impedem a divulgação dos preços reais (preços após descontos e rebates). Como resultado, o EURIPID se baseia principalmente em preços de lista, que podem não refletir os valores finais pagos pelos governos após negociações. Isso limita a eficácia do sistema para países que buscam ter uma visão mais precisa dos preços reais no mercado.

Outro desafio é que nem todos os países membros da UE participam da iniciativa, e a cobertura de certos medicamentos pode ser desigual. Além disso, a complexidade dos sistemas de precificação de medicamentos, que variam significativamente entre os países, torna difícil a comparação direta de preços, mesmo com a padronização dos dados.

O EURIPID é uma ferramenta poderosa para promover a transparência e facilitar a colaboração entre países na área da saúde. Ao permitir o compartilhamento de informações padronizadas sobre os preços de medicamentos, o sistema ajuda a garantir que os governos possam tomar decisões de precificação mais justas e informadas, potencialmente gerando economias substanciais. Ao usar essas plataformas de informação, os países podem não apenas obter acesso a dados precisos sobre o que outros pagam por medicamentos, mas também organizar esforços de compra coletiva para maximizar os descontos disponíveis. Isso cria uma sinergia, onde o conhecimento compartilhado e o esforço coletivo se traduzem em reduções de custos significativas para todos os envolvidos.

Além disso, essas iniciativas multilaterais de compras conjuntas permitem uma melhor distribuição de riscos e responsabilidades entre os países participantes. Quando países compram em conjunto, o risco de flutuações de preços ou de falta de fornecimento é diluído entre as nações envolvidas, proporcionando maior segurança tanto na disponibilidade de medicamentos quanto na estabilidade dos preços. Esse tipo de cooperação também fortalece as relações diplomáticas e econômicas entre os países, uma vez que o sucesso de programas de compras conjuntas depende de uma coordenação eficiente e de confiança mútua.

Para países que enfrentam dificuldades financeiras ou têm um mercado farmacêutico limitado, a participação em programas de compras conjuntas é uma oportunidade estratégica de obter acesso a medicamentos que, de outra forma, seriam inacessíveis devido aos altos custos. O impacto disso é particularmente relevante para medicamentos inovadores ou de última geração, como os tratamentos para câncer, medicamentos biológicos ou terapias para doenças raras, cujos preços podem ser proibitivos em negociações individuais.

Por fim, a economia gerada por essas compras conjuntas pode ser reinvestida em outras áreas do sistema de saúde, melhorando o acesso a tratamentos, fortalecendo a infraestrutura hospitalar, ou expandindo programas de prevenção e educação em saúde. O sucesso dessas iniciativas regionais e multilaterais, como o EURIPID, serve de modelo para outros países e regiões que buscam formas de reduzir os custos com medicamentos enquanto garantem um fornecimento sustentável e equitativo para suas populações.

Em suma, o compartilhamento de informações de preços e a organização de compras conjuntas entre países não apenas ampliam o poder de negociação, mas também promovem uma gestão mais eficiente dos recursos públicos. Através de iniciativas como o EURIPID, os países podem maximizar os benefícios econômicos e logísticos de comprar em grande escala, fortalecendo seus sistemas de saúde e ampliando o acesso da população a medicamentos essenciais.

Desvantagens

1. Barreiras Legais e Contratuais

Um dos maiores desafios para o compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos são, sem dúvida, as barreiras legais e contratuais que permeiam o setor farmacêutico global. Essas barreiras são formadas por uma combinação de acordos confidenciais estabelecidos entre governos e fabricantes de medicamentos, além de legislações nacionais que protegem essas transações, tornando difícil a implementação de um sistema de compartilhamento de preços que seja verdadeiramente funcional e transparente.

As barreiras legais são especialmente problemáticas, uma vez que cada país possui suas próprias regulamentações sobre transparência de preços e divulgação de dados comerciais. Em muitos países, os preços dos medicamentos estão sujeitos a regulamentações rigorosas que incluem a proteção de segredos comerciais. Isso significa que os governos, mesmo quando conseguem negociar preços mais baixos através de descontos e rebates, não podem legalmente divulgar esses valores, pois estão obrigados a manter sigilo sobre as condições específicas dos acordos com os fabricantes.

A legislação de proteção ao segredo comercial é amplamente aplicada para resguardar os interesses comerciais das empresas farmacêuticas, que alegam que a divulgação de preços negociados poderia prejudicar sua competitividade em diferentes mercados. Por exemplo, se uma empresa oferece um desconto substancial para um país, mas esse preço se torna público, outros mercados podem exigir o mesmo desconto, o que poderia reduzir significativamente a margem de lucro da empresa em regiões mais rentáveis. Por isso, as cláusulas de confidencialidade são usadas para proteger essa informação e impedir a criação de precedentes internacionais que possam comprometer suas estratégias de precificação.

Além disso, em alguns países, há leis específicas que obrigam os governos a manterem confidenciais os detalhes dos acordos de compra de medicamentos. Em nações como os Estados Unidos, por exemplo, a Lei de Segredos Comerciais impõe restrições severas à divulgação de informações comerciais sensíveis, incluindo preços de medicamentos após negociações. Esse tipo de legislação torna praticamente impossível que as autoridades de saúde compartilhem informações sobre os preços reais que estão pagando, mesmo que isso fosse benéfico para o mercado global.

No âmbito contratual, muitos acordos firmados entre governos e fabricantes de medicamentos incluem cláusulas de confidencialidade estritas, que proíbem a divulgação pública dos preços acordados após descontos, rebates ou qualquer outro tipo de concessão financeira. Esses acordos são rotineiramente utilizados em negociações envolvendo medicamentos de alto custo, onde os fabricantes oferecem descontos consideráveis para garantir a venda de seus produtos, mas exigem que esses valores sejam mantidos em sigilo para proteger seus interesses em outros mercados.

Essas cláusulas contratuais são projetadas para proteger os modelos de precificação discriminatória que as empresas farmacêuticas utilizam globalmente. Esse modelo permite que os fabricantes ajustem os preços de acordo com a capacidade de pagamento de cada país ou região, o que, em teoria, pode tornar medicamentos acessíveis em mercados mais pobres. No entanto, a manutenção desses acordos confidenciais impede que os governos de outros países tenham acesso a informações reais de preços, o que poderia ajudá-los a negociar de forma mais eficiente e justa.

Ademais, a existência de cláusulas de confidencialidade em praticamente todos os grandes acordos de compra de medicamentos limita a cooperatividade internacional. Mesmo que alguns países estejam dispostos a compartilhar informações, eles ficam legalmente impedidos de fazê-lo devido às restrições contratuais. A quebra dessas cláusulas pode resultar em litígios jurídicos onerosos, além de prejudicar as relações entre governos e fabricantes, o que dissuade os países de compartilhar dados sensíveis, mesmo em redes fechadas de cooperação.

Essas barreiras legais e contratuais tornam a criação de um sistema de compartilhamento de preços de medicamentos amplamente funcional um desafio considerável. Embora exista um interesse crescente por parte dos países em aumentar a transparência nos preços, as restrições impostas pelos acordos comerciais e pela legislação interna limitam drasticamente o que pode ser compartilhado. Para que um sistema internacional de compartilhamento de informações de preços seja viável, seria necessário uma série de reformas legais e regulatórias em muitos países, além de uma reestruturação significativa dos contratos comerciais com as indústrias farmacêuticas.

Um exemplo claro desse desafio é o fato de que, mesmo em iniciativas regionais, como o EURIPID na União Europeia, os países compartilham principalmente preços de lista de medicamentos, que muitas vezes não refletem os valores reais pagos após as negociações. Os preços de lista, que são os preços iniciais oferecidos pelos fabricantes, podem ser muito mais elevados do que os preços finais, o que limita a utilidade dessas informações para outros países que estão tentando negociar. A falta de transparência sobre os preços líquidos — aqueles que refletem descontos e concessões — impede que o sistema de referência de preços funcione de forma eficaz.

Além disso, qualquer esforço para criar um sistema de compartilhamento funcional exigiria que as empresas farmacêuticas estivessem dispostas a renegociar suas cláusulas de confidencialidade e aceitassem uma maior transparência, o que não é fácil de alcançar. As empresas têm fortes incentivos para manter seus preços confidenciais, já que isso lhes permite ajustar estrategicamente os preços conforme o mercado, maximizando seus lucros.

Portanto, as barreiras legais e contratuais representam um dos maiores obstáculos para o compartilhamento efetivo de informações sobre preços de medicamentos. Embora haja um movimento global em prol da transparência e da cooperação internacional, a proteção dos interesses comerciais e os acordos confidenciais permanecem desafios formidáveis. Superar esses obstáculos exigirá um diálogo constante entre governos, reguladores e a indústria farmacêutica, bem como a implementação de políticas internacionais que possam equilibrar a necessidade de transparência com a proteção de informações comerciais sensíveis.

2. Desalinhamento de Interesses Entre Países

Nem todos os países estão dispostos a compartilhar as informações de forma igualitária, e esse desequilíbrio de interesses representa um dos maiores desafios para a implementação de iniciativas globais de compartilhamento de preços de medicamentos. Embora exista um interesse claro por parte de muitos governos em acessar informações sobre os preços pagos por outros países, principalmente para melhorar sua capacidade de negociação, apenas uma minoria está disposta a divulgar seus próprios dados. Esse desalinhamento de incentivos cria uma barreira significativa à viabilidade de sistemas cooperativos de transparência de preços.

Muitos países, especialmente aqueles com menos poder de compra ou economias menores, veem o acesso a informações de preços internacionais como uma oportunidade crucial para nivelar o campo de negociação com as grandes empresas farmacêuticas. Para essas nações, saber quanto outros países pagam pelos mesmos medicamentos é uma forma de garantir que não estão sendo penalizadas com preços inflacionados. Elas podem usar esses dados para pressionar por condições mais justas e para assegurar que seus cidadãos tenham acesso aos medicamentos a um custo sustentável.

Por outro lado, os países que conseguem negociar preços significativamente mais baixos, muitas vezes devido ao seu poder de mercado ou ao volume de compras, são relutantes em compartilhar essas informações. Isso se deve, em parte, ao medo de perder sua vantagem competitiva nas negociações com a indústria farmacêutica. Se os preços que eles negociaram forem tornados públicos, outros países podem exigir os mesmos descontos, o que poderia comprometer os benefícios que esses países conseguiram em suas negociações exclusivas.

Além disso, países com economias maiores e mais robustas, que muitas vezes são capazes de negociar diretamente com grandes descontos, temem que, ao compartilhar essas informações, possam afetar negativamente seus relacionamentos comerciais com as empresas farmacêuticas. Esses fabricantes, ao perceberem que seus descontos estão sendo divulgados internacionalmente, poderiam se tornar mais reticentes em conceder reduções substanciais no futuro, prejudicando assim os acordos exclusivos que esses países desfrutam.

Esse desalinhamento entre o interesse em acessar dados e a disposição para compartilhá-los cria um grande impasse para a criação de um sistema global de compartilhamento de preços. Para que essas iniciativas sejam eficazes, é necessário que haja reciprocidade — ou seja, todos os países que se beneficiam do acesso às informações devem estar dispostos a fornecer seus próprios dados. Quando essa reciprocidade não é alcançada, o sistema perde legitimidade e eficácia, já que apenas uma parte das informações estará disponível para os demais participantes.

Esse cenário de interesses conflitantes também coloca em risco a confiabilidade e a abrangência dos dados que são compartilhados. Se apenas alguns países estiverem dispostos a divulgar seus preços, e outros optarem por manter sigilo, o valor dos dados disponíveis será reduzido, dificultando a criação de uma base de dados sólida que possa realmente apoiar as negociações globais e regionais. Além disso, a falta de cooperação entre os países mais influentes no mercado farmacêutico pode dissuadir nações menores de participarem dessas iniciativas, uma vez que não há garantias de que obterão as informações que realmente precisam.

Por exemplo, em iniciativas como o EURIPID e outras plataformas regionais de compartilhamento de preços, esse desequilíbrio já é visível. Alguns países participantes estão dispostos a compartilhar apenas preços de lista, que muitas vezes não refletem os preços reais após descontos e rebates. Enquanto isso, países que desejam acessar informações sobre preços líquidos — aqueles que mostram o valor final pago, incluindo descontos — frequentemente ficam frustrados, já que as informações de que realmente precisam não estão disponíveis devido às restrições contratuais e legais impostas por outros membros do sistema.

O efeito desse desalinhamento de interesses na viabilidade de iniciativas globais de compartilhamento de preços é profundo. A confiança é um componente essencial para o sucesso dessas iniciativas, e quando alguns países não estão dispostos a compartilhar informações importantes, isso enfraquece a confiança mútua entre os participantes. Sem um acordo claro de que todos os membros de uma iniciativa de compartilhamento de informações estarão comprometidos com a reciprocidade, será difícil estabelecer um sistema funcional que possa beneficiar todos os envolvidos.

Além disso, a falta de compartilhamento equitativo de informações também pode aumentar as desigualdades globais no acesso a medicamentos. Países com maior poder de compra continuarão a negociar preços mais baixos em segredo, enquanto aqueles com menos influência terão que pagar preços mais elevados, perpetuando as disparidades no acesso a medicamentos essenciais. Essas dinâmicas minam os objetivos fundamentais das iniciativas de compartilhamento de preços, que são justamente promover a equidade e melhorar o acesso global a medicamentos.

Por fim, é importante reconhecer que, sem um maior equilíbrio entre o interesse em acessar e a disposição em compartilhar informações, essas iniciativas correm o risco de se tornarem ferramentas incompletas e, em última análise, ineficazes. A construção de um sistema de compartilhamento global de preços de medicamentos exigirá compromissos tanto de países grandes quanto pequenos, além de reformas nas práticas de negociação e políticas de transparência que incentivem todos a contribuir igualmente.

O desalinhamento entre os países no que diz respeito ao compartilhamento de informações de preços de medicamentos é uma barreira significativa para a criação de um sistema global funcional e eficaz. Embora muitos estejam ansiosos para acessar esses dados, a relutância de alguns em compartilhar suas próprias informações impede o desenvolvimento de um sistema verdadeiramente transparente e equitativo. Superar essa barreira exigirá diálogo internacional, confiança mútua e compromissos recíprocos, além de uma reflexão profunda sobre a importância da transparência para o bem-estar global e o acesso justo a medicamentos.

3. Impacto no Acesso a Medicamentos

Há preocupações significativas de que a maior transparência nos preços de medicamentos possa, em certos casos, ter o efeito inverso ao desejado, levando ao aumento dos preços em mercados que atualmente pagam menos pelos mesmos medicamentos. Embora a transparência seja geralmente vista como uma medida que promove equidade e justiça no acesso, o comportamento das empresas farmacêuticas em um ambiente mais transparente pode acabar criando dinâmicas de precificação mais complexas e, potencialmente, prejudiciais a determinados mercados.

Quando as informações sobre os preços negociados em diferentes países são tornadas públicas, existe o risco de que os fabricantes de medicamentos reajam negativamente. Esses fabricantes, ao verem que seus descontos concedidos em determinados mercados estão sendo divulgados, podem adotar uma postura defensiva, temendo que outros países exijam os mesmos preços reduzidos. Em resposta, as empresas podem tentar ajustar suas estratégias de precificação para minimizar as perdas, o que pode resultar em aumentos de preços em mercados que anteriormente pagavam menos.

Esse fenômeno pode ocorrer porque as empresas farmacêuticas, ao enfrentar a pressão para igualar os preços em vários mercados, podem optar por nivelar os preços por cima, elevando os preços nos mercados que atualmente desfrutam de condições mais favoráveis. Esse comportamento é particularmente relevante para países de baixa e média renda, que muitas vezes recebem medicamentos a preços mais baixos como resultado de negociações individualizadas ou de políticas diferenciadas de precificação. No entanto, se as empresas começarem a perceber que esses preços mais baixos estão sendo comparados globalmente, podem ser menos propensas a oferecer tais concessões no futuro, buscando um modelo de precificação mais uniforme e, potencialmente, mais elevado.

Os fabricantes de medicamentos podem, de fato, resistir a acordos de preço mais baixos ao saber que, em um ambiente de maior transparência, esses valores podem se tornar públicos e repercutir em outros mercados. A indústria farmacêutica – que historicamente adota estratégias de discriminação de preços, ou seja, ajusta os preços conforme o poder aquisitivo e as características de cada mercado – pode ser forçada a rever essa abordagem. Se os preços reduzidos para mercados mais vulneráveis forem revelados, os países economicamente mais fortes podem pressionar por condições similares, ameaçando a margem de lucro das empresas nos mercados mais rentáveis.

Nessa situação, os fabricantes podem, em vez de continuar a conceder descontos, adotar uma postura mais rígida, optando por uniformizar os preços em um patamar mais elevado, eliminando as grandes diferenças entre países. Em última análise, essa reação pode desfavorecer os mercados que hoje conseguem negociar preços mais acessíveis, já que a divulgação de dados pode levar os fabricantes a tentarem evitar perdas em mercados mais lucrativos, impondo condições menos favoráveis em todos os lugares. Esse tipo de ajuste estratégico na precificação global pode prejudicar diretamente os países que mais dependem de preços baixos para garantir o acesso a medicamentos essenciais.

A precificação discriminatória tem sido uma prática comum no setor farmacêutico, permitindo que os fabricantes ajustem os preços de acordo com a realidade econômica de cada país. Em muitos casos, isso permite que países de baixa e média renda obtenham medicamentos a preços mais acessíveis, enquanto os países mais ricos pagam valores mais altos. No entanto, a transparência pode desequilibrar essa estratégia, já que as nações mais ricas, ao terem acesso a informações sobre os preços mais baixos praticados em mercados menos favorecidos, podem exigir a mesma redução de custos.

Por exemplo, um medicamento que é vendido a um preço reduzido em um país de baixa renda pode ser alvo de negociações em países desenvolvidos que querem igualar esse valor. Nesse cenário, as empresas podem se sentir pressionadas a reequilibrar seus modelos de precificação. Elas podem tentar compensar a perda potencial em mercados de alta renda elevando os preços nos países que, anteriormente, tinham vantagens ao negociar em condições mais favoráveis.

Além disso, a pressão para manter a lucratividade global pode levar as empresas a repensarem suas políticas de descontos, o que prejudicaria especialmente os mercados que dependem desses descontos para garantir o acesso a medicamentos caros, como os tratamentos de doenças raras e os medicamentos oncológicos. O resultado pode ser um acesso reduzido em países mais vulneráveis, justamente o oposto do que as políticas de transparência pretendem alcançar.

A resistência dos fabricantes a acordos de preço mais baixos, com medo de que esses valores se tornem públicos, também pode ter consequências políticas. Os governos, especialmente em mercados de alta renda, podem se ver pressionados por suas populações a reduzir os custos dos medicamentos, com base nas informações transparentes que indicam que outros países estão pagando menos pelos mesmos produtos. Isso pode levar a conflitos nas negociações entre governos e empresas farmacêuticas, que buscarão proteger suas margens de lucro, e, como consequência, pode retardar o acesso a medicamentos em certos mercados enquanto as negociações se arrastam.

Além disso, a transparência pode gerar instabilidade nos mercados farmacêuticos globais, à medida que as empresas tentam reformular suas estratégias de precificação para evitar os efeitos da divulgação de dados sensíveis. Isso pode causar incertezas sobre os preços de novos medicamentos e tornar as negociações mais difíceis, especialmente em um ambiente em que os governos estão cada vez mais preocupados com a sustentabilidade dos sistemas de saúde e a escalada dos custos dos medicamentos.

Embora a transparência nos preços de medicamentos seja, em teoria, uma ferramenta poderosa para promover a equidade e o acesso global, há preocupações legítimas de que ela possa levar a efeitos colaterais indesejados, como o aumento dos preços em mercados que atualmente pagam menos. O comportamento defensivo dos fabricantes, que podem resistir a conceder descontos ou ajustar seus preços globalmente para proteger seus lucros, pode minar os objetivos de políticas de transparência e resultar em condições menos favoráveis para os mercados mais vulneráveis. A transparência precisa, portanto, ser implementada com cautela, considerando as complexidades do mercado farmacêutico global e os incentivos comerciais das empresas, para garantir que os benefícios superem os riscos e que o acesso a medicamentos seja realmente ampliado de forma equitativa.

4. Complexidade das Negociações

O compartilhamento de informações de preços pode tornar as negociações com fabricantes mais complexas, pois as empresas podem ajustar suas estratégias globais de precificação. Isso pode criar desafios para os países, que precisariam equilibrar a transparência com a proteção de sua capacidade de obter descontos confidenciais.

Esse equilíbrio é essencial, já que muitos países enfrentam barreiras legais e contratuais para compartilhar preços reais. Enquanto a transparência de preços ajuda a melhorar a accountability e a reduzir custos em saúde, a divulgação irrestrita de preços pode expor informações estratégicas, levando os fabricantes a aumentarem os preços em países com maior capacidade de pagamento para compensar eventuais descontos em países com menor capacidade. Isso pode inviabilizar acordos de preços confidenciais, que muitas vezes são necessários para garantir o acesso a medicamentos de alto custo, como remédios para doenças raras e medicamentos órfãos.

Além disso, o aumento da complexidade das negociações internacionais de preços pode influenciar a sustentabilidade dos sistemas de saúde, especialmente em mercados menores que dependem da capacidade de negociação coletiva ou de acordos regionais. Diversos países preferem compartilhar informações em redes fechadas e controladas, em vez de divulgá-las publicamente, como uma forma de mitigar o impacto negativo que a divulgação aberta dos preços pode ter sobre as negociações e a estabilidade de mercado.

Conclusão

O compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos entre países oferece várias vantagens, incluindo o fortalecimento da negociação e a promoção da transparência. A troca de dados permite que países, especialmente aqueles com menor poder de barganha, se beneficiem de negociações mais informadas e estratégias de precificação baseadas em referências internacionais. Além disso, ao promover a transparência, pode-se reduzir a assimetria de informações que favorece os fabricantes, melhorando a eficiência dos gastos públicos com saúde e facilitando o acesso a medicamentos essenciais.

No entanto, as barreiras legais e o desalinhamento de interesses entre os países representam desafios significativos para a implementação de um sistema eficaz de compartilhamento de preços. Conforme detalhado no relatório da OCDE, muitos países enfrentam restrições legais que impedem a divulgação de preços reais devido a cláusulas de confidencialidade inseridas em acordos contratuais com fabricantes. Essas cláusulas muitas vezes são fundamentais para assegurar descontos ou condições vantajosas de fornecimento, especialmente em mercados de medicamentos de alto custo, como os medicamentos órfãos e de terapias avançadas.

Outro obstáculo importante é o desalinhamento de interesses entre os países. Países com maior capacidade econômica podem não estar dispostos a compartilhar seus preços reais, temendo que isso impacte negativamente suas negociações futuras. Como o relatório aponta, mesmo que haja interesse em acessar informações de outros países, há uma relutância significativa em compartilhar os próprios dados, o que cria um ciclo de falta de cooperação que limita a efetividade de iniciativas de transparência.

Para que essa prática seja viável, será necessária uma colaboração internacional cuidadosa e ajustes nas regulamentações que governam a confidencialidade dos preços. Países terão que trabalhar juntos para criar mecanismos que equilibrem a transparência com a necessidade de proteger negociações estratégicas. Um exemplo de solução pode ser a criação de redes fechadas de compartilhamento de informações, nas quais os dados são trocados de forma confidencial entre autoridades competentes. Além disso, mudanças nas legislações nacionais, como a revisão de cláusulas de confidencialidade e a flexibilização das normas de transparência, serão essenciais para superar as barreiras legais e criar um ambiente de maior cooperação global.

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[1] Moens, M., E. Barrenho and V. Paris (2024), “Exploring the feasibility of sharing information on medicine prices across countries”, OECD Health Working Papers, No. 171, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/5e4a7a47-en.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


Ética Profissional e regulamentação normativa aplicados ao marketing jurídico

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayer – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

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Ética Profissional e regulamentação normativa aplicados ao marketing jurídico

Carolina Mendonça Guimarães de Alencar Meneses

Resumo: Esta pesquisa visa realizar uma análise aprofundada da ética profissional aplicada ao marketing jurídico no Brasil, destacando a importância dessa temática no contexto legal atual. Serão examinados os regulamentos e legislações em vigor que influenciam a prática do marketing jurídico na advocacia, com o objetivo de proporcionar uma compreensão mais ampla da necessidade de regulamentação dessa área à luz da ética profissional da classe advocatícia. O estudo abordará temas de grande relevância, incluindo a exploração do conceito de ética na advocacia e sua aplicação normativa, os limites estabelecidos para o marketing jurídico, e um breve estudo histórico da regulamentação da advocacia no Brasil. Ao combinar análises teóricas e a revisão da literatura e das normativas atuais, pretende-se promover uma compreensão esclarecedora da interseção entre marketing jurídico e ética profissional, ressaltando a importância da regulação para manter a integridade da advocacia.

Abstract: This research aims to conduct an in-depth analysis of professional ethics applied to legal marketing in Brazil, highlighting the importance of this subject in the current legal context. It will examine the regulations and legislation in force that influence the practice of legal marketing in the field of law, with the objective of providing a broader understanding of the need for regulation in this area in light of the professional ethics of the legal profession.The study will address highly relevant topics, including the exploration of the concept of ethics in the legal profession and its normative application, the established limits for legal marketing, and a brief historical study of the regulation of the legal profession in Brazil. By combining theoretical analyses and a review of current literature and norms, the aim is to promote a deep understanding of the intersection between legal marketing and professional ethics, emphasizing the importance of regulation to maintain the integrity of the legal profession.

Keywords: Legal Marketing. Regulation. Professional ethics. Law.


Introdução

Este trabalho se propõe a examinar e apresentar a matéria ética e regulatória no que se refere ao marketing jurídico. Com o atordoante novo número de profissionais que exercem regularmente a advocacia no Brasil, formado por cerca de 1,3 milhão de advogados até 2022[1] segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ordem dos Advogados do Brasil, 2022), o marketing jurídico permitiu que fosse possível gerar destaque e acentuar o diferencial desses profissionais e respectivos escritórios, frente ao mercado sobrecarregado. Contudo, com o advento das mídias sociais e da publicidade jurídica por essas vias, a regulação da publicidade advocatícia é cada vez mais questionada.

Nesse sentido, esta pesquisa objetiva demonstrar a necessidade de regulação do marketing jurídico, e explicar seus limites com ênfase na conformidade ética profissional, considerando o caráter social da profissão do advogado, o ambiente cada vez mais competitivo e digitalizado no qual ele está inserido e a necessidade de manutenção da discrição e sobriedade inerentes à classe. Dispõe-se também em chegar a uma conclusão no que se refere ao caráter da regulamentação da OAB, apontando se esta é satisfatória ou não, assim como sobre se uso do marketing no contexto jurídico trata-se de algo benéfico para a imagem do advogado e da advocacia. Não há a pretensão, dessa maneira, esgotar todas as nuances do tema, mas sim de oferecer uma visão esclarecedora sobre a relação entre ética profissional e a regulamentação do marketing jurídico, sendo contemplado apenas aquilo que se relaciona com a temática escolhida.

Imbuída dessas visões, trata-se de uma pesquisa exploratória com ênfase na bibliografia estrangeira e nacional, a primeira especialmente apontada aos países que compõem o continente Europeu, pelos conceitos fornecidos em ética. Em âmbito nacional, observou-se sobretudo artigos disponíveis sobre a temática do marketing jurídico. Para a coleta e análise das normativas foi visitado, especialmente, o sítio eletrônico da Ordem dos Advogados do Brasil, a fim de revelar as práticas reguladoras imperantes.

Nessa linha, cabe ainda destacar que servirá como referencial teórico o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados, instituído pela Lei 8.906 de 1994, como base necessária para o presente estudo devido a sua conexão tanto com a ética quanto com o marketing jurídico a ser estudado. Na mesma linha, é importante também indicar os provimentos da Ordem dos Advogados do Brasil assim como outras normativas editadas por esta, com destaque nos Provimentos 75/1992, 94/2000 e 2005/2021, focados na regulação da publicidade advocatícia.

No âmbito da ética profissional, muitos dos conceitos trazidos da escrita de Antônio Lopes de Sá em sua obra serão apreciados neste estudo, assim como os apontamentos do Professor Saul Tourinho Leal, por meio de seu artigo “O Advogado e a Ética”.

Por fim, cabe apontar que o estudo está estruturado de forma a tratar em seu primeiro capítulo da ética profissional no âmbito da advocacia, sequencialmente fala-se do marketing jurídico e ao final trabalha-se a regulamentação trazida pela OAB. Em cada um dos capítulos, traz-se conceitos e análises que visam contribuir para os objetivos do trabalho, objetivos estes revisados e demonstrados satisfeitos nas considerações finais.

1. A ética profissional no âmbito da advocacia

Na aurora da Grécia Antiga, os termos ηθοs e eεθοs (éthos e ethos) surgiram trazendo dois significados diferentes, porém complementares, que diferenciam-se dependendo da grafia utilizada. Segundo Risostomo, Varani e Pereira (2018, p. 25) existem duas formas de escrever e de entender os termos que deram origem à palavra ética: o primeiro, ethos com eta (letra “e” – Η η – em minúscula), é o sentido mais antigo da palavra e significa “morada”, “abrigo”, ou “lugar que se habita” (Figueiredo, 2008, p. 2) podendo vir a ser interpretado como o lugar onde vive o “eu real”, encontrando-se as características que constroem um indivíduo, como seus comportamentos, seus hábitos e sua disposição. Nesse sentido, cada um tem sua própria ética (Nicolescu et al., 2000, p. 56)[2].

Diferentemente, o conceito de Ethos com épsilon (Ε ε – letra E em maiúscula) afasta-se deste, já que vem a significar “costume”, “modo de ser” ou “caráter” (Spinelli, 2009, p. 16), tratando-se muito mais de um ethos social voltado ao “nós” e não ao “eu”, sendo a partir desta concepção que se torna possível a construção de uma ética profissional. Assim discorre Eugênio (2012, p. 22):

A ética profissional pode ser definida como um conjunto de normas ou condutas que deverão ser postas em prática no exercício de qualquer profissão. Ela tem por objetivo alimentar a relação de profissional e cliente trazendo uma segurança quanto ao comportamento humano e social principalmente do profissional, a ética sempre tem que visar à dignidade humana e à construção do bem-estar no contexto social-cultural onde exerce sua profissão.

Nota-se assim que a profissão tem além de sua utilidade para o indivíduo, uma rara expressão social e moral (Sá, 2019, p. 127)[3] que permite que um profissional exerça e demonstre sua habilidade, sabedoria, e ou inteligência de maneira a demonstrar-se útil perante a comunidade. O exercício do labor precisa ser acompanhado pela ética para que exista uma integral imagem de qualidade (Sá, 2019, p. 135) contudo, no caso do advogado, não só por isso, conforme passará a ser demonstrado.

As profissões de cunho social tal como a do advogado, que é capacitado em conhecimento legal para servir a sociedade e os indivíduos, sendo ele ainda indispensável à administração da justiça e inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos termos do artigo 133 da Carta Magna Brasileira, demonstra-se como um dos profissionais em que a ética profissional é um requisito mais do que necessário, exigido não apenas pela sociedade, mas também por normativas da Ordem de Advogados do Brasil.

Em conformidade com a declaração anterior, no âmbito do Direito, a ética profissional exibe-se como um pilar fundamental para a orientação da conduta dos advogados e dos mais diversos profissionais da área jurídica. A Lei 8.906 de 1994, a qual dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil e demais legislações correlatas, trabalham com a visão de garantir que o profissional de Direito atue com toda a transparência, integridade e a responsabilidade necessárias para que se torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia, objetivando, a manutenção da confiança da sociedade no sistema jurídico.

O artigo 1º do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, prevê que o exercício da advocacia deve exigir conduta compatível, dentre outros aspectos, com a moral individual, social e profissional. A justificativa para tal exigência recai no artigo seguinte, que aborda a função e indispensabilidade do advogado à administração da justiça:

Art. 2º O advogado […] é defensor do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e garantias fundamentais, da cidadania, da moralidade, da Justiça e da paz social, cumprindo-lhe exercer o seu ministério em consonância com a sua elevada função pública e com os valores que lhe são inerentes (Brasil, 1994).

Logo, frente ao papel de destaque do advogado perante a sociedade, a ética não pode ser algo individual, exercida de forma irregular pelos indivíduos que atuam nesse labor. Deve, porém, ser voltada ao social, ao “nós”, haja vista que a preservação da imagem da persona do advogado é imperiosa não somente para preservar o profissional em suas relações com o utente a quem os seus serviços são destinados, mas principalmente na manutenção da própria sociedade.

Assim, a ética no âmbito da profissão vem para preservar tanto aquele que pratica o labor e dele se beneficia como o cliente a quem os serviços são destinados. Contudo, no âmbito da advocacia, esta vem também para preservar a classe dos advogados e a sociedade, já que a perda total e absoluta na confiança daquele que deveria ser o motor da realização da paz social (Carneiro, 2014, p. 688), geraria consequências severas em todo o sistema. Notando isso, a ética profissional, quando voltada para a advocacia, não poder ser uma recomendação, mas sim uma norma (Leal, 2009, p. 1) conforme leciona o professor Paulo Lôbo:

[…] A ética profissional não parte de valores absolutos ou atemporais, mas consagra aqueles que são extraídos do senso comum profissional, como modelares para a reta conduta do advogado. São tópicos ou topoi na expressão aristotélica, ou seja, lugares-comuns que se captam objetivamente nas condutas qualificadas como corretas, adequadas ou exemplares; não se confundem com juízos subjetivos de valor.

Quando a ética profissional passa a ser objeto de regulamentação legal, os topós convertem-se em normas jurídicas definidas, obrigando a todos os profissionais. No caso da advocacia brasileira, a ética profissional foi objeto de detalhada normatização, destinada a deveres dos advogados, no Estatuto anterior e no Código de Ética Profissional, este datado de 25 de junho de 1934. O Estatuto de 1994 preferiu concentrar toda a matéria no Código de Ética e Disciplina, editado pelo Conselho Federal da OAB.

[…]

A ética profissional impõe-se ao advogado em todas as circunstâncias e vicissitudes de sua vida profissional e pessoal que possam repercutir no conceito público e na dignidade da advocacia. Os deveres éticos consignados no Código não são recomendações de bom comportamento, mas normas jurídicas dotadas de obrigatoriedade que devem ser cumpridas com rigor, sob pena de cometimento de infração disciplinar punível com a sanção de censura (art. 36 do Estatuto) se outra mais grave não for aplicável (Lôbo, 2007 apud Leal, 2009).

Nota-se que a ética social, a mesma ética que guia as relações profissionais, no âmbito da advocacia, ganha um caráter obrigatório, normativo. Naturalmente, dessa forma, a regulamentação da ética profissional no âmbito do exercício advocatício irá abranger diversos aspectos da rotina do advogado, amparando-o legalmente desde a prospecção de seus assistidos até ao sigilo profissional, que perdura muito depois do final da prestação dos serviços. Dentre os aspectos de interesse para regulamentação normativa, sobretudo nos dias de hoje, destaca-se uma das ferramentas mais utilizadas para se destacar no atual mercado: o marketing jurídico. 

2. O marketing jurídico

A imagem do advogado é um dos objetos de regulação da OAB que, por meio de provimentos e normativas, o faz para preservar a classe e seguir a máxima: “tornar-se merecedor da confiança do cliente e da sociedade como um todo, pelos atributos intelectuais e pela probidade pessoal” (grifo próprio). No entanto, Henri Robert, advogado francês em sua obra de 1921, expõe o complexo embate entre a imagem tradicional do advogado e a reputação que este evoca:

O advogado! Qual imagem essa palavra evoca de imediato na mente dos que vivem afastados do Palácio? Qual sentimento costuma despertar no público?

Para alguns, o advogado é tradicionalmente o ‘defensor do órfão e da viúva’, o paladino abnegado de todas as nobres causas, aquele cujo devotamento se volta inteiramente para todos os oprimidos, todos os infelizes, todos os deserdados da fortuna, e que faz ouvir perante a justiça a voz da piedade humana e da misericórdia.

Mas – tenhamos a modéstia e a clarividência de o reconhecer – essa está longe de ser sempre nossa reputação. Digamos mesmo que na literatura o advogado geralmente não tem boa fama.

Há uma tendência excessiva para representá-lo na figura de um insuportável tagarela, um sujeito espertalhão, chicaneiro, manhoso, encrenqueiro, capaz de defender qualquer causa, alegando inocência mesmo quando está convencido da culpabilidade… (Robert, 2002, p. 5, apud Leal, 2009)[4]

A controvérsia ética é nítida: enquanto o advogado necessita ser o defensor de direitos e garantias, diante do seu papel indispensável para a manutenção da justiça, sua imagem se materializa no imaginário coletivo de forma adversa e problemática. A fim de regular e dirimir isso, a OAB surge para manter os padrões da classe e preservar a imagem do advogado frente à sociedade. Para isso, a OAB tem cada vez mais rápido identificado as tendências modernas e separado o “joio do trigo” na medida em que reconhece os movimentos que surgiram com o advento das mídias, mas regula aquelas que podem ser prejudiciais. Dentre as tendências que surgiram, destaca-se nesta pesquisa, o marketing jurídico.

Conforme proposto por Bertozzi (2006, p. 29 apud Telhado, 2019), o marketing jurídico é conceituado como todos os esforços estratégicos de marketing dentro da comunidade jurídica, utilizando os instrumentos de acordo com o Código de Ética da OAB. De forma similar, apresenta-se o Provimento 205/2021 da própria OAB, que entende que o marketing jurídico caracteriza-se por ser a especialização do marketing destinada aos profissionais da área jurídica, consistente na utilização de estratégias planejadas para alcançar objetivos do exercício da advocacia (Diário Eletrônico da OAB, a. 3, n. 647, 21.07.2021, p. 1) [5].

A partir desses conceitos, é possível identificar que o marketing jurídico é um conjunto de estratégias para alcançar objetivos dentro da advocacia especialmente relevantes nos tempos modernos, com o surgimento do que se chama de marketing jurídico digital. Este permitiu a disseminação de diversos serviços por sítios, redes sociais, fóruns, etc. As vias virtuais permitiram uma forma de gerar destaque e acentuar o diferencial desses profissionais e respectivos escritórios, frente ao mercado sobrecarregado.

Hodiernamente, além do boom de profissionais, houve um aumento dos serviços jurídicos ofertados (Asensi, 2024) que permitiu que a atuação do advogado fosse além da mera propositura e acompanhamento de ações, atuando em diligências em instituições públicas, mediando extrajudicialmente e prestando consultorias a empresas. Contudo, independente do mercado turbulento ou do interesse em prestação de serviços diversos, o advogado possui uma responsabilidade ética em dar visibilidade ao que faz. Explica-se: retomando o conceito do advogado como defensor das garantias individuais, dos direitos e da boa prática jurídica, este não estaria cumprindo o seu dever como advogado se não apresentasse o seu trabalho para a sociedade. Ora, a quem ofereceria seu patrocínio e como serviria ao seu propósito se suas teses ficassem só para si? Ou em prol de qual assistido ficaria frente à tribuna, e para quem prestaria diligências ou consultoria?

Assim, o marketing jurídico evidencia-se como forma de cumprir os objetivos da advocacia, fazendo com que, independentemente de estarem no início ou já experientes no ofício, todos que são capacitados a exercer a advocacia possam demonstrar seus conhecimentos jurídicos à sociedade.

Ocorre, no entanto, que com o crescimento do marketing jurídico, houve paralelamente o surgimento de publicidade advocatícia enganosa e, logo, criminosa. Considerando publicações e artigos de blogs e sítios eletrônicos de escritórios e advogados, a publicidade enganosa é elencada como uma das diversas características da advocacia predatória. Cabe apontar, contudo, que o marketing jurídico não possui caráter criminoso ou enganoso haja vista que, como uma ferramenta normatizada pela OAB, esta não possui em si própria qualquer caráter que possa deslegitimá-la.

Logo, qualquer prática de marketing em meio jurídico que não obedeça às normativas da OAB, não se trata de publicidade advocatícia legítima, mas sim de exercício de ato contrário à carreira, a imagem dos advogados no Brasil e, complementarmente, ao posicionamento da Ordem, não podendo a ética profissional do advogado conviver com qualquer tipo de comportamento permitido nos meios digitais. Assim, é possível constatar-se que o marketing jurídico em si é necessário e benéfico tanto para a sociedade quanto para a classe dos advogados e o exercício fraudulento de publicidade advocatícia trata-se de ato que vai contra normativas estabelecidas, podendo até ser criminoso, não sendo, portanto,  relacionado com o conceito adotado neste trabalho de marketing aplicado ao contexto legal.

3. A regulamentação da Ordem dos Advogados do Brasil

No Brasil, a advocacia começou a ser regulamentada ainda em 1870, por meio das Ordenações Filipinas, que dispunham de regulamentações relacionadas às taxas devidas para o exercício do ofício (Brasil, 1870)[6] e trajes (Brasil, 1870)[7], principalmente. Mas foi apenas em 1921, por meio do Código de Ética Profissional do Brasil criado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, que a publicidade foi primeiramente mencionada, em seu artigo 12:

Art. 12 – É igualmente contrário à ética profissional solicitar serviços ou causas, bem como angariar estas ou aqueles por intermédio de agentes de qualquer ordem ou classe. Nem mesmo pode ser tolerada, aberrante como é das tradições da nobre profissão da advocacia, a propaganda indireta, por meios provocados, de informações e comentários da imprensa sobre a competência do advogado, excepcional importância da causa, magnitude dos interesses confiados ao seu patrocínio e quejandos reclamos. Não é defeso, entretanto, anunciar o exercício da profissão ou escritório, pela imprensa e indicadores, ou por outros modos em uso, declarando suas qualidades, títulos ou graus científicos. (Iasp, 1921 apud Strazzi, 2020)

Após este, só em 1934 foi instituído o Código de Ética Profissional da Ordem dos Advogados do Brasil, o primeiro editado pelo órgão (Strazzi, 2020). Atualmente, as regulamentações que incidem sobre a publicidade advocatícia são, sobretudo, o Provimento 205/2021 e a Lei 8.906 de 1994. Comparativamente, em outros países, como nos Estados Unidos, a prática dessas estratégias de publicidade jurídica não é tão alvo de normatização. Nos EUA foi a partir do caso Bates vs State Bar of Arizona (1977) que a Suprema Corte Americana entendeu que restrições da publicidade dos advogados feriam a First Amendment to the United States Constitution e consequentemente, a liberdade de expressão.

Diferentemente dos EUA e de outros países com tradição no Common Law, a atividade do advogado no Brasil não se confunde com qualquer atividade comercial, gerando restrições quanto à publicidade permitida (Dias, Rosenvald, Fortes e Venturi, 2022a), conforme os art. 5º e 39 do Código de Ética e Disciplina, além do 3º e 4º do Provimento 205/2021. O tema da mercantilização na advocacia, já bem debatido, não apresenta apenas previsão normativa, mas também jurisprudencial. Veja-se:

[…] 2. O Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, Lei nº 8.906/94, expressamente aponta o Código de Ética e Disciplina como documento regulador “dos deveres do advogado para com a comunidade, o cliente, o outro profissional e, ainda, a publicidade[…]” (parágrafo único do art. 33). 3. O Código de Ética e Disciplina da OAB reservou o Capítulo IV para tratar sobre publicidade, prevendo a possibilidade de anúncio do serviço profissional, individual ou coletivamente, “com discrição e moderação, para finalidade exclusivamente informativa, vedada a divulgação em conjunto com outra atividade” (art. 28). Há vedação expressa de oferta de serviços que indiquem, direta ou indiretamente, inculcação ou captação de clientela. Eis que a prática a atividade advocatícia “é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização” (art. 5º). 4. No mesmo sentido apontam os arts. 1º, 3º, 4º e 6º, do Provimento nº 94/2000, do Conselho Federal da OAB e art. 34, inciso IV, da Lei nº 8.906/94, o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. (TRF-2, 2018, online, grifo próprio).

E também:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZATÓRIA. TUTELA DE URGÊNCIA. PUBLICAÇÕES EM REDE SOCIAL QUE UTILIZAM INDEVIDAMENTE A LOGOMARCA DA AGRAVANTE. SUPOSIÇÃO DE QUE A AGRAVANTE SE ENRIQUECE ILICITAMENTE ÀS CUSTAS DOS USUÁRIOS. PUBLICAÇÕES QUE MACULAM A REPUTAÇÃO DA AGRAVANTE. ADVOCACIA É INCOMPATÍVEL COM A MERCANTILIZAÇÃO, NOS TERMOS DO ART. 5º E ART. 7º DO CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB. PUBLICAÇÃO QUE EXTRAPOLA CONTEÚDO MERAMENTE INFORMATIVO, VIOLANDO O ART. 28 DO CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB. PROVIMENTO DO RECURSO PARA CONFIRMAR A DECISÃO QUE DEFERIU A TUTELA RECURSAL. (TRF-2, 2022, grifo próprio)

Assim, clara a antipatia da OAB contra a mercantilização da advocacia é possível compreender a necessidade de regulação pelo órgão, haja vista que o mercantilismo, como uma tendência a subordinar tudo ao comércio, ao ganho ou ao interesse, empobrece a missão do advogado. Dessa forma, retorna-se para os conceitos apresentados de ética, ao apontar que se apenas um advogado, em pleno exercício da ética própria e individual aplica o marketing jurídico como uma ferramenta para mercantilizar a sua profissão, e se desse ato não houvesse consequências, este estará prejudicando toda a sua classe e também a sociedade.

Nesse sentido, é reconhecível que a regulação da OAB faz um papel satisfatório frente a classe e a sociedade brasileira. Isso pois, acompanha as novidades trazidas pelos tempos, conciliando a tradição e a inovação. Mantendo a autonomia do profissional, a OAB apenas proíbe e pune atos contrários a imagem da advocacia, à mercantilização e a quaisquer características negativas que possam, de qualquer forma, serem atribuídas a imagem do  advogado e prejudicar, conforme já foi exposto, a classe e a sociedade no geral.

Considerações finais

Nesses moldes, a presente pesquisa teve como objetivo central examinar a ética profissional e a regulamentação do marketing jurídico no Brasil, buscando entender como as normas vigentes influenciam a prática dessa ferramenta na advocacia em um mercado cada vez mais digitalizado e competitivo. Foi destacado que a ética profissional é uma ética voltada para o social, e que dentro do ambiente da advocacia, sobretudo, é necessário que essa ética seja regulamentada a fim de que não haja consequências para a sociedade ou para a classe dos advogados.

Procurou-se identificar a problemática envolvendo o marketing jurídico e a ética profissional normatizada, chegando-se à conclusão de que a regulação do marketing jurídico é essencial para manter a integridade e a dignidade da profissão. Destaca-se a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que possuiu um papel crucial na definição de limites para a publicidade advocatícia, assegurando que os advogados possam promover seus serviços sem comprometer os valores éticos fundamentais da profissão. Contribui-se, por meio deste estudo, para a conceituação do marketing jurídico como uma nova ferramenta capaz de auxiliar desde o recém-formado até o advogado mais experiente em alcançar seus objetivos dentro da advocacia, mas contrabalanceia-se a inovação trazida, com a necessidade de observância de preceitos tradicionais e inerentes à advocacia. A pesquisa aponta que, ao respeitar as diretrizes estabelecidas pela OAB, os advogados podem utilizar estratégias de marketing para se destacarem no mercado, sem recorrer a práticas mercantilistas que possam prejudicar a imagem da profissão.

Limitou-se o estudo em uma análise principalmente qualitativa, baseando-se em literatura e normativas existentes, sem um levantamento empírico mais aprofundado, focando, sobretudo, na realidade brasileira, não abordando em detalhes como outras jurisdições tratam a questão do marketing jurídico. Visando o crescimento de estudos e artigos voltados à área de marketing jurídico e a inovação que ela traz, entende-se como necessário que novas pesquisas empíricas sejam feitas a fim de que possam avaliar o impacto concreto das práticas de marketing jurídico na percepção pública da advocacia e na captação de clientes.

Em suma, este trabalho conclui que a regulação ética do marketing jurídico, embora desafiadora, é imprescindível para preservar o prestígio da advocacia e garantir que esta continue a servir a justiça e a sociedade de forma íntegra e respeitosa, balanceando a inovação com o respeito às diretrizes éticas e garantindo, por fim, que toda a classe mantenha seu prestígio e sua essência sacerdotal frente a sociedade.

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[1] ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Brasil tem 1 advogado a cada 164 habitantes: CFOAB se preocupa com qualidade dos cursos jurídicos. OAB, Brasília, 17 nov. 2022. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/59992/brasil-tem-1-advogado-a-cada-164-habitantes-cfoab-se-preocupa-com-qualidade-dos-cursos-juridicos. Acesso em: 6 jun. 2024.

[2] Nicolescu B, et al. Educação e transdisciplinaridade. São Paulo: UNESCO, USP/Escola do Futuro, CESP; 2000. p.56.

[3] SÁ, Antônio Lopes de. Ética Profissional. Grupo GEN, 2019.p. 127.

[4]LEAL, S. T. O Advogado e a Ética. Caderno Virtual, v. 1, n. 20, 2009.

[5] DEOAB, a. 3, n. 647, 21.07.2021, p. 1

[6] A licença para advogar cooccdida ao Advogado não formado em Direito. Lcgulcio. ou Iormado nos Unh’cr- sidades csLrangeiras, paga de sello a11nualmcnLc 5$000, c por uma só “cz 50$000. Rcg. n. 68 I – de IOde Julho de 1850 arl. 48. O Advogado formado cm DireiLo nas Faculdades do Imperio .pa”a de no,’os direiLos 60$000; c provido lemporartamenle, 2$000 por anno. L. de 30 dc No- vemhro dc j 8\ I § 5 da ‘fabella annexa.

[7] Não podem entrar nas nudiencias com espada ou trajos prohibidos. AI. de 30 de .Iunbo de 1652. Os do Institulo dos Ad,’ogados e os do Couselho d. Eslado têm vestimenta especial para os auditorios e dias de fe,lividade aacional. D. n. 393 – de 23 de Novembro de 1843 ar·t. 102. (BRASIL,1870)


Carolina Mendonça Guimarães de Alencar Meneses. Graduanda em Direito na Faculdade Presbiteriana Mackenzie com experiência em Direito Tributário e Administrativo, além de atuação em assessoramento na CLDF. Estagiária no Advocacia Mendonça e Diretora na WebAdvocacy – Direito e Economia.


Empoderamento social por meio do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC): uma perspectiva das instituições de ensino fundamental do Distrito Federal

Apresentação

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Empoderamento social por meio do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC): uma perspectiva das instituições de ensino fundamental do Distrito Federal

Valdeberto Pereira de Souza & Fernando de Magalhães Furlan

RESUMO

Este artigo revisa a literatura jurídica que deu início à participação de instituições filantrópicas na consecução de projetos sociais, por meio de parcerias com o Estado. Analisar-se-á o desenvolvimento das normas jurídicas para esse fim e observar-se-á o crescimento das parcerias entre Governos e OSCs (Organizações da Sociedade Civil), e o próprio crescimento numérico delas. Em tendo havido crescimento, buscar-se-á identificar se esse crescimento possibilitou um empoderamento social dos sujeitos alcançados, tendo em vista que tais instituições desenvolvem os seus projetos principalmente nas áreas de saúde, educação, assistência social e cultura. Este artigo toma como corpus as instituições que desenvolvem projetos na área da educação infantil. Assim, a pesquisa de dados se limitou ao âmbito do Distrito Federal. A pesquisa também buscou identificar se essas instituições estão inseridas em áreas centrais ou periféricas da polis, e se os sujeitos alcançados com a consecução dos objetos definidos pelo Estado e pelas OSCs estão inseridos em áreas de maior ou menor poder aquisitivo, já que que tais sujeitos, em razão de sua situação mais precária, sejam aqueles que mais dependam do apoio do Governo.

ABSTRACTO

Este trabajo de investigación revisa la literatura jurídica que ha dado inicio a la participación de instituciones filantrópicas en la consecución de proyectos sociales por medio de parcerías con el Estado. Se analiza el desarrollo de las normas jurídicas para ese fin y se observa si hubo un crecimiento de las parcerías entre Gobiernos y OSCs (Organizaciones de la Sociedad Civil), y también crecimiento del número de instituciones. Y aun si hubo crecimiento, se busca identificar si ese crecimiento posibilitó un empoderamiento social de los sujetos alcanzados, teniendo en cuenta que tales instituciones desarrollan sus proyectos mayormente en las áreas de salud, educación, asistencia social y cultura. En esta investigación se ha tomado como corpus instituciones que desarrollan proyectos en el área de educación infantil. Se limita la investigación en datos que ocurran en el ámbito del Distrito Federal. También se buscará identificar si tales instituciones están ubicadas en áreas céntricas o periféricas de la polis, y si los sujetos alcanzados con la consecución de los objetos definidos por el Estado y por las OSCs están ubicados en áreas de mayor o de menor poder adquisitivo, ya que se espera que tales sujetos, por falta de recursos suficientes, sean aquellos que más dependan de apoyo del Gobierno.

SUMÁRIO

I INTRODUÇÃO

Esse artigo tem por objetivo estudar como as ações previstas no MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil) contribuem para o empoderamento social. Tal empoderamento é proporcionado pela internalização de direitos e deveres sociais que conscientizam os cidadãos na execução de ações que cobrem de seus representantes políticos atitudes para esse fim) em grupos de pessoas que se encontrem em situação de vulnerabilidade social, por meio da aplicação da Lei 13.019, de 31 de julho de 2014, regulamentada pelo Decreto Federal 8.726, de 27 de abril de 2016, que tratam das parcerias entre o Estado e as Organizações da Sociedade Civil (OSCs). O artigo também busca traçar um perfil do desempenho estatal por meio dessas parcerias, visando ao melhoramento das políticas públicas que tratam da oferta de serviços preponderantes para o desenvolvimento social.

O relacionamento entre o Estado e as OSCs, como se concebe atualmente, acentuou-se a partir da nova concepção do Estado, iniciando-se com a Reforma do Estado (Governo Fernando Henrique Cardoso – 1995). Essa relação, ao longo dos tempos, foi ora criticada, ora exaltada, e, passados quase 30 anos, pode-se ter uma visão holística positiva das parcerias, já que se testemunhou um aumento vertiginoso da relação jurídica do Estado com as organizações da Sociedade Civil (OSCs). As OSCs têm uma importância cada vez maior na execução de projetos, por meio da publicização de serviços públicos[1], que outrora estavam exclusivamente nas mãos do Estado. Isso não quer dizer que o Estado tenha perdido a tutela desses serviços, cujo caráter é público, já que, por serem mantidos pelo Estado, este tem total controle da efetividade dos serviços ofertados à comunidade, por meio dos diversos órgãos de controle estatal (Lei 13.019, de 31 de julho de 2014), e responde de forma solidária pelos possíveis desvios que vierem a ocorrer.   

Este artigo se propõe a fazer uma análise crítica das ações previstas na legislação aplicável, levando em consideração os resultados aferidos pelo próprio Governo e por seus órgãos de controle.

Para a análise sobre o crescimento da relação do Estado com as Organizações da Sociedade Civil, OSCs, como já mencionado, coletar-se-ão dados disponibilizados por órgãos oficiais no Distrito Federal, como a quantidade de OSCs por Região Administrativa do Distrito Federal (RA), em diferentes períodos, pois, tais dados podem mostrar se realmente as áreas mais vulneráveis, ou seja, as que mais dependem de ações governamentais para dirimir desigualdades sociais estão sendo os locais preferidos por essas OSCs, e se houve um aumento no número de instituições que surgiram ao longo dos anos nessas regiões.

Ao analisar a Lei, buscar-se-á identificar os artigos que mais influência exercem no combate à desigualdade social e na melhora crescente das condições necessárias para o desenvolvimento social, aqui entendido como uma forma de empoderamento da sociedade.  Com a publicização de serviços públicos, tornando-os mais acessíveis à comunidade, espera-se um aumento no nível de desenvolvimento daqueles que venham a desfrutar de tais serviços. Dessa maneira, pode-se também traçar um panorama do investimento econômico governamental visando à erradicação de problemas que são verdadeiros entraves para a educação e à saúde, por exemplo.

O artigo foca principalmente em projetos desenvolvidos no Distrito Federal que alcancem a educação básica, mais precisamente a educação infantil e a pré-escola, por meio de parcerias entre o Governo do Distrito Federal e as Organizações da Sociedade Civil aqui instaladas.

De forma particular, o artigo também pretende estudar as Organizações da Sociedade Civil (OSCs), o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) e a lei que regulamenta o Terceiro Setor como um todo, apontando prós e contras da relação jurídica entre essas instituições e o Estado. Especificamente, identificar na lei e na doutrina a definição de OSC e as consequências dessa definição na sua existência como pessoa jurídica e nas suas finanças, diferenciando-a, devido ao seu caráter legal, de outras pessoas jurídicas com finalidade de lucro. Também tem o artigo o intuito de perceber se a Lei 13019/94 tem alcance majoritariamente nas áreas centrais ou em áreas periféricas, identificar as ações desenvolvidas que causem o empoderamento social, por meio do conhecimento difundido, do objeto executado e o nível de conhecimento adquirido, por meio da execução de tais projetos e o alcance social do MROSC na concepção das entidades filantrópicas – OSCs.

Esse artigo se baseia na seguinte indagação: “como as ações previstas no MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil) contribuem para o empoderamento social?”.

As ações previstas com a aplicação da lei positivada no MROSC contribuirão para o empoderamento social à medida que cidadãos em situação vulnerável de saúde forem alcançadas por ações de instituições filantrópicas, como um braço alongado do Estado, poupando-lhes recursos e lhes auxiliando na melhoria do acesso à saúde, antes não alcançada sob a gestão exclusiva do Estado. Este é um exemplo de efetividade e eficácia da aplicação da verba pública. As famílias tornar-se-ão empoderadas quando alcançadas por programas de proteção às crianças, como, por exemplo, as creches, administradas por instituições da sociedade civil (OSCs), sem custo para as famílias e com boa qualidade, exigida e fiscalizada pelo Estado, mediante ações previstas com a aplicação do MROSC. Outro exemplo é que as famílias serão empoderadas com as ações previstas no MROSC porque, na maioria esmagadora dos casos, as ações desenvolvidas por instituições filantrópicas ocorrerão em áreas periféricas, ou até mesmo em áreas centrais, e os funcionários contratados para desempenharem as ações de alcance do objeto são, quase sempre, pessoas das próprias comunidades adjacentes a essas ações (programas). São pessoas que não fizeram um concurso público, mas que se sentirão parte do funcionalismo público, participantes do esforço nacional em prol das comunidades mais desassistidas. É o próprio Estado sendo fomentador da criação de empregos e bem-estar social, por meio de atividades desenvolvidas pelas OSCs.

1.1 JUSTIFICATIVA

Este artigo tem como intuito analisar a evolução do Marco Regulatório do Terceiro Setor, após a sua publicação e descortinar a possível influência de tais normas jurídicas no empoderamento dos sujeitos envolvidos, objeto das ações neles previstas.

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 o papel da sociedade civil organizada tem se destacado como apoio ao alcance de resultados almejados pelo Estado, na busca do desenvolvimento da sociedade. A busca por afirmação nesse sentido leva-nos a fazer uma análise sobre o impacto das normas jurídicas que regulam a parceria do Estado com essas organizações civis.

Portanto, o artigo tem a finalidade de fazer uma análise da desenvoltura de tais normas jurídicas no seio social. Identificar se os objetivos almejados por seus precursores, os reformadores do Estado, estão sendo alcançados e o impacto disso para o empoderamento da sociedade.

Este artigo enfoca, sobretudo, as instituições de ensino fundamental do Distrito Federal.

2. EVOLUÇÃO DA PARCERIA DE OSCs COM A PUBLICIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS

Analisar-se-á, sob um enfoque diacrônico, a importância da participação de instituições filantrópicas da sociedade civil organizada, concomitantemente com o avanço da legislação brasileira, no que tange à execução e desenvolvimento de projetos sociais que transformaram ou transformam essa sociedade (e seus indivíduos) em uma sociedade mais justa e consciente do papel a desempenhar de forma intrínseca, para que essa mesma comunidade se empodere de conhecimentos e meios que a façam avançar e crescer no exercício da plena cidadania.

2.1 Reforma do Estado visando à publicização de serviços públicos

Pode-se definir como marco inicial da valorização participativa do terceiro setor (ONGs) na sociedade brasileira o movimento da reforma do Estado, lançado em 1995, sob a gestão federal do presidente Fernando Henrique Cardoso. Naquele contexto reformista introduziu-se o conceito de publicização, que significa a transferência de serviços não exclusivos do Estado, ligados a diversas áreas, tais como: educação, saúde, cultura, fomento à pesquisa científica, dentre outras, para o setor privado que, embora não estatal, seja mantido em parte ou no todo por recursos públicos (BRESSER PEREIRA, 1999, p. 07).

A percepção da necessidade de ampliação do terceiro setor, que fugisse do totalmente público e do totalmente privado, surge com a concepção de que não é apenas o Estado que pratica altruísmo social e protege o interesse público, senão também organizações privadas e pessoas físicas que atuam em múltiplas áreas, como educação, saúde, assistência social, cultura, lazer, preservação do meio ambiente, dentre outras, e cujo interesse está centrado no bem-estar social, na responsabilidade com o bem público e na implementação de ações que visem ao benefício coletivo. Essas ideias coadunam com a declaração de Frei Caneca: “Uma constituição não é outra coisa, que a ata do pacto social, que fazem entre si os homens, quando se ajuntam e se associam para viverem em reunião ou sociedade” (VILLAR, 2004. p. 106).

Nesse diapasão, o Terceiro Setor surge como instrumento propulsor para que o país tenha esse pacto social amplamente implantado, por meio de parceria estatal (Estado) e sociedade organizada (setor privado). Ou seja, tal instrumento constitui-se em força motriz para que os setores organizados da sociedade civil se mobilizem e atuem em áreas de maior impacto social, mediante atitudes instrumentalizadas em ações voluntárias, que não visem lucros, e que tenham enfoque na erradicação de desigualdades sociais. (BRESSER PEREIRA, 1999, p. 09)

Mediante esse panorama, por meio do Decreto Federal 1.366/95, instituiu-se o Programa Comunidade Solidária, com o objetivo de coordenar as ações governamentais cujo objetivo era o atendimento de parcela da população que não dispunha de recursos suficientes para prover as suas necessidades básicas e, em especial, o combate à pobreza e à fome (Decreto 1.366/95, Art. 1º Caput.).

À posteriori, e ainda com o fim de fortalecer a concepção do Decreto 1.366/95, surge a Lei nº 9.790/1999, que dispõe sobre as chamadas OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), como entidades privadas de interesse público, e instituiu o termo de parceria a ser firma com o Poder Público (Estado, em qualquer de suas esferas). A Lei definiu também que seria o Ministério da Justiça que concederia esse título (OSCIP) às instituições que se encaixassem nas qualificações exigidas. Logo após, em 2011, surge o decreto federal que altera o referido dispositivo, instituindo o “Edital de Concurso de Projetos” pelo órgão estatal parceiro para a “obtenção de bens e serviços e para a realização de atividades, eventos, consultoria, cooperação técnica e assessoria, com o meio obrigatório para a seleção da OSCIP, com o intuito de firmar termo de parceria”. (BRASIL, Decreto nº 3.100/99, Art. 8º, caput)

Contudo, podemos assegurar que a relação entre Organização da Sociedade Civil e poder público aperfeiçoou-se com o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, publicado em 2014, com a Lei 13019/2014. Essa lei, regulamentada pelo Decreto 8.726/2016, é o instrumento que rege atualmente a parceria entre Estado e as OSCs no que tange a serviços públicos estatais que visam à melhoria, crescimento e qualidade total nos serviços públicos ofertados à sociedade civil. Como previa Bresser Pereira (BRESSER PEREIRA, 1999):

Dentro do contexto da Reforma Gerencial de 1995, a gestão pela qualidade total ganhou vida nova. As diferenças eram claras: enquanto a administração privada é uma atividade econômica controlada pelo mercado, a administração pública é um empreendimento político, controlado politicamente. Na empresa privada, o sucesso significa lucros; na organização pública, significa o interesse público. É possível transferir os instrumentos de gerenciamento privado para o setor público, mas de forma limitada. Pode-se descentralizar, controlar por resultados, incentivar a competição administrada, colocar o foco no cliente, mas a descentralização envolve o controle democrático, os resultados desejados devem ser decididos politicamente, quase-mercados não são mercados, o cliente não é apenas cliente, mas um cliente-cidadão revestido de poderes que vão além dos direitos do cliente ou do consumidor. Com a explicitação dessas diferenças e o aumento da autonomia e da responsabilização que os dirigentes estão assumindo no âmbito da reforma, o controle de qualidade na administração pública ganhou legitimidade e tornou-se a estratégia gerencial oficial para a implementação da reforma. (BRESSER PEREIRA).

Esse modelo de parceria entre o Estado e a sociedade civil organizada teria o “Contrato de Gestão” (atualmente chamado de “Termo de Colaboração”, pela Lei 13.019/2014) como meio de fiscalizar as práticas administrativas das OSCs. Nas palavras de Violín (2006, p. 200): “por meio do contrato de gestão, o núcleo estratégico define os objetivos das entidades executoras e os respectivos indicadores de desempenho, e garante a essas entidades os meios humanos, materiais e financeiros para sua execução”. Dessa forma, o Estado continua como o grande fomentador da oferta desses serviços, apenas não seria mais o executor, embora mantenha sob seu controle a qualidade das ações das OSCs, por meio dos órgãos estatais de controle. (FERREIRA, 2017, p. 138)

O antigo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE, 1997) cita ainda outras vantagens das parcerias:

Do ponto de vista da gestão de recursos, as Organizações Sociais não estão sujeitas às normas que regulam a gestão de recursos humanos, orçamento e finanças, compras e contratos na Administração Pública. Com isso, há um significativo ganho de agilidade e qualidade na seleção, contratação, manutenção e desligamento de funcionários, que, enquanto celetistas, estão sujeitos a plano de cargos e salários e regulamento próprio de cada Organização Social (Cadernos do MARE, Cad. 2, p. 15, 1997). Verifica-se também nas Organizações Sociais um expressivo ganho de agilidade e qualidade nas aquisições de bens e serviços, uma vez que seu regulamento de compras e contratos não se sujeita ao disposto na Lei nº 8.666 e ao SIASG. (Cadernos do MARE, Cad. 2, p. 16, 1997). Do ponto de vista da gestão orçamentária e financeira as vantagens do modelo organizações sociais são significativas: os recursos consignados no Orçamento Geral da União para execução do contrato de gestão com as Organizações Sociais constituem receita própria da Organização Social, cuja alocação e execução não se sujeitam aos ditames da execução orçamentária, financeira e contábil governamentais operados no âmbito do SIAFI e sua legislação pertinente; sujeitam-se a regulamento e processos próprios (Cadernos do MARE, Cad. 2, p. 16, 1997). No que se refere à gestão organizacional em geral, a vantagem evidente do modelo Organizações Sociais é o estabelecimento de mecanismos de controle finalísticos, ao invés de meramente processualísticos, como no caso da Administração Pública (Cadernos do MARE, Cad. 2, p. 16, 1997).

Com relação a esses pontos, quando da efetivação da reforma do Estado, sobretudo nos governos FHC, surgiram muitas críticas. Para Lúcia Cortes da Costa, a flexibilização da administração pública é importante para acabar com a burocracia e hierarquia, contudo, “sem um plano de carreira e sem a devida revalorização do servidor público, não há como criar uma cultura gerencial qualitativamente melhor” (COSTA, 1998, p. 191).

Segundo Lustosa da Costa (2010), faltou ao governo discutir melhor as funções do Estado, as políticas necessárias, a relação que deveria se estabelecer entre Estado e sociedade, assim como o modelo de gestão pretendido para a coisa pública. O que se observa é que houve uma discussão intensa sobre a função pública, esquecendo-se desses outros fatores importantes, o que tornou a reforma ainda mais polêmica, segundo os mais críticos. Tal linha de pensamento fica clara nas asserções de Lustosa da Costa:

Na verdade, foi o governo que, ao propor as modificações na Constituição e na legislação ordinária, conferiu excessiva ênfase ao problema do servidor público. Isso não quer dizer que a questão da estabilidade e de outras garantias não seja importante e não deva ser debatida pelo Congresso Nacional e por toda a sociedade nele representada. Continua sendo necessário clarificar de uma vez por todas as relações contratuais que o Estado deve manter com as diferentes categorias de servidores. Só assim será possível estabelecer um criterioso e arrojado programa de valorização da função pública. Mas, se a questão fosse apenas demitir funcionários, o governo teria à sua disposição uma série de mecanismos que lhe permitiriam atingir esse propósito, sem a necessidade de gerar tanta controvérsia. […] Entretanto, ao contrário do que foi feito, um programa de reforma do Estado deveria começar pela discussão das grandes missões do Estado moderno, de sorte a precisar o alcance de sua ação legítima. É identificando e definindo as políticas públicas e as esferas de governo que devem implementá-las que o agente modernizador pode estabelecer objetivos em termos de desestatização, democratização e flexibilização. […] Só depois dessas definições é que se deveria ter começado a discutir a função pública. Sabendo-se quais são as atividades típicas de governo, as políticas a implementar e as formas de geri-las, tornar-se-ia possível configurar os diferentes tipos de relações contratuais que o Estado deve manter com os seus servidores e empregados (LUSTOSA DA COSTA, 2010, p.175-176).

Outro ponto em questão é que, para Lustosa da Costa, o entendimento dos reformadores partia da premissa de que “com uma estrutura menor, com menor gasto de recursos, é possível realizar as mesmas funções, o mesmo número de atividades, e aí se incluem as fusões e incorporações, os cortes de pessoal, enxugamento de estruturas” (LUSTOSA DA COSTA, 2010, p. 177). Contudo, na visão do autor, esse era um pensamento equivocado, já que deixava de lado o verdadeiro foco que deveria ser a elevação da qualidade dos serviços públicos prestados, em detrimento de oferecer o serviço só pensando na redução de gastos.

Contudo, o que não é observado pelos críticos, é que esse novo Estado, pós-reforma, foi concebido por uma estrutura técnica racional, o que o tornou mais ágil no desempenho de suas funções e mais eficaz em face das novas necessidades advindas da reordenação política e econômica do mundo contemporâneo, utilizando-se, para isso, de todos os meios legais e possíveis, no que se enquadra a descentralização. Para Di Pietro (1997):

[…] o que muda é principalmente a ideologia, é a forma de conceber o Estado e a Administração Pública. Não se quer mais o Estado prestador de serviços; quer-se o Estado que estimula, que ajuda, que subsidia a iniciativa privada; quer-se a democratização da Administração Pública pela participação dos cidadãos nos órgãos de deliberação e de consulta e pela colaboração entre o público e privado na realização das atividades administrativas do Estado; quer-se a diminuição do tamanho do Estado para que a atuação do particular ganhe espaço; quer-se a flexibilização dos rígidos modos de atuação da Administração Pública, para permitir maior eficiência; quer-se a parceria entre o público e o privado para substituir-se a Administração Pública dos atos unilaterais, a Administração Pública autoritária, verticalizada, hierarquizada (PIETRO, 1997, p. 11-12).

As bases dessa reforma fundamentaram-se no ajuste fiscal, enfocado na diminuição do quadro de servidores e modernização da Administração Pública, mediante o fortalecimento do núcleo estratégico do Estado – legislação, formulação de políticas públicas, fiscalização, regulamentação e financiamento de recursos – bem como de parcerias com setores e serviços da sociedade civil (BRESSER PEREIRA, 2001; AZEVEDO; ANDRADE, 1997).

COSTA (1998) faz uma crítica sobre a publicização e privatização assumida na reforma do Estado, afirmando que foi na verdade uma forma de fortalecimento do Estado de per si e “não na regulação social sobre as desigualdades que o mercado cria, e sim nas transformações de tudo o que antes era regulação em mecanismo de mercado”. (COSTA, 1998, p. 200)

Nós temos uma presença forte do Estado em áreas como saúde, educação e cultura. Com isso, a sociedade civil se retrai e delega ao governo o controle dessas áreas. Quando precisa de um hospital em um bairro, por exemplo, ninguém pensa em se organizar e buscar recursos; o que as pessoas fazem é se voltar para o governo. E, na verdade, a essência da filantropia é a autorregulação social. Por esse motivo, a ideia filantrópica no país está ligada ao conceito de assistencialismo. Só que isso é um equívoco:  mais do que boas ações isoladas ou caridade, a filantropia busca realizar mudanças estratégicas, efetivas e de longo prazo que promovam desenvolvimento econômico e social, e aqui vem coadunar o ideário de Estado reformado cujo conceito está taxado no MARE (Cadernos do MARE, Cad. 2, 1997).

De acordo com o art. 2º, da Lei 13.019/2014 (MROSC): “As parcerias disciplinadas nesta lei respeitarão, em todos os seus aspectos, as normas específicas das políticas públicas setoriais relativas ao objeto da parceria e as respectivas instâncias de pactuação e deliberação (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)”. Com isso, coloca-se em relevo que, apesar de não ser o Estado o executor dos projetos, objeto de parcerias entre si e as OSCs, mantém-se o compromisso de respeito às normas específicas das políticas públicas setoriais que estariam presentes, caso o próprio Estado estivesse ou esteja executando o serviço à sociedade. Portanto, não haveria que se falar em desvio com a publicização, objeto da reforma iniciada em 1995 (BRASIL, 2014).

2.2 OSCs distribuídas por regiões administrativas no Distrito Federal

Para que se possa fazer uma análise criteriosa sobre o crescimento da parceria estatal com as instituições filantrópicas e, por conseguinte, uma análise sobre a efetividade e eficácia da qualidade de serviços públicos desenvolvidos junto à população por ditas OSCs, com a sua publicização, far-se-á necessário identificar quantitativamente primeiro, por meio de gráficos, a quantidade de instituições existentes por regiões administrativas no Distrito Federal e a quantidade de pessoas envolvidas. Tal análise busca identificar se verdadeiramente áreas consideradas de maior vulnerabilidade são o foco das instituições e de aporte de recurso pelo Estado.

Utilizar-se-á como corpus para a análise nesta seção, instituições filantrópicas que se dedicam à educação infantil e alunos matriculados nessas instituições. As Regiões Administrativas foram aqui definidas como áreas não vulneráveis, áreas vulneráveis e áreas mais vulneráveis, segundo dados referentes à renda per capta de seus moradores (Wikipédia, 2023).

1 – Áreas não vulneráveis – Foram classificadas como áreas não vulneráveis, conforme tabela no anexo 1, as cidades cuja renda per capta de seus habitantes está registrada entre os valores R$ 6.778,00 (seis mil, setecentos e setenta e oito reais) e R$ 3.742,00 (três mil, setecentos e quarenta e dois reais), inclusive (WIKIPEDIA, 2023);

2 – Áreas vulneráveis – Foram classificadas como áreas vulneráveis, conforme tabela no anexo 1, as cidades cuja renda per capta de seus habitantes está registrada entre os valores R$ 2.381,10 (dois mil, trezentos e oitenta e um reais) e R$ 1.596,40 (mil, quinhentos e noventa e seis reais e quarenta centavos), inclusive (WIKIPEDIA, 2023);

3 – Áreas mais vulneráveis – Foram classificadas como áreas mais vulneráveis, conforme tabela no anexo 1, as cidades cuja renda per capta de seus habitantes está registrada entre os valores R$ 1.351,20 (mil, trezentos e cinquenta e um reais e vinte centavos) e R$ 797,10 (setecentos e noventa e sete reais e dez centavos), inclusive (WIKIPEDIA, 2023).

Os dados e valores da renda per capta de todas as cidades estão registrados na tabela demonstrada no ANEXO deste trabalho.

Com a coleta dos dados, utilizamos a ilustração, por meio de figura em gráfico, para uma maior percepção visual da real situação de atendimento à comunidade por essas instituições que representam o Estado junto às comunidades que usufruem de serviços de caráter público, embora executados por instituições privadas.

Figura 1. Gráfico de Instituições localizadas em áreas segundo a renda per capta no Distrito Federal

Fonte: própria

Figura 2. Gráfico de alunos matriculados em instituiçoes localizadas em áreas segundo a renda per capta de seus habitantes, no Distrito Federal

Fonte: Dados educacionais 2023

Percebe-se que as áreas mais vulneráveis são as que atualmente mais atraem o surgimento de novas ONGs (FERNADES, 94, P. 67). Se somarmos as áreas mais vulneráveis com as vulneráveis, perceber-se-á que, juntas, comportam quase 80% de todas as ações filantrópicas. Este fato é visto como algo natural, já que são as áreas que mais despertam os anseios de instituições filantrópicas, por expressarem maiores carências em serviços públicos, foco das instituições.

Segundo Fernandes (1994), as ONGs surgem de forma massiva no continente a partir da década de 1970 e, no, Brasil, especificamente na década de 1980. O Brasil, atualmente, detém quase 25% de todas as ONGs da América Latina, dado o seu tamanho e a sua população (FERNANDES, 1994, P. 70).

De acordo com os dados tabulados e copilados de sítios oficias (DADOSEDUCACIONAIS, 2023), percebe-se que o número de pessoas alcançadas pelas instituições filantrópicas, com os projetos sociais desenvolvidos, é muito superior nas áreas de maior vulnerabilidade, o que já era de se esperar, já que o intuito do Estado, com a publicização de serviços públicos, e todo o seu esforço legal (BRASIL, 2014), objetiva principalmente o alcance maior e com maior qualidade de sua presença junto às comunidades mais vulneráveis, valendo-se, para isso, da capilaridade dessas instituições.

Outro motivo que pode justificar uma maior adesão a esses serviços é dicotômico, pois, enquanto nas áreas não vulneráveis as famílias, por diversas razões, não acreditam que os serviços públicos ministrados de forma pública e gratuita, ainda que por instituições privadas, possam ser de qualidade, nas áreas mais vulneráveis a percepção é diferente. Há, inclusive, um clamor social para que tais serviços sejam ampliados. Talvez porque não haja muita escolha para as famílias mais vulneráveis que, ao provarem o atendimento, passem a aprová-lo por conhecerem as instituições e por estas se esforçarem na busca de qualidade para os serviços. Mister acrescentar que há também uma fiscalização do Poder Público visando exatamente à efetividade e qualidade dos serviços prestados.

A comunidade, por sua vez, ao desfrutar de serviços essenciais como saúde e educação, dentre outros, torna-se socialmente empoderada, pois a educação, por exemplo, é uma das mais eficazes ferramentas de transformação social. Gomes de Castro (REPOSITÓRIO, 2018, p. 12) lembra bem que o acesso ao ensino particular, por meio dos serviços dessas instituições, é forma de viabilizar acesso a posições na pirâmide social, dada a qualidade do ensino.

2.3 A Lei 13.019, de 31 de julho de 2014

Era necessário criar uma lei específica que regesse a relação do Estado com as Instituições Organizadas da Sociedade Civil, visando “maior transparência e democracia na efetivação dessas ações, e, ainda, o fortalecimento da sociedade civil, sem deixar de observar os princípios da legalidade, da legitimidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da economicidade e da eficiência” (BRASIL, 2014).

A Lei Federal nº 13.019/2014 estabeleceu novas regras para firmar parcerias entre a Administração Pública e as OSCs. A lei prevê que quando não houver transferência de recursos financeiros, deverá ser celebrado um Acordo de Cooperação. Já quando a parceria envolver a transferência de recursos financeiros, deverá ser celebrado Termo de Colaboração ou o Termo de Fomento (BRASIL, 2014).

O Chamamento Público, instrumento usado para garantir igualdade de competição entre as OSCs na busca por recursos públicos e a seleção da melhor proposta, é o procedimento destinado a selecionar OSC para celebrar parceria com a Administração Pública. O Chamamento Público observará critérios claros e objetivos estabelecidos no edital, que garantam a presença dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e os princípios específicos das políticas públicas setoriais (BRASIL, 2014).

A Lei 13.019/2014 prevê, em seu art. 29 e 30, a possibilidade de se realizar parcerias sem que haja a necessidade de se fazer chamamento público, sem, contudo, ferir os princípios da legalidade, da legitimidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da economicidade e da eficiência” (BRASIL, 2014).

De acordo com o procedimento de Manifestação de Interesse Social, por meio do qual os cidadãos, as OSCs e os movimentos sociais provocam a Administração Pública a reagir sobre a viabilidade de realizar o chamamento público para determinada política pública. As propostas enviadas descreverão o interesse público envolvido e a realidade a ser modificada, melhorada ou desenvolvida. É mister destacar que a OSC autora da proposta aprovada não desfruta de qualquer vantagem no chamamento ou direito de execução do projeto (BRASIL, 2014).

O art. 33 da Lei Federal n° 13.019/2014 estabeleceu alguns requisitos para que uma OSC celebre parceria com o Poder Público:

Figura 3. Exigência da lei para que OSCs firmem convênio com o Poder Público

ESTATUTO QUE CONTENHATEMPO DE EXISTÊNCIA MÍNIMO (CNPJ)EXPERIÊNCIA PRÉVIACONDIÇÕES MATERIAIS E CAPACIDADE TÉCNICA E OPERACIONAL
Objetivo a execução de atividades Cláusula de transferência do patrimônio líquido, em caso de dissolução, a outra pessoa jurídica de igual natureza e preferencialmente com igual objeto social   Cláusula prevendo a escrituração de acordo com as Normas Brasileiras de Contabilidade3 anos para parcerias com a União 2 anos para parcerias com o Estado e o Distrito Federal 1 anos para parcerias com Municípios1 anoComprovada

Fonte: ENTENDENDO-A-LEI- 2023

O art. 34, da Lei 13019/14 ainda estabelece outros documentos a serem apresentados necessariamente: certidão de regularidade fiscal, previdenciária, tributária, de contribuições e de dívida ativa, certidão ou cópia do estatuto da entidade, ata de eleição do quadro dirigente, comprovante de endereço da OSC e relação dos dirigentes, contendo nome, endereço, RG e CPF (BRASIL, 2014).

Com exceção da obrigatoriedade de chamamento público para celebração de parcerias para execução de atividades nas áreas de Assistência Social e Educação, nos casos em que haja credenciamento dessas instituições pelas secretarias gestoras da política, como dispõe o art. 30, inciso VI da Lei 13019/2014, todas as novas regras contidas no MROSC aplicar-se-ão às OSCs que atuem nas áreas de assistência social e educação. Além disso, o artigo 2º-A prevê expressamente que as parcerias respeitarão as normas específicas das políticas públicas setoriais concernentes ao objeto da parceria e as respectivas de pactuação e deliberação.

Também os artigos 27, § 1º e 59, § 2º preveem que os respectivos conselhos se responsabilizarão pela comissão de seleção de propostas, bem como pelo monitoramento e avaliação das parcerias financiadas com recursos de fundos específicos, respeitadas as exigências do MROSC.

Com relação às entidades de assistência social, o tipo de parcerias proposto pela Lei Federal n° 13.019/2014 não contraria as diretrizes e parâmetros estabelecidos nas normas vigentes no âmbito do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. O citado artigo 2º-A reconhece a importância e influência da Comissão Intergestores Bipartite e da Comissão Intergestores Tripartite e dos Conselhos Federal, Estaduais e Municipais. Concomitante a isso, os conselhos sustentam o importante papel de acompanhar e fiscalizar a execução das parcerias entre as entidades de assistência social e a gestão local, e sem prejuízo da fiscalização pela administração Pública e pelos órgãos de controle, conforme estabelecido no art. 60 da Lei Federal n° 13.019/2014. (BRASIL, 2014)

De acordo com o art. 46, da Lei Federal n° 13.019/2014, torna-se possível remunerar trabalhadores do projeto que irão executar a parceria, inclusive de pessoal próprio da organização da sociedade civil, compreendendo as despesas com pagamentos de impostos, contribuições sociais, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, férias, décimo terceiro salário, salários proporcionais, verbas rescisórias e demais encargos sociais e trabalhistas, durante a vigência da parceria. Qualquer despesa para custeio da parceria, antecipadamente prevista no plano de trabalho do termo de colaboração ou termo de fomento, poderá ser executada com recursos da parceria, inclusive despesas de pessoal, diárias e custos indiretos ligados à execução do objeto. O art. 45 da Lei estabelece algumas vedações: despesas não condizentes com a finalidade da parceria, pagamento de servidores ou empregados públicos. (BRASIL, 2014)

Por meio do acompanhamento das parcerias subjaz a possibilidade de utilização de apoio técnico de terceiros (outros entes públicos, ou entidades próximas ao local onde é executada a parceria), com o intuito de promover um acompanhamento mais eficaz e assertivo quanto aos resultados da parceria. As informações coletadas por meio do monitoramento serão objeto de um relatório para a Comissão de Monitoramento e Avaliação, órgão colegiado, instituído por ato normativo próprio, que tem por atribuição acompanhar a execução das parcerias e analisar os relatórios de monitoramento e avaliação, emitindo parecer sobre ele. A ideia da Lei Federal n° 13.019/2014 é fortalecer o monitoramento para facilitar a confirmação do cumprimento do objeto e do alcance da finalidade da parceria durante a análise da prestação de contas. É proibida a exigência de contrapartida financeira como condição para a celebração, podendo, no entanto, tal contrapartida ser ofertada voluntariamente pela OSC. A contrapartida não financeira (em serviços e bens), quando exigida, deve ser informada no termo de colaboração e fomento, como determina o art. 35, §1° da Lei (BRASIL, 2014).

A Lei traz como algo novo uma prestação de contas com foco em resultados, desburocratizada. A OSC deverá apresentar elementos que possibilitem à Administração Pública avaliar se houve o cumprimento das metas e objetivos, ou seja, o alcance do objeto. Geralmente, solicitar-se-á uma prestação de contas simplificada. Em parcerias em que não seja comprovado o cumprimento de metas e do objeto acordado, solicitar-se-á apresentar documentos complementares de comprovação de despesas. Outra inovação é a previsão de que a prestação de contas efetuar-se-á eletronicamente, o que enseja maior transparência e dinamismo. Vale ressaltar que a Lei abre espaço para que outros entes federados (Municípios, Estados-membros e Distrito Federal) estabeleçam as suas próprias regras. Porém, ela também estabelece a necessidade de capacitação (por meio do fornecimento de manuais, por exemplo) para orientar todos os envolvidos na parceria sobre as regras a serem seguidas (BRASIL, 2014).

A Administração Pública deverá aplicar sanções à OSC quando verificar que a execução do objeto ocorreu de forma estranha ao previsto no plano de trabalho. Somente ministros e secretários estaduais ou municipais podem aplicar as sanções previstas na Lei. Além disso, a Lei Federal n° 13.019/2014, reforça a responsabilidade dos servidores públicos ao alterar a Lei Federal nº 8.429/1992, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa. Incluiu-se como ato de improbidade administrativa: (i) “frustrar a licitude de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos”; (ii) “agir negligentemente na celebração, fiscalização e análise das prestações de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas”; e (iii) “descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas”, entre outros (BRASIL, 2014).

Outro ponto relevante é a previsão de fortalecimento das organizações filantrópicas, ou seja, fortalecimento da própria sociedade civil, já que esta é representada por aquelas. A Lei 13.019/2014, a partir de seu art. 13, prevê tal fortalecimento, divulgando trabalhos bem-sucedidos desenvolvidos por ditas instituições para que sejam modelos para as demais. A lei prevê ainda a possibilidade de criação de conselho nacional e/ou regionais para o fomento, com a finalidade de divulgar boas práticas e de propor e apoiar políticas e ações voltadas ao empoderamento das relações de fomento e de colaboração (BRASIL, 2014).

Resta, portanto, evidente que a Lei 13.019/14, chamada de MROSC, novo marco regulatório das parcerias entre Estado (em todas as suas esferas) e instituições civis da sociedade organizada, ONGs, trouxe maior transparência e segurança jurídica para as instituições privadas. Antes do novo marco, muitas delas eram prejudicadas por serem vulneráveis, sob um ponto de vista político, dependendo da benevolência de agentes políticos. A Lei, por fim, estabeleceu parâmetros claros de responsabilidade para ambos os sujeitos envolvidos na parceria.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A prática ou os procedimentos metodológicos dizem respeito ao conjunto de ações e decisões com relação à eleição das técnicas usadas na pesquisa e na metodologia para a construção de um trabalho científico. É importante fazermos uma diferenciação entre metodologia e procedimentos metodológicos. Metodologia é a ciência que estuda os meios (métodos) da confecção do conhecimento, enquanto que os procedimentos metodológicos são todas as técnicas, opções e escolhas do cientista na aplicação dos métodos de investigação, pois, não há ciência sem o emprego de métodos científicos (LAKATOS e MARCONI, 1986).

Para a confecção deste trabalho, buscamos construir um texto científico que alcançasse os objetivos propostos. Assim, buscou-se identificar: (i) se os objetivos lançados com a reforma do Estado, na década de 90, foram ou estão sendo alcançados; (ii) se as propostas lançadas com a publicização de serviços públicos estão, de fato, sendo aplicadas; e (iii) se o “Empoderamento Social” (desfrute de melhor qualidade de vida proporcionada por meio da internalização de direitos e deveres sociais que conscientizam os cidadãos na execução de ações que cobrem de seus representantes políticos atitudes para esse fim) em grupos de pessoas que se encontrem em situação de vulnerabilidade social, é, de fato, perceptível.

O foco deste artigo, logo, é de cunho qualitativo, haja vista que o bojo do trabalho é um resultado crítico-funcional. Para chegar-se a um panorama avaliativo, revisou-se inicialmente a literatura sobre a origem do tema da publicização de serviços no Brasil, oriundo da reforma do Estado, visando a uma maior participação da sociedade organizada para a superação de nós que dificultavam ou dificultam a presença do Estado em áreas (locus) ainda não alcançadas (BRESSER PEREIRA, 1999). A posteriori, tratou-se também do avanço do cabedal legal que se usou para que a relação do Estado com as Organizações da Sociedade Civil fosse algo possível, transparente, producente e estivesse sob a tutela da Lei, até chegar ao ápice dessa relação com o advento do MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil), lei que trouxe grande avanço para a relação Poder público-OSCs (BRASIL, 2014).

Também analisamos os dispositivos da Lei 13.019/2014, identificando quão frutífera é para a comunidade não apenas a sua aplicação, senão também o efetivo conhecimento da mesma pelos cidadãos, objetivando uma conscientização de que, embora as instituições sejam pessoas jurídicas de direito privado, os serviços que elas prestam são serviços públicos, haja visto que são mantidos com verbas públicas, devendo inclusive ser fiscalizadas por aqueles que usufruem de seus serviços e pelos órgãos de controle.

Buscamos, outrossim, trazer dados concretos e atuais, originados na relação do poder público com as instituições filantrópicas (OSCs), e que dessem um panorama de avanço ou retrocesso dessa relação. Tais dados foram coletados em sítios da Internet de órgãos do Distrito Federal, concentrando a pesquisa nessa unidade da Federação. Elaboramos gráficos com os dados coletados para melhor visualização e compreensão do panorama social de serviços prestados pelas instituições filantrópicas. Esses gráficos mostram o quantitativo de instituições e de pessoas alcançadas diretamente nas regiões administrativas do Distrito Federal. Essas regiões foram classificas levando em consideração o poder aquisitivo de seus habitantes.

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

A chamada “Reforma do Estado”, ou melhor, “Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado”, da década de 90, nos Governos FHC, deu maior ênfase ao processo de publicização dos serviços públicos, com o objetivo de colocar parte da responsabilidade do desenvolvimento da Nação sob a responsabilidade da própria sociedade, por meio das Organizações Sociais Não Governamentais (ONGs), e não mais somente do Governo (BRESSER PEREIRA, 1999).

Ao longo dos anos seguintes, o que se viu foi um aumento vertiginoso dessa corrente iniciada no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Essa linha de pensamento, que já era popular na Europa, defende que não somente o Governo pode ser fomentador de desenvolvimento, concebendo liderando a execução de projetos que possibilitem melhor aproveitamento de recursos públicos, no tocante à qualidade e efetividade de seus resultados, mas também instituições da sociedade civil organizada.

O Governo fez a sua parte, criando soluções e removendo entraves para o acesso às verbas públicas. E, por outro lado, a sociedade civil se organiza e cria ONGs para diversos campos de atuação, sobretudo na saúde (o que já ocorria de forma bastante tímida, com as Santas Casas), na educação (ampliando o trabalho de pouquíssimas e louváveis instituições religiosas) e na cultura.

Não obstante, era preciso construir um caminho dentro da legalidade, para que tudo fosse feito à luz da transparência. Surge, com isso, o Decreto Federal 1.366/95, que instituiu o Programa Comunidade Solidária, seguido do ideário de reforma do Estado (Cadernos do MARE, Cad. 2, 1997). Com o fim de fortalecer a concepção do Decreto 1.366/95, surge a Lei nº 9.790/1999, que dispõe sobre as chamadas OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público). Em seguida, o 3.100/99 altera o decreto anterior, instituindo o Edital de Concurso de Projetos, pelo órgão estatal parceiro, para obtenção de bens e serviços e para a realização de atividades, eventos, consultoria, cooperação técnica e assessoria, como o meio obrigatório para a seleção da OSCIP, com o intuito de firmar termo de parceria. (BRASIL, Decreto nº 3.100/99, Art. 8º, caput).

Mas, o avanço maior se deu com o MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil), regulamentado pelo Decreto 8.726/2016, considerado pelo Governo e pelas OSCs um grande avanço na normalização da relação do Estado com as OSCs, trazendo segurança jurídica para ambos. O número de Termos de Parceria (instrumento usado para legalizar a parceria entre Estado e OSCs) assinados entre Governos, em todas as suas esferas, e OSCs, só vem crescendo ao longo dos anos, demonstrando que a iniciativa do Governo e da sociedade civil organizada foi frutífero, atingindo os seus objetivos.

Não resta dúvida que houve um grande crescimento no empoderamento social, já que o número de cidadãos alcançados com os projetos desenvolvidos pelas OSCs foi muito grande, quando se compara com anos anteriores ao MROSC. O empoderamento social se dá com o desfrute dos projetos sociais aplicados pelas OSCs, custeados com verba pública e fiscalizados não somente pelo Governo, mas também por órgãos de controle, Receita Federal e Ministério Público. Devido à capilaridade das OSCs, distribuídas em áreas mais vulneráveis da Polis, como demonstram os gráficos das figuras 1 e 2, o alcance dos projetos é maior em relação àqueles em condições de vulnerabilidade social.

Outro fator a considerar é o fortalecimento das OSCs que passam a contar com a confiança da sociedade, devido ao trabalho apresentado na própria localidade onde está inserida. Isto faz com que a própria sociedade seja também fomentadora das necessidades da própria instituição, já que o recurso aplicado no projeto deve ser exclusivo para esse fim, não podendo ser usado para a aquisição de bens que, embora necessários para a sobrevivência da própria instituição, não estejam no rol de itens imprescindíveis para a consecução do objeto.

Com a promulgação da Lei 13.019/2014, regulamentada pelo Decreto 8.726/2016, houve um ganho social do ponto de vista do interesse de OSCs em firmar Termo de Parceria com o Estado, pois, agora, há um sentimento de maior perenidade das políticas públicas, com o comprometimento de agentes de Estado e não somente do Governo de plantão.

As ações previstas no texto legal apontam para um empoderamento social, sob um olhar formativo, já que as ações, sejam elas no campo da saúde, da educação, da assistência social ou da cultura, visam à formação do cidadão, levando-o a ter maior percepção de si mesmo e de seus concidadãos, desenvolvendo seu próprio senso crítico que lhe possibilite compreender melhor o seu papel dentro da sociedade.

O conhecimento da Lei também possibilita ao cidadão perceber os seus direitos e deveres. É a compreensão de que, embora haja uma liberação de verba pública, isso não quer dizer que o cidadão deva estar eternamente agradecido e submetido ao governante. A verba é liberada porque é verba pública, e desde a origem está destinada a ser empregada no serviço que atenda a comunidade, não devendo gerar nenhum sentimento de dívida política a ser paga, senão a gratidão do senso-comum para aqueles que, no estrito cumprimento de suas obrigações, contribuíram republicanamente para a realização do bem comum.

Notou-se, por fim, que, na maioria esmagadora dos casos, as OSCs estão localizadas em áreas urbanas, levando atendimento aos cidadãos dessas áreas, majoritariamente. Há que se fomentar o surgimento de OSCs também em áreas periféricas e rurais, para que se leve ao homem do campo e da periferia dignidade, conhecimento e esclarecimento, por meio de projetos, como se faz em áreas urbanas.

A evolução natural e contemporânea do que foi a Reforma do Estado, dos anos 90, como está demonstrado na Figura 2, seria que o atual MROSC atingisse prioritariamente o cidadão da periferia e do campo, áreas de maiores vulnerabilidades sociais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se dizer que a parceria entre Instituições da Sociedade Organizada (OSCs) e a Administração Pública, felizmente, é um caminho sem volta. O MROSC permite que a sociedade civil auxilie o Estado na administração de projetos importantes para a comunidade, em suas mais diversas áreas, como saúde, educação, assistência social e cultura. As experiências adquiridas até aqui nos mostram que houve um ganho satisfatório com a participação direta dessas instituições na concepção e consecução de políticas públicas.

Este artigo se restringiu a analisar dados coletados sob a realidade do Distrito Federal, apenas uma unidade da Federação. Nossa análise concluiu que a sociedade brasileira se tornou mais empoderada ao longo dos últimos 30 anos. O crescimento do número de instituições filantrópicas cresceu exponencialmente nos últimos anos. A própria sociedade compreendeu que é possível complementar as ações governamentais, usando a própria estrutura da sociedade, para desenvolver projetos dentro das comunidades necessitadas.

É a própria sociedade que melhor conhece as suas necessidades e, assim, está mais preparada para apontar a direção do gasto público. Foi com tal espírito que o país deu início às iniciativas de empoderamento do terceiro setor nos anos 90 e que, mais recentemente, foi ampliado pelo MROSC.

O desafio atual, contudo, é ampliar e aprofundar as parcerias dentro do novo marco regulatório para que atinjam prioritariamente comunidades mais vulneráveis socialmente, especialmente aquelas inseridas na periferia de grandes centros urbanos, bem como na área rural.

REFERÊNCIAS

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BRASIL, Lei 13094 de 31 de julho de 2014, Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999. (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015) . D.O.U. Brasília, DF, 13 de janeiro de 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13094.htm. Acessado em 12 de maio de 2023.

BRASIL, Decreto Federal 8.726 de 27 de abril de 2016. Regulamenta a Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, para dispor sobre regras e procedimentos do regime jurídico das parcerias celebradas entre a administração pública federal e as organizações da sociedade civil. D.O.U. Brasília, DF, 28 de abril de 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/d8726.htm. Acessado em 12 de maio de 2023.

BRASIL, Decreto Federal 1.366/95. Dispõe sobre o Programa Comunidade Solidária e dá outras providências; D.O.U. Brasília, DF, 13 de janeiro de 1995 e retificado em 18 de janeiro de 1995. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1995/d1366.htm. Acessado em 12 de maio de 2023.

BRASIL, Decreto nº 3.100 de 30 de junho de 1999. Regulamenta a Lei nº 9.790/99, que dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse público, institui e disci´plina o Termo de Parceria, e dá outras providências; D.O.U. Brasília, DF, 13 de julho de 1999. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3100.htm. Acessado em 12 de maio de 2023

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VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro setor e as parcerias coma administração pública: uma análise crítica. Belo Horizonte: Fórum,2006.


ANEXO

Figura 1. ONGs existentes em cada uma das regiões administrativas

  OSCS POR REGIÃO ADMINISTRATIVA  
BEASLÂNDIAJI Menino Jesus
    CEILÂNDIACentro Social Luterano Cantinho do Girassol
Escola Centro Comunitário da Criança
Instituto Frederico Ozanam
      GAMACentro de Convivência e Educação Infantil Maria Mãe da Providência
Centro de Convivência e Educação Infantil Nossa Senhora do Carmo
Centro de Convivência e Educação Infantil Sagrada Família
Centro de Convivência Educacional Infantil Divino Espírito Santo
    GUARÁCreche Comunitária da QE 38
Creche Sorriso de Maria
Creche Tia Joana do Lúcio Costa
    NÚCLEO BANDEIRANTECentro de Educação Infantil e Assistência Social Leo Tigre Peter
Creche Cantinho de Você
Lar Educandário Nossa Senhora Mont Serrat
    PARANOÁCentro de Educação São Filippo Smaldone – CEFIS
Escola Profa. Maria America Guimarães
Instituto Educacional São Judas Tadeu
    PLANALTINACreche Irmã Dulce
Creche Magia dos Sonhos
Instituto São Vicente de Paulo
              PLANO PILOTOAção Social Paula Frassinetti
Associação de Mães Pais Amigos Reabilitadores de Excep – AMPARE
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE-DF
Associação Pestalozzi de Brasília
Casa da Criança Pão de Santo Antônio
Casa do Pequeno Polegar
Centro Educacional da Audição e Linguagem Ludovico Pavoni – CEAL
Centro Social Comunitário Tia Angelina
Creche Cruz de Malta São João Batista de Jerusalém
Creche Pioneira da Vila Planalto
Creche São Vicente de Paulo
Escola Infantil Casa de Ismael
Escola Infantil Cícero Pereira
JI Casa do Candango
  RECANTO DAS EMASAssociação Beneficente Coração de Cristo
Pró-Vida Centro de Educação Infantil
  RIACHO FUNDO IInstituto de Educação Haidee Neves – IEHN
Instituto de Educação Luiz Hermani
RIACHO FUNDO IIInstituto Nair Valadares – INAV
            SAMAMBAIACentro de Educação Infantil AFMA
Centro Integrado de Educação Infantil Nossa Senhora Mãe dos Homens
Creche Lar de Maria
Creche Maria de Nazaré
Creche Pastor Francisco Miranda
Educandário Espírita Sementinha de Luz
Instituição Educacional Santa Luzia
SÃO SEBASTIÃOInstituto Educacional Dom Leolino e Irmã Cecília Luvizotto
SOBRADINHOInstituto Educacional Pintando o Sete
        TAGUATINGAAssociação de Pais e Amigos Excepcionais e Deficientes – APAED
Casa do Caminho
Centro de Educação Infantil Sonho de Criança – CEISC
Creche Cantinho da Paz
Escola Flor de Lis

Dados coletados no sítio: https://www.educacao.df.gov.br/creches-df/. Acesso em 06/09/2023.


[1] A publicização de atividades é uma forma de descentralização por meio da qual atividades executivas desenvolvidas pela administração direta ou por autarquias tem sua execução repassada para entidades privadas sem fins lucrativos conhecidas como organizações sociais. A publicização de atividade demanda estudos que comprovem ser vantajosa, em sentido amplo, a transferência da execução da atividade por organização social. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/transformagov/catalogodesolucoes/publicizacao-de-atividades. Acesso em: 18/01/2024.


VALDEBERTO PEREIRA DE SOUZA. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos (UNICEPLAC). Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: valdebertop@gmail.com.

FERNANDO DE MAGALHÃES FURLAN. Professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos (UNICEPLAC). Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). E-mail: fernando.furlan@uniceplac.edu.br.

A inteligência artificial e os impactos no Judiciário brasileiro

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

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Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

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Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutoranda em direito pelo IDP/DF e mestre em direito pela UNB

Ficha catalográfica

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A inteligência artificial e os impactos no Judiciário brasileiro

Pedro Gabriel dos Santos Aquino & Fernando de Magalhães Furlan

Resumo

O presente artigo objetivou compreender os desafios enfrentados pelo Judiciário brasileiro no que tange à implementação da inteligência artificial nas tomadas de decisões. Também buscou identificar experiências de tribunais, órgãos públicos e magistrados, para, a partir delas, discutir como minimizar a não aceitação da tecnologia, baseada na inovação e nos desafios que pretende enfrentar. Foi utilizado o método de pesquisa bibliográfica e estudos diretos sobre o tema. A partir das pesquisas, foi observado quais as principais barreiras enfrentadas pelos magistrados para adesão à inteligência artificial. Inicialmente, foi constatado que a baixa oferta de treinamento é um fator relevante, uma vez que, para se utilizar tecnologia tão inovadora, devem os magistrados saber exatamente quais pontos deverão merecer maior atenção. Atualmente já há projetos de lei no Congresso Nacional que trazem uma delimitação sobre o uso da inteligência artificial dentro nos tribunais brasileiros. Todavia, para que todos os tribunais comecem a implementar a IA, deve-se voltar atenção maior para a sua regulamentação.

Palavras-chave: 1° inteligência artificial; 2° aplicação no Judiciário; 3° regulamentação; 4º desafios.

Abstract

The present work aimed to understand the challenges faced by the Brazilian judiciary regarding the implementation of artificial intelligence in decision-making, as well as to identify the experiences of public bodies and magistrates, to be able to discuss how to make this non-acceptance based on the challenges minimized. For this, the method of bibliographical research and direct studies on the subject were used. From the research it was observed which the main barriers faced by the magistrates for the adhesion of artificial intelligence are. Initially, it was verified that the low supply of training is a relevant factor, since the use of such an innovative technology would require magistrates to know in advance the points they should pay attention to. In addition to the lack of implementation of a law that deals directly with the subject presented, it is known that currently there are bills in the National Congress which aim at a delimitation on the use of artificial intelligence within the Brazilian courts.

Keywords: 1º artificial intelligence; 2º application in the Judiciary; 3º regulation; 4º challenges.

Sumário

1.       INTRODUÇÃO

2.       INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO

2.1.    Sistemas que agem de maneira racional

3.       CONCEITOS OPERACIONAIS

3.1.    Machine learning

3.2.    Deep learning

3.3.    Big data

4.       O USO DA INTELIGENCIA ARTIFICIAL NO JUDICIÁRIO

4.1.    Hórus – Tribunal de Justiça do Distrito Federal

4.2.    Victor- Supremo Tribunal Federal

5.       ATUAL REALIDADE NA TOMADA DE DECISÕES E OS LIMITES JUDICIAIS DE ACORDO COM O PROJETO DE LEI Nº 5.501/2019

6.       CONCLUSÃO

Introdução

O presente artigo tem por objetivo tratar da aplicação da inteligência artificial às decisões judiciais, pois é inegável a evolução da tecnologia dentro das diversas áreas do conhecimento, inclusive na área do direito. É preciso, contudo, refletir sobre a evolução tecnológica e a eventual possibilidade de causar prejuízos. Quando falamos de tutela de bens jurídicos e possíveis desdobramentos que isso pode causar na vida das pessoas, o Poder Judiciário tem a missão de dirimir conflitos e trazer a pacificação social.

Desta forma, a adoção da inteligência artificial pelo Judiciário serve para auxiliar na celeridade e qualidade, objetivando contribuir com o trabalho dos juízes e dos servidores dos tribunais. Para que essa evolução seja bem aceita pelos magistrados e serventuários, deve-se, em primeiro lugar, verificar como o uso da inteligência artificial poderá auxiliá-los, seja para mapear processos em repetição ou proferir decisões, com o auxílio físico do juiz.

A inteligência artificial é uma maneira de reprodução, por meios tecnológicos, dos pensamentos e ações que poderiam ser tomados ou pensados no dia-dia. O Judiciário atualmente tem notado a relevância da tecnologia, de forma geral, para uma abordagem específica, observando, de maneira enfática, a contextualização social e cultural da sociedade. Reparemos que máquinas programadas para tarefas racionais podem oferecer perspicácia em várias facetas da experiência humana, ao passo que os seres humanos empregam a tecnologia para ajustar e aprimorar o seu desempenho.

A inserção da inteligência artificial (IA) nas dinâmicas processuais judiciais traz um alívio, mesmo que ainda não evidenciado, em face de processos novos, pois muitos são os avanços em que a autonomia da inteligência artificial poderá proporcionar aos tribunais. Assim, é crucial que os tribunais realizem uma reestruturação, simplificando procedimentos e assegurando que, ao avaliar o mérito de cada caso, possam atender eficazmente às necessidades da sociedade, sem comprometer os princípios legais fundamentais estabelecidos. Ou seja, entregar Justiça com qualidade e em tempo razoável.

Inicialmente, examinaremos e conheceremos sobre a inteligência artificial e seu progresso tecnológico, no contexto da incorporação dos sistemas aos tribunais brasileiros. Especialmente quando se discute a viabilidade de um “juiz-robô”, na perspectiva jurídica de poder e ter a capacidade jurídica e ética para tomar, de forma autônoma, uma decisão. A inteligência artificial, no âmbito jurídico, é percebida como uma ferramenta criada pela humanidade para auxiliar os tribunais na sua adaptação às crescentes exigências da sociedade contemporânea.

No terceiro capítulo, iniciaremos nossa análise explorando os conceitos da inteligência artificial. Posteriormente, abordaremos os conceitos de machine learning, big data e deep learning, com um enfoque mais específico nas distintas facetas tecnológicas que compõem a inteligência artificial. Consideraremos como a crescente busca por avanços tecnológicos trouxe, ao campo jurídico, a adoção de sistemas que refletem a perspectiva dos profissionais do direito em direção a um contínuo esforço de progresso e melhoria no sistema de Justiça.

Em seguida, no quarto capítulo, abordaremos o uso e os impactos da inteligência artificial no Poder Judiciário, com base nos princípios e no direito. Nosso objetivo é compreender os benefícios que acompanham a aplicação da inteligência artificial, examinando as crescentes expectativas da sociedade em relação ao Judiciário, desde o momento da entrada de um pedido, até a prolação de uma decisão final. Para ilustrar, consideraremos dois projetos, já em uso no Brasil, como exemplos: o sistema “Hórus”, adotado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, e o sistema “Victor”, atualmente em uso e atualização pelo Supremo Tribunal Federal. Esses sistemas foram projetados para processar informações em larga escala de maneira significativamente mais rápida do que os seres humanos.

No quinto e último capítulo, o tema central de discussão se concentra na necessidade de analisar cada caso de forma individualizada. Partimos do pressuposto de que a maioria da população brasileira vê o Poder Judiciário como a única instância para a resolução de conflitos, o que, por sua vez, leva a uma sobrecarga do sistema, potencialmente resultando em dificuldades na prestação eficaz de serviços jurisdicionais. Além disso, abordaremos proposições legislativas que destacam a importância da proteção da privacidade, dos dados pessoais, da transparência e da supervisão humana na operação de sistemas de inteligência artificial. A ênfase será sempre na busca pela qualidade e eficiência dos serviços oferecidos à sociedade.

O desenvolvimento deste artigo seguirá uma abordagem metodológica, baseada em pesquisa bibliográfica-documental, como procedimento técnico. O método de abordagem empregado será o dedutivo, e a análise adotada terá uma natureza predominantemente qualitativa. Para obter uma compreensão abrangente do cenário social atual, relacionado à adoção de novas tecnologias, recorreremos a uma variedade de fontes, incluindo livros, estudos acadêmicos, recursos online, artigos científicos, periódicos, monografias e textos legislativos.

2. Inteligência artificial e desenvolvimento tecnológico

A inteligência artificial é uma forma de reprodução do pensamento e ações humanas, realizada por sistemas e máquinas, a partir de robôs, com a capacidade de realizar tarefas que vão além do simples raciocínio lógico e respostas rápidas que, na maioria as vezes, exigem de interferência humana. Atualmente, um robô ou sistema com inteligência artificial, tem, na maioria das vezes, a plena capacidade de raciocinar de maneira autônoma. Quando falamos da inserção da inteligência artificial no direito brasileiro, devemos ir muito além de pensar somente em sistema, mas devemos considerar, também, a agilidade na prestação jurisdicional e a contextualização social e cultural, pois são importantes e fundamentais para o direito. (NICOLA, 2021)

Por meio da inserção da (IoT) Internet of Things, popularmente conhecida como “Internet das coisas”, a capacidade de conectividade, como, por exemplo, na casa inteligente, da inteligência artificial traz consigo centenas de possibilidades a partir de conectividades parecidas com essa para o meio jurídico. (NICOLA, 2021)

O aprendizado rápido e assertivo faze parte de um conjunto de algoritmos sofisticados, que estimulam o aprendizado por meio de processamento, análise e pesquisa de dados, além da coleta de informações. Dessa maneira, o sistema pode simular o raciocínio de um profissional do Direito. Atualmente, esses softwares vêm sendo usados de maneira difundida nos escritórios de advocacia, mas também nos tribunais, uma vez, que são utilizados como um suporte, o que traz uma organização e agilidade maior ao trabalho. Para que um sistema de software se torne uma solução de inteligência artificial é necessário, de forma genérica, que deixe de, simplesmente, auxiliar e passe a exercer atividade direcionada à decisão, atuando como assistente virtual dos profissionais e tribunais.

Existem dois tipos de inteligência artificial, que se relacionam bem com o mundo jurídico: (i) a inteligência artificial forte, ramificação da inteligência artificial em que o sistema tem uma maior assertividade de raciocínio lógico, uma autoconsciência que emula o raciocínio lógico com perfeição; e (ii), a inteligência artificial fraca, que não tem a capacidade de imitar o raciocínio humano, pode também auxiliar de maneira assertiva, tratar um grande volume de dados, elaborar relatórios, porém, sem a capacidade da consciência humana. Nesse caso, as máquinas utilizam softwares e algoritmos criados para finalidades específicas, como simular uma conversa humana, por exemplo, o ChatGPT[1].

As mudanças que a tecnologia trouxe na última década foram de grande importância para o desenvolvimento mundial. O aperfeiçoamento da inteligência artificial (IA) e de muitas outras manifestações digitais trouxeram novos desafios inimagináveis para a humanidade, sobretudo, ao mundo jurídico, uma seara com poucas inovações até recentemente. Esse incessante avanço científico e tecnológico tem contribuído de maneira altamente positiva em várias disciplinas do conhecimento humano. À medida que nos deparamos com um vasto leque de possibilidades, vários especialistas e pesquisadores propõem a perspectiva de um futuro iminente, onde a inteligência artificial possa vir a suplantar ocupações atualmente conduzidas por seres humanos. (BUBNOFF; SERRANO, 2023).

Nesse sentido, a Doogue O´Brien George[2], uma firma de advocacia da Austrália, lançou um serviço de consultas online, uma espécie de advogado robô, que proporciona às pessoas a oportunidade de se prepararem para comparecer a um tribunal e defender os seus interesses, por meio da defesa adequada, sem a presença de um advogado, por meio de um texto escrito com base em informações inseridas no seu banco de dados. Hoje em dia, a inserção da IA dentro do Judiciário está também presente no exterior. Um sistema chamado Smartsettle[3] tem ajudado a resolver conflitos judiciais no Reino Unido. O algoritmo junta as prioridades das partes e ajuda-as a escolher as melhores formas para a resolução do conflito, assim chegando a um ótimo acordo (BUBNOFF; SERRANO, 2023).

Por esse motivo, a inteligência artificial traz consigo a capacidade de receber, processar e a autonomia de autoaprendizagem.

Com base em algoritmos de IA, é possível oferecer recomendações personalizadas para os usuários, seja em sítios de compras, plataformas de streaming ou aplicativos de música. Essas recomendações economizam tempo ao apresentar opções relevantes e interessantes, de forma automática, sem que os usuários precisem procurá-las. A IA também pode ser aplicada para prever falhas e realizar manutenção preditiva em equipamentos e máquinas. Isso ajuda a evitar paradas não intuitivas e reduzir o tempo de inatividade, otimizando o uso dos recursos disponíveis.

As aplicações da tecnologia são diversas e, no conjunto, contribuem para inaugurar uma nova fase no desenvolvimento material humano. Isso abrange a redefinição das dinâmicas comerciais, industriais e laborais, bem como das modalidades de interação social. Nesse contexto, emergem duas vertentes no uso da tecnologia, uma que reafirma nossa humanidade e outra que suscita questionamentos sobre ela. Quando a intensa disseminação dos meios digitais começa a tensionar os direitos individuais como, imagem, privacidade, vida pessoal, dados sensíveis, informações e transações que circulam nas redes sociais a um ritmo veloz, incessante, atemporal e em grande escala – é crucial estabelecer limites para coibir opressão, injustiças, intolerâncias, violência, humilhação, perversidades, variadas formas de subordinação e manifestações de desrespeito. (SARLET, 2022, p.16)

Ao utilizar máquinas como meio de facilitação, substituindo o ser humano em algumas tarefas, isso pode gerar a perda de empregos. Contudo, Russel (2013. p 1188) afirma que alguém poderia argumentar que milhares de trabalhadores foram demitidos por esses programas de IA, mas, de fato, se não houvesse os programas de IA, esses trabalhos não existiriam porque o trabalho humano adicionaria um custo inaceitável às transações. Até agora, a automação por meio da tecnologia de IA, criou mais empregos do que eliminou, e criou empregos mais interessantes e com remuneração mais elevada.

No entanto, é importante mencionar que a IA também apresenta desafios e considerações éticas, como a privacidade dos dados, o viés algorítmico e o impacto no mercado de trabalho. É necessário um desenvolvimento contínuo e uma regulamentação adequada para garantir que a IA seja usada de forma responsável e saudável à sociedade. Contudo, mesmo que a IA já esteja inserida na prestação de serviços, tanto na esfera pública, quanto na privada, percebe-se que ainda há certa resistência no Poder Judiciário, especialmente pelos mais tradicionalistas. Por mais que a IA esteja sendo utilizada em alguns tribunais e escritórios do país, ainda está distante de ser reconhecida como algo essencial.


Gráfico 1. Casos novos, por ramo da Justiça

Fonte: Retirado do site justiça em números CNJ

Gráfico 2. Casos pendentes, por ramo da Justiça

Fonte: Retirado do site justiça em números CNJ

Todavia, quando consideramos o relatório do CNJ (2019), percebemos a essencialidade da tecnologia na prestação jurisdicional, tendo em vista que, durante o biênio 2019-2020, o Poder Judiciário brasileiro acumulou 77,1 milhões de processos em tramitação. As figuras 2 e 3 mostram, em gráfico, esse acúmulo.

2.1. Sistemas que agem de maneira racional

Os testes de Turing[4] são altamente debatidos entre os cientistas da computação, em parte por causa da ambiguidade das regras e dos designs variados dos testes. Por exemplo, alguns testes foram criticados por usar interrogadores “não sofisticados”, enquanto outros testes usaram interrogadores que não tinham consciência da possibilidade de estarem conversando com um computador. Vencedores oficiais ou não, alguns computadores recentes nas competições de Turing são bastante convincentes.  Em 2014, por exemplo, um algoritmo de computador convenceu, com sucesso, um terço dos juízes da Royal Society, do Reino Unido, de que também era humano. (VESELOV, 2014)

A inteligência artificial, como vimos, pode ser usada em várias aplicações. Com isso, a IA pode também ser usada para a revisão de contratos, procedimento historicamente lento, e que revela seu imenso potencial para a automatização. Diversas startups, incluindo Lawgeex, Klarity e Clearlaw, estão desenvolvendo sistemas de inteligência artificial capazes de assimilar contratos propostos de forma automática. (CONTE, 2023)

Adicionalmente, essas plataformas têm a capacidade de analisar os contratos de maneira minuciosa, utilizando tecnologias de processamento de linguagem natural (PLN)[5], e de determinar as cláusulas viáveis de um contrato e quais podem apresentar desafios. Desse modo, a complexidade das obrigações empresariais, diante dos seus públicos interessados, pode ser simplificada. Nesse cenário, a Kira Systems[6] se destaca como um exemplo de empresa que desenvolve essa categoria de plataforma. (CONTE, 2023)

O Ministro Victor Nunes Leal foi membro ativo do Supremo Tribunal Federal (STF) durante 9 anos, de 1960-1969, e teve grande impacto no que diz respeito a novas ideias e grande mudanças. O Ministro Victor foi um dos grandes influenciadores do sistema de jurisprudência dos tribunais, por meio de súmulas. Justamente por esse motivo, hoje, o projeto de Inteligência Artificial do STF carrega o seu nome, como justa homenagem à visão dele.

O Sistema Victor, de inteligência artificial aplicada, é um robô, em fase inicial, que foi alimentado com todas as decisões já proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Essa base de dados permite que o sistema auxilie, de maneira prática e eficaz, os magistrados e servidores do tribunal. A expectativa inicial é que essa tecnologia possa agilizar o trâmite processual, otimizar o tempo necessário para análise e reduzir erros, substituindo o processo manual por um mais automatizado.

Enquanto, anteriormente, uma análise puramente manual de um determinado recurso demorava cerca de 44 minutos, o sistema VICTOR é capaz de realizar a mesma tarefa em apenas 5 segundos. Isso indica uma redução significativa do tempo necessário para a realização dessa etapa do processo, o que pode contribuir para uma maior celeridade processual. O Sistema Victor é voltado para a análise de admissibilidade recursal e de repercussão geral. 

O Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou, em 2023, os testes de mais uma IA que irá auxiliar no tribunal. Batizada de VitórIA, o sistema visa a ampliar o conhecimento jurídico e fazer uma espécie de triagem de temas repetidos ou similares. A ferramenta fará essa identificação por meio do acervo de processos do próprio tribunal, fazendo, ainda, com que processos de mesmo conjunto possam resultar em uma resolução de repercussão geral. (BRASIL, 2023).

Para o SFT, a utilização de IA é essencial, afirma Rodrigo Canalli, assessor-chefe da Assessoria de Inteligência Artificial (AIA): “é um projeto voltado para ampliar a capacidade de análise de processos, propiciar julgamentos com maior segurança jurídica, rapidez e consistência, evitando, por exemplo, que processos similares tenham tratamento diferente”.

Os bots[7] podem provar ser altamente eficazes em oferecer ajuda legal às massas. A utilização de bots pode se revelar extremamente eficaz ao oferecer assistência jurídica e proporcionar amplo acesso aos serviços legais à população em geral. Um bot de advogado, por exemplo, é, essencialmente, um software que possui a capacidade de desempenhar tarefas automatizadas, normalmente executadas diretamente por um profissional.

Dentre os exemplos mais destacados de bots jurídicos, destaca-se o aplicativo DoNotPay, considerado o pioneiro como advogado virtual; assim como o assistente júnior de escritório, BillyBot. Este último auxilia indivíduos a obter orçamentos para serviços de mediação jurídica. (CONTE, 2023).

E não somente o STF está usando a IA para aprimoramento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, também implementou um sistema de inteligência artificial (IA) chamado Sócrates, que tem como objetivo reduzir o tempo da tramitação processual em cerca de 25%, desde o momento da distribuição até a primeira decisão em recurso especial. Hoje, cada tribunal está trabalhando de forma autônoma, no que diz respeito à inteligência artificial. O próprio sistema do Processo Judicial Eletrônico (PJe) não tem uma padronização entre os tribunais dos estados. (CNJ, 2019).

Hoje, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) lidera o ranking de tribunais, com sistema de inteligência artificial já em funcionamento (CNJ, 2020). Atualmente, o TJDFT conta com quatro projetos, já desenvolvidos e em uso, e mais dois projetos em fase final de testes, sendo eles:

  • Amon – basicamente um sistema de reconhecimento facial, a partir de imagens. Foi desenvolvido com o objetivo de supervisionar a administração unificada do acesso às instalações do tribunal. Desde junho de 2020, esse sistema tem capacidade para verificar a identidade de cada indivíduo, por meio de reconhecimento facial, o que resulta em um aprimorado controle de ingresso no Tribunal. Como resultado, o TJDFT consegue fortalecer a segurança para juízes, funcionários e todas as pessoas que entram nos edifícios da instituição;
  • Artiu – sistema para agilização do envio de mandados à Coordenadoria de Administração de Mandados (COAMA), que necessita do CEP do destinatário para a distribuição e o cumprimento apropriados. Caso essa informação não esteja disponível, devido a dados ausentes ou inconsistências, a inteligência artificial (IA) procura determinar o setor de destino do mandado e, de forma automatizada, realiza os ajustes necessários no endereço. (TJDFT, 2021);
  • Hórus – projeto que conta com aplicação da tecnologia de um sistema vinculado à inteligência artificial e tem se revelado valioso no âmbito judicial, presente também no TJDFT. Essa IA tem sido empregada, com êxito, para agilizar o andamento e a prestação de Justiça. Tanto as Varas de Execuções Fiscais (VEF), quanto os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), têm aproveitado plenamente essa inovação em suas tomadas de decisão. Na VEF, o projeto Hórus foi implantado e trouxe uma notável agilidade na administração de processos já digitalizados. Ele integrou, de maneira eficaz, a digitalização de processos físicos ao PJe e possibilitou movimentações processuais no sistema judicial legado, o SISTJ.

Simultaneamente, o sistema empregado pelos CEJUSCs já possuía a capacidade de importar processos automaticamente. A implementação do projeto no VEF elevou essa capacidade, permitindo que os CEJUSCs classificassem novos procedimentos, por meio de IA avançada, que, por sua vez, enriquecem o aprendizado das máquinas. (DISTRITO FEDERAL, 2019)

O programa “Natureza Conciliação” atende às demandas dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, os CEJUSCs. O sistema de conciliação que esses centros usavam anteriormente, já tinha a capacidade de importar automaticamente processos do PJe, reduzindo-os a termos. Após a conclusão daquele projeto, o sistema agora possui a capacidade de avaliar procedimentos usando o processo de aprendizado da máquina (machine learning).

Cada processo importado cria um procedimento que resulta em uma ou mais sessões de conciliação. Após a sua criação, cada um desses processos deve passar por uma avaliação para obter as informações possíveis para conduzir a sessão. O próprio sistema automatizou essa etapa, que busca eliminar as tarefas repetitivas. (DISTRITO FEDERAL, 2021).

  • Toth – é um sistema em projeto que visa a definir a classe e a(s) matéria(s) do processo, durante o fluxo de peticionamento. Baseia-se no treinamento de algoritmos. Como se trata de um sistema em fase inicial, os testes, quando possíveis, serão realizados na 1º Vara Cível, de Família e de Órfãos e Sucessões de Santa Maria-DF. São projetos que visam a ajudar o Poder Judiciário do DF e Territórios e, além disso, trazem agilidade e mais assertividade na tomada de decisões. Aliás, o TJDFT está com mais um projeto em desenvolvimento, visando auxiliar os processos de execução fiscal.

Segundo (Rodas, 2022), o desenvolvimento e evolução rápida da Internet e dos sistemas de comunicação levou à criação desse novo formato de interação. Uma vez que os sistemas agora são criados com a finalidade de promover a automatização e os serviços jurídicos, sem a necessária atuação de um advogado, nem todos tem aceitado bem essa nova tendência.

3. Conceitos operacionais

A inteligência artificial implica uma importante e significativa mudança de paradigmas na sociedade contemporânea, um avanço para facilitar as atividades cotidianas. Estamos passando por uma evolução nunca imaginada, principalmente em relação à quantidade de informação recebida e processada ao longo do dia por vários canais, e a responsabilidade no seu tratamento e aplicação.

É perceptível que as tecnologias que vêm sendo criadas atualmente são no sentido de prestar maior e melhor assistência ao ser humano, como, por exemplo, a aplicação nas diversas áreas da ciência e da medicina. Porém, o fascínio tem sido estudar e entender a capacidade da Inteligência Artificial. Após diversas pesquisas, foi possível identificar que uma certa porcentagem da programação é capaz de, compreender, prever, além de perceber situações e manipular ações que sejam até maiores que a sua própria capacidade. Essas percepções são possíveis por conta da capacidade interlocutória que a Inteligência Artificial adquire (RUSSELL; NORVIG, 2013).

De acordo com Russell e Norvig (2013), a inteligência artificial e a computação estão familiarizadas devido à capacidade de processamento e pela conexão da tecnologia presente em ambos. Para Farias e Medeiros (2013), o surgimento do computador integrador, durante as décadas de 1940 e 1950, foi o ponta pé inicial para toda uma geração de computadores e, assim, abrisse as portas para a formalização do conceito conjunto entre algoritmo e computação. 

Outro momento importante na evolução da inteligência artificial foi o final do século XX, quando surgiram novas tecnologias, novos programas inteligentes e máquinas que mostravam ter uma grande capacidade para processar. O objetivo principal dessas máquinas era concorrer, de maneira igualitária, com a capacidade humana. Muitas vezes as máquinas não só conseguiram atingir a meta esperada, como superaram e ultrapassaram os limites estipulados. Certa vez, um computador e um software, criados pela IBM, surpreenderam pela velocidade em realizar cálculos muito complexos. A sensação, para quem estivesse assistindo, era a de que o computador estava, efetivamente, raciocinando (TEXEIRA, 2013).

A inteligência Artificial, além de todas as suas possíveis evoluções, em vários aspectos, busca, de maneira prioritária e essencial, se equiparar à forma de pensar do ser humano. Contudo, na verdade, a IA vem, desde meados dos anos 2000, se mostrando superior ao humano. Segundo Winston (1993), a área de atuação da Inteligência Artificial, vai além da produção de um equipamento ou mesmo de um estudo. Apoiado nesse ponto de vista, um estudo realizado desenvolveu diversas técnicas e ideias, dentre elas a ciência cognitiva, que busca a hipótese de total compreensão, dentro do seu espaço e construção no tempo.

De acordo com Russell; Norvig (2013), a inteligência artificial é uma área amplamente ativa e presente em diversas disciplinas científicas e na educação, tornando desafiador estabelecer uma definição precisa, sendo, em certa medida, uma disciplina empírica. Da mesma forma, Pacheco (2019) concorda que a inteligência artificial está intimamente ligada à engenharia de criação de máquinas inteligentes, com foco principal em programas de computador, destacando que não existe uma definição definitiva para essa área. Assim, é inegável que a base fundamental da inteligência artificial reside na busca pela racionalidade humana e na tentativa de aproximá-la ou até mesmo superá-la.

Dessa forma, a inteligência artificial deixou de analisar pequenas coisas, como linhas e números, e começou a analisar grandes coisas, com maior volume de dados, o chamado big data, de forma simultânea, com dados de diferentes tipos e possibilidades, alterando também a forma de coleta e qualidade.

3.1. Machine learning

Para melhor ilustrar, as áreas de aplicação da Inteligência Artificial dividem-se em três: Machine Learning, Deep Learning e Natural Learning Processing (TACCA; ROCHA, 2018).

O aprendizado de máquina, conhecido por Machine Learning, é uma parte de estudo da Inteligência Artificial, que explora os estudos existentes e a construção de algoritmos computacionais, partindo do aprendizado de dados presentes. A principal finalidade de um sistema de Machine Learning é construir um sistema de computador que tenha um banco de dados já pré-instalado, e que, ao final, gere um modelo de predição, classificação ou detecção, buscando um padrão de vários conjuntos variáveis, com o escopo de prever implicações específicas (ARAÚJO, et al., 2023).

A constante busca por praticidade, otimização e celeridade na resolução de problemas jurídicos resultou na utilização exacerbada do Machine Learning, despertando nos operadores do direito uma necessidade de evoluir. Assim, com o passar do tempo foram desenvolvidas diversas ferramentas com o intuito de economizar tempo, minimizar falhas e auxiliar na tomada de decisões.

Diante disso, softwares vêm sendo desenvolvidos todos os dias. A jurimetria é um exemplo de um software criado com a finalidade de aplicar o direito, por meio de uma análise simples e direta. Os posicionamentos e reiterações que ocorrem no âmbito do Direito visam a conferir efetividade às normas e instituições (MARINHO, et al. 2022. p.11-16).

A jurimetria está se tornando parte integral da prática jurídica cotidiana, à medida que a forma de oferecer e consumir serviços legais passa por transformações significativas. A revolução da ciência de dados e da inteligência artificial, que já revolucionou outros setores nas últimas décadas, chegou inevitavelmente ao campo jurídico. Essa transformação afetará diversos aspectos da profissão jurídica, sendo uma das mudanças mais marcantes a integração da jurimetria com a necessidade dos clientes de ter uma ferramenta habitual para análises, estudos e tomada de decisões. A Tikal Tech, uma startup de tecnologia com sede em São Paulo, está dedicada ao desenvolvimento de soluções inovadoras para o setor jurídico. Eles introduziram a LegalNote, uma ferramenta que faz uso de robôs para rastrear a internet em busca de qualquer alteração ou tramitação dos processos cadastrados por advogados. Após coletar os dados do processo, os robôs passam por um processo de aprendizado de máquina para ler, classificar e identificar as informações pertinentes ao advogado (MARINHO et al. 2022. p.11-16).

É importante destacar que os chatbots não estão destinados a substituir o atendimento humano, ou seja, não são “robôs-advogados” que representem uma ameaça às profissões jurídicas no Brasil. Na verdade, os chatbots inteligentes estão projetados para auxiliar os profissionais, permitindo-lhes concentrar-se em oferecer um atendimento mais eficaz e liberando-os de tarefas repetitivas. Isso proporciona mais tempo para lidar com questões que exigem uma análise mais aprofundada e abrangente. Consequentemente, à medida que o software é utilizado, ele aprende e se torna cada vez mais inteligente e preciso na interação entre o sistema judiciário e a sociedade.

É relevante mencionar que o cientista britânico Stephen Hawking expressou preocupações sobre o potencial risco de a inteligência artificial em robôs representar uma ameaça à humanidade, podendo levar ao fim da raça humana, caso a IA alcance seu pleno desenvolvimento. Em uma conferência realizada em 2015, aquele físico teórico afirmou que “os computadores superarão os humanos com sua IA nos próximos 100 anos.” (HENRIQUE, 2015).

Destaca-se, do mesmo modo, que as ocupações podem ser parcialmente automatizadas, de forma que o objetivo das automatizações e aplicações não é a substituição de um advogado, mas o seu devido auxílio, em determinadas situações. Por exemplo, algoritmos que filtram dados sensíveis (pré-determinados), com a finalidade de trazer mais eficiência ao trabalho dos advogados.

A dinâmica diz respeito à automação na revisão de documentos probatórios em litígios, em que os algoritmos de machine learning não desempenham o papel de substituir – nem têm a capacidade de fazê-lo – tarefas cruciais do advogado. Essas tarefas incluem a determinação da relevância de documentos ambíguos, de acordo com as normas legais vigentes ou a avaliação de seu potencial valor estratégico em um processo judicial (MARINHO et al. 2022. p.11-16).

Em vez disso, em muitos cenários, os algoritmos podem ser eficazes na tarefa de filtrar uma grande quantidade de documentos que, provavelmente, são irrelevantes, permitindo que o advogado economize seus recursos cognitivos limitados ao não precisar analisá-los detalhadamente. Além disso, esses algoritmos podem identificar documentos potencialmente relevantes, destacando-os para chamar a atenção do advogado. Assim, o algoritmo não substitui o advogado, mas automatiza certos aspectos das tarefas (REBELO, 2018).

Os programas e algoritmos de machine learning estão sendo usados para gerar tipos de modelos preditivos, sejam eles aplicados à prática do direito ou não (REBELO, 2018).

Os tribunais de Justiça dos estados divergem em algumas questões no que tange à aplicação de uma norma sobre o assunto, uma vez que ainda não se tem uma legislação clara sobre o tema. No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 3ª Vara de Fazenda Pública, o Juiz Luis Manuel suspendeu a licitação para a aquisição de câmeras para o sistema de reconhecimento facial. Em sua decisão, o juiz argumentou que a utilização do reconhecimento facial poderia violar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e representar uma grave ameaça a direitos individuais. Assim escreveu o magistrado (GUIMARÃES, 2023):

“A dimensão do impacto que o sistema tecnológico de monitoramento por reconhecimento facial produz impõe a responsabilidade ao Poder Público de apenas considerar o seu uso após a definição de regras legais precisas que ponderem os objetivos da segurança pública com os direitos fundamentais. Daí porque não há como adquirir o sistema de videomonitoramento sem se saber como esses dados podem ser processados (Lei Geral de Proteção de Dados) e como devem ser ponderados em proteção aos direitos fundamentais”.

A inserção da inteligência artificial dentro do Judiciário é algo controverso, vez que os próprios juízes divergem entre si no que tange à matéria. Alguns processualistas chegam a dizer que a introdução da inteligência artificial viola os princípios da Constituição e as normas nacionais vigentes, presentes no Marco Civil da Internet e do Código de Defesa do Consumidor. O TJMG permitiu ao usuário de um aplicativo o direito de apresentar defesa baseada em dados eletrônicos, uma vez que o uso de recursos digitais se tornou imprescindível no ambiente social (GUIMARÃES, 2023). 

Por sua vez, o TJSP não teve o mesmo entendimento em caso semelhante, em que a inteligência artificial da Amazon, durante uma verificação padrão, suspendeu a conta da usuária-autora, por coincidências entre a conta dela e a de seu noivo, tendo ela ficado impossibilitada de exercer a função de vendedora na plataforma.  Ao tomar a sua decisão, a juíza levou em consideração que “no sofisticado sistema de informação da Amazon, claramente gerenciado por inteligência artificial, surgiu essa coincidência cadastral”. Diante dessa circunstância, a magistrada considerou que a “suspensão da conta é justificada, a fim de preservar o mínimo de segurança dos usuários da plataforma”. No entanto, dado que a vendedora entrou em contato com a Amazon e explicou “os eventos de maneira transparente”, ao solicitar a reativação da conta, a magistrada não viu justificativa para manter a suspensão da conta. Consequentemente, ela concluiu que a Amazon “causou uma falha no serviço ao não reativar a conta da autora dentro do razoável prazo estabelecido por lei, que é de 30 dias (de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, artigo 18, parágrafo 1º)” (GUIMARÃES, 2023). 

3.2. Deep learning

Em uma outra vertente da Inteligência Artificial, o Deep Learning funciona como um subconjunto de aprendizados, em uma rede neural com três ou mais camadas. As redes que compõe o Deep learning buscam simular a atividade cerebral. Contudo, a inteligência artificial ainda é mais utilizada com a permissão de que se aprenda com grandes volumes de informações e dados. De qualquer forma, redes neurais com mais de 3 camadas podem ser mais assertivas no que tange a aprimorar as suas conclusões.

As redes neurais do Deep Learning são interconectadas, o que tem produzido resultados que impactam ao deparar com padrões existentes nos dados, ou ainda estabelecer lógicas ou relacionais (BATHAEE, 2012, p. 13-14).

Contudo, além do conceito de camada, há também o conceito de bloco, que auxilia no compêndio da complexibilidade. O que ocorre é que, quando se fala em blocos de conhecimento, são eles muito voláteis, podendo conter entre uma ou mais camadas neurais, ou, ainda, conter um modelo inteiro, que pode ser ajustado em uma mesma rede neural. (PEIXOTO, 2020)

O Deep learning traz uma grande influência para todos os aplicativos e sistemas que usam a IA como referência, trazendo, em si, um maior e melhor sistema de automação, com a realização de tarefas sem a interferência humana. A tecnologia do Deep learnig está mais presente no nosso cotidiano do que imaginamos. Ela é, por exemplo, a base dos softwares presentes nos aparelhos de TV ativados por comando de voz, nos assistentes virtuais, bem como em carros autônomos.

Qual, afinal, qual a diferença entre o Deep learning e o Marchine learning? A principal finalidade do Deep learning é eliminar parte do pré-processamento dos dados que são inseridos, normalmente adquiridos durante o processo de aprendizado da máquina (machine learning). A importância da utilização desses algoritmos é justamente para que haja uma filtragem no controle de dados que não são estruturados, como por exemplo, imagens, que dispensa parte da dependência de especialistas humanos.

Soluções baseadas em Deep learning têm alcançado resultados altamente avançados em contextos mais desafiadores, como o desenvolvimento de classificadores na área de visão computacional, sistemas de suporte a diagnósticos e mecanismos de recomendação em diversas aplicações (PEIXOTO, 2020).

3.3. Big data

O conceito de big data é duplamente amplo. De um lado, busca relacionar-se a um conjunto de dados numa escala massiva, e, por outro, objetiva a compreensão da tecnologia e de processos envolvidos. O processo de melhoramento de dados é levado a cabo por algoritmos, que fazem a interpretação, por meio, também, da descoberta e correlação entre os bancos de dados (DOMINGOS, 2012). 

Nos primeiros anos da década de 2000, o analista Doug Laney introduziu a concepção de Big Data, por meio do conceito dos três Vs: volume, velocidade e variedade. O volume representa a acumulação massiva de informações provenientes de diversas fontes, resultando em enormes conjuntos de dados. Esses dados são transmitidos a uma velocidade sem precedentes, demandando um processamento ágil e eficaz. Além disso, os formatos dos dados são notavelmente diversos, podendo ser estruturados ou não, abrangendo uma ampla gama de possibilidades. (NACARATTI; PESSOA, 2018).

Dentro do atual cenário, é fundamental destacar a significativa relevância do campo conhecido como Big Data Analytics na análise de dados e na ampliação das aplicações de informações, particularmente com o auxílio da inteligência artificial (IA). Nesse sentido, é notável que um amplo espectro de disciplinas do conhecimento desempenhou e continua a desempenhar um papel vital no desenvolvimento da IA. Isso se justifica pelo fato de que a IA, enquanto um termo abrangente, engloba tarefas complexas, como aprendizado, raciocínio, planejamento, compreensão da linguagem e robótica, tornando-se um campo multidisciplinar em constante evolução (ALENCAR, 2022).

De fato, seguindo a abordagem de Wolfgang Hoffmann-Riem, identificam-se três distintos métodos analíticos empregados com objetivos específicos, a saber: análise descritiva, análise preditiva e análise prescritiva.

A análise descritiva é empregada para a triagem e a preparação de dados, com a finalidade de avaliação. Um exemplo prático desse processo é a utilização do Big Data para a prática de Data Mining, que envolve a coleta e a sistematização de informações, com destaque para atividades como priorização, classificação e filtragem (SARLET; BITTAR, 2022).

Entretanto, é fundamental que os critérios ou parâmetros previamente estabelecidos estejam em conformidade com as normas legais e adotem princípios de transparência e motivação. É importante ressaltar que, apesar da automação de tarefas jurídicas, os seres humanos ainda desempenham um papel central nesse processo, e a implementação da automatização no âmbito jurisdicional deve ser planejada e validada pelos membros do Poder Judiciário (ALENCAR, 2022).

Os dados extraídos por meio do Big Data são aqueles baseados no comportamento do usuário. A inteligência artificial é programada para o uso da base de dados e utilização de determinada plataforma para aprimorar os conhecimentos. Contudo, ao utilizar a plataforma de maneira diversa da “de costume”, o cruzamento de dados pode acabar bloqueando acessos e causando desconfortos. Como no caso, julgado pelo TJDFT, em que um usuário teve seu endereço de e-mail excluído da plataforma, fazendo com que ele perdesse todos os dados e informações do seu e-mail. Ementa do julgado:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. JULGAMENTO SIMULTÂNEO. CUIMPRIMENTO DE SENTENÇA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. REATIVAÇÃO. CONTA DE EMAIL. MICROSOFT. DESCUMPRIMENTO. JUSTA CAUSA. ASTREINTES. AFASTAMENTO. LEVANTAMENTO DO VALOR. MANUTENÇÃO. 1.A Microsoft, na qualidade de desenvolvedora de softwares de computador, é a detentora da informação relativa à possibilidade técnica de cumprimento ou não da obrigação de reativar a conta de e-mail do Agravado, que, segundo consta, teve o conteúdo nela armazenado definitivamente apagado, não havendo possibilidade de reversão. 2.A conta de e-mail do Autor foi desativada após detectada, por meio da inteligência artificial, suposta contrariedade às regras de conduta do usuário, sendo crível que, nesse contexto, tenham sido apagados todos os arquivos armazenados naquele endereço eletrônico. 3.Sendo pessoal a obrigação, e alegando o devedor justo motivo, a impossibilidade do cumprimento da obrigação de fazer deve ser reconhecida, inviabilizando a continuidade da execução pelo rito do art. 536 e seguintes, sem prejuízo de o credor requerer a conversão em perdas e danos, nos termos do art. 816 c/c o art. 513 do CPC. 4.Em razão da demonstração de justa causa para o descumprimento da obrigação de fazer determinada em sentença, as astreintes fixadas na sentença devem ser excluídas, com fulcro no art. 537, § 1º, II, do CPC. 5.Não obstante o reconhecimento de impossibilidade de cumprimento da obrigação de fazer determinada na sentença exequenda, na instância de origem houve a condenação do réu em astreintes por descumprimento de liminar, penhora do valor correspondente para a satisfação do crédito e efetivo levantamento da quantia pelo credor após o trânsito em julgado da ação de conhecimento, sem que o devedor se insurgisse adequadamente, seja por meio de impugnação ao cumprimento de sentença ou mesmo por petição dirigida ao juiz da causa. 6.É certo que, em tese, a multa imposta para cumprimento de obrigação pode ser modificada a qualquer momento pelo juiz, de ofício ou a requerimento, quando verificado que a medida se tornou insuficiente ou excessiva (art. 537, §1º, I, do CPC), não havendo que se falar em preclusão ou coisa julgada. Contudo, já tendo sido levantado o valor pelo credor, inviável a rediscussão a respeito da adequação da quantia fixada, em agravo de instrumento interposto contra decisão que determina a expedição de ofício ao Banco para liberação do valor penhorado em favor do credor. 7.Em razão do reconhecimento de não serem devidas astreintes no bojo do cumprimento de sentença, perde o objeto agravo de instrumento interposto pelo credor objetivando a majoração da referida multa e a efetivação de demais medidas para a satisfação da obrigação de fazer. 8.Agravo de Instrumento n. 0738492-19.2021.8.07.0000. (DISTRITO FEDERAL, 2022).  

Por fim, é possível inferir que a inteligência artificial não se limitará apenas aos juízes, mas será empregada por todos os envolvidos no sistema de Justiça, o que resultará em um substancial aumento do conhecimento e da compreensão da sociedade sobre como o Direito é interpretado e aplicado por seus atores principais (ALENCAR, 2022).

4. O uso da inteligência artificial no judiciário

O Judiciário tem olhado cada vez mais para a tecnologia, especialmente a inteligência artificial, como um meio para otimizar seus processos. Embora muitos tribunais já estejam adotando a tecnologia, a implementação ainda é inicial. As transformações sociais modernas e a necessidade de se lidar com tarefas repetitivas são impulsionadores dessa tendência.

4.1. Hórus – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT)

No cenário jurídico brasileiro, os avanços tecnológicos têm proporcionado novas maneiras de lidar com a gestão de processos e a tomada de decisões. Uma das ferramentas inovadoras nesse contexto é o sistema “Hórus”, desenvolvido e implementado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).

O “Hórus” representa uma iniciativa de transformação digital no Poder Judiciário, buscando aproveitar os benefícios da inteligência artificial para otimizar e agilizar as operações judiciais. Seu nome, derivado do deus egípcio associado à visão e à percepção, reflete seu propósito: fornecer uma perspectiva mais clara e eficiente sobre os processos judiciais.

O Hórus utiliza algoritmos avançados para analisar dados de processos, identificando padrões e tendências. Isso permite aos magistrados e servidores do tribunal insights valiosos sobre os casos, melhorando a tomada de decisão.

Um dos maiores desafios enfrentados pelos tribunais é a carga massiva de processos. Com a ajuda do Hórus, muitas tarefas repetitivas, como a categorização de documentos e o preenchimento de campos em formulários, são automatizadas, liberando os profissionais para se concentrarem em tarefas mais complexas.

Ao fornecer informações relevantes e insights sobre os processos, o sistema auxilia juízes e servidores a tomar decisões mais informadas e justas. Como mencionado anteriormente, uma das vantagens da IA é a capacidade de reduzir vieses humanos na tomada de decisão. Embora o Hórus não substitua a decisão final do juiz, ele fornece uma análise objetiva, que pode ser usada como referência.

O Hórus é projetado para se integrar perfeitamente com outros sistemas judiciais, garantindo uma operação fluida e coesa. A natureza da inteligência artificial é tal que ela aprende e evolui constantemente. O Hórus está em contínua evolução, adaptando-se às necessidades do TJDFT e às mudanças no cenário jurídico.

Em conclusão, o sistema “Hórus”, do TJDFT é um exemplo notável de como a tecnologia, especificamente a inteligência artificial, está sendo utilizada para modernizar e melhorar o Poder Judiciário brasileiro. Enquanto a IA não está aqui para substituir a percepção e o discernimento humanos, ferramentas como o Hórus demonstram seu valor inestimável como auxiliares na tomada de decisões judiciais.

4.2. Victor – Supremo Tribunal Federal (STF)

Um estudo da Fundação Getúlio Vargas aponta que há 72 tribunais no país que estão embarcando em projetos relacionados à inteligência artificial. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem o programa “Victor”; o STJ conta com o “Sócrates”, e outros tribunais, tanto federais, quanto estaduais, também estão em diferentes estágios de adoção (ROQUE; SANTOS, 2020).

Os sistemas de IA são projetados para processar informações, em grande escala, muito mais rapidamente do que os seres humanos. No contexto do Judiciário, isso pode significar analisar documentos e precedentes legais em questão de segundos, auxiliando na tomada de decisões. A IA pode ajudar a garantir que decisões semelhantes sejam tomadas em casos similares, aumentando a consistência e a previsibilidade das decisões judiciais. Em um país como o Brasil, onde o número de processos judiciais é enorme, a IA pode ajudar a filtrar, categorizar e priorizar casos, reduzindo a carga sobre os magistrados e servidores e acelerando a resolução de disputas (SOUSA, 2020).

O Supremo Tribunal Federal (STF) introduziu o “Victor”, uma plataforma de IA, principalmente para auxiliar na categorização e triagem de processos. Ao identificar os temas dos processos, ele auxilia na aceleração do trâmite processual. A ideia é que, com a ajuda do Victor, o STF possa reduzir o tempo para analisar a admissibilidade de recursos, concentrando-se no mérito das questões judiciais (ROQUE; SANTOS, 2020).

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o “Sócrates” é um assistente virtual projetado para facilitar o acesso à jurisprudência do tribunal. Ele funciona como uma ferramenta de busca, onde advogados, magistrados e o público em geral, podem fazer perguntas e receber referências de jurisprudências relacionadas (SOUSA, 2020).

 A adoção da IA varia entre os tribunais, com alguns em fases iniciais e outros já implementando soluções mais sofisticadas. Esses sistemas podem ajudar em tarefas, desde a organização e digitalização de documentos, até a previsão de resultados com base em precedentes legais (SOUSA, 2020).

A integração da IA no Judiciário não está isenta de preocupações. Há questões éticas sobre a imparcialidade dos algoritmos, sua transparência e a possibilidade de perpetuação de vieses. Além disso, a IA nunca substituirá completamente o discernimento humano necessário na tomada de decisões judiciais (ROQUE; SANTOS, 2020).

No entanto, mesmo com a integração da tecnologia, o sistema judiciário brasileiro ainda enfrenta desafios. A eficiência do sistema é muitas vezes questionada devido ao acúmulo de casos que aguardam resolução. A busca incessante por resultados, muitas vezes, acaba priorizando o volume, ao invés da qualidade dos julgamentos (KOERNER; VASQUES, 2019).

O cenário pós-pandêmico intensificou a digitalização de muitos setores, inclusive o Judiciário. Como apontado por Roque e Santos (2020), o sistema judiciário teve que se adaptar rapidamente ao cenário imposto pela pandemia da Covid-19. Com restrições de interações físicas, o meio virtual se tornou uma ferramenta essencial, não apenas para a população em geral, mas também para juízes, advogados e todos os envolvidos nos processos judiciais.

Atualmente, tem-se observado um aumento nos investimentos em tecnologia para o setor. As mudanças decorrentes dessa integração estão sendo sentidas, especialmente pelos servidores. E a inteligência artificial se destaca como uma ferramenta promissora, visto que ela oferece soluções para lidar com o volume crescente de demandas (SOUSA, 2020).

Atualmente, o foco principal do Judiciário tem sido a produtividade, muitas vezes em detrimento da qualidade. Isso tem levado a uma percepção do sistema jurídico como uma fábrica de soluções rápidas, muitas vezes, sem a devida atenção aos princípios constitucionais e processuais. Em muitos casos, a pressa no processo judicial tornou-se a norma, mesmo que isso implique comprometer a Justiça (KOERNER; VASQUES, 2019).

Um dos principais desafios enfrentados pelos tribunais é a lentidão sistêmica, desde a entrada da demanda, até a sua decisão final. Para enfrentar essa questão, várias estratégias têm sido adotadas, incluindo a implementação de inteligência artificial. No entanto, algumas dessas medidas podem apenas mascarar a verdadeira ineficácia dos tribunais em lidar com as demandas da sociedade (SOUSA, 2020).

Este cenário se originou da expansão dos direitos constitucionais ao acesso à Justiça, permitindo que mais pessoas buscassem soluções judiciais para seus conflitos. Esse aumento no acesso à Justiça ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, período em que houve uma intensa discussão e implementação de direitos humanos, principalmente como uma resposta às atrocidades dos regimes autoritários. Como resultado, houve uma explosão no número de processos judiciais, muitos dos quais não eram essenciais, levando a problemas de tempo e eficiência (SALLES, 2016).

A Constituição Brasileira de 1946 foi o primeiro marco legal a reconhecer o direito de acesso à Justiça, estabelecendo que nenhuma lesão a direitos individuais poderia ser excluída da apreciação judicial (BRASIL, 1946). A Constituição atual manteve essa perspectiva, apenas expandindo e universalizando o conceito, garantindo que qualquer ameaça ou lesão a um direito seja sujeita à revisão judicial (BRASIL, 1988).

Nos últimos tempos, uma maior expectativa tem sido direcionada ao Judiciário pela população. Esse cenário foi chamado por Salles (2016) de “consumo de serviços judiciais”, referindo-se à tendência de levar ao Judiciário uma ampla variedade de questões sociais.

O Brasil, historicamente, tem enfrentado notáveis desigualdades, principalmente para os segmentos sociais mais marginalizados. Isso impulsionou um aumento desenfreado nas ações judiciais, à medida que as pessoas buscavam tratamento justo. No entanto, essa onda crescente de litígios sobrecarregou o Judiciário, levando a atrasos significativos na resolução de processos (SOUSA, 2020).

É vital salientar o papel dos magistrados nesse contexto. Eles enfrentam uma pressão crescente, devido ao aumento do volume de processos, afetando diretamente a sua capacidade de entregar Justiça, de forma eficaz e em tempo hábil. Além disso, a busca pela duração razoável do processo, um direito garantido pela Constituição, tornou-se um anseio, tanto da sociedade civil, quanto dos profissionais do direito (SOUSA, 2020).

A atual paisagem judiciária é, em grande parte, o resultado de políticas passadas que permitiram um acesso excessivo e, por vezes, imprudente ao sistema de Justiça. Esse sistema, em teoria, deveria ser uma opção secundária para a resolução de disputas. Em suas reflexões, Dallari (2008) sugere que a estrutura atual do Judiciário é fortemente influenciada por tradições e práticas anteriores, levando a um descompasso com as demandas da sociedade moderna.

Portanto, torna-se imperativo que os tribunais se reestruturem, simplificando práticas e garantindo que, considerando o mérito de cada caso, possam atender adequadamente às demandas da sociedade sem comprometer os princípios fundamentais estabelecidos na lei.

5. Atual realidade na tomada de decisões e os limites judiciais de acordo com o Projeto de Lei nº 5.501/2019

Lopes (2010) destaca uma falha no processo democrático de direito atual, onde o Poder Judiciário tem priorizado a eficiência numérica em detrimento de uma análise profunda e única para cada caso. Segundo a autora, esse enfoque ameaça pilares democráticos, como o devido processo legal e o contraditório, além de diminuir o valor da decisão fundamentada.

Face a essa realidade, a importância de analisar cada caso individualmente torna-se evidente, pois negligenciar tais detalhes viola princípios vitais para a democracia, como a ampla defesa e o devido processo legal. Em um cenário onde a tecnologia está em ascensão, a contribuição da inteligência artificial (IA) no setor jurídico deve ser examinada em termos de benefícios e desafios. Koerner, Vasques e Almeida (2019) observam que as máquinas, programadas para operações racionais, podem fornecer insights sobre diversas esferas humanas, enquanto os seres humanos utilizam a tecnologia para se adaptar e melhorar o seu desempenho. (ALVES, 2016).

Nesse contexto, a IA no campo jurídico é vista como uma ferramenta desenvolvida pelo homem para ajudar os tribunais a se adaptarem aos tempos modernos. Estas soluções tecnológicas têm a capacidade de atuar como seres humanos, mas com maior rapidez e eficiência. A Resolução 332[8], de 2020, do CNJ, reconhece o valor da IA para o Judiciário. Essa resolução destaca que a IA tem o propósito de melhorar a experiência dos cidadãos e proporcionar Justiça mais equitativa, explorando novos métodos e práticas para alcançar tais objetivos. (TACCA; ROCHA, 2018).

A mesma resolução também esclarece que a IA é alimentada por algoritmos humanos destinados a produzir resultados que imitam o pensamento humano, sempre alinhados aos propósitos para os quais foram criados.

No entanto, apesar do potencial da IA, é essencial reconhecer que, no contexto brasileiro, ainda existem obstáculos para a sua plena implementação. A adoção da tecnologia no sistema jurídico brasileiro tem sido lenta e, em algumas regiões, ainda há muito a ser feito para assegurar direitos que acabam sendo negligenciados.

De acordo com o relatório “Justiça em Números”, do CNJ, de 2020, no ano de 2019, o Judiciário tinha um acúmulo impressionante de 77 milhões de casos pendentes, sendo que 55,8% desses casos estavam em fase de execução. Além disso, é esperado que esse número cresça devido ao influxo de novos processos.

Esse cenário, que domina os tribunais brasileiros, reflete os esforços contínuos para garantir o direito de acesso à Justiça, ao mesmo tempo em que busca soluções para a superlotação e lentidão do sistema judiciário (ALVES, 2016).

O aumento constante da judicialização no Brasil é, em parte, resultado da falta de critérios claros sobre quais casos devem ser julgados e da ineficiência do sistema de precedentes. Isso desencadeia várias questões no sistema judiciário (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Muitos litígios, abordando uma ampla variedade de temas, demonstram a falta de estratégias claras dos órgãos judiciais para lidar com todos os problemas sociais. Além disso, muitos cidadãos veem o sistema judicial como a única opção para reivindicar direitos, como os de saúde, especialmente quando sentem que esses direitos estão sob ameaça. (ALVES, 2016).

De acordo com Barboza (2019), a crescente litigiosidade coloca uma enorme pressão sobre o sistema judiciário, levando a um acúmulo de processos e atrasos na entrega de decisões. A contínua entrada de novos processos é uma das principais causas dos desafios que o Judiciário enfrenta, pois, a demanda não mostra sinais de diminuição e os tribunais não estão equipados para lidar com ela de maneira eficiente (TACCA; ROCHA, 2018).

O fácil acesso ao Judiciário, muitas vezes com garantia de gratuidade de Justiça sem que fosse necessário, significa que muitos cidadãos o veem como a principal solução para seus conflitos, mesmo quando outras alternativas poderiam ser mais rápidas e benéficas. Isso resulta em uma onda crescente de litígios, que vem se tornando quase uma norma cultural. Esse aumento desenfreado de processos cria um peso insustentável sobre os tribunais, que lutam para atender às demandas da sociedade. (TACCA; ROCHA, 2018).

Em suma, embora o acesso à Justiça seja um direito fundamental, a falta de infraestrutura adequada nos tribunais brasileiros para lidar com o volume de casos resulta em um backlog significativo. Conforme indicado pelo CNJ (2020), esses “casos pendentes” são aqueles que ainda aguardam resolução em várias fases do processo judicial.

Acerca dessas garantias, Campos e Pedron (2018) destacam que foi por meio delas que as partes passaram a ter direito de participação na construção do provimento judicial. Para tanto, o processo, segundo os autores, deve se revestir nas garantias de direitos processuais e constitucionais (CAMPOS; PEDRON, 2018).

Todavia, os autores ressaltam que, como consequência do instrumentalismo ainda arraigado no direito brasileiro, onde preocupa-se mais com a rapidez em que se concretiza a resposta judicial do que com as garantias processuais e constitucionais dos sujeitos da lide, ocorre uma relativização, como extrai-se do trecho a seguir (2018, p. 64):

Algumas normas jurídicas sancionadas após a Constituição da República de 1988 demonstram como o instrumentalismo tem ainda influenciado o pensamento daqueles que defendem a busca da celeridade e de uma efetividade no processo, relativizando, muitas das vezes, ao alvedrio do devido processo constitucional (CAMPOS; PEDRON, 2018, p. 64).

Além disso, os tribunais têm se deparado com um congestionamento processual crescente, o que tem limitado o seu poder de prestar seus serviços de maneira adequada às pessoas que os buscam, e por isso, procuram por uma agilidade a todo custo (SAID FILHO, 2017). Nota-se que, para o funcionamento correto e com produtividade da máquina judiciária, é necessário um achatamento da curva das ações processuais, isto é, tratar do grande acervo de processos é crucial para que seja possível combater esse contexto de litigiosidade que assola os tribunais brasileiros, sem suprimir direitos das partes (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Assim, torna-se inegável que a estrutura judiciária não consegue cumprir com aquilo que a lei preceitua, pois tem que lidar com casos simples, que poderiam ser tratados por outros caminhos, e com demandas mais complexas, que deveriam ser analisadas com maior rigor, graças à atratividade do Judiciário para todos os tipos de conflitos sociais (SAID FILHO, 2017).

Ademais, é imperioso ressaltar que esse costume da população de buscar sempre a figura do juiz para dirimir seus conflitos traz problemas não apenas para o desenvolvimento das atividades dos tribunais, uma vez que essa quantidade sobre-humana de processos acarreta uma incapacidade de prestação jurisdicional de qualidade, o que alimenta a supressão de princípios e direitos. (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Nesse mesmo sentido, Wolkart (2015, p. 6) destaca que: “é notório que a crise da Justiça brasileira é de quantidade e de qualidade. A quantidade de processos é imensa, absurda, sobre-humana, em todas as instâncias da Justiça”. Com tal quantidade, naturalmente compromete-se a qualidade. Juízes e tribunais passam a julgar por atacado (WOLKART, 2015). O modelo tradicional de jurisdição, desse modo, encontra-se precário e a realidade dos tribunais, como bem destacado, é de crise, dado que não conseguem responder às demandas que lhe são postas, restando evidente que não deve ser mais adotado. Nesse ínterim, diante dessa fragilidade,, que assevera o espaço jurídico, as ferramentas da tecnologia de informação transformam-se num novo aliado do Judiciário.

A inteligência artificial, apesar de suas notáveis vantagens na otimização de processos, não deve ser utilizada de forma autônoma em julgamentos judiciais. Isso porque poderia contrariar princípios constitucionais brasileiros, como o da ampla defesa e o do contraditório. A ideia é que, embora a IA possa, potencialmente, agilizar algumas atividades judiciais, a decisão final e a responsabilidade devem sempre residir num magistrado humano.

Embora a tecnologia possa melhorar a eficiência dos tribunais, o uso autônomo da IA em julgamentos poderia levar a interpretações tendenciosas ou unilaterais. Isso porque os algoritmos, conforme observado por Koerner, Vasques e Almeida (2019), podem ter vieses, focando em objetivos específicos e marginalizando questões individuais e nuances que são cruciais para um julgamento adequado e justo. (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Essa automação no processo decisório pode comprometer os direitos fundamentais dos cidadãos. Cada caso judicial tem suas particularidades e, portanto, deve ser avaliado à luz dos princípios democráticos, sem depender apenas da análise automática de um sistema.

Quando se pensa em incorporar a IA ao sistema judiciário, é essencial que tal implementação esteja em conformidade com princípios democráticos e respeite diretrizes éticas em IA, como supervisão humana, transparência e responsabilização, como apontado por Brehm et al (2020).

Pedron (2017) reforça a ideia de que o julgamento não é um ato isolado, mas um processo que considera os argumentos e perspectivas das partes envolvidas. Uma decisão judicial não deve ser um produto padronizado, mas uma resposta apropriada às nuances específicas de cada caso.

Assim, enquanto a IA tem potencial para melhorar a eficiência dos tribunais, seu uso não deve objetivar apenas a economia de recursos. A principal prioridade deve ser garantir que os direitos dos cidadãos e a integridade do processo judicial sejam mantidos. Em resumo, a inteligência artificial deve servir como uma ferramenta de apoio, não como um substituto para o discernimento humano no processo judicial. (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

No contexto contemporâneo, enfrentamos o fenômeno do “neoliberalismo processual”, onde os processos judiciais são frequentemente vistos como meros números a serem reduzidos, priorizando-se a eficiência numérica, em detrimento da qualidade da resolução de disputas. Esse enfoque “neoliberal” valoriza a maximização da produtividade, muitas vezes à custa do devido processo legal e dos direitos fundamentais das partes envolvidas (CAMPOS; PEDRON, 2018).

Entretanto, é inegável que os desafios atuais do sistema judiciário brasileiro pedem soluções inovadoras. Muitos desses desafios, conforme apontado por Walkart (2015), envolvem questões de gestão, formação e infraestrutura. De fato, na era pós-moderna, há uma crescente demanda pela intervenção do Poder Judiciário em questões sociais diversas, exacerbando os problemas já existentes na estrutura judicial.

Com a crescente complexidade e volume de demandas judiciais, torna-se essencial repensar as práticas jurídicas atuais, a fim de otimizar a gestão de processos e recursos. Neste cenário, a tecnologia, e mais especificamente a inteligência artificial, surge como uma ferramenta promissora. No entanto, como Rosa (2019) destaca, enquanto a IA pode ajudar a melhorar a eficiência, é crucial garantir que seu uso não comprometa os princípios fundamentais do processo democrático.

É vital que qualquer adoção de IA no sistema judiciário respeite as particularidades de cada caso e os direitos fundamentais das partes. Caso contrário, corremos o risco de sacrificar a Justiça em nome da eficiência. O desafio não é simplesmente acelerar o processo judicial, mas sim garantir que as decisões tomadas sejam justas, equitativas e fundamentadas. (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Em última análise, a implementação da inteligência artificial no Judiciário deve ser feita de forma responsável, sempre respeitando os princípios constitucionais, como o contraditório, a ampla defesa e o juiz natural. É essencial que as decisões judiciais permaneçam fundamentadas, individualizadas e justas, sem cair na tentação de soluções automatizadas e genéricas (CAMPOS; PEDRON, 2018).

Em 16 de setembro de 2019, o Senador Styvenson Valentim introduziu dois projetos de lei direcionados à regulamentação do uso da inteligência artificial (IA) no Brasil: o PL nº 5.051, que define princípios para a aplicação da IA, e o PL nº 5.691, que propõe a Política Nacional de Inteligência Artificial. Embora ambos estejam em tramitação, compartilham similaridades em seu conteúdo. (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

O PL nº 5.051, composto por 7 artigos, destaca o uso da IA visando ao bem-estar humano e enfatiza valores como dignidade, liberdade, democracia, igualdade, direitos humanos, pluralidade e diversidade. Também salienta a importância da proteção da privacidade, dados pessoais, transparência e supervisão humana na operação de sistemas de IA. O projeto sublinha que a IA deve ser um complemento à decisão humana, com a supervisão variando conforme a magnitude da decisão tomada. Em caso de danos resultantes do uso da IA, a responsabilidade recairia sobre o supervisor humano (BRASIL, 2019)

O projeto delineia diretrizes para os entes federativos no avanço da IA no Brasil, que incluem: promover a educação alinhada ao desenvolvimento da IA, desenvolver políticas para proteger e qualificar os trabalhadores, assegurar uma introdução gradual da IA e ter uma abordagem proativa na sua regulamentação. O PL ainda destaca que, quando usada pelo setor público, a IA deve visar à qualidade e à eficiência dos serviços oferecidos à população (BRASIL, 2019).

A justificativa associada ao projeto reconhece o cenário global de adoção da IA, os potenciais benefícios em produtividade e qualidade, mas também os riscos, ressaltando a essencialidade de uma regulação. Ela esclarece que o principal propósito da legislação é garantir que a evolução da IA seja compatível com a valorização do trabalho humano, objetivando o bem-estar coletivo. Conclui enfatizando a necessidade de supervisão humana em todos os sistemas de IA e a responsabilidade do supervisor, além de sublinhar a importância da formação e qualificação profissional na área.

Nesse contexto, Hartmann Peixoto; Silva (2019) afirmam que a proposta legislativa sobre a regulamentação da IA no Brasil parece ecoar preocupações mencionadas por diversos pesquisadores, referindo-se aos desafios dessa tecnologia. As interferências potenciais de algoritmos em debates públicos e processos eleitorais, o uso discriminatório e violação de liberdades civis, uso não autorizado de dados pessoais, aumento do desemprego devido à substituição por máquinas e responsabilização por danos são algumas das inquietações destacadas na literatura. A justificativa do PL é clara ao reconhecer que, apesar dos potenciais benefícios da IA, os riscos associados à sua implementação necessitam de regulamentação.

É inquestionável que todas as atividades, incluindo a IA, devem aderir a princípios fundamentais, como dignidade, liberdade, democracia, direitos humanos e outros, já resguardados constitucionalmente. Barrilão (2016) defende que o direito constitucional pode ser a resposta para as incertezas tecnológicas, focando em mitigar riscos ao progresso tecnológico, sem comprometer valores essenciais da sociedade.

No entanto, ao analisar a adequação e a necessidade, surge um questionamento: seria realmente imperativo um projeto de lei específico para garantir que a IA respeite valores já consagrados na Constituição? Por sua vez, Hartmann Peixoto; Silva (2019) alertam para uma abordagem excessivamente centrada no risco da IA, argumentando que isso pode obscurecer os benefícios evidentes da tecnologia. Brundage (2018) encoraja uma perspectiva mais otimista da IA focando em sistemas que funcionem como o esperado, minimizando erros e respeitando o controle humano. Superando desafios técnicos e éticos, a IA pode trazer impactos significativamente benéficos à sociedade.

A OCDE (2020), por meio da Recomendação nº 449, do Conselho sobre Inteligência Artificial[9], delineou princípios para orientar o desenvolvimento da IA reconhecendo sua expansão global e impacto em diversos setores. O documento destaca que a IA já está influenciando significativamente sociedades e mercados de trabalho. Apesar de reforçar a importância de princípios como inclusão, bem-estar e transparência, também reconhece que muitos destes princípios já são defendidos em legislações pré-existentes, indicando que não estamos iniciando de um vácuo regulatório.

O campo de pesquisa e desenvolvimento em IA apresenta desafios significativos para os reguladores, dados os aspectos inerentes à sua natureza. A IA opera frequentemente em uma estrutura de difícil acesso e transparência, com profissionais de diferentes setores e localidades colaborando em seus componentes. Estes componentes podem ser criados em lugares variados, em tempos distintos e sem uma coordenação centralizada. Além disso, os detalhes operacionais de um sistema de IA podem permanecer secretos e imunes à engenharia reversa. No entanto, essas peculiaridades não são exclusivas da IA; muitas outras tecnologias contemporâneas e anteriores compartilham características similares. Assim, embora a IA possa resistir a regulamentações prévias, será inevitavelmente submetida a responsabilidades que afetarão a conduta da indústria (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

De acordo Hartmann Peixoto e Silva (2019) o PL destaca a supervisão humana como um pilar essencial no uso da IA, o que parece entrar em conflito com a essência autônoma dessa tecnologia. A IA atual busca precisamente a autonomia, permitindo que máquinas executem tarefas cognitivas sem intervenção humana constante. Por exemplo, no domínio do aprendizado de máquina (machine learning), as tecnologias evoluem para operar com mínima supervisão, aprendendo e adaptando-se de maneira independente. A supervisão humana contínua sobre decisões de IA pode ser um ideal irrealista, já que limita o verdadeiro potencial da tecnologia.

A analogia proposta sugere que vincular estritamente a IA à figura de um supervisor humano é semelhante a restringir o Direito a uma mera aplicação de regras preestabelecidas. Assim como o Direito vai além da mera aplicação de normas, a IA tem um potencial que vai além da constante supervisão humana. Em vez de impor supervisão direta, seria mais produtivo estabelecer práticas recomendadas e princípios, refletindo responsabilidades éticas e legais nas fases de validação, verificação e segurança da IA. O projeto de lei ressalta a importância da inteligência artificial (IA) como ferramenta de apoio, e não substituição, às decisões humanas, salientando a necessidade de adequar o nível de supervisão humana à gravidade e implicações das decisões tomadas com auxílio da IA. Essas máquinas, equipadas para simular habilidades cognitivas humanas, como raciocinar e aprender, possuem potencial para exceder habilidades humanas em certas áreas, especialmente na análise de grandes volumes de dados e na previsão de resultados (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Segundo Hartmann Peixoto e Silva (2019), com o auxílio de técnicas como redes neurais, lógica difusa, computação evolutiva e agentes inteligentes, a IA tem sido uma aliada valiosa na tomada de decisões, especialmente em situações complexas e com grandes volumes de dados. A contribuição da IA para a tomada de decisões é reconhecida, mas seu papel na decisão judicial é um tópico sensível.

Decisões judiciais são altamente complexas e podem ser influenciadas por diversos fatores, desde o entendimento do magistrado até suas experiências pessoais. Embora a IA possa minimizar certos vieses humanos, sua incorporação em processos judiciais deve ser feita com cautela, considerando os valores e nuances humanas inerentes a tais decisões (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Estudos indicam que algoritmos podem superar juízes humanos, em termos de precisão e imparcialidade. Contudo, a decisão de conceder à IA o poder de decidir sobre direitos humanos é uma escolha política e social significativa que requer um debate cuidadoso (CAMPOS; PEDRON, 2018).

Nesse sentido, embora a IA tenha demonstrado capacidades notáveis e potencial para melhorar a eficiência e precisão das decisões, sua integração à esfera judicial deve ser vista como uma ferramenta de apoio, e não substituição, à sagacidade e discernimento humanos.

Conclusão

O advento da tecnologia, particularmente da inteligência artificial, tem transformado o modo como diversas instituições operam em nossa sociedade. No cenário jurídico brasileiro, essa transformação tornou-se evidente na forma como os processos são gerenciados e nas decisões que são tomadas. A implementação de sistemas como o “Hórus”, pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), sinaliza um salto significativo nessa direção.

A capacidade de analisar grandes volumes de dados, identificar padrões, automatizar tarefas repetitivas e fornecer insights objetivos é revolucionária para o campo jurídico. Por muito tempo, os tribunais brasileiros enfrentaram desafios relacionados à sobrecarga de processos e à lentidão na tomada de decisões. Ferramentas como o Hórus não apenas atenuam esses desafios, mas também instigam uma melhoria contínua na prestação de serviços judiciais.

Importante destacar que a tecnologia não busca, de forma alguma, substituir o discernimento humano, que é fundamental no campo jurídico. Ao invés disso, a IA serve como uma ferramenta auxiliar que complementa a capacidade humana, fornecendo uma perspectiva mais ampla, reduzindo vieses e garantindo uma abordagem mais eficiente e justa dos casos.

Contudo, é fundamental que a implementação de tais sistemas seja feita com cautela e responsabilidade. Assim como a IA tem o potencial de melhorar significativamente as operações judiciais, seu uso inadequado pode acarretar consequências indesejadas. Por isso, é essencial que haja uma constante avaliação, atualização e treinamento dos profissionais envolvidos.

Neste sentido, a era digital promete grandes avanços para o setor jurídico, com o uso correto e adequado das ferramentas que estão sendo disponibilizadas. As iniciativas como o sistema “Hórus” representam o início de uma jornada que visa a modernização, eficiência e justiça no Poder Judiciário brasileiro. Se conduzida de maneira ética e informada, essa jornada pode resultar em um sistema jurídico mais ágil, transparente e alinhado com as necessidades contemporâneas da sociedade.

Além disso, é vital que, à medida que o sistema e ferramentas semelhantes evoluam, sejam incorporados mecanismos de transparência e responsabilidade. Em um domínio tão sensível quanto o Judiciário, a capacidade de entender e interpretar as decisões tomadas por sistemas de IA é crucial. Cada decisão, mesmo que informada ou sugerida por um algoritmo, deve ser passível de revisão, compreensão e, quando necessário, contestação.

A capacitação dos profissionais que operam no âmbito judiciário é outro aspecto crucial. O advento da IA no sistema judiciário não deve ser visto apenas como uma ferramenta de otimização, mas também como uma oportunidade para formação e educação contínua. A familiaridade com os sistemas de IA, compreensão de suas limitações e potencialidades, e habilidade em utilizar essas ferramentas de forma ética e eficaz são competências essenciais para o Judiciário do futuro.

Outra preocupação emergente é a privacidade e segurança dos dados. Com o aumento da digitalização dos processos judiciais e a implementação de ferramentas de IA, é imperativo garantir que os dados dos cidadãos estejam seguros e protegidos contra possíveis ameaças. O Tribunal de Justiça deve estar à frente em adotar as melhores práticas de segurança cibernética, garantindo a integridade dos dados e a confiança do público no sistema.

Apesar da rápida evolução das máquinas e sistemas, o Poder Legislativo tem se esforçado para garantir que qualquer modificação no sistema jurídico brasileiro seja realizada de forma meticulosa e precisa. Mesmo diante da complexidade e abrangência dos sistemas inteligentes, as máquinas ainda não conseguem substituir a capacidade de avaliação e julgamento humanos. Portanto, a principal preocupação é assegurar a transparência necessária para a implementação e evolução que estejam alinhadas com as expectativas da população do país.

A natureza evolutiva da tecnologia também sugere que o sistema de inteligência artificial, precisará ser atualizado e adaptado regularmente para refletir as mudanças na legislação, na jurisprudência e nas expectativas da sociedade. Esse compromisso contínuo com a inovação e adaptação é essencial para garantir que o sistema permaneça relevante e eficaz ao longo do tempo.

Em conclusão, a integração da inteligência artificial no judiciário, exemplificada, representa uma etapa promissora e desafiadora na jornada de modernização do sistema judicial brasileiro. Com os cuidados adequados, responsabilidade, e a participação ativa dos profissionais do setor, o futuro promete um sistema judiciário mais eficiente, justo e alinhado com as necessidades do século XXI.

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[1] ChatGPT (Chat Generative Pre-Trained Transformer) é um chatbot online de inteligência artificial (IA), desenvolvido pela OpenAI e lançado em novembro de 2022. O Transformador Generativo Pré-treinado é um tipo de modelo de linguagem grande (Large Language Model, LLM). O ChatGPT é construído com base nos modelos GPT fundamentais da OpenAI, especificamente GPT-3.5 e GPT-4, e foi ajustado para aplicações conversacionais usando uma combinação de técnicas de aprendizado supervisionado e de reforço.

[2] Disponível em: https://www.criminal-lawyers.com.au/criminal-law-ai-chatbot. Acesso em 01.12.2023.

[3] Disponível em: https://www.smartsettle.com/. Acesso em: 13.11.2023.

[4] O Teste de Turing testa a capacidade de um computador de exibir comportamento inteligente equivalente ao de um ser humano, ou indistinguível deste. 

[5] Processamento de língua natural (PLN) é uma subárea da ciência da computação, inteligência artificial e da linguística que estuda os problemas da geração e compreensão automática de línguas humanas naturais.

[6] Disponível em: https://kirasystems.com/. Acesso em: 13.11.2023.

[7] Bot, diminutivo de robot (robô), também conhecido como Internet bot ou web robot, é uma aplicação de software para simular ações humanas repetidas e padronizadas. Como programa de software, pode ser um utilitário que desempenha tarefas rotineiras, com recurso à inteligência artificial.

[8] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429. Acesso em 01.12.2023.

[9] Disponível em: https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0449. Acesso em: 01.12.2023.


Pedro Gabriel dos Santos Aquino. Graduando do curso de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. E-mail: pedro.aquino@direito.uniceplac.edu.br.

Fernando de Magalhães Furlan. Antigo Secretario-Executivo do Ministerio do Desenvolvimento, Industria e Comercio Exterior (MDIC) e assessor especial da CAMEX. Foi presidente do Conselho de Administracao do BNDES e da BNDESPAR. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE. Foi também diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. Atualmente e membro do grupo de especialistas do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL e consultor ad hoc de projetos de defesa da concorrência das Nações Unidas (UNCTAD). É professor de direito em Brasília e atua, como professor ou pesquisador, em universidades e institutos no Brasil e no exterior. É consultor externo ou membro não-governamental de organizações e institutos brasileiros e estrangeiros e consultorias. Graduado em Administração pela UDESC/ESAG e em Direito pela UnB, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela Universidade de Macau, China.


Os efeitos do Novo Arcabouço Fiscal sobre os componentes do Resultado Primário

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayer – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutoranda em direito pelo IDP/DF e mestre em direito pela UNB

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em direito

Ficha catalográfica:

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


Sumário

Introdução

1.      Regras fiscais no Brasil

2.      Evolução temporal do resultado primário e de seus componentes

3.      Os efeitos dos parâmetros do novo arcabouço fiscal sobre os componentes do resultado primário

3.1. O problema da União

3.2. O efeito da probabilidade de cumprir a meta de resultado primário

3.3. O efeito do nível de atividade

3.4. Os efeitos dos percentuais de acréscimo sobre a variação da receita

3.5. Os efeitos das elasticidades-PIB da despesa primária e da receita primária

Conclusão

Referências bibliográficas

Apêndice A. Derivação do problema da União com restrição do novo arcabouço fiscal

Apêndice B. Derivação do nível de atividade sobre os componentes do resultado primário

Apêndice C. Problemas da União com a restrição do Teto de Gastos na despesa primária

Apêndice D. Derivação do problema da União sem restrição na despesa primária

Apêndice E. Derivação do problema da União com a restrição do Teto de Gastos na despesa primária 

Apêndice F. Os efeitos dos percentuais sobre os componentes do resultado primário

Apêndice G. Os efeitos das elasticidades-PIB da despesa e da receita sobre os componentes do resultado primário

Introdução            

Regras fiscais de limitação da despesa têm sido adotadas em vários países como forma de ajustar os gastos dos governos a sustentabilidade da dívida pública. Existe uma diversidade de regras para atender o objetivo, sendo a regra de teto de gastos uma delas.

O Brasil adota a regra de teto de gastos desde 2016 com a promulgação da Emenda Constitucional nº 95, também chamada de Teto de Gastos, que foi revogada pela nova regra de teto de gastos chamada de Novo Regime Fiscal Sustentável, também conhecido por Novo Arcabouço Fiscal. Esse novo regime foi instituído pela Lei Complementar nº 200, de 23 de agosto de 2023.

No Teto de Gastos a despesa primária estava limitada pela correção pelo IPCA da despesa primária do anterior, enquanto o Novo Arcabouço Fiscal incorpora à correção das despesas o componente de renda real, que acrescenta 70% da variação da receita primária à despesa se a meta de resultado primário for cumprida e 50% da variação da receita primária à despesa se a meta de resultado primário não for cumprida.

O componente de renda real traz consigo a possibilidade da meta de resultado primário não ser cumprida até o limite de 25% das despesas discricionárias, sendo impostas restrições para cumprimento nos anos posteriores. Esse fato não descumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2001).

Portanto, ao contrário do que acontecia desde a entrada em vigor da LRF em 2001, em que a meta de resultado primário tinha que ser cumprida, ainda que fosse por alteração da meta via proposição legislativa encaminhada pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo, o Novo Arcabouço Fiscal inovou ao possibilitar o não cumprimento da meta de resultado primário. 

A principal crítica que a literatura econômica faz ao mecanismo de resultado primário é a de que esta medida é pró-cíclica, no sentido de que amplia as despesas nos períodos de crescimento econômico e as contrai nos períodos de recessão, penalizando os programas de apoio governamental mais necessários nestes períodos.

Por definição, o resultado primário sem qualquer restrição na despesa primária sofre desta desvantagem e o resultado primário com a restrição do Teto de Gastos não tem o condão de alterar a desvantagem da natureza pró-cíclica, uma vez que a imposição do Teto de Gastos com base na despesa passada não gera qualquer mecanismo para ampliar as despesas primárias em períodos de recessão.

Ao incorporar o componente real, o Novo Arcabouço Fiscal visa minimizar o problema pró-cíclico do resultado primário e faz isso ao acrescentar à despesa primária percentuais da variação de receita primária, permitindo um acréscimo de 50% da variação da receita em caso de não cumprimento da meta, situação em que são impostas restrições temporais para reestabelecimento do equilíbrio fiscal.

Motivado pelo desenho da nova regra de teto de gastos, o artigo tem por objetivo apresentar as variáveis que compõe e que são geradas pelo modelo e identificar os efeitos destas variáveis sobre os componentes do resultado primário: despesas primárias e receitas primárias.

São dois os resultados relevantes do artigo.

O primeiro é o de que o modelo do Novo Arcabouço Fiscal gera incentivos para que a meta de resultado primário seja cumprida. Esse é um resultado positivo e importante para a sustentabilidade da dívida pública.

O segundo resultado se refere ao fato de que o desenho do Novo Arcabouço Fiscal não soluciona o efeito pró-cíclico do resultado primário. Esse é um resultado inesperado, tendo em vista que o modelo foi estruturado para dar maior flexibilidade e ampliar as despesas primárias em períodos de recessão.

O artigo se encontra dividido em três partes: (i) regras ficais no Brasil; (ii) evolução temporal do resultado primário e dos seus componentes; e (iii) os efeitos dos parâmetros do novo arcabouço fiscal sobre a despesa e a receita primárias.

1.    Regras fiscais no Brasil

As regras fiscais são instrumentos utilizados pelos governos para fazer o controle fiscal das economias. Conforme define o Fundo Monetário Internacional, as regras fiscais são aquelas que impõe uma restrição duradoura à política fiscal através de limites numéricos sobre agregados orçamentários.

A literatura econômica aponta vários tipos de regras fiscais: regra de resultado, regra de despesa, regra de receita, regra de resultado orçamentário e regra de dívida pública.

De acordo com Brocado et al (2019), (i) as regras de resultado são aquelas que consideram uma métrica para as receitas e as despesas; (ii) as regras de despesa são aquelas que impõe um teto de gastos para as despesas públicas; (iii) as regras de resultado orçamentário são aquelas que estabelecem limites máximos à carga tributária ou definem o tratamento a ser observado quando houver arrecadação de receitas extraordinárias; e (iv) as regras de dívida pública são aquelas que visam a colocar a dívida pública em um determinado patamar.

Na economia brasileira estão presentes várias regras, sendo o resultado primário uma regra de resultado e o teto de gastos e o novo arcabouço fiscal as regras de despesa.

O resultado primário foi instituído, nos moldes como se encontra hoje, pela Lei de Responsabilidade Fiscal -LRF) (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000), o Teto de Gastos foi instituído pela Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016 e o novo regime fiscal, também conhecido como Novo Arcabouço Fiscal, foi instituído pela Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto de 2023.

O resultado primário, que é medido a partir da diferença entre as receitas primárias e as despesas primárias, é uma regra que tem por objetivo principal garantir uma trajetória sustentável da dívida pública, tendo em vista que os seus recursos são utilizados para pagamento do principal da dívida.

O Teto de Gastos é o nome dado a métrica para o cálculo da despesa primária limite no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, onde ficavam estabelecidos, para cada exercício, limites individualizados para as despesas primárias: I – do Poder Executivo; II – do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Conselho Nacional de Justiça, da Justiça do Trabalho, da Justiça Federal, da Justiça Militar da União, da Justiça Eleitoral e da Justiça do Distrito Federal e Territórios, no âmbito do Poder Judiciário; III – do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Tribunal de Contas da União, no âmbito do Poder Legislativo; IV – do Ministério Público da União e do Conselho Nacional do Ministério Público; e V – da Defensoria Pública da União.

 O cálculo da despesa primária individualizada para os exercícios posteriores ao ano da implantação era calculado a partir do valor da despesa primária referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou de outro índice que vier a substituí-lo, para o período de doze meses encerrado em junho do exercício anterior a que se refere a lei orçamentária [art. 2º, art. 107, II, art. 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988]:

Onde Desp t é a despesa primária no período t, Desp t-1 é a despesa primária no período imediatamente anterior e t-1 é a inflação do período imediatamente anterior.

O Teto de Gastos foi revogado pela Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto 2023, que deu origem ao regime fiscal sustentável (doravante denominado Novo Arcabouço Fiscal).

O Novo Arcabouço Fiscal estabelece, para cada exercício a partir de 2024, os limites individualizados para o montante global das dotações orçamentárias relativas a despesas primárias: I – do Poder Executivo federal; II – do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Conselho Nacional de Justiça, da Justiça do Trabalho, da Justiça Federal, da Justiça Militar da União, da Justiça Eleitoral e da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, no âmbito do Poder Judiciário; III – do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Tribunal de Contas da União, no âmbito do Poder Legislativo; IV – do Ministério Público da União e do Conselho Nacional do Ministério Público; e V – da Defensoria Pública da União.

O valor da despesa primária individualizada está prevista nos artigos 4º e 5º da Lei Complementar nº 200 e será obtido a partir da correção dos limites individualizados a cada exercício pela variação acumulada do IPCA, ou de outro índice que vier a substituí-lo, considerados os valores apurados no período de 12 (doze) meses encerrado em junho do exercício anterior ao que se refere a lei orçamentária anual, acrescidos da variação real da despesa, em relação à variação real da receita primária às seguintes proporções:

            Art. 5º

            …

I – 70% (setenta por cento), caso a meta de resultado primário apurada no exercício anterior ao da elaboração da lei orçamentária anual tenha sido cumprida, observados os intervalos de tolerância de que trata o inciso IV do § 5º do art. 4º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal); ou

II – 50% (cinquenta por cento), caso a meta de resultado primário apurada no exercício anterior ao da elaboração da lei orçamentária anual não tenha sido cumprida, observados os intervalos de tolerância de que trata o inciso IV do § 5º do art. 4º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

§ 1º O crescimento real dos limites da despesa primária, nos casos previstos nos incisos I e II do caput deste artigo, não será inferior a 0,6% a.a. (seis décimos por cento ao ano) nem superior a 2,5% a.a. (dois inteiros e cinco décimos por cento ao ano).

Portanto, o valor individualizado da despesa primária será obtido a partir da seguinte equação:

Onde VRRP é a variação real da receita primária, que respeita os seguintes limites:

O Novo Arcabouço Fiscal inova em relação a regra anterior, pois prevê no art. 6º a possibilidade de não cumprimento da meta de resultado primário[1], não configurando infração a LRF o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário se, entre outras coisas[2], o nível mínimo de despesas discricionárias necessárias ao funcionamento regular da administração pública for igual ou superior 75% (setenta e cinco por cento) do valor autorizado na respectiva lei orçamentária anual, dispositivo descrito no Art. 7º, §2º da Lei Complementar nº 200, 2023.

A explicitação do resultado primário no cálculo da despesa primária e a alteração expressa pela LCP 200 representa é uma segunda inovação da Lei que deu origem ao Novo Arcabouço Fiscal em relação a Emenda Constitucional que deu origem ao Teto de Gastos, pois, enquanto no Teto de Gastos a despesa primária limite era apenas uma variável exógena, no Novo Arcabouço Fiscal o cumprimento ou não da meta de resultado fiscal em dois períodos anteriores passou a determinar o limite para a despesa primária do ano vigente.

Essa inovação visa minimizar o principal problema do resultado primário apontado pela literatura econômica, que é o fato desta regra fiscal apresentar um comportamento pró-cíclico, ou seja, ampliar a despesa em momentos de crescimento econômico e de deprimi-la em momentos de recessão econômica.

2.    Evolução temporal do resultado primário e de seus componentes

A figura 1 apresenta a evolução do resultado primário e dos componentes despesa primária e receita primária desde a entrada em vigor da LRF em 2000.

Figura 1. Evolução do resultado primário e de seus componentes (acumulado em 12 meses)

Fonte: STN

Elaboração: autor

Como se pode verificar pela figura 1, o valor do resultado primário acima da linha se manteve superior ou igual a zero entre dezembro de 2001 e dezembro de 2014, ficando negativo até maio de 2022.

O período de 2016 a 2022 coincide com a entrada em vigor do Teto de Gastos em 2016 e com a entrada em vigor do Decreto Legislativo nº 6, de 2020, que reconheceu, para os fins do art. 65 da LRF, a ocorrência do estado de calamidade pública, determinando que fossem dispensadas o atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. 

Desde a entrada em vigor da LRF em 2000 até o ano de 2022 o valor do resultado primário oscilou entre valores positivos e valores negativos, sendo cumprida a meta em todos eles, quer seja por meio da limitação de empenho e de movimentação financeira ao longo do exercício, em cumprimento ao processo orçamentário definido no art. 9º da LRF[3], quer seja por intermédio de alteração da própria meta via proposição legislativa de autoria do Poder Executivo[4][5].

A figura 2 apresenta a evolução do PIB e das despesas e receitas primárias divididas em três períodos: (i) período até a entrada em vigor do Teto de Gastos; (ii) período de vigência do Teto de Gastos antes da entrada em vigor do Decreto Legislativo nº 6, de 2020; e (iii) período de vigência do Decreto Legislativo nº 6, de 2020.

Figura 2. Evolução do PIB e das receitas e despesas primárias por período

Fonte: STN

Elaboração: autor

A partir da análise da figura 2 é possível verificar que as despesas primárias cresceram de forma vigorosa entre 2001 e final de 2015 e se mantiverem relativamente constantes entre 2016 e início de 2020, período de vigência do Teto de Gastos antes da entrada em vigor do Decreto Legislativo nº 6, de 2020.

As receitas primárias tiveram trajetória semelhante àquela observada para as despesas primárias até a entrada em vigor do Decreto nº 6, crescimento robusto até a entrada em vigor do Teto de Gastos e relativa estabilidade até a vigência do Decreto de calamidade pública.

Neste período as despesas sofreram forte crescimento até o quarto bimestre de 2020 seguido de forte queda até o início de 2022 e as receitas foram fortemente frustradas até o final de 2020 e apresentaram forte recuperação até o início de 2022.

Por fim, vale destacar a existência de forte correlação positiva entre o PIB e as variáveis receita e despesa primárias. O coeficiente de correlação de Pearson calculado foi de 0,97 e 0,93 entre o PIB e a despesa primária e entre o PIB e a receita primária, respectivamente.

3.    Os efeitos dos parâmetros do novo arcabouço fiscal sobre os componentes do resultado primário

3.1. O problema da União

No novo arcabouço fiscal, o teto de gastos passou a considerar o primário como critério para a quantificação da despesa.

Com o novo regime, o problema do gestor é dado por:

Onde:

Neste caso, a condição necessária de primeira ordem é dada por:

de onde se constata que a despesa primária em t depende do cumprimento ou não da meta de resultado primário αt, do percentual da variação da receita primária a ser incorporado na despesa no período t (δ,ρ), da elasticidade-PIB da despesa no período t-1 (εt-1) e da elasticidade-PIB da receita em t e t-1 (ϴt,ϴt-1) do efeito do PIB.

Como

tem-se que:

Onde εt-1 é a elasticidade-PIB da despesa no período t-1, ϴt-1 é a elasticidade-PIB da receita em t-1 e ϴt é a elasticidade-PIB da receita em t.

3.2. O efeito da probabilidade de cumprir a meta de resultado primário

Até a entrada em vigor da Lei Complementar nº 200, de 23 de agosto de 2023, a LRF determinava que a meta de resultado primário tinha que ser cumprida, quer fosse por meio da limitação de empenho e pagamento, quer fosse pela alteração da meta via proposição legislativa encaminhada pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo.

A opção de não cumprir a meta foi uma inovação trazida na Lei que instituiu o novo arcabouço fiscal, conforme expresso no artigo 7º, caput, I, II, in verbis:

Art. 7º Não configura infração à Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário, relativamente ao agente responsável, desde que:

I – tenha adotado, no âmbito de sua competência, as medidas de limitação de empenho e pagamento, preservado o nível mínimo de despesas discricionárias necessárias ao funcionamento regular da administração pública; e

II – não tenha ordenado ou autorizado medida em desacordo com as vedações previstas nos arts. 6º e 8º desta Lei Complementar.

A análise do cumprimento da meta de resultado primário no novo arcabouço fiscal sobre a despesa primária permite identificar em que situação a despesa é superior (cumprir/não cumprir) e como se dá o efeito marginal da probabilidade de cumprimento sobre a mesma despesa.

O cumprimento da meta implica em α_t-2=1 e o seu não cumprimento implica em α_t-2=0.

O resultado sobre as despesas e a receitas primárias quando a meta é cumprida e quando não é cumprida são:

Portanto, a estratégia de cumprir a meta de resultado primário gera despesas e receitas primárias superiores a estratégia de não cumprir a meta para um resultado primário fixo σAF.

3.3. O efeito do nível de atividade

No modelo o nível de atividade é representado pelo parâmetro Φ e este é igual a razão entre os PIBs (Φ_t=yt/y_t-1) .

O efeito do nível de atividade sobre a despesa primária[6] e sobre a receita primária é dada pela equação:

As derivadas apresentadas na equação (9) demonstram que existe uma relação direta entre a atividade econômica medida por Φt e a despesa primária e a receita primária, o que significa dizer que aumentos na atividade econômica tem um efeito marginal positivo na despesa primária e na receita primária.

3.4. Os efeitos dos percentuais de acréscimo sobre a variação da receita

Os percentuais de acréscimo sobre a variação da receita primária têm um papel importante sobre a despesa primária e a receita primária.

O efeito dos percentuais sobre a despesa primária[7] e sobre a receita primária é dada pela equação:

Como se pode verificar, aumentos nos percentuais δ e ρ elevam a despesa primária e a receita primária.

3.5. Os efeitos das elasticidades-PIB da despesa primária e da receita primária

Por fim, os últimos parâmetros que afetam os componentes do resultado primário são as elasticidades-PIB da despesa primária e da receita primária.

Como se pode verificar, o efeito da elasticidade-PIB da despesa do período t-1 afeta negativamente os componentes do resultado primário, o que demonstra que quanto maior for a despesa no período anterior menor é o efeito destes gastos sobre a despesa primária do período atual.

Já a elasticidade-PIB da receita primária pode afetar tanto negativamente quanto positivamente os componentes do resultado primário, a depender do nível de atividade econômica:

Em períodos de crescimento econômico, aumentos na elasticidade-PIB da receita ampliam a receita primária e a despesa primária, já em nos períodos de recessão aumentos na elasticidade-PIB da receita diminuem tanto a receita primária quanto a despesa primária.

Esses resultados permitem concluir que o Novo Arcabouço Fiscal não resolve o problema pró-cíclico do resultado primário conforme propagado pela equipe econômica do governo, pois em períodos expansionistas da atividade produtiva despesas e receitas primárias aumentam e em período recessivos essas se reduzem.

Portanto, embora não se possa dizer com exatidão se o Novo Arcabouço Fiscal potencializa o efeito-pró-cíclico, pode-se pelo menos dizer, com base no modelo, que o mencionado problema persiste e que os objetivos de expansão das despesas em períodos de recessão não é um resultado natural do modelo.

Conclusão

As finanças públicas brasileiras contam com várias regras fiscais, dentre as quais pode-se citar o resultado primário, que é uma regra fiscal de resultado, e o regime fiscal sustentável, que é uma regra fiscal de despesa, comumente chamado de Novo Arcabouço Fiscal.

A experiência brasileira com regra fiscal de despesa se iniciou em 2016 com a promulgação da EC 95, de 2016, em que foi instituído o Teto de Gastos, regra fiscal que previa que a despesa primária do ano vigente deveria ser a despesa primária do ano anterior corrigida pela inflação oficial do Brasil (IPCA).

Essa regra fiscal deveria prevalecer por 20 anos a partir de 2016. No entanto, a publicação da Lei Complementar nº 200, de 23 de agosto de 2023, revogou o Teto de Gastos e instituiu o Novo Arcabouço Fiscal e, apesar de ser um regra de teto de gastos, o novo regime inovou em alguns aspectos, sendo os principais deles a possibilidade da meta de resultado primário não ser cumprida e a existência de um componente renda real.

A Lei Complementar nº 200 permite que a meta de resultado primário não seja cumprida desde que o gestor tenha envidado todos os esforços na execução do processo orçamentário-financeiro previsto na LRF e as despesas não ultrapassem o limite de 25% das despesas discricionárias.

A nova legislação também adicionou o componente de renda real ao já conhecida correção da despesa do ano anterior pelo IPCA, que, em apertada síntese, estipula um limite de tolerância em torno da meta de resultado primário e adiciona a despesa primária 70% da variação da receita primária em caso de cumprimento da meta de resultado primário e 50% da variação da receita primária em caso de não cumprimento da receita primária.

O componente de renda real é uma tentativa de minimizar o efeito pró-cíclico do resultado primário, pois, permitir que o cumprimento da meta de resultado primário se dê dentro de limites de tolerância é permitir que as despesas primárias oscilem também dentro destes limites de tolerância.

Tendo por base a motivação acima expressa, o artigo teve como objetivo apresentar as variáveis que afetam os componentes do resultado primário (despesas e receitas primárias) e identificar os efeitos de cada uma delas sobre estes componentes.  

Quatro foram os resultados obtidos: (i) cumprir a meta de resultado primário gera despesa primária e receita primária superiores a não cumprir a meta; (ii) a atividade econômica se relaciona de forma direta com a despesa primária e com a receita primária; (iii) os percentuais sobre a variação da receita primária ampliam a despesa primária e a receita primária; e (iv) a  elasticidade-PIB da despesa no período anterior afeta negativamente a receita primária e a despesa primária e a elasticidade-PIB da receita pode tanto afetar positivamente quanto negativamente a receita e a despesa primária, a depender se a economia esta em crescimento econômico ou em recessão.

Dois resultados chamam a atenção: um positivo e outro negativo.

O resultado positivo fica por conta dos incentivos gerados pelo modelo que garante que cumprir a meta gera maiores receitas e maiores despesas primárias do que não cumprir. Esse é um resultado mais que esperado de uma regra fiscal de despesa, pois o cumprimento de metas fiscais como o resultado primário é fundamental para a sustentabilidade da dívida.

O resultado negativo, por seu turno, fica por conta dos efeitos da elasticidade-PIB da receita sobre os componentes do resultado primário, uma vez que afeta a despesa e a receita primária quando a economia está crescendo e afeta negativamente os mesmos componentes quando a economia está em recessão.

Embora não se possa dizer com exatidão se o Novo Arcabouço Fiscal potencializa o efeito-pró-cíclico, pode-se pelo menos dizer, com base no modelo, que o mencionado problema persiste e que os objetivos de expansão das despesas em períodos de recessão não é um resultado natural do modelo.

Referências bibliográficas

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BORGES, Bráulio; PIRES, Manoel. Meta de resultado primário: descanse em paz. Blog do Ibre. FGV. 17 de abril de 2020. Disponível em: Meta de resultado primário: descanse em paz | Blog do IBRE (fgv.br). Acesso em: 01 de outubro de 2023.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União.

BRASIL. Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Diário Oficial da União. DOU de 20.3.2020 – Edição extra C.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União. DOU 15.12.2016.

BRASIL. Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Diário Oficial da União.

BRASIL. Lei Complementar nº 200, de 30 agosto de 2023. Institui regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico, com fundamento no art. 6º da Emenda Constitucional nº 126, de 21 de dezembro de 2022, e no inciso VIII do caput e no parágrafo único do art. 163 da Constituição Federal; e altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal). Diário Oficial da União. DOU de 31.8.2023.

BROCHADO, Acauã; BARBOSA, Flávia Fernandes Rodrigues; LEISTER, Maurício Dias; MARCOS, Rafael Perez; MOTA, Tatiana de Oliveira; SBARDELOTTO, Tiago; ARAÚJO, Vinícius Luiz Antunes. Regras Fiscais: uma proposta de arcabouço sistêmico para o caso brasileiro.  Secretaria do Tesouro Nacional. Texto para Discussão. TD nº 31/2019. Disponível em: 2019 TEXTOS_Texto 31.pdf (enap.gov.br). Acesso em: 29 de setembro de 2023.

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[1] Art. 6º Caso o resultado primário do Governo Central apurado, relativo ao exercício anterior, seja menor que o limite inferior do intervalo de tolerância da meta, de que trata o inciso IV do § 5º do art. 4º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), sem prejuízo da aplicação da redução do limite nos termos do inciso II do caput do art. 5º desta Lei Complementar e de outras medidas, aplicam-se imediatamente, até a próxima apuração anual, com fundamento no parágrafo único do art. 163 da Constituição Federal, as vedações previstas nos incisos IIIII e VI a X do art. 167-A da Constituição Federal.

§ 1º Caso o resultado de que trata o caput deste artigo seja, pelo segundo ano consecutivo, menor que o limite inferior do intervalo de tolerância da meta, aplicam-se, imediatamente, enquanto perdurar o descumprimento, as vedações previstas nos incisos I a X do art. 167-A da Constituição Federal

[2] O art. 7º prevê que, além do limite máximo 25% das despesas discricionárias, o gestor deve implementar as medidas de limitação de empenho e pagamento, conforme previsto na LRF.

[3] Art. 9oSe verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.

§ 1o No caso de restabelecimento da receita prevista, ainda que parcial, a recomposição das dotações cujos empenhos foram limitados dar-se-á de forma proporcional às reduções efetivadas.

§ 2º Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, as relativas à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico custeadas por fundo criado para tal finalidade e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.   (Redação dada pela Lei Complementar nº 177, de 2021)

§ 3o No caso de os Poderes Legislativo e Judiciário e o Ministério Público não promoverem a limitação no prazo estabelecido no caput, é o Poder Executivo autorizado a limitar os valores financeiros segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.              (Vide ADI 2238)

§ 4o Até o final dos meses de maio, setembro e fevereiro, o Poder Executivo demonstrará e avaliará o cumprimento das metas fiscais de cada quadrimestre, em audiência pública na comissão referida no § 1o do art. 166 da Constituição ou equivalente nas Casas Legislativas estaduais e municipais.

§ 5o No prazo de noventa dias após o encerramento de cada semestre, o Banco Central do Brasil apresentará, em reunião conjunta das comissões temáticas pertinentes do Congresso Nacional, avaliação do cumprimento dos objetivos e metas das políticas monetária, creditícia e cambial, evidenciando o impacto e o custo fiscal de suas operações e os resultados demonstrados nos balanços.

[4] Conforme aponta Barbosa (2022), a meta de resultado primário foi alterada por proposição legislativa do Poder Executivo em 12 vezes de 21 anos de 2001 a 2021.

[5] Borges e Pires (2023) apresentam a evolução temporal do cumprimento da meta de resultado primário desde 2001 a 2022..

[6] A derivação desta equação está no Apêndice B.

[7] A derivação desta equação está no Apêndice B.


Apêndice A. Derivação do problema da União com restrição do novo arcabouço fiscal


Apêndice B. Derivação do nível de atividade sobre os componentes do resultado primário



Apêndice D. Derivação do problema da União sem restrição na despesa primária


Apêndice E. Derivação do problema da União com a restrição do Teto de Gastos na despesa primária


Apêndice F. Os efeitos dos percentuais sobre os componentes do resultado primário


Apêndice G. Os efeitos das elasticidades-PIB da despesa e da receita sobre os componentes do resultado primário


Crimes contra o sistema financeiro e criptoativos: atuação e eficácia do Estado na sua prevenção

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

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Conselho editorial:

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Ficha catalográfica

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Crimes contra o sistema financeiro e criptoativos: atuação e eficácia do Estado na sua prevenção

Thiago Ferreira de Albuquerque da Silva[1]

Fernando de Magalhães Furlan[2]

Resumo:

Este artigo aborda os crimes financeiros, com foco nos criptoativos. São tratados conceitos, tipos de crimes, regulação, atuação estatal na prevenção, via políticas públicas, e a eficácia judiciária na persecução e punição. São também discutidos desafios e vulnerabilidades no setor, destacando a relevância das tecnologias como inteligência artificial e Blockchain. São citados casos de crimes financeiros com criptoativos e a intervenção estatal na prevenção e punição. O artigo aborda a complexidade dos crimes financeiros, com foco especial nos delitos ligados ao sistema financeiro e aos criptoativos. O estudo examina o papel do Estado na deterrência desses crimes por meio de políticas públicas e iniciativas governamentais. A efetividade do sistema judiciário na identificação, investigação e punição dos infratores também é discutida. Casos concretos de crimes financeiros envolvendo criptoativos destacam o papel crucial do Estado na repressão dessas infrações.

Palavras-chaves: crimes financeiros, criptoativos, sistema judiciário, Blockchain.

Abstract:

This article addresses financial crimes, focusing on those related to the financial system and crypto assets. It also addresses concepts, types of crimes, regulation, state action in prevention via public policies and judicial effectiveness in punishment. The article discusses the challenges and vulnerabilities in the sector, highlighting the relevance of technologies such as artificial intelligence and Blockchain. Cases of financial crimes with crypto assets and government intervention in prevention and punishment are cited. We explore the complexity of financial crimes, with a special focus on crimes linked to the financial system and crypto assets. Concepts, criminal typologies, and current regulation are presented in detail. The study examines the role of the State in mitigating these crimes through public policies and government initiatives. The effectiveness of the justice system in identifying, investigating, and punishing offenders is also discussed, along with the vulnerabilities of the traditional financial sector and crypto assets. Innovative technologies such as artificial intelligence and Blockchain emerge to address these challenges. Concrete cases of financial crimes involving crypto assets highlight the crucial role of the State in curbing these transgressions.

Keywords: financial crimes, crypto assets, judicial system, Blockchain

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o uso de criptoativos tem se tornado uma tendência significativa e amplamente adotada em todo o mundo, marcando uma mudança notável no cenário financeiro global. Essa ascensão meteórica dessa forma de ativos digitais trouxe consigo uma série de questões e desafios relacionados à integridade financeira e à segurança cibernética. À medida em que as transações financeiras se tornaram mais digitais e descentralizadas/distribuídas, também se multiplicaram as preocupações em torno de crimes financeiros, que não se limitam apenas ao mundo convencional, mas também abrangem o ecossistema emergente dos criptoativos.

O sistema financeiro, que agora abarca tanto o tradicional quanto o baseado em criptoativos, está suscetível a uma gama diversificada de crimes, que vão desde a clássica lavagem de dinheiro e fraudes, até esquemas complexos de pirâmide financeira e o temido financiamento ao terrorismo. Diante desse panorama, o Estado desempenha papel fundamental como guardião da estabilidade financeira e regulador da segurança nos mercados. Isso implica responsabilidade de regulamentar e fiscalizar, tanto o sistema financeiro tradicional, quanto o ambiente volátil dos criptoativos. Além disso, o Estado deve ser proativo na criação de políticas públicas e iniciativas governamentais destinadas a combater esses delitos e manter a confiança do público no sistema.

No entanto, mesmo com a regulamentação vigente, persistem desafios consideráveis na prevenção de crimes financeiros envolvendo criptoativos. As lacunas e vulnerabilidades existentes no sistema financeiro e nos próprios ativos digitais criam um ambiente propício para ações criminosas. Nesse sentido, a inovação tecnológica desempenha um papel crítico. O desenvolvimento de novas tecnologias, como a inteligência artificial e a Blockchain, surge como uma necessidade premente para fortalecer a capacidade de prevenção e detecção desses crimes, que também estão se adaptando e se tornando mais sofisticados em suas operações.

Nesse contexto, a análise de casos de crimes financeiros envolvendo criptoativos se torna imperativa. É por meio dessas análises que podemos compreender a eficácia da atuação do Estado na prevenção e punição desses delitos. O objetivo deste artigo é, portanto, analisar o cenário atual de crimes contra o sistema financeiro envolvendo, especialmente, os criptoativos, bem como as medidas adotadas pelo Estado para prevenir e punir esses delitos. Buscamos identificar desafios e sugerir soluções para aprimorar a prevenção desses crimes, garantindo um ambiente mais seguro e confiável para todos os participantes do mercado financeiro.

Diante disso, a pergunta problema que norteia este trabalho é a seguinte: “o Estado é eficaz na atuação e prevenção dos crimes contra o sistema financeiro por meio de criptoativos?” Para responder a essa questão, abordaremos toda a legislação vigente no Brasil, relacionada aos crimes financeiros e à regulamentação dos criptoativos, com o objetivo de identificar as áreas que precisam de melhorias para proporcionar uma maior segurança jurídica em relação aos ativos virtuais. Quanto à metodologia, optaremos pelo método indutivo, partindo do particular para chegar a conclusões gerais, permitindo-nos estabelecer generalizações sólidas, com base em observações específicas.

2. OS CRIPTOATIVOS E SUA REGULAMENTAÇÃO NO BRASIL

Os criptoativos são um conjunto de ativos armazenados e operados em uma rede

Blockchain, utilizando criptografia como medida de segurança. Uma característica importante dos criptoativos é que as transações envolvendo esses ativos (exceto fundos) não dependem da supervisão de um banco ou qualquer outra instituição financeira. O Brasil tem testemunhado um crescimento significativo no uso e adoção de criptoativos. Segundo dados da Receita Federal do Brasil, o número de brasileiros que investem em criptomoedas mais que dobrou entre 2019 e 2020 (MATURANA, 2022).

Os criptoativos também têm despertado interesse no setor financeiro brasileiro. O Banco Central do Brasil tem realizado estudos sobre as possibilidades de uma moeda digital emitida pela instituição, conhecida como CBDC[1] (Banco Central do Brasil, 2020). No Brasil, existem desafios a serem enfrentados no contexto dos criptoativos, incluindo questões regulatórias, segurança e educação financeira. No entanto, há também perspectivas positivas de crescimento e inovação nesse mercado (CORREA, 2021).

Os criptoativos, representados pelas criptomoedas e ativos digitais, têm se estabelecido como uma nova forma de realizar transações financeiras. Segundo Dagostim Júnior (2018), Nakamoto, criador do Bitcoin, “a principal inovação do Bitcoin é que ele permite a transferência de valor pela internet sem a necessidade de um intermediário confiável”. Essa capacidade de transação direta entre as partes, sem a necessidade de uma instituição financeira humanitária, tem atraído a atenção de indivíduos e empresas que buscam uma alternativa aos sistemas financeiros tradicionais.

Conforme ressaltado por Torga (2012), assim têm apresentado um potencial significativo na economia global. Eles possibilitam a inclusão financeira de pessoas que antes eram excluídas do sistema bancário tradicional, permitindo-lhes acessar serviços financeiros de forma mais democrática. Além disso, a tecnologia blockchain, que sustenta os criptoativos, oferece uma maior segurança e transparência nas transações, atendendo a necessidade de confiança em terceiros. Conforme ressaltado por Tapscott e Tapscott (2016), “a tecnologia Blockchain pode ter um impacto tão grande quanto a própria internet, interagindo como estruturas centrais do nosso sistema econômico, social e político”.

Apesar do potencial dos criptoativos, existem desafios regulatórios e preocupações em relação à segurança. A falta de regulamentação clara e abrangente tem levantado questões sobre a proteção dos investidores e a prevenção de atividades ilegais, como a lavagem de dinheiro. Coradin (2022) destaca que “o estabelecimento de um ambiente regulatório saudável é essencial para garantir a integridade dos mercados de criptoativos e proteger os interesses dos investidores”.

No entanto, as perspectivas para essa inovação financeira e a tecnologia Blockchain que a sustenta são notavelmente positivas, oferecendo inclusão financeira e transparência nas transações, além de desafiar os sistemas financeiros tradicionais. Como observado, a capacidade de transações diretas sem intermediários confiáveis atrai tanto indivíduos quanto empresas, promovendo uma alternativa valiosa aos sistemas financeiros tradicionais. Desafios regulatórios, segurança e educação financeira continuam a ser pontos de atenção. A falta de regulamentação clara e preocupações com atividades ilegais, como a lavagem de dinheiro, exigem um ambiente regulatório saudável para proteger os investidores e manter a integridade dos mercados de criptoativos. (BORGES, 2018)

Destacando a crescente importância dos criptoativos, como as criptomoedas, na cena financeira global e brasileira. Esses ativos digitais, baseados em Blockchain e criptografia, oferecem uma alternativa inovadora aos sistemas financeiros tradicionais, possibilitando transações diretas sem intermediários. Isso impulsiona a inclusão financeira e aprimora a segurança e transparência das transações. No entanto, também ressalta desafios como a falta de regulamentação e preocupações com atividades ilegais.

As moedas digitais são apresentadas como uma inovação que permite transações financeiras diretas, sem a necessidade de intermediários confiáveis, o que atrai tanto indivíduos quanto empresas em busca de alternativas aos sistemas financeiros tradicionais. Além disso, destaca-se o potencial inclusivo e transparente da tecnologia blockchain subjacente, embora se reconheça a existência de desafios regulatórios e preocupações com a segurança que precisam ser abordados para garantir a integridade dos mercados de criptoativos e a proteção dos investidores.

Essa nova forma de ativos financeiros tem demonstrado um potencial significativo na economia global, influenciando positivamente a inclusão financeira. Os criptoativos possibilitam que pessoas anteriormente excluídas do sistema bancário tradicional acessem serviços financeiros de maneira mais democrática e participativa. Como afirma Vieira dos Santos (2021) A tecnologia subjacente aos criptoativos, A Blockchain, oferece maior segurança e transparência nas transações, atendendo à necessidade de confiança em terceiros. Assim a tecnologia Blockchain pode ter um impacto tão grande quanto a própria internet, interagindo com as estruturas centrais do nosso sistema econômico, social e político.

No entanto, para Konescki (2023) apesar desse potencial transformador, os criptoativos também enfrentam desafios significativos, principalmente no que diz respeito à regulamentação e à segurança. A falta de regulamentação clara e abrangente tem levantado preocupações sobre a proteção dos investidores e a prevenção de atividades ilegais, como a lavagem de dinheiro.

O cenário dos criptoativos no Brasil reflete os desafios globais e as oportunidades que essa tecnologia traz para a economia e a sociedade. É essencial que as regulamentações se desenvolvam de forma a equilibrar a inovação com a proteção dos interesses dos investidores e a prevenção de atividades ilegais, garantindo assim um ambiente seguro e confiável para todos os participantes do mercado de criptoativos.

A regulamentação de criptoativos no Brasil está em pleno desenvolvimento. Em 2021, o Banco Central do Brasil publicou a Resolução nº 4.893, que estabelece diretrizes para o funcionamento de arranjos e instituições de pagamento baseados em criptoativos e para a prestação de serviços relacionados a criptoativos por instituições financeiras, incluindo a necessidade de identificação dos clientes e a comunicação de transações suspeitas. Além disso, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem emitido comunicados e orientações sobre sobre a oferta pública de criptoativos no país, destacando a importância da conformidade com as regulamentações vigentes (CVM, 2021).

Esses regulamentos são passos significativos na tentativa de disciplinar as operações com criptoativos no país, visando a trazer mais segurança e transparência para o mercado, um tópico de crescente importância no âmbito jurídico e financeiro.

Sob uma perspectiva do Direito Tributário, para Andrade (2023) procedeu-se a uma análise minuciosa do novo marco regulatório relacionado ao Bitcoin e outros ativos virtuais no Brasil, que é estabelecido pela Lei 14.478/2022. O objetivo foi avaliar a conformidade dessa legislação recente com as normas anteriormente estabelecidas sobre o tema e, ao mesmo tempo, examinar as potenciais implicações fiscais associadas à atividade de mineração do Bitcoin, conforme definido na nova regulamentação. Nesse processo, houve um exame inicial das características fundamentais das criptomoedas, incluindo o contexto de sua origem, os motivos subjacentes à sua criação e as tecnologias subjacentes que sustentam esse ativo, destacando as singularidades que conferem ao Bitcoin seu caráter inovador.

Essas ações regulatórias demonstram o compromisso das autoridades brasileiras em criar um ambiente regulatório seguro e transparente para o mercado de criptoativos, abordando preocupações como lavagem de dinheiro e proteção dos investidores. É fundamental observar que a regulamentação de criptoativos é um campo em constante evolução, e novas medidas podem ser implementadas para acompanhar o desenvolvimento desse mercado dinâmico. (ANDRADE, 2022)

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) também desempenha um papel crucial na regulamentação dos criptoativos no Brasil. A CVM emitiu comunicados e orientações específicas sobre o mercado de criptoativos no país, demonstrando seu compromisso em supervisionar e orientar as atividades relacionadas a criptomoedas e ativos digitais (CVM, 2021).

Vale destacar que, até recentemente, a inovação tecnológica trazida pelas criptomoedas enfrentava a ausência de previsões legislativas suficientes para lidar com essa nova ferramenta. Como observado Ludwig (2019), administração pública se viu forçada a emitir normas infralegais para trazer algum direcionamento à matéria, especialmente no que diz respeito às obrigações tributárias. A Lei nº 14.478/2022, por exemplo, define ativo virtual como a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, consolidando na redação os dois principais meios de atuação.

Portanto, a regulamentação dos criptoativos no Brasil está em constante evolução, à medida que o governo e as entidades reguladoras buscam criar um ambiente legal mais claro e seguro para as operações com criptomoedas e ativos digitais. As iniciativas do Banco Central do Brasil e da CVM, bem como a legislação recente, refletem o esforço para abordar as complexidades desse mercado em rápido crescimento.

No contexto global, os criptoativos têm sido apontados como uma inovação que permite transações financeiras diretas, sem a necessidade de intermediários confiáveis. A citação de Nakamoto, o criador do Bitcoin, ressalta a principal inovação por trás das criptomoedas: a transferência de valor pela internet sem intermediários. Essa capacidade tem atraído tanto indivíduos quanto empresas que buscam alternativas aos sistemas financeiros tradicionais. (LUCAS, 2019, p.1677-1281)

A tecnologia Blockchain, que sustenta os criptoativos, tem o potencial de revolucionar várias esferas da sociedade, como mencionado por KONESCKI (2023). Ela oferece segurança e transparência nas transações, abordando a necessidade de confiança em terceiros, o que pode ser particularmente relevante em economias em desenvolvimento. No entanto, apesar do seu potencial transformador, os criptoativos enfrentam desafios significativos, incluindo questões regulatórias e preocupações com a segurança. A falta de regulamentação clara tem levantado preocupações sobre a proteção dos investidores e a prevenção de atividades ilegais, como a lavagem de dinheiro.

Paralelamente às medidas tomadas pelo Banco Central e pela Comissão de Valores Mobiliários, o Brasil tem buscado estabelecer um ecossistema regulatório mais amplo para criptoativos. Isso envolve o diálogo com outros órgãos reguladores e a participação em discussões internacionais sobre o assunto. O objetivo é criar um ambiente que promova a inovação, ao mesmo tempo em que assegura a integridade do mercado e a proteção dos investidores, mantendo-se atualizado com as tendências globais no mundo dos ativos digitais. Nesse sentido, o Brasil se encontra em um momento de transição, buscando encontrar um equilíbrio entre a flexibilidade necessária para fomentar a inovação no setor de criptoativos e a regulamentação adequada para evitar possíveis abusos e riscos. A criação de diretrizes e regulamentações sólidas para o mercado de criptoativos é fundamental para garantir a proteção dos investidores, evitar atividades ilícitas, como a lavagem de dinheiro, e promover a confiança dos participantes no mercado. (MALDANER, 2022).

Os criptoativos, como o Bitcoin, para Alcarva (2021), têm ganhado destaque global como uma inovação que permite transações financeiras diretas, eliminando a necessidade de intermediários confiáveis. A tecnologia Blockchain, subjacente a esses ativos, oferece segurança e transparência nas transações, abordando a necessidade de confiança em terceiros, o que é especialmente relevante em economias em desenvolvimento. No entanto, apesar de seu potencial transformador, os criptoativos enfrentam desafios, incluindo questões regulatórias e preocupações com a segurança. A ausência de regulamentação clara tem levantado preocupações sobre a proteção dos investidores e a prevenção de atividades ilegais, como a lavagem de dinheiro. No Brasil, o Banco Central emitiu a Resolução nº 4.983 em 2021, estabelecendo diretrizes para operações com criptoativos, buscando aumentar a segurança e transparência no mercado.

É importante, como observado por Silva (2023, p.54-83), que a regulamentação de criptoativos é um campo em constante evolução, à medida que o governo e as entidades reguladoras buscam equilibrar a inovação com a proteção dos interesses dos investidores. A recente Lei nº 14.478/2022 definiu ativo virtual, consolidando na redação os dois principais meios de atuação. Isso demonstra o compromisso contínuo em adaptar a regulamentação à medida que o mercado de criptoativos continua a se desenvolver.

Desta forma, os criptoativos têm desempenhado um papel cada vez mais importante na economia global e brasileira, oferecendo inovação e desafios. A regulamentação está em constante evolução, com o Brasil tomando medidas significativas para criar um ambiente regulatório mais seguro e transparente para os participantes desse mercado dinâmico.

3 OS CRIMES CONTRA SISTEMA FINANCEIRO E CRIPTOATIVOS

Crimes contra o sistema financeiro, por meio de criptoativos, infelizmente têm se tornado cada vez mais frequentes na atualidade, apresentando um desafio para a prevenção e combate dessas práticas ilícitas. Por ser uma novidade, cercada de lendas e de complexo entendimento, os criptoativos têm sido utilizados como pano de fundo de velhos golpes e fraudes no mercado, as conhecidas pirâmides financeiras, que evoluíram de boi gordo e avestruz, para ativos digitais. Nesse sentido, é importante compreender os conceitos básicos, as características e os tipos de crimes envolvidos nesse contexto, a fim de identificar e punir os responsáveis.

De acordo com a Lei nº 7.492/1986, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, essas práticas se referem a “toda e qualquer ação ou omissão destinada a fraudar, omitir ou falsear a verdade, para obter vantagem, direta ou indireta, em prejuízo alheio ou próprio, ou para ocultar ou dissimular a verdade sobre fato juridicamente relevante” (BRASIL, 1986, art. 1º). Já os criptoativos, como o próprio nome sugere, são ativos digitais que utilizam criptografia para garantir sua segurança e rastreabilidade.

No Brasil, a regulamentação dos criptoativos ainda está em evolução. Leis como a Lei nº 12.865/2013 e instruções normativas, como a Instrução CVM nº 592/2017, têm buscado estabelecer diretrizes para as atividades relacionadas. No entanto, a eficácia dessas regulamentações é alvo de debate, pois a complexidade das operações financeiras com criptoativos torna a identificação e punição de criminosos um desafio.

A regulamentação clara e eficaz é essencial para coibir práticas ilícitas relacionadas a criptoativos. Além disso, a educação financeira e tecnológica desempenha um papel fundamental na prevenção de crimes. Os investidores e usuários devem ser informados sobre os riscos associados aos criptoativos, práticas de segurança e a importância da devida diligência antes de realizar qualquer transação.

Os crimes contra o sistema financeiro com criptoativos apresentam algumas características em comum. Em primeiro lugar, são praticados por indivíduos ou organizações que visam a obter vantagens financeiras ilícitas. Além disso, costumam envolver operações financeiras complexas e sofisticadas, o que torna a sua identificação e investigação ainda mais desafiadoras. O Banco Central do Brasil esclarece, inicialmente, que as chamadas moedas virtuais não se confundem com a “moeda eletrônica” de que tratam a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, e sua regulamentação infralegal. Moedas eletrônicas, conforme disciplinadas por esses atos normativos, são recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento denominada em moeda nacional. Por sua vez, os chamados ativos virtuais possuem forma própria de denominação, ou seja, são denominadas em unidade de conta distinta das moedas emitidas por governos soberanos, e não se caracterizam por dispositivo ou sistema eletrônico para armazenamento em reais. (KUTTLER, 2022).

Os crimes contra o sistema financeiro representam uma preocupação crescente em todo o mundo devido ao impacto negativo que têm sobre a estabilidade e a integridade do sistema financeiro e econômico. Segundo De Oliveira (2022), “a tecnologia Blockchain, utilizada pelos criptoativos, trouxe maior anonimato e agilidade nas transações, o que pode facilitar a prática de crimes financeiros”.

A lavagem de dinheiro é um dos crimes que mais preocupam as autoridades financeiras e governamentais. Com a ascensão dos criptoativos, também aumentou a preocupação com a possibilidade de sua utilização para fins ilícitos. De acordo com Gomes (2023), “as características de anonimato e descentralização presentes nos criptoativos tornam mais difícil rastrear a origem dos fundos e identificar os envolvidos em esquemas de lavagem de dinheiro”. Mais difícil sim, mas não impossível. A identificação de IPs (Internet protocols), a partir de onde foram realizadas transações suspeitas, tem sido muito utilizada na persecução e punição desse tipo de técnica criminosa.

A popularidade dos criptoativos também atraiu a atenção de fraudadores e golpistas que buscam explorar a falta de regulamentação e a desinformação dos investidores. Os esquemas Ponzi e as ofertas iniciais de moedas (ICOs[2]) fraudulentas são exemplos de crimes que ocorrem no contexto dos criptoativos. Segundo Graham (2016), “a falta de uma estrutura regulatória clara e a promessa de altos retornos levaram muitos investidores a caírem em armadilhas e perderem grandes somas de dinheiro”.

Diante desses desafios, é fundamental que as autoridades tomem medidas para combater os crimes contra o sistema financeiro no contexto dos criptoativos. A implementação de regulamentações claras e efetivas é essencial para coibir práticas ilícitas e proteger os investidores. Conforme destacado por Canteli (2021), “a adoção de políticas de identificação dos usuários, monitoramento das transações e cooperação internacional são passos importantes para combater os crimes financeiros relacionados aos criptoativos”.

Além das ações regulatórias, a educação e a conscientização desempenham um papel fundamental na prevenção dos crimes contra o sistema financeiro no contexto dos criptoativos. Os investidores e usuários devem ser orientados sobre os riscos envolvidos, como práticas de segurança e a importância de realizar uma devida diligência antes de realizar qualquer transação. Conforme mencionado por Azevedo (2022, p.1-24), “a educação financeira e tecnológica é fundamental para evitar que pessoas se tornem vítimas de crimes e fraudes no ambiente dos criptoativos”.

Para Da Paz (2023, p.27-30), a regulação e legislação do sistema financeiro e criptoativos é fundamental para a prevenção e combate aos crimes nesse contexto. Nesse sentido, é importante analisar as normas existentes e sua eficácia na prevenção de crimes contra o sistema financeiro e criptoativos. No Brasil, a regulação e legislação do sistema financeiro e criptoativos é estabelecida por diversas leis e normas. Dentre as principais, destacam-se a Lei nº 4.595/1964, que criou o Conselho Monetário Nacional (CMN) e o Banco Central do Brasil, e a Lei nº 12.865/2013, que dispõe sobre a criação e funcionamento das chamadas “moedas virtuais”, como os criptoativos.

Além disso, existem outras normas que visam a regulamentar as atividades financeiras com criptoativas, como a Instrução CVM nº 592/2017, que regulamenta as ofertas iniciais de moedas (ICOs), e as Instruções Normativas RFB nº 1.888 e 1.899, ambas de 2019, que estabelecem as regras para a declaração de criptoativos no Imposto de Renda (patrimônio e eventuais ganhos de capital). Apesar da existência de diversas normas e regulamentações, a eficácia na prevenção de crimes contra o sistema financeiro com criptoativos ainda é uma questão controversa. Segundo Machado Filho (2023), a complexidade das operações financeiras com criptoativos torna difícil a identificação e punição de criminosos, mesmo com a existência de normas e regulamentações.

A regulação e a legislação do sistema financeiro e criptoativos têm sido alvo de muitas discussões na comunidade acadêmica e no setor financeiro. Segundo a literatura, a falta de uma regulação clara e eficaz pode tornar esses mercados mais vulneráveis a práticas criminosas, como lavagem de divisas, financiamento ao terrorismo e evasão fiscal. Os autores destacam que, embora a tecnologia Blockchain, subjacente aos criptoativos, possa fornecer maior transparência e segurança nas transações, ainda há desafios significativos na prevenção de práticas ilícitas, especialmente em relação à identificação de usuários “anônimos” e ao rastreamento de transações transfronteiriças.

No Brasil, a regulamentação dos criptoativos ainda é incipiente, mas em 2019 a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou uma instrução normativa que regulamenta o investimento em criptomoedas por fundos de investimento. A instrução estabelece requisitos específicos para a aquisição e custódia desses ativos pelos fundos, visando a garantir a segurança dos investidores. No entanto, ainda há debates sobre a eficácia das regulamentações existentes e a necessidade de aprimoramento. (MONTELEONE, 2022).

Autores como Carvalho (2022), defendem a importância de regulamentações claras e bem definidas para garantir a integridade e transparência das transações em criptoativos. A regulação e legislação do sistema financeiro e criptoativos são essenciais para garantir a segurança e transparência nessas transações. Embora haja desafios na prevenção de crimes financeiros e criptoativos, a implementação de regulamentações eficazes pode fornecer uma base sólida para garantir a integridade e estabilidade desses mercados. Os crimes contra o sistema financeiro e criptoativos têm se tornado uma preocupação crescente em todo o mundo, representando desafios significativos para a prevenção e combate a essas práticas ilícitas. Para compreender melhor a natureza desses crimes, é fundamental analisar as normas e regulamentações que os cercam, bem como as características que compartilham.

Segundo a Lei nº 7.492/1986, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, essas ações envolvem a intenção de “fraudar, omitir ou falsear a verdade, para obter vantagem, direta ou indireta, em prejuízo alheio ou próprio, ou para ocultar ou dissimular a verdade sobre fato juridicamente relevante” (BRASIL, 1986, art. 1º). Isso demonstra a abrangência das atividades consideradas crimes nesse contexto.

Um dos principais desafios relacionados aos criptoativos é a lavagem de dinheiro, que tem se tornado uma preocupação constante das autoridades. Como Xavier (2022) observa, “as características de anonimato e descentralização presentes nos criptoativos tornam mais difícil rastrear a origem dos fundos e identificar os envolvidos em esquemas de lavagem de dinheiro”. Isso ressalta a necessidade de regulamentações mais rigorosas para abordar essas questões.

Além disso, a popularidade dos criptoativos atraiu fraudadores que buscam explorar a falta de regulamentação e a desinformação dos investidores. Destaca que “a falta de uma estrutura regulatória clara e a promessa de altos retornos levaram muitos investidores a caírem em armadilhas e perderem grandes somas de dinheiro”. Diante desses desafios, medidas regulatórias e educacionais se tornam fundamentais. Como Brito (2023) argumenta, “a educação financeira e tecnológica é fundamental para evitar que pessoas se tornem vítimas de crimes e fraudes no ambiente dos criptoativos”.

No contexto brasileiro, a regulamentação dos criptoativos ainda está em evolução, com várias leis e normas em vigor, como a Lei nº 12.865/2013 e a Instrução CVM nº 592/2017. No entanto, a eficácia dessas regulamentações é motivo de debate, como apontado, que destaca a complexidade das operações financeiras e criptoativos como um desafio na identificação e punição de criminosos.

A literatura acadêmica também enfatiza a importância de regulamentações equilibradas para garantir a integridade e estabilidade do sistema financeiro e dos criptoativos. Como argumenta, Correa (2018), que uma abordagem regulatória equilibrada é fundamental para evitar práticas criminosas, especialmente relacionadas à identificação de usuários “anônimos” e ao rastreamento de transações transfronteiriças.

4. ESTUDOS DE CASO: ANÁLISE DE CASOS DE CRIMES FINANCEIROS ENVOLVENDO CRIPTOATIVOS E A ATUAÇÃO DO ESTADO NA PREVENÇÃO E PUNIÇÃO

A atuação do Estado na prevenção de crimes financeiros é fundamental para garantir a integridade e segurança do sistema financeiro. Através de políticas públicas e iniciativas governamentais, o Estado pode implementar medidas de prevenção e combate a práticas ilícitas, como lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo e evasão fiscal.

De acordo com Martins (2018), a atuação do Estado na prevenção de crimes financeiros pode ser dividida em três fases: prevenção, detecção e punição. Na fase de prevenção, o Estado deve implementar medidas para evitar a ocorrência de práticas ilícitas, como a regulamentação e fiscalização do setor financeiro. Na fase de detecção, é importante a implementação de mecanismos para identificar e rastrear transações suspeitas. Já na fase de punição, o Estado deve ter mecanismos eficazes para responsabilizar os autores de práticas criminosas.

No Brasil, uma iniciativa importante do Estado na prevenção de crimes financeiros é a atuação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF). O COAF, de acordo com a Lei nº 13.974/2020, é órgão integrante do Banco Central do Brasil,  responsável por receber, examinar e identificar operações suspeitas de lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo e outros crimes financeiros. O órgão tem o papel de monitorar as atividades financeiras e reportar às autoridades competentes quando identificar transações suspeitas. (TERRON, 2020, p.238-257)

Além do COAF, há outras iniciativas governamentais voltadas à prevenção de crimes financeiros, como a criação de leis específicas e programas de treinamento e capacitação para profissionais do setor financeiro. Um exemplo é a Lei nº 9.613/1998, conhecida como Lei de Lavagem de Dinheiro, que estabelece as condutas criminosas e penas para a lavagem de dinheiro no Brasil. No entanto, apesar das iniciativas governamentais, ainda há desafios na prevenção de crimes financeiros. Um estudo realizado por Vidal (2023) destaca a importância da capacitação e treinamento contínuos de profissionais do setor financeiro para identificar e prevenir práticas ilícitas. Os autores ressaltam ainda a necessidade de uma cooperação internacional efetiva para combater crimes financeiros transnacionais.

De acordo Ovalles (2013), a regulação do setor financeiro é fundamental para garantir a integridade e segurança do sistema financeiro. A regulação envolve a criação de normas e padrões para as atividades financeiras, assim como a supervisão e fiscalização dessas atividades. Além disso, a regulação pode incluir a criação de mecanismos de monitoramento e controle para prevenir práticas ilícitas, como a lavagem de dinheiro.

Um exemplo de regulação no setor financeiro é a implementação de medidas de Know Your Customer (KYC) e Know Your Transaction (KYT), que envolvem a identificação e verificação da identidade dos clientes e a análise de suas atividades financeiras e/ou de cada transação realizada. Essas medidas são importantes para prevenir a lavagem de dinheiro e outras práticas ilícitas no setor financeiro. Além da regulação, outra iniciativa importante do Estado na prevenção de crimes financeiros é a capacitação de profissionais do setor financeiro. De acordo com Assi (2018), a capacitação de profissionais do setor financeiro é fundamental para identificar e prevenir práticas ilícitas no setor. Isso envolve a implementação de programas de treinamento e capacitação para profissionais de áreas como compliance, auditoria e segurança da informação.

Porém, apesar das iniciativas do Estado, ainda há desafios na prevenção de crimes financeiros. Um desses desafios é a complexidade das atividades financeiras, que pode dificultar a identificação de práticas ilícitas. Além disso, a falta de cooperação internacional também pode dificultar a prevenção de crimes financeiros transnacionais. A atuação do Estado na prevenção de crimes financeiros é essencial para garantir a integridade e segurança do sistema financeiro. Através de políticas públicas e iniciativas governamentais, o Estado pode implementar medidas eficazes para prevenir e combater práticas ilícitas no setor financeiro.

Na investigação e punição de crimes financeiros, verificamos eficácia do sistema judiciário na identificação e responsabilização dos criminosos. A investigação e punição de crimes financeiros têm se mostrado um desafio para o sistema judiciário em todo o mundo. Segundo Vieira (2023), esses crimes são caracterizados por sua complexidade e pela utilização de técnicas sofisticadas de ocultação de recursos, o que dificulta a identificação e responsabilização dos criminosos. Nesse sentido, é importante destacar a necessidade de uma cooperação internacional mais efetiva na investigação e punição desses crimes. A globalização e a utilização de novas tecnologias têm permitido que os crimes financeiros ultrapassem fronteiras e sejam cometidos em diferentes países. Por isso, é fundamental que haja uma coordenação internacional no combate a esses crimes.

No entanto, é necessário que cada país tenha um sistema judiciário eficaz na identificação e punição dos criminosos financeiros. Silva (2021) destaca a importância da capacitação e treinamento dos agentes responsáveis pela investigação desses crimes, além da utilização de tecnologias e ferramentas especializadas para a análise de dados financeiros. É preciso garantir a independência e autonomia dos órgãos responsáveis pela investigação desses crimes, evitando interferências políticas e econômicas que possam comprometer a eficácia do processo. Além disso, é fundamental que o sistema judiciário tenha recursos suficientes para lidar com a complexidade desses casos e para garantir a justiça e a punição adequada aos criminosos.

Diante desses desafios complexos, é imprescindível estabelecer uma atuação conjunta e coordenada entre os órgãos de investigação e aplicação da lei. Além disso, a colaboração ativa de empresas e instituições financeiras desempenha um papel crucial na prevenção e detecção desses delitos financeiros. É fundamental que haja um entendimento profundo da gravidade e da evolução desses crimes no cenário atual, exigindo um esforço coletivo para garantir a eficácia do sistema judiciário na identificação e responsabilização dos infratores financeiros. A complexidade dessas atividades criminosas, muitas das quais ocorrem entre fronteiras, demanda uma cooperação estreita entre as autoridades nacionais e internacionais. A troca de informações e a harmonização das práticas e regulamentações são instrumentos essenciais para combater esses crimes financeiros de forma eficaz. Além disso, a capacitação contínua dos profissionais envolvidos na prevenção e investigação desses delitos é crucial, dada a constante evolução das táticas utilizadas pelos criminosos financeiros.

Existem desafios na prevenção de crimes financeiros assim vejamos uma análise das lacunas e vulnerabilidades existentes no sistema financeiro e criptoativos. A prevenção de crimes financeiros é um desafio cada vez maior para os sistemas financeiros em todo o mundo. Diversas lacunas e vulnerabilidades têm sido identificadas no sistema financeiro tradicional, que permitem a prática de crimes financeiros, tais como lavagem de divisas, financiamento do terrorismo, corrupção e evasão fiscal (BARAN, 2023).

De acordo com Mohallem (2017), as lacunas e vulnerabilidades no sistema financeiro tradicional estão relacionadas à falta de transparência e eficácia na identificação de riscos, assim como a complexidade e fragmentação do sistema financeiro. Além disso, a falta de cooperação entre as autoridades regulatórias e de fiscalização tem dificultado a prevenção e a investigação de crimes financeiros.

A utilização de criptoativos, como o Bitcoin, também tem apresentado novas lacunas e vulnerabilidades no sistema financeiro, uma vez que essas moedas virtuais oferecem certo anonimato e privacidade aos usuários, dificultando a identificação de transações suspeitas e a prevenção de crimes financeiros. De acordo com Coradin (2022), a falta de regulamentação e supervisão dos criptoativos tem sido um dos principais desafios na prevenção de crimes financeiros relacionados a essas moedas virtuais. Além disso, a utilização de criptoativos em transações ilegais tem se tornado cada vez mais comum, o que reforça a necessidade de medidas efetivas de prevenção e combate a essas práticas.

Diante das lacunas e vulnerabilidades existentes no sistema financeiro e em relação aos criptoativos, a prevenção de crimes financeiros torna-se um desafio cada vez maior para as autoridades regulatórias e de fiscalização (VIDAL, 2023). É necessário que sejam adotadas medidas efetivas de prevenção e combate a essas práticas, tais como a implementação de normas e regulamentações específicas para os criptoativos, a cooperação internacional entre as autoridades regulatórias e de fiscalização, e o investimento em tecnologias avançadas de monitoramento e identificação de riscos.

Em suma, os desafios na prevenção de crimes financeiros são cada vez maiores, dada a complexidade e fragmentação do sistema financeiro tradicional, bem como a utilização de criptoativos que apresentam novas lacunas e vulnerabilidades. É necessário que sejam adotadas medidas efetivas de prevenção e combate a essas práticas, por meio da implementação de normas e regulamentações específicas, da cooperação internacional entre as autoridades regulatórias e de fiscalização, e do investimento em tecnologias avançadas de monitoramento e identificação de riscos.

Para prevenção de crimes financeiros são utilizadas tecnologias como por exemplo: uso de inteligência artificial, blockchain e outras ferramentas para prevenção e detecção de crimes.As tecnologias têm sido cada vez mais utilizadas na prevenção e detecção de crimes financeiros. A inteligência artificial, a Blockchain e outras ferramentas têm se mostrado eficazes na identificação de padrões e comportamentos suspeitos, permitindo uma ação mais rápida e efetiva dos órgãos responsáveis pela investigação e punição desses crimes. (ZANCAN, 2023, p.80-123)

De acordo com Brito (2020), a inteligência artificial tem sido utilizada para analisar grandes quantidades de dados financeiros e identificar padrões que possam indicar a ocorrência de crimes. Além disso, a tecnologia pode ser usada na criação de modelos preditivos, permitindo que os órgãos responsáveis pela investigação atuem de forma mais preventiva. A Blockchain, por sua vez, tem sido utilizado como uma ferramenta de rastreamento de transações financeiras, permitindo uma maior transparência e segurança nas transações realizadas por meio de criptoativos. A tecnologia permite a criação de registros imutáveis e descentralizados das transações, tornando mais difícil a ocorrência de fraudes e lavagem de dinheiro. Além disso, outras ferramentas tecnológicas também têm sido utilizadas na prevenção e detecção de crimes financeiros. A análise de dados em tempo real, o uso de algoritmos de detecção de anomalias e a utilização de ferramentas de reconhecimento facial são exemplos de tecnologias que podem ser aplicadas nesse contexto.

No entanto, é importante ressaltar que o uso dessas tecnologias não é uma solução definitiva para a prevenção e detecção de crimes financeiros. Segundo Carneiro (2022), é necessário que haja uma combinação de tecnologia e pessoal capacitado para garantir a eficácia do processo. É preciso que haja um trabalho conjunto entre as empresas e organizações financeiras, os órgãos responsáveis pela investigação e punição dos crimes financeiros e os desenvolvedores de tecnologias para aprimorar as ferramentas e garantir uma prevenção mais efetiva desses delitos.

Diante desse cenário, é fundamental que sejam promovidos investimentos em tecnologias que possam auxiliar na prevenção e detecção de crimes financeiros, bem como em capacitação de profissionais para a utilização dessas ferramentas. É necessário que haja uma compreensão da importância da tecnologia na luta contra esses crimes e um esforço conjunto para garantir uma atuação mais efetiva dos órgãos responsáveis pela investigação e punição dos criminosos financeiros.

A seguir estudos de caso: análise de casos de crimes financeiros envolvendo criptoativos e a atuação do estado na prevenção e punição. Segundo Domingues (2022), os crimes financeiros envolvendo criptoativos têm se tornado cada vez mais comuns, exigindo uma atuação efetiva do Estado na prevenção e punição desses delitos. Nesse contexto, é importante analisar casos concretos para entender as lacunas existentes no sistema e buscar soluções para evitar a ocorrência desses crimes. Um dos casos mais emblemáticos de crimes financeiros envolvendo criptoativos é o da Mt. Gox, uma das maiores exchanges de Bitcoin do mundo que entrou em colapso em 2014, levando à perda de mais de US$ 400 milhões em Bitcoins dos seus clientes. A empresa não possuía medidas de segurança adequadas para proteger os fundos dos clientes e não realizava auditorias regulares em seus sistemas. Além disso, a exchange não possuía uma licença adequada para operar como uma instituição financeira, o que dificultou a atuação do Estado na punição dos responsáveis pelo crime.

É importante destacar que a atuação do Estado na prevenção e punição de crimes financeiros envolvendo criptoativos enfrenta desafios em virtude da natureza descentralizada e anônima dessas transações. Porém, é fundamental que o Estado esteja atento a essa realidade e que sejam criadas regulamentações e ferramentas eficazes para a prevenção e punição desses crimes. Diante desses casos, é evidente a importância da atuação do Estado na prevenção e punição de crimes financeiros envolvendo criptoativos.

A necessidade de regulamentação adequada das empresas que atuam no mercado de criptoativos é evidente. Conforme destacado por Mikaelian (2014), a ausência de regulamentação clara pode criar brechas que permitem atividades ilegais, como a lavagem de dinheiro, prejudicando a integridade do mercado. Além disso, a capacitação dos órgãos responsáveis pela investigação e punição desses crimes é fundamental para a eficácia das medidas regulatórias. No entanto, não basta apenas regulamentar; é igualmente importante conscientizar a população sobre os riscos envolvidos na utilização de criptoativos e a importância da segurança dos fundos. A conscientização pública é crucial para evitar golpes e fraudes e para promover a utilização segura de criptomoedas. Portanto, a combinação de regulamentação eficaz, capacitação das autoridades e conscientização da população desempenha um papel crucial na construção de um ambiente mais seguro para o mercado de criptoativos.

No contexto brasileiro, são mencionadas operações da Polícia Federal, que visavam combater crimes relacionados a criptoativos, incluindo a lavagem de dinheiro obtido através do tráfico de drogas. O artigo ressalta a necessidade de regulamentação adequada das empresas que atuam no mercado de criptoativos para evitar atividades ilegais, como a lavagem de dinheiro, e destaca a importância da conscientização pública sobre os riscos associados ao uso de criptomoedas. Enfatiza-se que a combinação de regulamentação eficaz, capacitação das autoridades e conscientização da população desempenha um papel crucial na construção de um ambiente mais seguro para o mercado de criptoativos. No geral, o texto oferece uma visão abrangente dos desafios e da importância do Estado na regulação desse setor em constante evolução.

A atuação do Estado na prevenção de crimes financeiros desempenha um papel fundamental na manutenção da integridade do sistema financeiro global. Como destacado por Gama (2021), as políticas públicas e iniciativas governamentais desempenham um papel crucial na implementação de medidas eficazes para prevenir e combater práticas ilícitas, como lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo e evasão fiscal.

A falta de capacitação contínua dos profissionais do setor financeiro pode dificultar a identificação e prevenção de práticas ilícitas. Além disso, a natureza transnacional de muitos crimes financeiros exige uma cooperação internacional mais efetiva, como ressaltado por (SCHORSCHER, 2012).

No contexto atual, a utilização de criptoativos, como o Bitcoin, tem apresentado novos desafios na prevenção de crimes financeiros. De acordo com Guerreiro (2022), a falta de regulamentação adequada e a natureza pseudônima das transações com criptoativos podem dificultar a identificação de transações suspeitas e a prevenção de crimes financeiros nesse campo. Para lidar com esses desafios, as tecnologias desempenham um papel crescentemente relevante. A inteligência artificial tem sido usada para analisar grandes volumes de dados financeiros, identificando padrões e comportamentos suspeitos. Além disso, a tecnologia Blockchain, que oferece um registro imutável de transações, tem sido explorada para aumentar a transparência e a segurança no uso de criptoativos.

Para Fonseca (2023), a atuação do Estado na prevenção de crimes financeiros desempenha um papel absolutamente crucial para a manutenção da estabilidade do sistema financeiro global. O estabelecimento de políticas públicas bem elaboradas e leis específicas voltadas para a prevenção de atividades criminosas no contexto financeiro, juntamente com a atuação de órgãos de fiscalização como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), é fundamental nesse esforço. Essas estruturas regulatórias e legais proporcionam a base necessária para monitorar, detectar e combater atividades ilegais, tais como lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo e evasão fiscal, as quais podem minar a confiança no sistema financeiro.

Segundo Almeida (2021), atuação do Estado na prevenção de crimes financeiros, destacando que essa ação é fundamental para a manutenção da integridade do sistema financeiro global. Para alcançar tal objetivo, políticas públicas e leis específicas desempenham um papel crucial na implementação de medidas eficazes contra práticas ilícitas como lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo e evasão fiscal. No cenário brasileiro, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) é um órgão central nesse esforço, responsável por receber, examinar e identificar operações suspeitas. A existência de legislações, como a Lei de Lavagem de Dinheiro, fortalece ainda mais a prevenção desses crimes financeiros. No entanto, persistem desafios significativos, incluindo a necessidade de capacitação contínua dos profissionais financeiros e uma cooperação internacional mais efetiva devido à natureza transnacional desses crimes.

A complexidade adicional que a utilização de criptoativos traz para a prevenção de crimes financeiros, devido à falta de regulamentação adequada e à natureza pseudônima das transações envolvendo criptomoedas. Nesse contexto, as tecnologias desempenham um papel crescentemente relevante, com a inteligência artificial sendo usada para analisar dados financeiros e identificar atividades suspeitas, e a tecnologia Blockchain proporcionando maior transparência e segurança nas transações com criptoativos. Em suma, a atuação do Estado na prevenção de crimes financeiros é uma peça essencial para a manutenção da estabilidade do sistema financeiro global, e a combinação de regulamentações, tecnologias e cooperação internacional eficaz é fundamental para enfrentar os desafios que surgem nesse cenário em constante evolução.

5. CONCLUSÃO

Realizamos uma análise sobre a prevenção de crimes financeiros, explorando diversas facetas desse desafio complexo. Em primeiro lugar, ao examinar os conceitos básicos, características e tipos de crimes financeiros envolvendo criptoativos, evidenciou-se a intrincada natureza dessas práticas e a crescente necessidade de aprimorar a legislação para mantê-la atualizada em relação às constantes inovações tecnológicas.

No contexto da regulação e legislação do sistema financeiro e dos criptoativos, constatamos que, apesar da existência de normas e leis que regem esses mercados, subsistem muitas lacunas que podem ser exploradas por indivíduos mal-intencionados. Nesse sentido, torna-se imperativo um esforço mais robusto por parte das entidades reguladoras a fim de garantir a eficácia das normativas vigentes.

Uma análise das políticas públicas e iniciativas governamentais revelou que a atuação do Estado desempenha um papel fundamental na prevenção de crimes financeiros, por meio da implementação de medidas preventivas, investigativas e punitivas. Contudo, é notável a necessidade de uma coordenação mais eficiente entre os diversos órgãos responsáveis, a fim de garantir uma atuação verdadeiramente eficaz nesse contexto.

A investigação e punição de crimes financeiros foram avaliadas em termos da eficácia do sistema judiciário na identificação e responsabilização dos infratores. Foram identificados inúmeros desafios, como a dificuldade de rastrear transações financeiras e a escassez de recursos e estrutura nos órgãos encarregados das investigações.

Além disso, os desafios inerentes à prevenção de crimes financeiros foram evidenciados pela análise das lacunas e vulnerabilidades que permeiam o sistema financeiro e os criptoativos. A falta de transparência e a facilidade de ocultação de transações são apenas alguns dos obstáculos que precisam ser superados.

Quando se trata das tecnologias disponíveis para prevenção de crimes financeiros, observou-se que a inteligência artificial e a tecnologia Blockchain despontam como ferramentas potencialmente cruciais para a detecção e prevenção dessas práticas. Contudo, para sua eficácia plena, é necessário um investimento significativo em tecnologia e a capacitação adequada dos profissionais que lidam com essas soluções.

Ao analisarmos casos concretos de crimes financeiros envolvendo criptoativos e a atuação estatal na prevenção e punição, restou claro que é imperativo que as autoridades atuem de forma mais eficaz para coibir essas atividades ilícitas. Portanto, é recomendável que haja um esforço coordenado entre o Estado, as entidades reguladoras, as empresas do setor financeiro e a sociedade civil para aprimorar a prevenção de crimes financeiros, mediante investimentos substanciais em tecnologia e capacitação profissional, além de uma coordenação efetiva entre os órgãos competentes e a revisão periódica da legislação, a fim de manter o arcabouço regulatório alinhado com as rápidas mudanças tecnológicas.

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[1] Moeda digital do Banco Central ou Central Bank digital currency.

[2] Initial Coin Offering.


[1] Graduando do Curso Direito, do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. E-mail: thiago.brasiltreina@gmail.com.

[2] Professor doutor da Faculdade de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. E-mail: fernando.furlan@uniceplac.edu.br


A pirataria na indústria da moda e o Fashion Law

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayer – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutoranda em direito pelo IDP/DF e mestre em direito pela UNB

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


A pirataria na indústria da moda e o Fashion Law

Israel Doudement de Albuquerque Cunha & Fernando de Magalhães Furlan

Resumo

Este artigo tem como objetivo estudar a pirataria na indústria da moda, explorando suas causas e impactos no mercado e na sociedade. A indústria da moda é um mercado amplo que movimenta grande parte da economia, desde grandes marcas internacionais até marcas nacionais e locais. Por meio da análise da linha do tempo da moda até os dias atuais, será possível entender a importância dessa indústria e a necessidade de protegê-la legalmente. A falsificação de produtos na moda é uma violação sancionada pelo ordenamento jurídico, pois é lesiva para os consumidores e também para as marcas do segmento da moda. O tema suscita diversos impactos na sociedade, tais como os efeitos dos produtos falsificados na saúde dos consumidores, as razões pelas quais as pessoas adquirem itens falsificados, entre outros. O artigo utiliza o método dedutivo, onde a partir de um conjunto de premissas gerais sobre a pirataria na indústria da moda, será feita uma análise detalhada das suas consequências. A pesquisa se baseou em fontes bibliográficas e documentos legais, que serão utilizados para a construção de argumentos e reflexões sobre o tema proposto, com o objetivo de contribuir para a ampliação dos debates em busca de soluções aplicáveis para um conflito cada vez mais frequente.

Palavras-chave: pirataria; moda; propriedade intelectual; direito autoral.

Abstract

This article aims to study piracy in the fashion industry, exploring its causes and impacts on the market and society. The fashion industry is a vast market that moves a large part of the economy, from international brands to national and local brands. Through the analysis of the fashion timeline up to the present day, it will be possible to understand the importance of this industry and the need to protect it legally. Counterfeiting fashion products are a violation sanctioned by the legal system and the consumption of piracy is harmful to people and detrimental to fashion brands. The subject-matter of the article raises various questions, such as the effects of counterfeit products on consumer health, the reasons why people buy counterfeit items, among others. The present article uses the deductive method, where from a set of general premises about piracy in the fashion industry, a detailed analysis of the consequences of piracy in the fashion industry will be made. The article is based on bibliographic sources and legal documents, which will be used to construct arguments and reflections on the proposed topic, with the aim of contributing to the expansion of debates in search of applicable solutions for an increasingly frequent conflict.

Keywords: Piracy; Fashion; Intellectual property; Copyright

1. Introdução

A indústria da moda é uma das mais influentes e poderosas do mundo, movimentando uma grande receita anualmente e impactando a vida de milhões de pessoas. Desde a antiguidade, a moda tem sido utilizada como forma de expressão e identificação social, sendo um reflexo das culturas e dos valores de cada época. Atualmente, a moda continua sendo uma importante ferramenta de comunicação, sendo capaz de transmitir mensagens, ideias e estilos de vida.

No entanto, a indústria da moda também enfrenta grandes desafios, especialmente quando se trata de proteção de direitos autorais. A pirataria na moda é um problema grave e crescente, que afeta tanto os consumidores como os produtores. A pirataria é a reprodução não autorizada de produtos, geralmente com a intenção de imitar marcas e designs populares, sem o devido pagamento pelos direitos autorais. Na indústria da moda, a pirataria é particularmente problemática já que as marcas são, muitas vezes, a principal fonte de valor e diferenciação no mercado.

Os efeitos da pirataria na indústria da moda são amplos e podem ser devastadores. Para o consumidor, a pirataria pode levar a produtos de baixa qualidade, que não atendem aos padrões de segurança e saúde, além de serem vendidos a preços mais baixos, mas ainda assim, mais caros do que o custo real de produção. Para o produtor, a pirataria pode levar à perda de vendas, lucros e prestígio, além de ameaçar a integridade de sua marca e design. Para o mercado em geral, a pirataria pode levar a uma perda de confiança dos consumidores, desestimular a inovação e prejudicar a economia.

Neste artigo, será analisado o impacto da pirataria na indústria da moda, levando em conta o direito autoral, os efeitos para o consumidor, para o produtor e para o mercado. Será realizada uma revisão da literatura sobre o assunto, bem como uma análise de casos reais de pirataria na moda. Além disso, serão discutidos os efeitos jurídicos da pirataria no mundo da moda, com destaque para as principais leis e regulamentações definitivas.

Esperamos contribuir para a conscientização sobre a importância da proteção dos direitos autorais na indústria da moda e sobre os impactos da pirataria para todos os envolvidos. Além disso, esperamos ajudar na elaboração de políticas públicas e estratégias empresariais para combater a pirataria na moda e promover uma indústria ética, confiável e sustentável.

2. A economia da moda

É imprescindível destacarmos a relevância econômica que a indústria da moda tem no mundo atual. Segundo Minsky (1982), “A economia se transforma a cada ciclo e a instabilidade financeira, presente no âmbito do capitalismo global, é a principal responsável pela existência dos ciclos econômicos e é resultante de forma endógena à conduta dos agentes econômicos”.

De acordo com um relatório da McKinsey & Company, intitulado The State of Fashion (2021), a indústria da moda movimenta cerca de US$ 2,5 trilhões (R$ 12,5 trilhões, aproximadamente) por ano, abrangendo desde a produção de matérias-primas, até a venda de produtos acabados. O valor corresponde a cerca de 2% (dois por cento) do PIB global, o que evidencia a sua grande relevância econômica. Esse valor inclui não apenas a produção de vestuário e acessórios, mas, também, serviços relacionados à moda, como marketing, merchandising e publicidade.

Segundo dados da Business of Fashion (2021), essa indústria é responsável por empregar cerca de 60 milhões de pessoas ao redor do mundo. Esse número engloba, desde pequenas empresas de moda, até gigantes do setor, como a Nike, a Adidas e a Inditex, proprietária da marca Zara.  No Brasil, conforme demonstra a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT)[1], em agosto de 2021 o setor gerou 102.658 (cento e dois mil, seiscentos e cinquenta e oito) empregos formais, o que demonstra a relevância da categoria, tanto economicamente, quanto na esfera social.

A indústria da moda é responsável por empregar pessoas de diversas profissões, incluindo designers de moda, costureiros, modelos/manequins, vendedores, programadores de sistemas, advogados, contadores, redatores, economistas, jornalistas, entre outros. Para Mackenzie (2010), a moda atual é global e abrangente, não sendo definida apenas pela alta costura, tendo a capacidade de atingir todos os setores da sociedade.

Em parte, pode-se afirmar que a moda evoluiu de um modelo que atendia às preferências individuais de cada consumidor (haute couture), com produtos únicos, para um modelo mais massificado, com produtos vendidos em grandes quantidades (prêt-à-porter). A indústria da moda atualmente apresenta dois elementos distintos: enquanto a alta-costura dos estilistas continua a atender a demanda por peças únicas e exclusivas, a indústria fast fashion tem evoluído para a produção em massa, com as indústrias de confecção fabricando produtos de moda em grande escala para o consumo final e distribuindo-os em todo o país e, por vezes, até mesmo no mundo todo.

O ato de consumir é parte intrínseca da vida humana. Desde elementos básicos para a sobrevivência, como os alimentos, até produtos considerados supérfluos, a sociedade moderna é preparada para desempenhar o papel de consumidora, de forma cada vez mais sofisticada e desenvolvida.

[…] a sociedade do consumo é aquela que pode ser definida por um tipo específico de consumo, o consumo de signo ou commodity sign, como é o caso de Jean Baudrillard em seu livro A sociedade de consumo. Para outros a sociedade de consumo englobaria características sociológicas para além do commodity sign, como consumo de massas e para as massas, alta taxa de consumo e descarte de mercadorias per capita, presença da moda, sociedade de mercado, sentimento permanente de insaciabilidade e o consumidor como um de seus principais personagens sociais (BARBOSA, 2004, p. 8).

A moda também é um importante gerador de riqueza em nível local. Em muitas cidades, os distritos de moda são vitais para a economia local, proporcionando empregos, atraindo turistas e estimulando o crescimento econômico. Além disso, essa indústria tem sido uma das principais forças por trás da revitalização urbana em muitas áreas degradadas ao redor do mundo.

Portanto, a moda é uma indústria global altamente rentável e vital para a economia mundial, proporcionando empregos, impulsionando a inovação e gerando riqueza. No entanto, a indústria também enfrenta desafios significativos que precisam ser abordados, incluindo a necessidade de adotar práticas mais sustentáveis e responsáveis em toda a cadeia de fornecimento. Com a colaboração de todas as partes interessadas, a moda pode continuar a desempenhar um papel fundamental na economia global, enquanto se torna mais sustentável e justa para todos os envolvidos. Outro desafio, a seguir abordado, é a pirataria, que prejudica boa parte da economia da moda, afetando os produtores e lesando os consumidores.

3. Direito e moda

             O objetivo aqui é explorar a relação entre direito e moda, abordando, especificamente, o papel do direito autoral e da propriedade intelectual na indústria da moda, bem como a importância do Fashion Law como uma área do conhecimento jurídico em ascensão.

3.1. Direito autoral e propriedade intelectual

O Direito autoral e a propriedade intelectual são conceitos fundamentais na proteção da criatividade e da inovação na indústria da moda. O direito autoral protege a obra criativa de um autor, enquanto a propriedade intelectual abrange uma variedade de proteções da propriedade, incluindo patentes, marcas registradas e segredos comerciais. Ambos são importantes no âmbito da pirataria na indústria da moda.

O direito autoral é regulamentado pela Lei nº 9.610/98, que estabelece os direitos autorais de uma obra. Ele protege a obra como um todo, incluindo a forma em que ela é expressa e a maneira como é apresentada. O direito autoral é concedido, automaticamente, a um autor, assim que a obra é criada, sem a necessidade de registro. Além disso, o autor tem o direito exclusivo de reproduzir, distribuir, exibir e criar trabalhos derivados da obra. Para Bittar (2013, p. 27), direito autoral ou direito de autor “é o ramo do direito privado que regula as relações jurídicas, advindas da criação e da utilização econômica de obras intelectuais estéticas e compreendidas na literatura, nas artes e nas ciências”.

A própria Lei de Direitos Autorais (LDA), trata da definição dos direitos autorais em seu artigo 3º, que os trata como “bens móveis”, para os efeitos legais. Uma ficção jurídica, criada com a intenção de garantir ao titular de tal direito o aproveitamento simultâneo de direitos de propriedade e os pessoais (FONSECA, 2012). Como visto, o Direito Autoral surge no momento da criação da obra, independentemente de haver ou não o registro. Assim, Fábio Ulhôa (2013) ensina:

O direito de exclusividade do criador de obra científica, artística, literária ou de programa de computador não decorre de algum ato administrativo, mas da criação mesma. Se alguém compõe uma música, surge do próprio ato de composição o direito de exclusividade de sua exploração econômica. É certo que a legislação de direito autoral prevê o registro dessas obras: o escritor deve levar seu livro à Biblioteca Nacional, o escultor sua peça à Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o arquiteto seu projeto ao CREA e assim por diante. Estes registros, contudo, não têm natureza constitutiva, mas apenas servem à prova de anterioridade da criação, se e quando necessária ao exercício do direito autoral.

Na indústria da moda, o direito autoral é crucial na proteção das criações de design, que incluem estampas, padrões, desenhos de roupas e, até mesmo, a aparência geral de uma peça de vestuário. A Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610, de 1998), já mencionada, regulamenta a prática da permissão do direito do criador no uso de sua obra (artigo 28 da LDA), dentro dos limites legais, além de proteger o vínculo entre o autor e os exploradores de suas criações, que podem ser de natureza literária, artística ou científica, como, por exemplo, livros, esculturas, pinturas, projetos e pesquisas científicas, dentre outras. A lei também inclui proteção para os direitos conexos[2], conforme mencionado em seu artigo 1º.

Para fins legais, o direito autoral é dividido em (i) direitos patrimoniais (direito real) e (ii) direitos morais (direito pessoal). Os direitos morais são inerentes à personalidade do criador e, portanto, de natureza pessoal, decorrente do próprio processo criativo, peculiar de cada autor, visando protegê-lo. Esses direitos mantêm a ligação íntima entre o criador e sua produção. Em resumo, o direito autoral tem como objetivo proteger a materialização, o bem corpóreo que decorre da expressão do espírito humano em diversas áreas de manifestação da vocação humana. Diz Menezes (2007, p. 39) que, “com efeito, pode-se concluir que o direito de autor possui, como principal objeto, a proteção à obra pessoal, criativa, exteriorizada e de natureza imaterial, cuja essência é de caráter artístico e/ou literário”.

Diante disso, é possível concluir que as criações de moda também deveriam ser protegidas pelos direitos autorais, uma vez que essas peças derivam da produção do “espírito humano” e, portanto, não deveriam necessitar de registro. A assinatura do estilista, ou seja, seu desenho, estilo, estudo e influências sobre cada peça, é prova inequívoca de sua autoria. No entanto, há limitações à proteção do direito autoral na indústria da moda. Por exemplo, o design de uma roupa simples, como uma camiseta básica, pode não ser protegido pelo direito autoral, vez que é considerado uma algo demasiado simples e desprovido de criatividade.

Por outro lado, a propriedade intelectual é regulamentada por uma variedade de leis e outros textos jurídicos, inclusive pela própria Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso XXIX:

 A lei assegurará aos autores dos inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.

Dessa forma, a Lei nº 9.279/96, que trata de marcas e patentes, foi sancionada com o objetivo de regulamentar os direitos e deveres relativos à propriedade industrial. A propriedade intelectual abrange uma variedade de proteções de propriedade, incluindo patentes, marcas registradas e segredos comerciais. Sobre patente, um dos principais elementos da propriedade intelectual, afirma Bastos (1997, p. 209):

É um direito exclusivo concedido a uma invenção, que consista em um produto ou um processo que prevê, em geral, uma nova maneira de fazer algo, ou oferece uma nova solução técnica para um problema. Título de exploração temporal, concedido pela Administração ao inventor, em contrapartida à divulgação, bem como da exploração fidedigna do seu invento. O inventor precisa atender aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Pode-se afirmar que a Patente é um documento expedido pelo órgão competente do Estado que reconhece o direito de propriedade industrial reivindicado pelo titular.

Então uma patente protege invenções, enquanto as marcas registradas protegem a identidade de uma empresa ou produto. Já o segredo comercial protege informações efetivas que não são de conhecimento público. A Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) observa que:

A propriedade intelectual se relaciona com as criações da mente: invenções, obras literárias e artísticas, tais como símbolos, nomes e imagens utilizadas no comércio. A propriedade intelectual se divide em duas categorias: a propriedade industrial, que abarca as patentes de invenção, as marcas, os desenhos industriais e as indicações geográficas; e o direito de autor, que abarca as obras literárias, os filmes, a música, as obras artísticas e os desenhos arquitetônicos.

Na indústria da moda, a propriedade intelectual é imprescindível na proteção de marcas, nomes, símbolos e outros elementos de identidade da empresa. Por exemplo, uma marca registrada de uma empresa fabricante de roupas pode ser protegida pelo direito de propriedade intelectual, impedindo que outras empresas usem a mesma marca ou similares.

Embora exista diferença entre direito autoral e propriedade intelectual, eles, não raro, se sobrepõem. Por exemplo, o design de peça de roupa pode estar protegido por direitos autorais e, ao mesmo tempo, uma marca da empresa fabricante pode estar protegida por propriedade intelectual. Além disso, as empresas da moda, muitas vezes, aplicam ambas as proteções para garantir o resguardo de sua propriedade intelectual. É inafastável que profissionais do direito, atuantes na indústria da moda, dominem as diferenças entre direito autoral e de propriedade intelectual, bem como as suas aplicações.

A pirataria na indústria da moda é um problema crescente, traduzido na demanda por peças de vestuário e acessórios a preços mais baixos, muitas vezes de origem duvidosa. Isso pode incluir a cópia de designs de moda protegidos por direitos autorais ou a venda desautorizada de produtos com marcas registradas.

A pirataria pode causar danos prolongados para empresas de moda, incluindo a perda de receita e danos graves à reputação da marca. Assim, torna-se imperativo que as empresas do setor busquem proteger a sua propriedade intelectual, incluindo o registro de marcas e o monitoramento de cópias não autorizadas de seus designs. Uma das formas de proteção da propriedade intelectual na indústria da moda é por meio do Fashion Law.

O Fashion Law é uma área do direito que se concentra na proteção da propriedade intelectual na indústria da moda, bem como em outras questões legais, como direitos trabalhistas e consumeristas. Porém, o Fashion Law, ou Direito da Moda, não é uma disciplina ou ramo do Direito, como o Direito Civil, o Direito Penal ou o Direito Empresarial, por exemplo, Mas uma mera área de aplicação de institutos jurídicos desses ramos do direito, conforme será abordado no próximo tópico.

Em resumo, o direito autoral e a propriedade intelectual são fundamentais na proteção da criatividade e da inovação na indústria da moda. Ambos são importantes na proteção dos direitos do produtor e do consumidor quando se trata da pirataria. O Fashion Law pode ser uma ferramenta útil para ajudar a proteger a propriedade intelectual na indústria da moda e garantir que as empresas estejam em compliance com as leis e regulamentos aplicáveis.

3.2. Fashion Law

O Fashion Law é uma área de aplicação do direito que vem ganhando destaque nos últimos anos, especialmente no contexto da indústria da moda. Fashion Law, ou Direito da Moda, consiste na aplicação de institutos jurídicos a relações que envolvam a indústria da moda. O conceito foi criado, em 2006, pela professora e advogada estadunidense Susan Scafidi, fundadora do The Fashion Law Institute[3], um centro pioneiro de estudos sobre o assunto.

Esta área de aplicação do direito se concentra em questões legais relacionadas à criação, produção, distribuição e venda de produtos de moda. Embora não exista uma legislação específica, o Fashion Law abrange diversas áreas do direito, incluindo o civil, o tributário, o trabalhista, o empresarial, e, até mesmo, o penal, como já visto. No entanto, a sua principal área de atuação, como já citado, é a proteção da propriedade intelectual e do direito autoral, garantindo segurança jurídica às criações de moda e marcas do setor.

O direito da moda, segundo Kane (2014), é uma especialidade legal emergente que engloba as questões legais que cercam a vida de uma peça de vestuário, desde a sua concepção, até a proteção da marca. A indústria da moda é um setor extremamente animado e criativo, onde a inovação e a inspiração são fundamentais para o sucesso dos empreendimentos. No entanto, a criatividade e a originalidade, muitas vezes, são copiadas ou imitadas por terceiros, o que deveria gerar benefícios financeiros e reputacionais para as empresas criadoras. Por isso, é fundamental que os profissionais da moda e do direito, envolvidos nesses negócios, estejam preparados para lidar com essas e outras questões desafiadoras do setor. Para a advogada Vicki Dallas (2012, p. 84):

Os advogados precisam entender que o negócio do Fashion Law é diferente, já que há constante mudança nos ciclos dos produtos e nos acordos comerciais, portanto adaptar-se e compreender as estratégias de negócio básicas de uma empresa de vestuário é essencial para ser um consultor jurídico eficaz nesta área de atuação.


O Fashion Law é uma área que lida com diversos desafios, que vão além do problema evidente da contrafação, também conhecida como pirataria, que é o assunto principal deste artigo. Ela envolve direitos de proteção à propriedade intelectual, incluindo propriedade industrial e direitos autorais, já abordados no tópico anterior. Além delas, outras áreas do direito também são relevantes, como o direito do trabalho, que abrange questões relacionadas à contratação de modelos, de trabalhadores das fábricas e costureiras de produção; e o direito contratual (civil), que regula as relações entre as empresas da cadeia de produção da moda. Segundo Colman (2012), o Fashion Law tem aplicação a diversas áreas do mundo da moda.

Outra preocupação importante do Fashion Law é o direito do consumidor, que regula as relações entre as empresas da indústria da moda e os consumidores. Os consumidores têm direito à informação clara e precisa sobre os produtos que estão comprando, bem como à garantia e à segurança desses produtos. Assim, de acordo com o artigo 6º, do Código de Defesa do Consumidor, o consumidor tem direito à informação clara e precisa sobre os produtos e serviços colocados no mercado de consumo. As empresas da indústria da moda também devem seguir as normas de segurança e saúde no trabalho, bem como os direitos trabalhistas de seus colaboradores.

Além disso, o Fashion Law também abrange questões relacionadas à sustentabilidade e ao meio ambiente[4]. A indústria da moda é uma das mais poluentes do mundo, devido à grande quantidade de produtos descartados e aos processos de produção que envolvem o uso intensivo de recursos naturais e produtos químicos. Por isso, é importante que as empresas da indústria da moda adotem práticas e respeitem as normas ambientais, a fim de reduzir o impacto negativo da sua atividade no meio ambiente. Sobre a dificuldade de adaptação do direito autoral ao Fashion Law, afirma Oliveira (2015, p. 11):

A principal dificuldade em relação à proteção de artigos de moda por direito autoral é a questão do caráter utilitário de tais bens. A bipartição da Propriedade Intelectual entre Direito Autoral e Propriedade Industrial é fundamentada no critério da utilidade, de maneira a conferir às criações utilitárias proteção através de patentes, desenhos industriais e marcas.

Outro tema importante do Fashion Law é a proteção dos direitos de imagem e privacidade dos modelos/manequins e celebridades. Como as empresas da indústria da moda costumam usar a imagem de modelos e celebridades para promover os seus produtos, é importante que essas pessoas tenham o seu direito de imagem e privacidade preservados. Para isso, é necessário que sejam celebrados contratos claros e específicos, que estabeleçam as condições para o uso da imagem das pessoas envolvidas na produção dos produtos de moda.

Além disso, a indústria da moda é um setor globalizado, com empresas que atuam em diversos países. Por isso, o Fashion Law também abrange questões relacionadas ao direito internacional, como a proteção da propriedade intelectual em diferentes jurisdições. Afirma Dallas (2012, p. 84) que, “a moda é hoje, uma área de negócios internacionais”. Pequenas e médias empresas são adquiridas por grandes companhias internacionais de vestuário e estilo de vida. Algumas das maiores fortunas mundiais estão nas mãos de proprietários de empresas e marcas do setor[5].
As leis de propriedade intelectual e os acordos de comércio internacional também são complementares ao setor da moda. A Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) possuem acordos/tratados relacionados à proteção de marcas, patentes e direitos autorais. A OMC também regulamenta a proteção de denominações de origem, que é de grande importância, entre outras, para a indústria têxtil.

Além disso, o Fashion Law também inclui questões de saúde e segurança do consumidor, publicidade e ética nos negócios. A saúde e segurança do consumidor é um tema crucial na indústria da moda, pois os produtos têxteis e de vestuário estão em contato direto com a pele dos consumidores. Assim, a legislação em matéria de segurança química é uma parte importante do Fashion Law. Produtos químicos críticos, como corantes e aditivos, devem ser controlados e os fabricantes responsabilizados pela segurança de seus produtos.

A publicidade é outra área relevante do Fashion Law. A publicidade de moda deve ser verdadeira, correta e não enganosa, seguindo as leis de proteção ao consumidor e as normas de publicidade. É vedado fazer acusações falsas ou enganosas sobre a qualidade ou origem dos produtos. O uso de modelos escapados magros ou retocados com Photoshop pode ser proibido por leis que promovem uma imagem corporal positiva e saudável.

A ética nos negócios é outra área do Fashion Law que ganhou destaque nos últimos anos. A indústria da moda já foi criticada por más práticas trabalhistas utilizadas por alguns de seus representantes, como a exploração de trabalho infantil, trabalho escravo e salários indignos. Muitas empresas da moda passaram a adotar políticas éticas e ecológicas, e muitos países estão estabelecendo leis que encorajam as empresas a serem socialmente responsáveis e respeitosas aos direitos humanos.

Em suma, o Fashion Law é uma área em constante evolução, em resposta às mudanças na indústria da moda e às necessidades dos consumidores. Os profissionais do direito, especializados em direito da moda, devem possuir conhecimentos nas áreas de propriedade intelectual, direito do consumidor, saúde e segurança, ética nos negócios, e outras, para serem capazes de aconselhar seus clientes sobre questões legais complexas no âmbito do Direito da Moda.

Infelizmente, o Fashion Law é ainda pouco conhecido pelos operadores do direito no Brasil, que o tratam de uma forma segmentada, ou seja, veem cada problema do Fashion Law de forma compartimentada. Assim, para Nunes (2015), “os advogados que melhor se instrumentalizarem nesta crescente área e conhecerem a realidade e as necessidades de seus clientes, aqui no Brasil, estarão na vanguarda de uma atividade rica e arrojada em um direito diferenciado”.

A indústria da moda é uma das mais vibrantes e emocionantes do mundo, mas também pode ser complexa e desafiadora, do ponto de vista legal. Por isso, a importância do Fashion Law, como forma de proteger os interesses dos fabricantes, designers e consumidores, bem como para garantir que a indústria continue a crescer e se desenvolva de forma sustentável.

4. Pirataria (contrafação)

A pirataria na indústria da moda é um fenômeno que envolve a produção e comercialização ilegal de produtos que imitam marcas, designs e estilos protegidos por direitos autorais. Para Strehlau e Urdan (2015, p. 84), falsificação é uma cópia não autorizada de uma marca ou produto, que se faz passar pelo original. Essa prática ilegal tem se tornado cada vez mais difundida em escala global, representando um desafio significativo para as marcas legítimas e para a proteção dos direitos intelectuais na indústria.

Para Cardoso (2018), o mercado da falsificação se subdivide em:

a) mercadoria pirata: aquele bem que não está enganando o consumidor, é uma cópia tão esdrúxula que não há possibilidade de confusão;

b) mercadoria falsificada: seria aquela bem que tem o condão de causar confusão no consumidor ao adquirir um artigo imaginando ser outro e, por fim;

c) réplica: o adquirente tem ciência que o produto é falso e ainda assim deseja adquiri-lo, por se tratar de produto idêntico ao original e usá-lo como se fosse autêntico (CARDOSO, 2018, p. 42).

Segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2016), os produtos falsificados representam 2,5% do comércio mundial. Com o avanço da tecnologia e a facilidade de acesso a produtos piratas, é fundamental compreender as causas e os impactos desse problema, bem como buscar soluções eficazes para combatê-lo.

Ainda sobre o conceito de falsificação, para Strehlau e Urdan (2015, p.77):

Na falsificação de produtos (bens e serviços), marcas e/ou patentes, esses são copiados, imitados ou reproduzidos por uma organização ou rede, sem qualquer autorização ou remuneração de quem legalmente detém direitos sobre tal patrimônio intangível e tangível, com vistas à obtenção de vantagem financeira via comercialização. A marca que vai ser falsificada é, necessariamente, bem conhecida e sobretudo valorizada por um público que a consome ou gostaria de consumi-la. É uma prática que se reveste de certas propriedades da pirataria do passado, acrescida de traços modernos. Incide uma contrafação, pois essa falsificação é fraudulenta, ao violar o direito de propriedade industrial que legalmente pertence a terceiros. Por sua vez, os compradores podem estar cientes (o que usualmente acontece) ou não da ilegitimidade daquilo que adquirem.

Uma das principais características da pirataria na indústria da moda é a criação e comercialização de produtos falsificados, que se assemelham visualmente aos originais. Essas réplicas são projetadas para enganar os consumidores, imitando marcas de luxo e designs de sucesso. Segundo a Revista Época Negócios (2016), roupas, calçados e bolsas estavam entre os principais produtos falsificados, consumidos no Brasil.

Os produtos são vendidos a preços significativamente mais baixos do que os produtos autênticos ou, até mesmo, com o valor aproximado ou igual, a fim de enganar o consumidor. Por mais que uma eventual semelhança, decorrente da falta de uma análise aprofundada do produto,  possa lhe fazer semelhante ou idêntico ao original, a qualidade inferior dos produtos piratas é outra característica marcante desse tipo de prática.

Figura 1 – Tênis Nike Air Force 1 original, vendido pelo site da Nike por R$ 799,99 (à esquerda)

Figura 2 – Versão comercializada na Amazon, por terceiros por R$ 98,90 (à direita).

Devido à falta de controle de qualidade, materiais de baixa qualidade são frequentemente utilizados na produção, resultando em produtos que não possuem a mesma durabilidade e acabamento dos produtos originais. Essa falta de qualidade pode levar a problemas, como desgaste prematuro, costuras malfeitas e cores desbotadas, prejudicando a experiência do consumidor e levando a uma percepção negativa das marcas legítimas.

 Os produtos falsificados apresentam uma série de riscos para os consumidores, já que não são submetidos a um controle de qualidade adequado e geralmente são produzidos com insumos de qualidade inferior, em comparação aos produtos originais. Nesse sentido, Santos (2011, p. 12) esclarece que, “é claro que os produtos falsificados são mais baratos, porque não utilizam materiais de qualidade, não pagam tributos, nem sofrem fiscalização. Assim, quando adquirimos um desses produtos, além da pura e simples prática delituosa, corremos riscos, cuja abrangência pode alcançar a saúde e até a vida”.

No mesmo sentido, afirma Santos (2011, p. 13) que, “vale acrescentar que, como os produtos não são de qualidade, sua vida útil é infinitamente menor; porém, muito pior é que a maioria pode prejudicar a saúde e a segurança do consumidor: produtos que não atendem às normas técnicas, põem em risco a segurança de quem os consome”.

Além disso, a pirataria na indústria da moda também se manifesta por meio da falsificação de marcas renomadas. Logotipos e emblemas são reproduzidos de forma a parecerem autênticos, enganando os consumidores que acreditam estar adquirindo produtos genuínos. Essa prática não apenas prejudica a reputação das marcas originais, mas também viola os direitos de propriedade intelectual e propaga uma cultura de desrespeito aos direitos autorais.

Outro aspecto importante da pirataria na indústria da moda é a apropriação indevida de designs e estilos únicos. Muitas vezes, designers talentosos investem tempo e recursos na criação de peças inovadoras e exclusivas. No entanto, essas criações são frequentemente copiadas e comercializadas por terceiros, sem a devida autorização ou compensação financeira. Essa prática, não apenas compromete a originalidade e a criatividade dos designers, mas também afeta negativamente a indústria da moda como um todo, desencorajando a inovação e a busca por novas tendências.

Em resumo, a pirataria na indústria da moda é uma prática ilícita que envolve a produção e a venda de produtos falsificados, cópias não autorizadas e apropriação indevida de designs e estilos. De acordo com Costa e Sant’Anna (2008), “além de diminuir a arrecadação de tributos, a prática de pirataria é citada como sendo prejudicial às empresas e aos cidadãos, pois promove a concorrência desleal e a geração de empregos informais”. As características desse fenômeno incluem a criação de produtos visualmente semelhantes aos originais, porém de qualidade inferior, a falsificação de marcas renomadas e a violação dos direitos autorais dos designers.

A concorrência desleal, disciplinada pela da Lei 9.279/96, prevê, em seu art. 195[6], inúmeras situações que configuram o ilícito.

Como visto, a prática prejudica consumidores, produtores e o mercado da moda como um todo. Portanto, combater a pirataria torna-se essencial para preservar a autenticidade, a inovação e a integridade da indústria. No próximo tópico, serão abordadas algumas possíveis razões para que a prática da pirataria na indústria da moda seja amplamente aceita pelos consumidores, apesar de seus efeitos prejudiciais.

4.1. Motivações do consumo de produtos piratas

A aquisição de produtos piratas na indústria da moda é motivada por diversos fatores, sendo a questão econômica, um dos principais. Muitos consumidores desejam ter acesso a produtos de marcas famosas e designs exclusivos, mas são limitados pelo alto custo desses itens. A moda de luxo muitas vezes é vista como inacessível para uma parcela significativa da população, devido aos preços exorbitantes que são cobrados.

Kotler (2005) afirma que os elementos que influenciam as decisões de compra podem ser classificados entre psicológicos, sociais, culturais e pessoais. O autor afirma que os fatores culturais exercem o maior peso na hora da tomada de decisões. As pessoas formam crenças sobre marcas e produtos, que são baseados nas experiências, relatos e até no imaginário dos consumidores.

 Segabinazzi, Reale e Martins (2017), observaram que, para os consumidores de baixa renda, o preço é visto como uma oportunidade para consumir produtos que seriam difíceis de conseguir, o que justifica a compra de falsificados. Por exemplo, atualmente, no Brasil, o salário-mínimo estabelecido é de R$ 1.320,00. Por outro lado, um dos produtos de destaque no mercado é a linha de tênis “Air Jordan” da marca Nike, conhecida por sua popularidade e incidência de falsificações. O modelo de menor valor dessa linha está disponível no site oficial da loja pelo preço de R$ 1.099,00. Portanto, o valor do produto representa aproximadamente 83,33% do salário-mínimo vigente no país.

Vale destacar que o preço mencionado no exemplo anterior se refere a um produto comercializado no próprio sítio da marca, caracterizado por um modelo simples e com poucos concorrentes.

Assim, para Strehlau, Urdan (2015, p. 82), “a falsificação é uma ‘solução’ de mercado para a frustração de quem deseja consumir um produto ou marca originais e não dispõe de recursos financeiros para pagá-los ou não aceita arcar com tal pagamento integralmente. ‘Solução’ essa, porém, carregada de imperfeição, polêmica e malefícios”.

 Nesse contexto, os produtos piratas, geralmente vendidos a preços significativamente mais baixos, tornam-se uma alternativa atraente para aqueles que desejam desfrutar das tendências da moda, de forma mais acessível. O exemplo utilizado anteriormente foi ilustrado no setor de calçados. Entretanto, é importante destacar que a problemática da pirataria abrange diversos segmentos no âmbito da moda, conforme já mencionado.

Ainda no campo da motivação financeira, outro aspecto que impulsiona as pessoas a comprar produtos piratas na indústria da moda é a busca pela exclusividade. Muitos consumidores desejam se destacar e se sentir únicos, por meio das suas escolhas de moda. No entanto, algumas marcas de luxo produzem quantidades limitadas de determinados produtos, tornando-os exclusivos e extremamente difíceis de adquirir. Essa exclusividade aumenta a demanda por esses itens e, consequentemente, eleva os seus preços. Como resultado, produtos autênticos de marcas renomadas se tornam inacessíveis para a maioria das pessoas.

Nesse cenário, os produtos piratas novamente surgem como uma alternativa mais viável para aqueles que buscam replicar o visual exclusivo e aspiracional de determinadas marcas (“ditadura da moda”), mesmo que isso signifique adquirir produtos ilegais. No entanto, é importante ressaltar que a exclusividade não é apenas sobre a estética, mas também sobre os valores e a autenticidade transmitidos pelas marcas originais, aspectos que os produtos piratas não conseguem capturar de forma legítima. Portanto, a busca por exclusividade na moda não justifica a compra de produtos piratas, uma vez que compromete os direitos autorais, a qualidade e a integridade da indústria.

Além da motivação financeira, outros fatores provocam a demanda por produtos piratas. A influência das mídias sociais e das celebridades desempenha um papel significativo na perpetuação da cultura da pirataria. As plataformas de mídia social exibem constantemente imagens de pessoas famosas e influentes usando roupas e acessórios de marcas de luxo. Essa exposição constante pode levar as pessoas a desejarem esses produtos, porém, muitas vezes, sem terem condições financeiras para adquiri-los legalmente. Como resultado, elas buscam versões mais baratas, mesmo que sejam ilegais.

Além disso, a busca por status e pertencimento também influencia a decisão de comprar produtos piratas. A sociedade valoriza as marcas de luxo como símbolos de prestígio e sucesso. Muitos consumidores desejam ser vistos como parte desse universo “exclusivo”, mesmo que seja por meio de imitações, toleradas e permitidas, em nome das tendências da moda. A posse de um produto, supostamente de uma marca famosa, pode gerar uma sensação de inclusão em um determinado grupo social ou ajudar a construir uma imagem desejada. Nesse sentido, reforça Bacha, Strehlau e Strehlau (2013, p. 43) que, “a marca de luxo falsificada, desde que não seja desmascarada, poderia, hipoteticamente, ‘alardear a sua riqueza’ e poder aquisitivo, sinalizando status social”.

A imitação de produtos da moda também pode ser vista como uma forma de experimentação e diversão. Alguns consumidores veem a compra de produtos piratas como uma oportunidade de explorar diferentes estilos e tendências, sem investir uma grande quantidade de dinheiro. Para eles, esses produtos podem ser descartáveis e temporários, e a velocidade das mudanças na moda permite que acompanhem as últimas novidades, sem fazer grandes investimentos.
Por fim, é importante ressaltar que um motivo adicional, aparentemente simples, para o consumo da pirataria na indústria da moda é a enganação por parte dos consumidores, que muitas vezes desconhecem que estão adquirindo produtos falsificados. Turunen e Laaksonen (2011) identificam a existência de dois tipos de compra de produtos falsificados. Há os consumidores que sabem que estão comprando uma falsificação (compra não-enganosa) e os que acreditam que estão comprando um produto original (compra enganosa).

Em alguns casos, os consumidores podem ser induzidos ao erro por vendedores inescrupulosos que tentam passar produtos piratas como autênticos. A falta de conhecimento sobre as características e os detalhes que distinguem os produtos originais dos falsificados pode levar os consumidores a adquirir itens pirateados, sem sequer perceber. Esse engodo é prejudicial tanto para os consumidores, que podem acabar pagando um valor injustificado por produtos de qualidade inferior, quanto para os produtores legítimos, que têm as suas marcas desvalorizadas e a sua reputação comprometida pela presença de produtos falsificados no mercado.

No entanto, é importante destacar que, embora as motivações para a compra de produtos piratas possam variar, essa prática tem consequências para a indústria da moda e para os consumidores. A busca por produtos piratas pode prejudicar a integridade criativa e a inovação das marcas legítimas, além de sustentar práticas injustas, como a exploração da mão de obra e do trabalho infantil. Os consumidores também correm o risco de adquirir produtos de baixa qualidade, que podem afetar a sua experiência de uso e até mesmo representar riscos à saúde. Portanto, é importante promover a conscientização sobre essas questões e incentivar um consumo responsável e ético na indústria da moda.

4.1.1. Divulgação de produtos piratas por figuras públicas

No tópico anterior, foram expostas algumas das motivações que impulsionaram o consumo de produtos piratas na indústria da moda. Entretanto, é fundamental aprofundar a discussão sobre o papel das mídias sociais nesse cenário. A influência exercida por essas plataformas digitais, juntamente com a atuação de influenciadores, merece uma análise mais detalhada, vez que desempenham papel significativo na divulgação e na promoção desses produtos de procedência ilegal. Nesse sentido, é crucial examinar a irresponsabilidade dos influenciadores que aceitam fazer divulgações de produtos piratas, visando ganhos financeiros, e a ampla difusão dessa prática no Brasil.

A falta de responsabilidade dos influenciadores digitais que aceitam fazer divulgações remuneradas de produtos piratas é uma preocupação crescente na indústria da moda, e essa prática, infelizmente, é comum no Brasil. O problema não está necessariamente no consumidor, mas sim na figura pública que utiliza a sua influência para divulgar produtos piratas, como se fossem originais, lesando assim os seus seguidores.

Os influenciadores, com seu alcance e poder de influência sobre o público, desempenham um papel significativo na formação das tendências de consumo. No entanto, quando eles promovem produtos piratas, estão contribuindo para a perpetuação de uma prática ilegal e prejudicial para toda a cadeia envolvida e para os consumidores finais. Silva (2013), identifica que o aproveitador busca de alguma forma obter vantagens, sem muito esforço, utilizando a fama e o prestígio angariados por determinada marca ou nome empresarial, associando a sua “marca” de alguma forma àquela, buscando assim locupletar-se.

Muitos influenciadores aceitam parcerias e patrocínios sem verificar a garantia e a legalidade dos produtos que estão promovendo. Eles são movidos pelo potencial financeiro dessas parcerias, muitas vezes ignorando questões éticas e legais envolvidas. Ao fazerem divulgações de produtos piratas, eles estão dando uma falsa sensação de aprovação a esses itens, influenciando a aceitação dos consumidores e colaborando para a desvalorização das marcas legítimas.

Os proprietários de marcas legítimas investem em pesquisa, desenvolvimento e criação de produtos originais, e a pirataria compromete todos esses esforços. É importante ressaltar que, no Brasil, a fiscalização e a aplicação das leis de proteção aos direitos autorais nem sempre são efetivas, o que acaba criando um ambiente indiretamente favorável para a comercialização de produtos falsificados. A falta de regulamentação adequada e de conscientização, por parte dos influenciadores, permite que essa prática se perpetue, prejudicando tanto as marcas autênticas, quanto os consumidores, enganados pela falsa credibilidade dos produtos piratas.

Para combater esses problemas é fundamental que os influenciadores assumam uma postura mais responsável e ética, em relação às parcerias que aceitam. Eles devem fazer uma verificação criteriosa dos produtos, marcas e empresas que estão promovendo. Devem firmar parcerias apenas com marcas legítimas e comprometidas com a qualidade e originalidade de seus produtos. Além disso, as autoridades competentes precisam fortalecer a fiscalização e aplicação das leis de proteção aos direitos autorais, garantindo punições para aqueles que comercializam produtos piratas.

No final das contas, a conscientização do público em geral, também é essencial. Os consumidores devem ser informados sobre os riscos e consequências da compra de produtos piratas, bem como sobre a importância de proteger as marcas legítimas e promover um consumo ético e responsável. É necessário que os seguidores digitais percebam que a divulgação de produtos piratas, por parte dos influenciadores, é uma prática enganosa, que prejudica, tanto a indústria da moda, quanto os próprios consumidores. A confiança depositada nos influenciadores digitais, como fontes de informação e inspiração, é significativa. Quando eles promovem produtos piratas, sem transparência, estão traindo a confiança de seus seguidores.

A divulgação de produtos piratas pelos influenciadores cria uma ilusão de garantia, levando os consumidores a acreditarem que estão adquirindo itens fidedignos. Isso resulta em perdas financeiras e emocionais para os seguidores, que investem seu dinheiro em produtos de qualidade duvidosa e, muitas vezes, estão sendo enganados em relação à procedência e confiabilidade deles.

Além disso, a promoção de produtos piratas pelos influenciadores gera uma competição desleal com as marcas legítimas. As empresas que investem em pesquisa, desenvolvimento e criação de produtos originais são prejudicadas pela concorrência desleal dos produtos falsificados, que são comercializados a preços mais baixos, devido à ausência de investimentos em qualidade e propriedade intelectual.

A responsabilidade dos influenciadores digitais vai além da simples divulgação de produtos. Eles têm obrigação de fazer parcerias apenas com marcas que seguem práticas legítimas e éticas, promovendo assim um ambiente de negócios justo e sustentável. Ao aceitarem patrocínios de produtos piratas, os influenciadores estão cooperando para a perpetuação de um mercado ilícito e prejudicial.

No Brasil, é importante destacar que as práticas ilegais relacionadas à pirataria são um desafio complexo. A falta de regulamentação e fiscalização efetivas permite que essa prática seja mantida e, até, disseminada no país. É necessário um esforço conjunto entre as autoridades competentes, as marcas legítimas e os influenciadores para combater a pirataria na indústria da moda.

É crucial que os influenciadores entendam o impacto negativo de suas ações na indústria e na sociedade. Eles têm o poder de influenciar comportamentos e atitudes dos consumidores, e deve ser responsabilidade deles usar essa influência de forma ética e responsável. Somente por meio da conscientização, da transparência e da promoção de práticas legítimas será possível combater a irresponsabilidade dos influenciadores e proteger a indústria da moda da pirataria.

4.2. Consequências da pirataria na indústria da moda: impactos financeiros, desvalorização da propriedade intelectual e efeitos na economia

A pirataria na indústria da moda é um fenômeno de ampla abrangência que acarreta consequências significativas para as marcas, a propriedade intelectual e a economia do país. Compreender essas consequências é fundamental para enfrentar esse problema complexo e buscar soluções eficazes. Segundo Luppi (2022, p. 14), “a prática da pirataria afeta todo sistema da propriedade intelectual e impacta negativamente toda a sociedade. Abala toda a cadeia de produção e de consumo e prejudica as empresas, os trabalhadores, o meio ambiente, e o Estado”. Neste contexto, destacam-se três aspectos fundamentais: o impacto financeiro para as marcas, a desvalorização da propriedade intelectual e os efeitos negativos na economia.

No que diz respeito ao impacto financeiro, a pirataria representa uma séria ameaça às marcas genuínas. Como já visto, a comercialização de produtos falsificados gera uma concorrência desleal, prejudicando as vendas e a receita das empresas responsáveis. Os produtos piratas são frequentemente vendidos a preços significativamente mais baixos do que os produtos autênticos, atraindo consumidores em busca de preços mais acessíveis. Isso desvia o fluxo de receita, que deveria ser destinado às marcas originais, comprometendo os seus investimentos em pesquisa, desenvolvimento e marketing. Além disso, as marcas precisam arcar com os custos associados à luta contra a pirataria, como a implementação de tecnologias de proteção de marca e ações legais para reprimir a produção e a venda de produtos falsificados.

Outra consequência significativa da pirataria na indústria da moda é a desvalorização da propriedade intelectual. A pirataria envolve a cópia não autorizada de designs, logotipos e marcas registradas, violando os direitos autorais e prejudicando a originalidade e a criatividade dos designers. Ao reproduzir e vender produtos falsificados, os infratores estão se apropriando indevidamente do trabalho intelectual alheio, causando danos à reputação das marcas originais. Além disso, a desvalorização da propriedade intelectual incentiva a reprodução indiscriminada de produtos, desencorajando a inovação e a criação de novas tendências na indústria.

No âmbito econômico, a pirataria na moda também apresenta efeitos negativos significativos. Um desses efeitos está relacionado à falta de geração de empregos formais. Enquanto as marcas legítimas investem em mão de obra qualificada, os produtores de mercadorias falsificadas, muitas vezes, recorrem a práticas ilegais e precárias, explorando condições de trabalho desumanas e não oferecendo proteção social adequada aos trabalhadores. Isso resulta em uma carência de empregos formais e de qualidade na indústria, comprometendo o desenvolvimento econômico sustentável. Segundo Portugal (2011 p. 241) a pirataria, “lesa as empresas não só nos lucros, mas também em sua reputação”.

Além disso, a pirataria também afeta a economia no que diz respeito à arrecadação de tributos. A venda de produtos falsificados muitas vezes ocorre no mercado informal, escapando da tributação e reduzindo a receita do Estado, em duas três expressões (municipal, estadual/distrital e federal). Isso impacta diretamente os recursos disponíveis para investimentos em infraestrutura, serviços públicos e programas sociais. Além disso, as empresas proprietárias de marcas legítimas são grandes contribuintes, ajudando na necessária arrecadação tributária. A pirataria, por sua vez, prejudica sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento econômico do país.

De acordo com o balanço anual do Fórum Nacional contra a pirataria e Ilegalidade (FNCP)[7], em 2020, o Brasil teve um prejuizo de cerca de R$ 287,9 bilhões para o mercado ilegal, sendo que se estima que R$ 58,4 bilhões se refiram ao setor de vestuário (ILEGALIDADE, 2022). Nesse sentido, Medeiros (2005, p. 31) elucida que “o dinheiro que deveria entrar nos cofres públicos e se converter em estradas, saneamento básico, educação e saúde, beneficiando um número cada vez maior de brasileiros, passa a não existir”. Isto é, a sonegação de tributos ao Estado resulta em perda de milhões de reais que poderiam ser investidos para promover melhorias na sociedade.

Diante das consequências abordadas, é crucial buscar formas efetivas de combater a pirataria na indústria da moda. No próximo tópico, serão exploradas algumas estratégias e medidas que podem ser adotadas para enfrentar esse desafio intrincado. A conscientização dos consumidores, o fortalecimento da proteção de marcas, ações legais e parcerias entre governos, indústria e sociedade civil são algumas das abordagens que podem contribuir para reduzir a incidência da pirataria e preservar a autenticidade e a integridade do mercado da moda.

4.3 Estratégias e iniciativas para combater a pirataria na indústria da moda

A pirataria na indústria da moda é um desafio significativo que exige a implementação de estratégias e iniciativas eficazes para lidar com esse problema e proteger os direitos autorais, garantir a qualidade dos produtos e preservar a integridade e autenticidade da indústria.

No combate à falsificação, o Brasil já dispõe de entidades especializadas. O Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP) é um órgão vinculado ao Ministério da Justiça, responsável por liderar a implementação do III Plano Nacional de Combate à Pirataria, no período de 2013 a 2016.  Por outro lado, o Fórum Nacional contra a Pirataria e a Ilegalidade é uma organização, financiada por empresas afetadas pela falsificação, que atua na defesa dessa causa perante as instâncias do poder público, especialmente o Executivo e o Legislativo, além de conscientizar a opinião pública.

Santos (2011, p. 15) assevera ser “preciso apoio do Poder Público àqueles que enfrentam diretamente tal desafio, criando meios e condições de um trabalho mais eficiente, com destinação de verba e pessoal para os locais mais críticos. Só assim poderá ter êxito tal tarefa”.

É de extrema importância direcionar atenção especial ao enfrentamento da falsificação, junto aos consumidores, que são os destinatários e adquirentes desses produtos. Em tese, o consumidor não é facilmente enganado ao adquirir uma marca de luxo falsificada, pois encontra indícios claros, como preços excessivamente baixos (visivelmente incompatíveis com um produto superior) e locais de venda menos sofisticados do que o habitual, que apontam para a falta de autenticidade da mercadoria.

Porém, a falta de informação ou a ausência de preocupação por parte dos consumidores, muitas vezes, faz com que essas evidências sejam ignoradas ou deixadas de lado. Nesse sentido, Santos (2011, p. 12) ressalta que, “a prática das falsificações segue, porque há consumidores, compradores, que alimentam a referida indústria da fraude. Por mais que se pretenda o controle, os usuários alimentam essa mina de ouro, sem a necessária informação que viabilizaria controle e combate eficientes”.

Neste contexto, o fortalecimento das leis de proteção aos direitos autorais é fundamental. É essencial que as autoridades competentes fortaleçam as leis de proteção aos direitos autorais, proporcionando um ambiente jurídico seguro para as marcas e designers. Isso inclui a implementação de controles mais rigorosos de fiscalização, punições efetivas para os infratores e aprimoramento dos processos legais relacionados à pirataria.

Ainda para Santos (2011, p. 14), “o combate às infrações dessa natureza precisa passar por uma conscientização da população sobre os males decorrentes de tal prática. É preciso conscientização de que comprar produtos falsificados, muito mais do que prática delituosa, é perigosa e pode acarretar sequelas irreversíveis”.

A educação e conscientização do público desempenham um papel crucial na luta contra a pirataria. Por exemplo, campanhas educativas podem ser desenvolvidas para informar os consumidores sobre os riscos e consequências da compra de produtos piratas. Destaca-se a importância de valorizar as marcas legítimas e promover um consumo ético e responsável.

Outra estratégia importante no combate à pirataria na indústria da moda é responsabilizar influenciadores e personalidades que divulgam produtos falsos. É fundamental estabelecer medidas para coibir a promoção de produtos piratas por parte desses influenciadores, uma vez que eles têm um impacto significativo nas decisões de compra dos consumidores. Ao responsabilizá-los e promover a conscientização sobre as consequências legais e éticas desse tipo de prática, é possível desencorajar a disseminação de produtos falsificados e promover um ambiente mais íntegro e autêntico na indústria da moda.

Santos (2011, p. 15) lembra que, (..) o combate também precisa estar atualizado. Um dos grandes aliados ainda são os meios de comunicação, que têm o poder de conscientizar a população acerca dos riscos, para a saúde, quanto para a segurança dos produtos negociados, como incentivo a denunciar as práticas e os locais onde são realizadas”.

Além disso, a colaboração entre indústria, governo e sociedade civil é essencial. Por exemplo, a colaboração entre diferentes partes interessadas, incluindo proprietários de marcas, designers, governo e organizações da sociedade civil, pode fortalecer os esforços para combater efetivamente a pirataria na indústria da moda. Isso pode envolver o compartilhamento de informações, o desenvolvimento de diretrizes e padrões de conduta, além do apoio mútuo na implementação de ações preventivas e repressivas.

Outra medida importante é o investimento em tecnologia de rastreamento e login. Por exemplo, o uso de tecnologias avançadas, como códigos de autenticação, chip RFID[8] e blockchain[9], pode ajudar a rastrear e autenticar produtos, dificultando a falsificação e facilitando a identificação de produtos piratas. Essas soluções tecnológicas podem fornecer maior segurança e confiança aos consumidores, além de auxiliar na investigação e combate à pirataria.

O citado chip RFID é definido pelo sítio Codima (2019) como, “um sistema para identificar objetos, transmitindo dados sobre eles, por meio de ondas de rádio frequência. Para isto, são usadas tags RFID, que são simplesmente uma antena e um chip integrados dentro de uma etiqueta”.

Além disso, a cooperação internacional e a troca de informações são essenciais. A pirataria na indústria da moda é um problema global, portanto, a cooperação internacional é fundamental. Por exemplo, a troca de informações entre diferentes países e a colaboração no combate à pirataria podem fortalecer os esforços para enfrentar esse desafio de maneira mais eficaz. Tratados e outros acordos internacionais também podem ser estabelecidos para proteger os direitos autorais e incentivar a cooperação transfronteiriça.

Por fim, é necessário promover a valorização da originalidade e criatividade na indústria da moda. Incentivar o reconhecimento e apoio aos designers e marcas registradas, bem como proteger a certificação e exibir os produtos, pode contribuir para a redução da demanda por produtos piratas. Ao implementar essas estratégias e iniciativas, é possível fortalecer a proteção dos direitos autorais, garantir a qualidade dos produtos e preservar a integridade e autenticidade da indústria da moda.

5. Considerações finais

Em conclusão, ao longo deste artigo, pudemos explorar de forma abrangente a relação entre moda, direito e pirataria. O primeiro tópico abordou a importância da moda na sociedade, compreendendo os seus conceitos, características e sua relevância econômica. Em seguida, adentramos o campo do direito e sua relação com a moda, explorando o direito autoral, a propriedade intelectual e o Fashion Law.

No terceiro tópico, analisamos a pirataria na moda em detalhes, compreendendo o seu conceito, as motivações de consumo, a divulgação por parte de influenciadores, bem como suas consequências para o mercado. Observamos que a pirataria afeta negativamente a indústria, resultando em perdas financeiras, desvalorização das marcas, comprometimento da qualidade dos produtos e riscos à saúde dos consumidores.

Diante desse cenário, é fundamental destacar a importância de combater a pirataria na indústria da moda. Entre as possíveis abordagens, podemos mencionar o fortalecimento da fiscalização e aplicação das leis de proteção aos direitos autorais, a conscientização dos consumidores sobre os riscos da pirataria, a cooperação entre marcas e influenciadores comprometidos com a autenticidade, a adoção de tecnologias de rastreamento e autenticação de produtos, bem como a criação de um ambiente legal e regulatório propício ao combate à pirataria.

A solução para o complexo problema da pirataria na indústria da moda é um desafio constante e conjunto, que requer ações integradas dos diversos atores envolvidos. Além das estratégias mencionadas, é fundamental promover o diálogo entre os setores público e privado, fomentar a cooperação internacional e investir em educação e conscientização sobre a importância da proteção dos direitos autorais e da valorização do trabalho criativo na indústria da moda.

Diante dos impactos prejudiciais da pirataria na moda, é imprescindível que a indústria e os diversos agentes envolvidos estejam comprometidos em adotar medidas eficazes para combater esse problema. A proteção dos direitos autorais, a garantia da qualidade dos produtos e a preservação da integridade e autenticidade da indústria da moda são elementos fundamentais para a construção de um mercado justo, sustentável e que valorize a criatividade e a inovação.

Com base nesse contexto, o presente artigo buscou contribuir para o entendimento da pirataria na indústria da moda e suas implicações, fornecendo informações relevantes para a conscientização e a promoção de ações concretas visando combater esse fenômeno negativo à sociedade.

Concluímos que a pirataria na indústria da moda é um desafio significativo, que exige esforços conjuntos de todos os envolvidos. Ao proteger os direitos autorais, garantir a qualidade dos produtos e promover a conscientização, poderemos preservar a integridade e autenticidade da indústria da moda, valorizando o trabalho criativo e inovador de designers e estilistas. Somente por meio de uma abordagem abrangente e colaborativa, poderemos enfrentar efetivamente a pirataria e construir um mercado da moda mais ético, sustentável e próspero.

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Fórum contra a Pirataria. Disponível em: http://www.forumcontrapirataria.org/web/.


[1] Disponível em: https://www.abit.org.br/. Acesso em: 17/08/2023.

[2]  Direitos conexos aos direitos autorais, incluem:

1. Para artistas intérpretes ou executantes:

– A fixação de suas interpretações ou execuções;

– A reprodução, a execução pública e a locação das suas interpretações ou execuções fixadas;

– A radiodifusão das suas interpretações ou execuções, fixadas ou não;

– A colocação à disposição do público de suas interpretações ou execuções, de maneira que qualquer pessoa a elas possa ter acesso, no tempo e no lugar que individualmente escolherem;

– Qualquer outra modalidade de utilização de suas interpretações ou execuções.  

2. Para produtores fonográficos:

– A reprodução direta ou indireta, total ou parcial;
– A distribuição por meio da venda ou locação de exemplares da reprodução;

– A comunicação ao público por meio da execução pública, inclusive pela radiodifusão;
– Quaisquer outras modalidades de utilização, existentes ou que venham a ser inventadas.

[3] Estabelecido em 2010, com o apoio de Diane von Furstenberg e do Conselho de Estilistas de Moda da América, o Fashion Law Institute foi o primeiro centro acadêmico do mundo dedicado a questões jurídicas e comerciais relacionadas à indústria da moda. Disponível em: https://www.fashionlawinstitute.com/. Acesso em: 18/08/2023.

[4] Mais recentemente, esse conceito evoluiu para o ESG, que representa a sustentabilidade ambiental, social e de governança corporativa (Environmental, Social and Governance). A abordagem do ESG busca avaliar em que nível uma corporação trabalha em prol de objetivos sociais e ambientais, que vão além do papel de maximizar lucros, exclusivamente em nome dos interesses dos acionistas da empresa.

[5] Bernard Jean Étienne Arnault, empresário francês, atual presidente e diretor executivo da LVMH (holding francesa especializada em artigos de luxo, formada pelas fusões dos grupos Moët et Chandon e Hennessy e, posteriormente, do grupo resultante com a Louis Vuitton), a maior empresa de artigos de luxo do mundo, e respondendo atualmente pela segunda maior fortuna pessoal do globo, calculada em US$ 150 bilhões, ou 750 bilhões de reais.

[6] Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem:

I – publica, por qualquer meio, falsa afirmação, em detrimento de concorrente, com o fim de obter vantagem;

II – presta ou divulga, acerca de concorrente, falsa informação, com o fim de obter vantagem;

III – emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem;

IV – usa expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos;

V – usa, indevidamente, nome comercial, título de estabelecimento ou insígnia alheios ou vende, expõe ou oferece à venda ou tem em estoque produto com essas referências;

VI – substitui, pelo seu próprio nome ou razão social, em produto de outrem, o nome ou razão social deste, sem o seu consentimento;

VII – atribui-se, como meio de propaganda, recompensa ou distinção que não obteve;

VIII – vende ou expõe ou oferece à venda, em recipiente ou invólucro de outrem, produto adulterado ou falsificado, ou dele se utiliza para negociar com produto da mesma espécie, embora não adulterado ou falsificado, se o fato não constitui crime mais grave;

IX – dá ou promete dinheiro ou outra utilidade a empregado de concorrente, para que o empregado, faltando ao dever do emprego, lhe proporcione vantagem;

X – recebe dinheiro ou outra utilidade, ou aceita promessa de paga ou recompensa, para, faltando ao dever de empregado, proporcionar vantagem a concorrente do empregador;

XI – divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia, mesmo após o término do contrato;

XII – divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos ou informações a que se refere o inciso anterior, obtidos por meios ilícitos ou a que teve acesso mediante fraude; ou

XIII – vende, expõe ou oferece à venda produto, declarando ser objeto de patente depositada, ou concedida, ou de desenho industrial registrado, que não o seja, ou 53 menciona-o, em anúncio ou papel comercial, como depositado ou patenteado, ou registrado, sem o ser;

XIV – divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de resultados de testes ou outros dados não divulgados, cuja elaboração envolva esforço considerável e que tenham sido apresentados a entidades governamentais como condição para aprovar a comercialização de produtos.

[7] Disponível em: https://fncp.org.br/. Acesso em: 18/08/2023.

[8] Também conhecidos como “etiquetas inteligentes”. Leitor de RFID é um leitor de identificação por radiofrequência (chip RFID), dispositivo usado para coletar informações de uma etiqueta RFID, que é usada para rastrear bens. As ondas de rádio são usadas para transferir dados da etiqueta para um leitor.

[9] Blockchain (“cadeia de blocos”) é uma tecnologia de registro distribuído que permite registrar transações de forma segura, transparente e descentralizada. Ela serve como um livro contábil digital para transações financeiras, registros de propriedade, votações eletrônicas e outras aplicações.


[1] Acadêmico da Faculdade de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac.

[2] Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Professor do Faculdade de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac.