A responsabilidade civil das instituições de ensino e religiosas pelas práticas das condutas de pedofilia

Apresentação

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Ficha catalográfica

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A responsabilidade civil das instituições de ensino e religiosas pelas práticas das condutas de pedofilia

Clayton da Silva Bezerra

Lorenzo Martins Pompílio da Hora

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

Resumo: A proposta do presente artigo é suscitar o debate sobre a responsabilização civil e reflexos nas instituições de formação sobre a prática de pedofilia em seus ambientes. As medidas de prevenção, denúncias, responsabilização e alguns tipos de danos sofridos.

Palavras – chave: Pedofilia, transtorno de personalidade, norma, contratual, prevenção, segurança jurídica, responsabilização, solidariedade, criança, adolescente, cyberbullying, dano psíquico e dano reflexo.

Abstract: The purpose of this article is to raise the debate about civil liability and reflections in training institutions on the practice of pedophilia in their environments. Prevention measures, reporting, liability and some types of damage suffered.

Keywords: Pedophilia, personality disorder, norm, contractual, prevention, legal security, accountability, solidarity, child, adolescente, cyberbullying, psychic damage and reflex damage.

Introdução: a questão sobre um olhar abrangente e social

Não são poucas as prescrições normativas envolvendo as práticas cada vez mais intensas, sofisticadas e limitantes das atividades de prevenção e repressão aos sinistros envolvendo os crimes e abusos a menores, a pedofilia.

Uma ação que em uma visão sugestiva, é exercitada por atores com conduta antissocial, psicopata numa performance bem premeditada, calculada que pode ser constatada nos mais diversos segmentos sociais, coletivos, de extratos financeiros e profissionais.

A uma primeira abordagem, podemos entender que a responsabilidade civil das instituições de ensino sejam elas públicas, privadas, Federais, Estaduais e Municipais pelos sinistros envolvendo práticas de pedofilia são de natureza contratual.

Neste mesmo esteio, temos as instituições religiosas que participam ativamente da formação da criança, do jovem, adolescentes através dos seus prepostos de educação religiosa, cursos dos mais diversos contextos bíblicos e espirituais, são lugares nos quais os valores são tão sensíveis pelo seu contexto espiritual que podem ser também afetados por pedófilos sagáveis em suas argumentações.

O cidadão a partir de um contexto constitucional lastreado nos princípios próprios da responsabilidade civil como a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, da prevenção, da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica, procura a oportunidade de ser considerada com absoluta prioridade, o direito à educação que proporcionará uma inteiração respeitosa, com percepção do respeito entre si nas comunidades, nos valores da liberdade e principalmente no básico de todo o ser humano, a convivência familiar.

É responsabilidade do docente, da gestão escolar, e dos líderes espirituais, a preservação preventiva de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O conhecimento a respeito das qualificações dos formadores de conceitos, ideologias e conhecimento são inevitáveis no percurso da seleção desses profissionais, pois a responsabilidade por eventuais danos sofridos pelos educandos transpassa a responsabilidade do ministrador de conhecimento e alcança solidariamente a instituição de ensino.

O significado deste efeito se traduz na possibilidade de a vítima adequar a sua compensação patrimonial na polaridade passiva do causador direto do dano e do estabelecimento de ensino.

E neste percurso, importante agregar o ensino religioso que possui uma função educacional densa de assegurar a formação integral do jovem e da criação numa perspectiva inclusiva, respeitando a diversidade cultural sem proselitismos.

A proposta sinaliza para a construção de uma sociedade mais coesa e justa, fundamentada no reconhecimento e valorização das diferentes expressões de fé e cultura presentes no país. O sentido do ensino religioso, principalmente nos templos religiosos dos mais diversos segmentos e propostas, nada mais é que um instrumento valioso para a promoção da diversidade, do respeito mútuo e da compreensão intercultural.

Estamos relevando o sagrado, a tolerância religiosa na busca do convívio respeitoso e de convivência pacífica.

PAPA FRANCISCO[1]FRANCISCUS, sacerdote católico que serve como o 266º PAPA e soberano do Estado da Cidade do Vaticano, na data 05 de abril de 2013, em encontro e audiência com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, arcebispo Gerhard Ludwig Müller pediu que a congregação continuasse com a linha de ação delineada por Bento XVI, agindo de forma decisiva contra o abuso sexual de menores por membros da Igreja Católica, promovendo medidas para a proteção e ajuda às crianças que sofreram esse tipo de violência e auxiliando nos processos contra os culpados.

O Papa Argentino pediu o compromisso das Conferências Episcopais na formulação e aplicação das diretivas necessárias num “campo tão importante para o testemunho da Igreja e a sua credibilidade”.

Na data de 22 de março de 2014, nomeou os oito primeiros integrantes da “Comissão Pontifícia de Proteção às Crianças“, órgão instituído por ele em 2013 para combater mundialmente os abusos sexuais de menores na Igreja Católica.

O grupo tem como objetivos, preparar o estatuto da comissão, informar a situação das crianças que sofreram abuso em todos os países, propor medidas e nomes, tanto de laicos quanto religiosos, para implantar novas iniciativas de combate aos abusos sexuais de menores na Igreja Católica, criar códigos de conduta e avaliações psiquiátricas para o ministério sacerdotal, além de implementar políticas que protejam os menores de idade e colaborar com as autoridades civis nas investigações de possíveis crimes.

A Comissão foi composta naquela oportunidade, entre outros, Marie Collins, uma irlandesa vítima de abuso sexual por um padre, Peter Saunders,[139] a psicóloga e psiquiatra francesa Catherine Bonnet, o cardeal norte-americano Sean Patrick O’Malley, defensor das vítimas norte-americanas, e o jesuíta alemão Hans Zollner, decano da faculdade de psicologia da Universidade Gregoriana, com sede em Roma.

Franciscus numa iniciativa inédita, assinou em 11 de julho de 2013, um decreto de MOTU PROPRIO, reformando o Código Penal do Vaticano e tornando mais rígidas as sanções para o crime de pedofilia e outros tipos de crime.

Em abril de 2014, o Papa pediu perdão pelos casos de pedofilia e abusos sexuais cometidos por sacerdotes da Igreja Católica.

Numa decisão inédita na história da Igreja Católica, em setembro de 2014 o Papa Francisco ordenou pessoalmente a prisão do ex-arcebispo e ex-embaixador da Santa Sé, o polonês Józef Wesolowski acusado de abusos sexuais durante o período de 2008 a 2013, quando era representante diplomático da Igreja Católica na República Dominicana.

Declarou em 21 de setembro de 2017 que a Igreja “chegou tarde” ao lidar com casos de abuso sexual.

Francisco em seu papado deu ênfase ao combate de abusos sexuais por membros do clero católico, tornando obrigatórias as denúncias e responsabilizando quem as omite desde 20/03/2019.

O Papa Francisco é um homem sem medo, que enfrentou uma das questões mais sensíveis da Igreja católica no mundo.

Sustenta que a Igreja deve ser mais aberta e acolhedora. Tem uma visão e conduta comprometida com o tradicionalismo da Igreja.

No mês de maio de 2019, o Papa Francisco promulgou o motu proprio Vos estis lux mundi (Vós sois a Luz do Mundo), estabelecendo novas normas de procedimento para combater o abuso sexual e garantir que bispos e superiores religiosos sejam responsabilizados por suas ações. 

O documento exigiu que clérigos e irmãos e irmãs religiosos, incluindo bispos, em todo o mundo denunciem casos de abuso sexual e encobrimentos de abuso por seus superiores. 

A partir dessa orientação, todas as dioceses católicas em todo o mundo são obrigadas a estabelecer mecanismos ​​através dos quais as pessoas possam apresentar denúncias de abuso ou o seu encobrimento até junho de 2020.

O documento promulgado por Francisco em maio de 2019, estabelecendo novas leis do Vaticano sobre como o clero católico em todo o mundo deveria lidar com casos relatados de abuso sexual, foi atualizado quatro anos depois.

O Papa Francisco em 2021[2] no intuito de erradicar um dos fenômenos que mais fragilizam a fé cristã, incluiu no Código de Direito Canônico um artigo que contemplou a pedofilia, exigida pelas vítimas.

O documento que inseriu a prescrição no Código de Direito Canônico foi assinado em 23 de maio de 2021.

Desta maneira, o Vaticano modificou o Código de Direito Canônico promulgado pelo papa João Paulo II em 25 de janeiro de 1983 em substituição ao Código promulgado em 1917.

É uma codificação composta por 1.752 cânones, organizados em sete livros. 

As fontes do direito Canônico são: O Papa, que é a autoridade suprema da Igreja, os concílios ecumênicos, que tomaram decisões jurisprudenciais e as escrituras, que constituem o fundamento da Igreja Católica. 

Na data de 25 de março de 2023, como já apontado, o documento de maio de 2019 foi revisado e divulgado pelo Vaticano.

Nas novas orientações, o documento ampliou a responsabilidade também dos líderes leigos, que são pessoas que não são membros do clero, mas participam das atividades eclesiais, e que fazem parte de associações aprovadas pelo Vaticano, caso venham a encobrir abusos sexuais.

Na sistemática anterior, as prescrições aplicavam-se anteriormente apenas aos bispos e superiores religiosos.

O conceito de “vítima de abuso” também foi modificado.

As vítimas, que antes eram definidas como “menores e pessoas vulneráveis”, passaram a ser definidas como “menores, ou pessoas que habitualmente têm um uso imperfeito da razão, ou adultos vulneráveis”.

Uma conduta, inciativa que pontua com concretude normativa a repulsa da congregação católica com os sinistros de pedofilia que agora terão um tratamento legal previsto normativamente.   

Os grupos Evangélicos[3], a própria Igreja Luterana Alemã, que é a maior organização protestante do País, encomendou um relatório contendo mais de 800 (oitocentas) páginas preparadas por especialistas de diferentes Universidades e Institutos alemães sobre levantamentos de vítimas de pedofilia.

São elementos que despertam a nossa consciência para um olhar de alerta sobre essas ocorrências preocupantes.

Dados da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania relacionados a esses segmentos, nos informam que as pessoas atingidas com mais frequência estão nas religiões de Umbanda, Candomblé, outros segmentos de religiosidades Afro-brasileiros, evangélicos e católicos.

A sensibilidade da matéria que podemos acessar no Painel da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania nos disponibiliza mais elementos que clamam pela necessidade de trabalharmos a responsabilização das instituições também religiosas que cristalizam as ideologias em nossas crianças e jovens, sejam para o olhar aos outros segmentos religiosos. Sejam para preservar nossos menores daqueles que eclipsam suas reais intenções e ações no manto da religiosidade.

Não podemos desviar a nossa acuidade do artigo 5.º, inciso VI da Constituição Federal de 1988 que define: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

As liturgias, seus valores, símbolos precedem um processo de formação.

O executar desse processo é que exige a cautela com as técnicas dos pedófilos e seus modelos de inserção.

É numa aula, catequização, orientação espiritual, curso de base e formação que podem transcorrer provocações, brincadeiras, dramas e muito humor que inibam as pessoas, que podem atingir o seu inconsciente, e revolver questões a serem consolidadas.

Esses personagens pedófilos de conduta psicopata, com transtornos de personalidade são hábeis negociadores a proporcionar uma imersão reflexiva dos telespectadores ou espectadores, fazendo com que as vítimas de suas investidas realizemuma viagem ao inconsciente sedimentando lembranças que agora serão alicerçadas a novas amizades e cumplicidades manipuladores inimagináveis.

A diversidade religiosa nas escolas ou em templos religiosos e o combate ao bullyng

Como reflexo do preconceito institucionalizado nas redes sociais e  presentes na sociedade, o ambiente escolar e religioso, são muitas vezes, marcados pelo bullying, decorrente da intolerância religiosa que pode ser uma narrativa, recurso, sistemática utilizada pelo pedófilo para deixar o seu espaço mais confortável.

Desta forma, portanto, muitas crianças e adolescentes, ao exercerem suas crenças após uma estigmatização, sofrem com o preconceito e o bullying. A manifestação de uma crença ocorre por meio do uso de símbolos, objetos ou vestimentas.          

Sendo assim, é essencial, imperioso que as instituições religiosas, escolas, e instituições seminaristas atentem a conscientização sobre a importância de refletirmos nas ações de prevenção a pedofilia nas diferentes religiões e instituições de ensino.

Os valores que as próprias religiões pregam auxiliam nesse processo.

A família tem de estar e se fazer presente já que pode também sofrer com essa conduta em seus ambientes.

Mas, obviamente chegou o momento de avaliarmos com uma sensibilidade jurídica e acadêmica, a dimensão patrimonial causadas com incidentes dessa natureza.

Obviamente que o trabalho a ser enfatizado é o da prevenção envolvendo todas as realidades e cenários possíveis para antecipar a cognição às práticas de pedofilia através de eventos esportivos coletivas, treinamentos nas escolas, nos templos religiosos, inserção do conhecimento sobre as típicas práticas do crime de pedofilia e seus eventuais atores, a influência da tecnologia digital utilizada como ferramenta de persuasão e alienação.

Os principais atores deste cenário perverso de exploração de menores, a título exemplificativo, podem ser todos aqueles numa primeira ótica as mais próximas e com acessibilidade às crianças e adolescentes.

Na data de 18/05/2023 foi divulgado um boletim epidemiológico[4] pelo Ministério da Saúde em evento realizado pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania dando conta de que entre os anos de 2015 e 2021, o Brasil registrou mais de 200 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes.

Foram notificados mais de 83 (oitenta e três) mil episódios entre crianças e mais de 119 (cento e dezenove) mil atos violentos contra adolescentes agregando um somatório de 202.948 casos.

No ano de 2021, o número de notificações foi apontado como o mais expressivo na investigação implementada com o quantitativo de 35.196 episódios.

O apontado expediente sinaliza que o local de ocorrência de maior incidência é o caso das vítimas num percentual de 70,9% na faixa etária de 0 a 9 anos de idade e 63,4% dos casos contra pessoas de 10 a 19 anos

Na sequência da pesquisa, temos que o perfil dos agressores se enquadra no sexo masculino num percentual de 81% dos sinistros para a faixa etária de crianças e 86% dos casos dos adolescentes entre 10 e 19 anos.

Noutro ponto de análise, temos que as vítimas são em sua maioria do sexo feminino 76,9 % dos registros envolvem crianças e 92,7 % abrangem adolescentes do gênero feminino.

É importante observar, segundo expõe o Ministério dos Direitos Humanos no sentido de que levantamentos sinalizam que são denunciados todos os dias aproximadamente 366 (trezentos e sessenta e seis) crimes cibernéticos no Brasil, sendo que as maiores vítimas são crianças e adolescentes.

As abordagens a crianças e adolescentes são trabalhadas através da técnica do “DEEPFAKE[5] que permite alterar um vídeo ou foto com a ajuda de inteligência artificial (IA). São ferramentas das práticas de pedofilia.

A metodologia virtual é uma substancial ameaça à privacidade, à segurança nas instituições de ensino e na vida familiar, considerando que nossos menores ocupam seu tempo em casa em celulares, smartphones e notebooks com inúmeros jogos desafiantes.

A criação de deepfakes objetiva ludibriar, confeccionando vídeos que se apresentam como verdadeiros.

A capacidade da IA de capturas e replicar a expressão facial detalhada, proporciona um efeito ilusório nos cenários reais desses vídeos, pois apesar de serem fictícios, são tidos como genuínos, autênticos.

Ressalte-se também que a potencialidade focada em fins educativos ou culturais, sua ampla divulgação está relacionada à elaboração de conteúdo enganoso e desumano, alocados especialmente em plataformas sociais, objetivando a alienação de crianças e adolescentes.

A dinâmica desenvolvida pelos adeptos dessa sistemática envolve a capacidade possível através de uma tecnologia denominada “TEXT TO SPEECH” (TTS) que sintetiza o áudio a partir de um texto, tomando por lastro, uma ampla coleta de amostras de áudio de uma pessoa pública conhecida.

A partir daí, tudo é possível na fala artificial do escolhido, principalmente a desinformação com a emissão de declarações falsas, sutis e alienantes.

A oportunidade de prevenção e repressão dessas práticas de deepfakes é expansivamente dimensionada quando levamos em conta que o indivíduo, principalmente a criança e o adolescente depositam confiança no que percebem, principalmente quando o conteúdo é visualizado em telas pequenas, a exemplo dos smartphones que pela sua dimensão, obscurecem detalhes cruciais para a identificação de manipulações.

MARTINS (2024)[6] destaca que a falta de familiaridade do público com técnicas como leitura labial, restringem ainda mais a capacidade de discernir vídeos falsificados de produções insuspeitas.

Apresentados esses elementos e a problematização de seu objeto, passemos a estudar e compreender o papel das instituições de ensino que precisam urgentemente adotar mecanismos de prevenção e repressão aos efeitos nocivos das inserções pedófilas nesta circunstância ou conjuntura. Há uma responsabilidade compartilhada entre escola e pais.

Afinal a Lei Civil no art. 932, no inciso I e IV, assim prescrevem:

“Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

I – os pais pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;

[…]

IV – os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos…” 

Dentro dessas concepções, temos que a modalidade de responsabilidade civil a macular esses sinistros é de natureza contratual. Não pode haver jogo de empurra ou transferência de responsabilidades, mas sim apurar em sua integralidade e com compromisso com a verdade real.

A instituição de ensino que condensa crianças e adolescentes sem adotar ferramentas tecnológicas e legais a esses atos, está fadada a conviver com a exclusão social da vítima, evasão escolar, ações indenizatórias consequentes de danos físicos, materiais, psicológicos e morais.

Estamos sim e há muito na era do cyberbullying. Uma prática ferramenta da pedofilia.

As instituições de ensino são as mais sensíveis e devem estar aparelhadas frente às mudanças globais desses nossos últimos tempos avassaladores com inúmeras informações e personalizações falsas.

Sabemos que a escola tem o dever de zelar para a segurança e integridade física e mental de seus acolhidos. Porém as responsabilidades devem ser compartilhadas entre educadores e Pais.

Com isso, assimila institucionalmente total responsabilidade para com os casos que ocorrem no período de oferta do serviço educacional, até mesmo nas atividades externas que sejam efeitos diretos e imediatos das atividades extraclasse decorrentes da programação de estudos e seus desdobramentos.

Fundamenta esta percepção a psiquiatra, professora e escritora SILVA (2010, pág. 63)[7]:

“As escolas mais sensíveis e atentas às mudanças globais de nosso tempo já estão procurando iniciar processos de inovação e de reforma que poderão dar conta dos novos desafios. É necessário modificar não somente a organização escolar, os conteúdos programáticos, os métodos de ensino e estudo, mas sobretudo, a mentalidade da educação formal.

Até bem pouco tempo, o aprendizado do conteúdo programático era o único valor que importava e interessava na avaliação escolar. Hoje é preciso dar destaque à escola como um ambiente no qual as relações interpessoais são fundamentais para o crescimento dos jovens, contribuindo para educá-los para a vida adulta por meio de estímulos que ultrapassam as avaliações acadêmicas tradicionais (testes e provas). Para que haja um amadurecimento adequado, os jovens necessitam que profundas transformações ocorram no ambiente escolar e familiar. Essas mudanças devem redefinir papéis, funções e expectativas de todas as partes envolvidas no contexto educacional.

Na concepção da Wikipédia [A enciclopédia Livre] a Pedofilia é um transtorno psiquiátrico em que um adulto ou adolescente mais velho sente uma atração sexual primária ou exclusiva por crianças pré-púberes, geralmente abaixo dos 11 anos de idade 

Tal como um diagnóstico médico, critérios específicos para o transtorno classificam a pré-puberdade até os 13 anos. Uma pessoa que é diagnosticada com pedofilia deve ter ao menos 16 anos de idade, mas adolescentes devem ser pelo menos cinco anos mais velhos que a criança pré-púbere para que a atração possa ser diagnosticada como pedofilia.

Pedofilia é o desvio sexual “caracterizado pela atração por crianças, com os quais os portadores dão vazão ao erotismo pela prática de obscenidades ou de atos libidinosos”.[8]

Objetiva e certamente um transtorno de personalidade e não um transtorno mental. O pedófilo não possui transtorno mental na essência de sua conceituação. São pessoas com condutas de desvio de personalidade. Falam bem, são inteligentes, hábeis em seus discursos, com uma linguagem de apreensão das atenções, extremamente sedutoras.

Alguns sexólogos, porém, como o especialista americano John Money, acreditam que não somente adultos, mas também adolescentes, podem ser qualificados como pedófilos.

A expressão pedófilo para descrever criminosos que cometem atos sexuais com crianças é visto como equivocado por alguns indivíduos, especialmente quando tais indivíduos são vistos de um ponto de vista clínico psiquiátrico, numa avaliação de linguagem corporal e microexpressões faciais na concepção do psicólogo Paul Ekman, ou ainda numa visita que os operadores do direitos devem realizar as neurociências como a enuropsicologia forense.

Como registrado na wikipédia, uma vez que a maioria dos crimes envolvendo atos sexuais contra crianças são realizados por pessoas que não são consideradas clinicamente pedófilas, já que não sentem atração sexual primária por crianças[9].

No contexto de uma visão mundial, pesquisadores sinalizam que apenas um quarto dos abusos sexuais de crianças são praticados por pedófilos.

Esses abusos sexuais são praticados por pessoas que simplesmente acharam mais fácil fazer sexo com crianças, seja enganando-as ou utilizando de intimidação ou força. E aí reside a necessidade de que cada caso tenha uma tratamento investigativo e científico coerente com a psiquiátrica forense em todos os sentidos, na defesa e preservação da instituição que poderá ser responsabilizada solidariamente com o causado do dano  e com as vítimas do dano que também necessitarão de elementos probatórios para pontuarem melhor suas medidas sejam judiciais, criminais ou extrajudiciais.

Esse entendimento é referenciado por Silva (2010, págs 22/24)[10] quando evidencia as formas de Bullying, assim transcrito:

“…Algumas atitudes podem se configurar em formas diretas ou indiretas de praticar o bullying. Porém, dificilmente a vítima recebe apenas um tipo de maus-tratos; normalmente, os comportamentos desrespeitosos dos bullies costumam vir em “bando”. Essa versatibilidade de atitudes maldosas contribui não somente para a exclusão social da vítima, como também para muitos casos de evasão escolar, e pode se expressar das mais variadas formas, como as listadas a seguir:

SEXUAL

Abusar, violentar, assediar, insinuar. Este tipo de comportamento desprezível costuma ocorrer entre meninos com meninas, e meninos dom meninos. Não raro o estudante indefeso é assediado e/ou violentado por vários “colegas” ao mesmo tempo…” 

Por isto, somente o abuso sexual de crianças pode indicar ou não que um abusador é um pedófilo. A maioria dos abusadores em fato não possuem um interesse sexual voltado primariamente para crianças.

Assim, com base nesta fonte de informações. Projeta-se que apenas entre 2% a 10% das pessoas que praticaram atos de natureza sexual em crianças sejam pedófilos, tais pessoas são chamadas de pedófilos estruturados, fixados ou preferenciais. Abusadores que não atendem aos critérios regulares de diagnóstico da pedofilia são chamados[ de abusadores oportunos, regressivos ou situacionais.

Acrescente-se ainda, SILVA (2008, P. 21)[11]:

Também conhecidos como predadores sociais. O seu melhor desenho é descrito numa fábula lembrada por SILVA (2008, p. 21) assim reproduzida:

“… O escorpião aproximou-se do sapo que estava à beira do rio. Como não sabia nadar, pediu uma carona para chegar à outra margem.

Desconfiado, o sapo respondeu: “Ora, escorpião, só se eu fosse tolo demais! Você é traiçoeiro, vai me picar, soltar o seu veneno e eu vou morrer.

Mesmo assim o escorpião insistiu, com o argumento lógico de que se picasse o sapo ambos morreriam. Com promessas de que poderia ficar tranquilo, o sapo cedeu, acomodou o escorpião em suas costas e começou a nadar.

Ao fim da travessia, o escorpião cravou o seu ferrão mortal no sapo e saltou ileso em terra firme.”

Atingido pelo veneno e já começando a afundar, o sapo desesperado quis saber o porquê de tamanha crueldade. E o escorpião respondeu friamente:

                     – Porque essa é a minha natureza…”

É neste contexto, cenário que a importância de avaliarmos bem o fato envolvendo uma conduta desta natureza com as ferramentas que a fisiologia e psiquiatria forense contemporânea disponibiliza é que poderemos perceber a diferença de um indivíduo pedófilo que apresente uma conduta de transtorno psiquiátrico mental ou o outro lado, um transtorno de personalidade, onde certamente a sua conduta antisocial não autorizará a classificação psiquiátrica onde certamente inexistirá o transtorno mental, mais a plena consciência do que faz , pois é um pedófilo psicopata.

A confirmação deste perfil necessita da realização de uma avaliação adequada, é o que aponta a academia através de CAPELA SAMPAIO & BIGELLI DE CARVALHO em seu capítulo intitulado “DETECÇÃO DE MENTIRA E PSICOFISIOLOGIA FORENSE” (2020, pág.201)[12]:

“…Como o perito em psiquiatria não tem a função de “detector de mentira”. A simulação deve ser relatada no laudo pericial em seu aspecto negativo – ou seja, deve-se relatar a ausência de um transtorno mental, e não a simulação. Afinal, vale lembrar que há sempre a possibilidade de a suspeita (dissimulação ou simulação) ser infundada e existirem, de fato, os sintomas referidos. Por isso, é necessário muita cautela nesse tipo de avaliação…” (g.n) 

Não se poderia deixar de mencionar na linha de CAPELA SAMPAIO[13] & BIGELLI DE CARVALHO[14] que um exame dessa magnitude acautele alguma facilidade como apontam (idem, p. 2011):

“…DETECÇÃO DE MENTIRAS

A tarefa de identificar mentiras não é fácil. Surpreendentemente, um estudo mostrou que grupos de psiquiatras, estudantes universitários e técnicos de polígrafo apresentam médias de acerto baixas. Somente agentes do serviço secreto apresentaram médias significativamente maiores que o acaso (64% vs. 53%). Em estudo no qual oficiais de polícia foram requisitados a identificar verdades e mentiras de suspeitos em interrogatórios policiais gravados, a acurácia esteve relacionada à percepção de experiência em entrevistar suspeitos e ao ato de mencionar pistas para detectar mentiras que se relacionassem à história do sujeito. Houve correlação negativa entre acurácia e sinais que popularmente se imaginam associados à mentira, como evitação de olhar nos olhos e inquietação. Não foi evidenciada relação significativa entre acurácia e confiança.

A constatação de padrões específicos característicos da mentira pode ser feita de diversas formas, como análise do conteúdo da fala (ACF), observação de comportamento (OC) ou aferição de parâmetros psicofisiológicos. A ACF pode ser feita por técnicas como análise de conteúdo baseada em critério (ACBC) ou monitoramento de realidade (MR). A técnica ACBC usa testes psicométricos, entrevista semiestruturadas, técnicas de análise sistemática e julgamento clínico para diferenciar se o indivíduo vivenciou um fato ou o inventou.

O MR parte da teoria de que memórias do indivíduo que têm origem em sua experiência interna apresentam mais referências cognitivas e aquelas com origem externa são mais carregadas de informações sensoriais, contextuais, afetivas e semânticas.

A OC pode ser objetiva, subjetiva direta ou subjetiva indireta. Aplica-se a OC objetiva por quantificação de frequência de emissão não verbais de mentiras, como tempo de falta, latência de respostas, pausas e movimentos das mãos. Na OC subjetiva direta, o indivíduo simplesmente recebe o comando para identificar a mentira, sem outra metodologia, mas sua precisão não difere significativamente do acaso. Já na OC subjetiva indireta, orienta-se o sujeito a prestar atenção em elementos, como ambivalência, confiança e esforço para pensar, e seus resultados são melhores. […]

Os apontados pesquisadores e especialistas acrescentam ainda (idem, p. 203) acrescentam:

PSICOFISIOLOGIA FORENSE

“…A psicofisiologia forense tem como objetivo detectar a ocultação de informações por meio da aferição de parâmetros fisiológicos do sujeito. Os principais métodos utilizados são o polígrafo, a eletroencefalografia (EEG) e a ressonância magnética funcional (RMF). Essas técnicas são mais amplamente conhecidas para outras finalidades, mas constituem o arsenal que a psicofisiologia forense utiliza para a detecção de mentiras, ou memórias ocultas, como prefere a literatura mais parcimoniosa. A premissa básica é que o estado basal de contar a verdade é alterado para um modo de funcionamento que demanda maior esforço cognitivo quando o indivíduo precisa mentir.

As alterações psicofisiológicas relacionadas a esse novo estado podem ser aferidas perifericamente como sinais de excitação autonômica (alterações cardíacas, respiratórias e eletrocutâneas) ou pelo exame direto do cérebro, seja por sua atividade elétrica, seja por exames de neuroimagem….”

A partir dessas contribuições acadêmicas desses especialistas em psiquiatria forense com referencial teórico, observamos que a avaliação diagnóstica não pode ser realizada sem ferramentas da neurociência para que não seja incompatível com a prática diagnóstica pericial dessa natureza.

Temos dentro desta instrumentalidade de recursos de testagem, as técnicas de avaliação do transtorno antisocial/psicopata: O PCR-L, O MMPI, MMPI-2[15], O TAT, O RORSCHACH e outros instrumentos (HTP e inventários, bem como sugerem os pesquisadores, ou seja, o uso combinado de alguns deles

HOLMES (1997, pág.311)[16] nesta temática da conduta antisocial/psicopata introduz um panorama histórico acerca desse conceito, mencionando o termo “insanidade sem delírio”. Aliás, um excelente olhar de um acadêmico e atuante de campo.

Há, também uma tendência a culpar os outros e a oferecer racionalizações para explicar um comportamento que entra em conflito com as normas sociais.

Ao discorrer sobre os sintomas cognitivos do transtorno, HOLMES (idem, pág. 199) ressalta a inteligência e as boas qualidades verbais e sociais, além da capacidade de racionalizar seus atos inadequados de maneira a imprimir-lhes aparência justificável.

Acrescenta a isso o fato de a punição não surtir efeito nesses indivíduos, que costumam reincidir no comportamento punido – “quando não convencem de sua inocência, utilizando suas habilidades verbais e sociais para evitar serem punidos”.

HOLMES (1997, pág. 309)[17] faz uma leitura interessante sobre o transtorno de personalidade antisocial/psicopata, que auxilia a compreensão da problemática social acerca desse transtorno.

O referido pesquisador ressalta que na maioria dos outros transtornos, temos a vivência pelas próprias pessoas que têm o transtorno, enquanto, que no caso do transtorno de personalidade antisocial, os problemas são vividos pelas pessoas que estão ao seu redor.

Os indivíduos com este transtorno são descritos pelo autor como “os mais interpessoalmente destrutivos e emocionalmente prejudiciais em nossa sociedade”.

Essa concepção é reafirmada por HENRIQUE (2009, pág. 15)[18] quando afirma que “a psicopatia certamente é uma anomalia da personalidade que apresenta consequências sociais mais graves”.

A metodologia pericial adequada a avaliação de indivíduos pedófilos com viés psicopata

A Lei processual civil em respeito a busca da verdade, da constatação e motivação de um saudável diagnóstico à instrução de feitos apuratórios de condutas antissociais de comportamento dos pedófilos que auxiliam a correto e adequado processamento de feitos indenizatórios, inclusive penais tem socorro no art. 466 § 2.º do C.P.C.

Não é por outra razão, que que essa integração acopla de forma integrativa o art. 466 § 2.º do C.P.C, ao art. 3.º do C.P.P, assim reproduzido:

“…466. O perito cumprirá escrupulosamente o encargo que lhe foi cometido, independentemente de termo de compromisso.

§. 2.º O perito deve assegurar aos assistentes das partes o acesso e o acompanhamento das diligências e dos exames que realizar, com prévia comunicação, comprovada nos autos, com antecedência mínima de 5 (cinco) dias.

É certamente a cristalização da ampla defesa substancial, do contraditório e do devido processo legal. Dogmas que não podem ser eclipsados na reconstrução histórica do fato no intuito de uma elaboração cognitiva própria do nexo de causalidade relacionado ao espiral legal do dano causado por efeito direto e imediato praticado em relação à criança e ao adolescente.

“Pedofilia[19] é algo bastante grave e, sim, os criminosos virtuais estão sempre tentando se aproveitar da internet, do fato deles estarem por trás de uma câmera ou por trás de algum elemento”, alerta a professora. Ela adianta que uma forma de os pais protegerem seus filhos é não deixar que fiquem com o celular ou computador sozinhos sem a supervisão de um adulto, principalmente quando são pequenos. 

Além disso, Kalinka pontua que os filhos têm sua individualidade, mas é responsabilidade dos pais ou responsáveis estarem sempre atentos.      

“Verifique o que eles estão acessando, as contas, o conteúdo e evite o computador no quarto onde eles podem acessar sozinhos sem que você esteja presente”, sugere. 

 Por fim, a especialista aponta ainda que um software de controle pode auxiliar nesse processo de verificação de conteúdo por parte dos responsáveis. “Eles auxiliam a verificar se a criança está tendo acesso a conteúdo que não deveria. Atitudes bastante simples de olhar e verificar com quem seu filho está falando na internet, o que ele está acessando, pode ajudar muito a evitar casos e problemas como de pedofilia virtual”, finaliza a professora. *Sob a supervisão de Ferraz Junior.

Logo, por essas considerações, experiências, extensão possível dessa conduta é que no campo jurídico a metodologia de uma perícia escrupulosamente bem realizada se torna imprescindível.

A não observância dessa metodologia em atenção a prescrição do art. 466 § 2.º do C.P.C traz como consequência a nulidade da perícia e a realização de novo exame como decidiu recentemente o Eminente desembargador MARCELLO FERREIRA DE SOUZA GRANADO da 2.ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal no HC n.º 5006007 – 85.2024.4.02.0000/RJ na data de 04/06/2024, no qual colacionamos os seguintes trechos:      

Consequentemente, a admissão do assistente técnico somente após a juntada do laudo aos autos, ainda que em cumprimento do disposto no § 4º, do art. 159, do CPP, forçosamente incorreu em cerceamento da defesa, o que justifica a necessidade de renovação do ato. (g.n)

Por outro lado, em razão de certo tumulto envolvendo a expedição de vários ofícios endereçados ao Instituto de Perícias Heitor Carrilho, requisitando esclarecimentos quanto à atuação do Dr. José Roberto M. Laborne Valle, parece-me prudente determinar que outro profissional conduza o novo exame do periciado.

Ante o exposto, voto no sentido de JULGAR PROCEDENTE o pedido de concessão da ordem de habeas corpus, para que seja realizado, por outro perito, um novo exame de sanidade do corréu colaborador, devendo ser acompanhado pelo assistente técnico indicado pela defesa do paciente, e JULGAR PREJUDICADO o recurso de embargos de declaração da defesa (evento 11, EMBDECL1).          

Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça, o MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA da 5.ª Turma no AgRg no Recurso em HABEAS CORPUS n.º 201415 – RJ (2024/0268130-RJ), decidido em 19/08/2024, adotou fundamentadamente, o mesmo entendimento, como extraímos dos trechos abaixo: 

No entanto, o exame teria sido realizado sem a participação da defesa técnica do ora agravante, o que violaria a disposição do art. 466, § 2º, do Código de Processo Penal, que dispõe sobre o acesso e acompanhamento de diligências e exames às partes. Segundo a defesa, o exame pericial ocorreu antes do horário agendado sem prévia comunicação ao assistente técnico do ora agravante. (g.n)

Neste caso, a despeito de a perícia ter sido realizada conforme o art. 159, § 4º, do Código de Processo Penal, segundo o qual o assistente técnico atuará a partir de sua admissão pelo juiz e após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelos peritos oficiais, sendo as partes intimadas desta decisão. No entanto, a falta de acompanhamento dos representantes técnicos do agravante, tendo em vista a relevância do exame para a própria persecução criminal instaurada, certamente reduz as possibilidades de participação da defesa, o que justifica a necessidade de renovar o ato. (g.n)

Nesse sentido, mutatis mutandis:

PROCESSUAL CIVIL. EXAME PERICIAL. REALIZAÇÃO. JUNTADA AOS AUTOS DO LAUDO. VISTA AS PARTES. NECESSIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE PROFERIR SENTENÇA SEM DAR OPORTUNIDADE AS PARTES DE IMPUGNAÇÃO. PRINCÍPIO DO CONTRADITORIO. DOUTRINA. VIOLAÇÃO. ART. 398, CPC APLICADO A PROVA PERICIAL. PRECEDENTE. RECURSO PROVIDO I – O PRINCÍPIO DO CONTRADITORIO, GARANTIA CONSTITUCIONAL, SERVE COMO PILAR DO PROCESSO CIVIL CONTEMPORANEO, PERMITINDO AS PARTES A PARTICIPAÇÃO NA REALIZAÇÃO DO PROVIMENTO.

II – APRESENTADO O LAUDO PERICIAL, E DEFESO AO JUIZ PROFERIR DESDE LOGO A SENTENÇA DEVENDO ABRIR VISTA AS PARTES PARA QUE SE MANIFESTEM SOBRE O MESMO, PENA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITORIO.

(REsp n. 92.313/SP, relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 14/4/1998, DJ de 8/6/1998, p. 113).

Diante do exposto, nos termos do art. 258, § 3º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, reconsidero a decisão de e-STJ, fls. 207-211, para dar provimento ao recurso ordinário, determinando a renovação do exame de insanidade mental do corréu colaborador, com a participação de assistente técnico indicado pela defesa do ora agravante. (g.n)

Publique-se.

Brasília, 19 de agosto de 2024.

Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA

Relator

Da jurisprudência pronunciada em nossos tribunais sobre a importância da prova, destinatários e o princípio da verdade real

A nossa jurisprudência é muito bem acentuada nesta questão, pois os nossos Tribunais numa tendência comprometida cada vez mais com a ciência psiquiátrica forense adequada, acrescente-se a psicologia forense, a neurociência, a neuropsicologia forense e a psicofisiologia forense reforçadas pela doutrina que possui a tarefa agregatória de encontrar as respostas adequadas à Constituição caminham neste sentido.

Por isso, é preciso, sim debater com o Poder Judiciário, que é o guardião dos direitos fundamentais. Essa sintonia e importante, real, acontece e é corajosa para se opor aos equívocos que ocorrem cada vez mais em mínimas oportunidades graças a essa nova visão.

É certo, como afirma FERRAZ (2024)[20]: “…Há um pesadelo do negacionismo jurídico. Não se pode jamais afrontar a Constituição…”

E nesse sentido, colhemos excelentes notícias do Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Desembargador – DR. LUIZ ROLDÃO DE FREITAS GOMES FILHO, no Agravo de Instrumento n.º 0004672-46.2023.8.19.0000 que proporcionou uma aula de Direito Constitucional Processual ao Juízo que indeferiu a prova pericial, mandando chamar o VAR, assim transcrito:

“Com efeito, a Constituição da República estabelece como garantia fundamental o acesso à justiça (art. 5º, XXXV CRFB), que se materializa por meio da adequada prestação jurisdicional assegurado o devido processo legal. Nesse diapasão, a busca da verdade real é corolário do princípio do devido processo legal, como instrumento necessário para que se concretize o acesso à ordem jurídica justa. Assim, não se pode fazer justiça sem entender, com segurança, o quadro fático trazido à consideração do órgão judicante. Na medida em que a justiça da prestação jurisdicional se vincula ao compromisso do processo com a verdade real, e a essa só se chega mediante a instrução probatória, ao julgador é lícita a determinação de produção de provas a fim de que o conjunto probatório resulte completo.”

Nesse mesmo sentido, esse meio de prova é de grande utilidade à boa instrução processual. Cumpre trazer, neste ponto, a doutrina do professor Alexandre Câmara[21]:

“Sendo juiz e partes destinatários da prova, a todos eles são reconhecidos a existência de poderes de iniciativa instrutória. Às partes evidentemente caberá postular a produção de provas que lhes pareçam relevantes, pois é delas o direito material em debate e, por isso, são titulares de interesse de produzir prova.”

Logo, é importante que se acentue que todos são destinatários da prova

Conforme leciona o Desembargador Alexandre Câmara:

“A prova possui dois tipos de destinatários: um destinatário direto, o Estado-juiz, e destinatários indiretos, as partes. A prova levada aos autos, pertence a todos, isto é, pertence ao processo, não sendo de nenhuma das partes (o que costuma ser chamado de “princípio da comunhão da prova”. (…) Na verdade, a prova tem por destinatários todos os sujeitos do processo (FPPC, Enunciado nº 50: “os destinatários da prova são aqueles que dela poderão fazer uso, sejam juízes, partes ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz.”

Assim sendo, todos atuam com o mesmo fim, qual seja, um processo justo. uma Justiça justa. Em consequência, a atividade probatória deve ser destinada ao processo para que haja o melhor debate. Em consequência, o destinatário da prova não é somente o juiz.

Logo, uma prova que trate de uma avaliação de um transtorno de personalidade não pode ser considerada válida quando uma avaliação psiquiátrica forense fugindo ao seu escopo a trate como um transtorno mental.

Salienta por fim, KHALED JR.[22] (2023, págs. 196): …O paradigma da cientificidade oferece fundamentação e legitimação “científica” para práticas processuais que rompem com a estrutura do sistema acusatório, atribuindo ao juiz, enquanto sujeito do conhecimento, a capacidade de extração da essência das coisas…”

Recentemente, na seara criminal, o Ministro RIBEIRO DANTAS, da 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em seçãio da 3.ª Turma que reúnem a 5.ª Turma e a 6.ª Turma desta Corte de Vértice, na data de 08/06/2022, publicado no Dje 01/07/2022 – TEMA REPETITIVO 1121, na tese jurídica (tese firmada em recurso repetitivo), definida nestes parãmetros: “Presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)”., pronunciaram o seguinte julgado:

Ementa

PENAL. RECURSO ESPECIAL SUBMETIDO AO RITO DOS RECURSOS REPETITIVOS.
ESTUPRO DE VULNERÁVEL (ART. 217-A DO CP). DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL (ART. 215-A DO CP). EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES. DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL. TRATADOS INTERNACIONAIS. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. PRINCÍPIOS DA ESPECIALIDADE E DA SUBSIDIARIEDADE. RESERVA DE PLENÁRIO. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. MANDAMENTO DE CRIMINALIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DA DESCLASSIFICAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. De maneira ampla, a Medicina Legal define o abuso sexual infantil como “toda e qualquer exploração do menor pelo adulto que tenha por finalidade direta ou indireta a obtenção do prazer lascivo” (FRANÇA, Genival Veloso. Medicina legal. 11ª ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2017, p. 250). Nesse sentido, não há meio-termo. O adulto que explora um menor com a finalidade de obter prazer sexual, direto ou indireto, está a praticar ato abusivo.
2. Nesse ponto, é importante ressaltar que o abuso sexual contra o público infantojuvenil é uma realidade que insiste em perdurar ao longo do tempo. A grande dificuldade desse problema, porém, é dimensioná-lo, pois uma parte considerável dos delitos “ocorrem no interior dos lares, que permanecem recobertos pelo silêncio das vítimas”. Há uma elevada taxa de cifra negra nas estatísticas. Além do natural medo de contar para os pais (quando estes não são os próprios agressores), não raro essas vítimas sequer “possuem a compreensão adequada da anormalidade da situação vivenciada.” (BIANCHINI, A.; MARQUES, I. L.; ROSSATO, L. A.; SILVA, L. P. E.;
GOMES, L. F.; LÉPORE, P. E.; CUNHA, R. S. Pedofilia e abuso sexual de crianças e adolescentes. São Paulo: Saraiva, 2013, e-book, Introdução, cap. 1).
3. Nessa senda, revela-se importante observar que nem sempre se entendeu a criança e o adolescente como sujeito histórico e de direitos. Em verdade, a proteção às crianças e aos adolescentes é fenômeno histórico recente. “A família não percebia as necessidades específicas das crianças, não as via como um ser com peculiaridades e que precisavam de atendimento diferenciado. […] a única diferença entre o adulto e a criança era o tamanho, a estatura, pois assim que apresentavam certa independência física, já eram inseridas no trabalho, juntamente com os adultos. Os pais contavam com a ajuda de seus filhos para realizar plantações, a produção de alimentos nas próprias terras, pescas, caças, por isso, assim que seus filhos tinham condições de se manterem em pé, já contribuíam para o sustento da família.” (HENICK, Angelica Cristina. FARIA, Paula Maria Ferreira de. História da Infância no Brasil. Educere, 2022. Disponível em: br/arquivo/pdf2015/19131_8679.pdf>. Acesso em: 7/1/2022).
4. Diante de um cenário de exposição e vulnerabilidade passando para uma perspectiva protetiva, alguns autores verificam uma correlação entre o reconhecimento pelo Estado da violência intrafamiliar e o movimento feminista. Dizem que esse movimento, “ao enfrentar o denominado modelo patriarcal de família, acaba por desvelar inúmeras formas de violência, que permaneciam encobertas pelo manto do silêncio”. (MACIEL, K. R. F. L. A. Curso de direito da criança e do adolescente. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, e-book, parte I, cap. I).
5. Verificou-se, portanto, uma modificação de paradigmas sociais, que refletiu no Direito. E é nessa perspectiva que se deve ressaltar a importância de o Direito estar atento à complexidade da vida social. “Muitos dos argumentos defendidos por tantos anos já estão superados. […] O histórico da Criminologia revela muito sobre a superação de paradigmas e axiomas”, um exemplo disso é o reconhecimento da violência doméstica e familiar. O lar, que era até então considerado um local seguro (ao contrário das ruas, do lado de fora), passa a ser palco do drama criminal. (BIANCHINI, A.; MARQUES, I. L.; ROSSATO, L. A.; SILVA, L. P. E.; GOMES, L. F.;
LÉPORE, P. E.; CUNHA, R. S. Pedofilia e abuso sexual de crianças e adolescentes. São Paulo: Saraiva, 2013, e-book, Introdução). O fato de a violência dentro dos lares ser reconhecida pelo Estado não significou a criação dessa violência. Em verdade, ela sempre existiu, mas permanecia no silêncio entre os familiares e na indiferença institucional. O que era para servir de apoio violentava ou ignorava.
6. Nesse passo, Andréa Rodrigues Amin lembra que “vivemos um momento sem igual no plano do direito infantojuvenil. Crianças e adolescentes ultrapassam a esfera de meros objetos de ‘proteção’ e ‘tutela’ pela família e pelo Estado e passam à condição de sujeitos de direito, beneficiários e destinatários imediatos da doutrina da proteção integral.” (MACIEL, K. R. F. L. A. Curso de direito da criança e do adolescente. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, e-book, parte I, cap. I). O Estado não é mais indiferente ao que acontece no interior dos lares com as crianças e com os adolescentes. Porém, reforce-se, que isso é relativamente recente.

7. Toda essa evolução é verificada no Brasil, como um reflexo de um movimento internacional pela proteção das crianças. Chamando a atenção para a importância dos instrumentos internacionais na positivação e na interpretação do direito penal pátrio, o em.
Ministro João Otávio de Noronha, em voto lapidar no EREsp n. 1.530.637/SP, lembra que o Brasil está obrigado, perante seus pares, a adotar medidas legislativas para proteger às crianças (todos aqueles com menos de 18 anos completos) de qualquer forma de abuso sexual.

8. Este Superior Tribunal de Justiça, em várias oportunidades, já se manifestou no sentido de que a prática de qualquer ato libidinoso, compreendido como aquele destinado à satisfação da lascívia, com menor de 14 anos, configura o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP). Não se prescinde do especial fim de agir: “para satisfazer à lascívia”. Porém, não se tolera as atitudes voluptuosas, por mais ligeiras que possam parecer. Em alguns precedentes, ressaltou-se até mesmo que o delito prescinde inclusive de contato físico entre vítima e agressor.
9. Com efeito, a pretensão de se desclassificar a conduta de violar a dignidade sexual de pessoa menor de 14 anos para uma contravenção penal (punida, no máximo, com pena de prisão simples) já foi reiteradamente rechaçada pela jurisprudência desta Corte.
10. A superveniência do art. 215-A do CP (crime de importunação sexual) trouxe novamente a discussão à tona, mas o conflito aparente de normas é resolvido pelo princípio da especialidade do art. 217-A do CP, que possui o elemento especializante “menor de 14 anos”, e também pelo princípio da subsidiariedade expressa do art. 215-A do CP, conforme se verifica de seu preceito secundário in fine.
11. Além disso, a cogência do art. 217-A do CP não pode ser afastada sem a observância do princípio da reserva de plenário pelos tribunais (art. 97 da CR).
12. Não é só. Desclassificar a prática de ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos para o delito do art. 215-A do CP, crime de médio potencial ofensivo que admite a suspensão condicional do processo, desrespeitaria ao mandamento constitucional de criminalização do art. 227, §4º, da CRFB, que determina a punição severa do abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes. Haveria também descumprimento a tratados internacionais.
13. De fato, de acordo com a convicção pessoal desta Relatoria, o legislador pátrio poderia, ou mesmo deveria, promover uma graduação entre as espécies de condutas sexuais praticadas em face de pessoas vulneráveis, seja por meio de tipos intermediários, o que poderia ser feito através de crimes privilegiados, ou causas especiais de diminuição. De sorte que, assim, tornar-se-ia possível penalizar mais ou menos gravosamente a conduta, conforme a intensidade de contato e os danos (físicos ou psicológicos) provocados. Mas, infelizmente, não foi essa a opção do legislador e, em matéria penal, a estrita legalidade se impõe ao que idealmente desejam os aplicadores da lei criminal.
14. Verifique-se que a opção legislativa é pela absoluta intolerância com atos de conotação sexual com pessoas menores de 14 anos, ainda que superficiais e não invasivos. Toda a exposição até aqui demonstra isso. E, essa opção, embora possa não parecer a melhor, não é de todo censurável, pois, veja-se, “o abuso sexual contra crianças e adolescentes é problema jurídico, mas sobretudo de saúde pública, não somente pelos números colhidos, mas também pelas graves consequências para o desenvolvimento afetivo, social e cognitivo”. Nesse sentido, “não é somente a liberdade sexual da vítima que deve ser protegida, mas igualmente o livre e sadio desenvolvimento da personalidade sexual da criança” (BIANCHINI, A.; MARQUES, I. L.; ROSSATO, L. A.; SILVA, L. P. E.; GOMES, L.F.; LÉPORE, P. E.; CUNHA, R. S. Pedofilia e abuso sexual de crianças e adolescentes. São Paulo: Saraiva, 2013, e-book, Introdução, cap. 1).
15. Tanto a jurisprudência desta Corte superior quanto a do Supremo Tribunal Federal são pacíficas em rechaçar a pretensão de desclassificação da conduta de praticar ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos para o crime de importunação sexual (art. 215-A do CP). Precedentes.
16. Tese: presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP).
17. Solução do caso concreto: recurso especial provido para condenar o réu como incurso nas sanções do art. 217-A do CP, determinando a remessa dos autos ao Tribunal de origem para que, na instância ordinária, seja realizada a dosimetria da pena.

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial para condenar o réu como incurso nas sanções do art. 217-A do CP, determinando a remessa dos autos ao Tribunal de origem para que, na instância ordinária, seja realizada a dosimetria da pena, e fixou a seguinte tese: “presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (Art.
217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)”.

Os Srs. Ministros Antonio Saldanha Palheiro, Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior e Rogerio Schietti Cruz votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Joel Ilan Paciornik.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca.

Os julgados da Cortes de Vértice na sensibilidade a destacar deste julgadores de Escol, representados nesta profunda reflexão pela autoridade judicial e olhar reflexivo para a vida na sua espiral mais ampla e em todos os lados e sentidos do Ministro Ribeiro Dantas pontuam que o Judiciário está bem atento as essas questões.

Consequências psíquicas e comportamentais da pedofilia

Os danos causados às crianças, adolescentes e como já apontamos no decorrer do presente artigo, a família e ao ambiente social do menor trouxeram a precupação dos especialistas também na Responsabilidade Civil na qual podemos contextualizar danos psíquicos e reflexos a serem considerados nesta análise.

Na concepção da avaliação psicológica/psiquiátrica, constatamos o dano psíquico com a finalidade de apurar o prejuízo decorrente de um determinado siistro no que trouxe a pessoa, ou melhor, como salienta CASTRO & MAIA[23] (2010, pág. 03): “assume que pode existir um nexo de causalidade entre a experiência de quem foi vítima e o grau de perturbação mental”.

Acrescentam os referidos autores (Idem, idem):

“…O dano psíquico é caracterizado por uma deterioração das funções psíquicas, de forma súbita e inesperada, que surge após a ação deliberada ou culposa de alguém e que traz para a vítima um prejuízo material ou moral, face à limitação das suas actividades habituais ou profissionais (Ballone G., 2003, s/p). O autor acrescenta que o dano psíquico pode ser concebido como uma doença psíquica relacionada causalmente com um evento traumático (ex: acidente, doença, delito), que tenha resultado num prejuízo das aptidões psíquicas prévias com carácter irreversível ou transitório longo (leia-se durante um período prolongado). Este implica a alteração do equilíbrio básico do sujeito e/ou o agravamento de uma patologia anterior, alterando a normalidade do sujeito relativa a si mesmo e aos outros (Brito, 1999) …”

Silva (2010, pág. 25/32)[24] enumera as consequências possíveis no campo da psiquiatria com os quais se depara em seu consultório nos casos de vítimas de práticas dessa natureza que são os seguintes: Sintomas psicossomáticos: [cefaleia, cansaço crônico, insônia, dificuldades de concentração, náuseas, diarreia, boca seca, palpitações, alergias, crise de asma, sudorese, tremores, sensação de “nó” na garganta, tonturas ou desmaios, calafrios, tensão muscular, formigamentos.

Transtorno do Pânico, fobia escolar, fobia social (transtorno de ansiedade social – TAS), transtorno de ansiedade generalizada (TAG), depressão, anorexia e bulimia; transtorno obsessivo – compulsivo (TOC); transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) dentre outros menos frequentes.

Nas hipóteses menos frequentes referencia a renomada psiquiatra e escritora (idem, pág. 31): Esquizofrenia; suicídio e homicídio.

Ocorre Também que a atuação de um pedófilo, personagem com transtorno de personalidade, diferentemente das outras modalidade de transtorno, atinge não somente a vítima, mas também as pessoas do seu entorno e convivência, transformando-ono dano em ricochete, também conhecido como dano moral reflexo, é o prejuízo sofrido por pessoas próximas à vítima direta de um ato ilícito. 

 Ressalte-se que o dano em ricochete é uma indenização autônoma em relação ao dano sofrido pela vítima direta

Esse vem sendo o entendimento de precedentes de nossos tribunais, cuja ementa transcrevemos abaixo:

Trecho da ementa

“(…) No dano moral reflexo ou em ricochete, a despeito de a afronta a direito da personalidade ter sido praticada contra determinada pessoa, por via indireta ou reflexa, tal conduta agride a esfera da personalidade de terceiro, o que também reclama a providência reparadora a título de danos morais indenizáveis na medida da ofensa aos direitos destes. 3. Demonstrados o ato ilícito decorrente do atendimento defeituoso prestado por hospital público à neonatal, o dano correspondente à morte de filho recém-nascido e o nexo de causalidade entre ambos, deve ser o Estado ser condenado à prestar reparação por dano moral aos pais da vítima.”

Acórdão 1336600, 00354692820168070018, Relatora: MARIA DE LOURDES ABREU, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 28/4/2021, publicado no PJe: 14/5/2021. 

A responsabilidade civil decorrentes dessas práticas

Nos nossos tempos estamos cada vez mais expostos a situações consequentes das práticas de pedofilia. E são assustadores os registros e estatísticas apresentadas pelos mais diversos meios de pesquisas contratados por instituições de ensino, grupos religiosos.

A Lei Civil no Código Civil de 2002 proporciona um certo conforto e objetividade no sentido de precisar as responsabilidades decorrentes dos efeitos de uma conduta pedófila que proporcione efetos danosos as vítimas quando prevê o “nexo de causalidade” entre a ação do causador do dano e a efetividade dos prejuízos causados. Assim temos o orientação do art. 403 CC/02:

“… Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato,(g.n) sem prejuízo do disposto na lei Processual…” 

Assim superando décadas sobre o debate sobre essa temática que percorreu uma longa discussão sobre o que seria a ação e seu efetivo resultado. O legislador pôs por terra as estridentes correntes doutrinárias, acadêmicas e jurisprudenciais que tentavam preencher essa lacuna do Código Civil de 1916.

A concepção de efeito está focada na denominada e conhecida teoria do dano direto e imediato ou também conhecida por teoria do nexo causal.

Como descrevem ROSENVALD, FARIAS & BRAGA NETTO[25] (2017, pág. 477):

“…Se interpretarmos literalmente o mencionado dispositivo, encotraremos uma noção singela e bem-acabada do nexo causal sob o ponto de vista pragmático. Qual seja: de todas as condições presentes, só será considerada causa eficiente para o dano aquela que com ele tiver um liame direto e imediato. Todos os danos que se ligarem ao fato do agente de forma indireta e mediata serão excluídos da causalidade…”

Acrescentam ainda os referidos autores (idem, pág. 480) a importância do nexo de causalidade que pressupõe, obviamente uma investigação criteriosa e com um Standard Probatório seguro e bem fundamentado que viabilizará a responsabilidade sem equívocos:

“Nesse sentido, confessadamente decidiu o Supremo Tribunal Federal[26]. ‘a (teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade necessária ou teoria da causalidade adequada) – revela-se essencial ao reconhecimento do dever de indenizar, pois, sem tal demonstração, não há como imputar, ao causador do dano, a responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos pelo ofendido”…       

Ora, se temos o dever legal de identificar o responsável pela ação direta e imediata causadora do dano, é evidente e certo a necessidade e importância de uma investigação que resgate toda a história do incidente causador do dano.

Logo, temos que identificar quem é o pedófilo, agiu com ajuda de alguém? É preposto de alguma instituição de ensino ou organização religiosa. Em caso afirmativo, como foi contratado, qual a sua tarefa, exigia treinamento, porque a instituição o contratou? Com que finalidade? Verificou algum precedente? Em caso afirmativo. Que providências tomou ou foram adotadas? Houve omissão das vítimas ou de seus responsáveis quanto as ocorrências precedentes? Informaram à empresa ou pessoa jurídica? Realizou alguma avaliação psicológica de transtorno de personalidade? Há quanto tempo trabalha na pessoa jurídica? Houve omissão, negligência ou imprudência da organização nessa contratação? Há uma unidade com essa atribuição de receber as notícias na organização? Os Pais e responsáveis têem ciência dessas unidade? Como foram cientificados? Há comprovação dessa ciência? As pessoas que lidam com menores foram treinados ou preparados para eventos dessa natureza? Isto, dentro de um rol de ferramentas e expertise próprios de um profissional de investigação habilitado para esse ofício específico.

Não é qualquer profissional que investiga preventivamente ou probatoriamente um cenário de pedofilia. É um ambiente que exige preparação adequada, habilitação e acima de tudo experiência.

A importância dessa investigação no resgate da história está na definição daqueles que iram responder individualmente ou solidariamente pelo dano, pois também são orientações prescritas na nossa Lei Civil de 2002.

O artigo 932 elenca os possíveis responsáveis pela reparação civil, dentre les o empregador pelos empregados em resposta ao serviço que prestarem.

“ Art. 932: São também responsáveis pela reparação civil: III – o empregador ou comitente, por seus empregados,serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele…”  

Ou ainda, como é tipico no caso do bullyng, a responsabilidade solidária como também prescreve o Código civil de 2002 no artigo 942 e parágrafo único, já que essas práticas são ofensivas e violam o direito da vítima que merece uma segurança jurídica:

“…Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

Parágrafo único. São solidariamente respnsáveis com os autores ous coautores e as pessoas designadas no art. 932….”   

A questão a ser avaliada em sinistros resultantes de ações de pedófilos envolve uma visão cada vez mais técnica e especializada. Compromissada com as nossas crianças e adolescentes, pois serão um amanhã bem resolvido ou alguém com medo de enxergar e caminhar pela vida.

Essa área de atuação, preocupação e conhecimento não é nova, mas necessita de uma debate democrático, participante, preocupado, atuante daqueles que pensam numa sociedade justa, livre e solidária.

Não é uma tarefa que atente a um padrão de normalidade profissinal, mas sim espinhosa, penosa, trabalhosa e certamente por alguns episódios, frustrante. Mas esses infortúnios não tira a nossa esperança, pois com certeza, temos neste momento muitas pessoas do bem tentando suprimir ou mesmo amenizar este cenário.                                                                                              


[1] FONTE :WIKIPÉDIA.

[2] FONTE:CARTA CAPITAL. 01.06.2021. VATICANO INCLUI CRIME DE PEDOFILIA NO CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO

[3] FONTE: UOL de 26/01/2024: ESTUDO REVELA MILHARES DE CASOS DE PEDOFILIA NA IGREJA EVANGÉLICA DA ALEMANHA DESDE 1946.

[4] FONTE: LUCAS ROCHA, da CNN em São Paulo.

[5] FONTE: “O QUE É DEEPFAKE E COMO SE PROTEGER DOS RISCOS DA DESINFORMAÇÃO”. Fernanda Martins, março, 7, 2024.

[6] FONTE: “O QUE É DEEPFAKE E COMO SE PROTEGER DOS RISCOS DA DESINFORMAÇÃO”. Fernanda Martins, março, 7, 2024.

[7] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. BULLYING: MENTES PERIGOSAS NAS ESCOLAS. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

[8] Croce, Delton, et alli, Manual de Medicina Legal, Saraiva, São Paulo, 1995

[9] Seto MC (2009 «Pedofilia». Annual Review of Clinical Psychology, 5:391 – 407: PMID – 193270034. Doi: 10.1146/annurev. Clinpsy 032408.153618.

[10] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Bullying: MENTES PERIGOSAS NAS ESCOLAS. RIO DE JANEIRO: OBJETIVA, 2010.

[11] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes Perigosas: O psicopata mora ao lado. 3.ª ed. – São Paulo: Principium, 2018.

[12] PSIQUIATRIA FORENSE: Interfaces jurídicas, éticas e clínicas. Organizadores, Daniel Martins de Barros, Gustavo Bonini Castelhana. – 2.ª ed. – Porto Alegre: Artmed, 2020.

[13] LEONARDO AUGUSTO NEGREIROS PARENTE CAPELA SAMPAIO – Psiquiatra. Coordenador do Programa de Psiquiatria Social e Cultural (Prosol) do IPq-HCFMUSP)

[14] VICTOR B BIGELLI DE CARVALHO – Psiquiatra e empreendedor digital. Especialista em Medicina Legal pela FMUSP.

[15] MMPI e MMPI-2 (inventário Multifásico de Personalidade de Minnesota). Indicadíssimos pela ciência psiquiátrica. MMPI – inventário de autorrelato e compreendem 566 itens, que descrevem sentimentos, atitudes, sintomas físicos e emocionais e experiências anteriores de vida, para os quais o examinado assinala “certo” ou “errado”, conforme sua concordância com o item. É composto por 14 escalas, sendo 10 clínicos e quatro de validade. MMPI-2 – Além dessas citadas, contém 15 de conteúdo e 18 suplementares.

[16] HOLMES, D. (1997).  PSICOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS. Porto Alegre: ARTMED.

[17] DAVID S. HOLMES – Professor do Kansas, Usa. PHD em Psicologia Clínica pela NORTHWESTERN UNIVERSITY.

[18] HENRIQUES, R.P (2009) de H. CLECKLEY ao DSM – IV – TR: A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE PSICOPATIA RUMO À MEDICALIZAÇÃO DA DELINQUÊNCIA. Retirado do site www.scielo.br.

[19] KALINKA CASTELO BRANCO. FONTE: SUZANA NAZAR “CASOS DE PEDOFILIA SE MULTIPLICAM NO BRASIL COM OS AVANÇOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. https://jornalismo.usp.br/? P = 653936. Atualizado: 21/07/2023 às 14:51

[20] DIREITO FUNDAMENTAL À PROVA. CONSTITUCIONAL. 22/11/2024. RENATO OTÁVIO FERRAZ. Professor e Advogado.

[21] CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2023, p.416/417, Gen/Atlas)

[22] KHALED JR., Salah H. A BUSCA DA VERDADE NO PROCESSO PENAL: PARA ALÉM DA AMBIÇÃO INQUISITORIAL. 4.ª ed. – Belo Horizonte, MG: Letramento; Casa do Direito, 2023.

[23] Castro, A., & Maia, A. (2010). A avaliação de dano psíquico em processo cível: Uma análise de cinco anos de práticas. Psicologia, Psiquiatria e Justiça, 3, 111-127.Universidade de Minho.

[24] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. BULLYING: MENTES PERIGOSAS NAS ESCOLAS. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

[25] BRAGA NETTO, Felipe, CHAVES DE FARIAS, Cristiano & ROSENVALD, 

[26] STF, RE 481110 AgR-PE, rel. Min. Celso de Mello, j. 6-2-2007, 2.ª Turma.


Clayton da Silva Bezerra. Delegado de Polícia Federal. Palestrante. Presidente do Instituto Federal Kids de Combate A Pedofilia. Instrutor da Academia Nacional de Polícia Federal. Especialista em Direito Processual Penal.

Lorenzo Martins Pompílio da Hora. Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça. Doutora em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e pesquisa – IDP – Escola de direito de Brasília – EDB. Sócia do Escritório Jurídico Mendonça Advocacia.


Acesse o Guia do Governo Federal (Família protetora) para identificar riscos com pedofilia

https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/maio/FAMILIAPROTETORA.pdf

Imunidade tributária do ITBI sobre imóveis integralizados ao capital social de empresas: análise da sua aplicabilidade e limitações

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.


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Editor:

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Conselho editorial:

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Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

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Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

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Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

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Imunidade tributária do ITBI sobre imóveis integralizados ao capital social de empresas: análise da sua aplicabilidade e limitações

Jhully Hermes de Castro

Fernando de Magalhães Furlan

Resumo

Este artigo tem o objetivo de examinar a extensão normativa da imunidade tributária ao Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) em operações de integralização de capital social com imóveis, conforme prevista no artigo 156, § 2º da Constituição Federal de 1988. A análise se baseou em pesquisa doutrinária e jurisprudencial, com o intuito de aprofundar o conhecimento sobre a regra-matriz desse imposto e esclarecer a operação de integralização de capital social, sob a perspectiva jurídica, por meio da análise sistemática do direito positivo brasileiro. Além disso, foi investigado o contexto fático e processual de um caso paradigmático escolhido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para resolver as controvérsias nacionais sobre o tema. Por fim, foi realizada uma apreciação dos impactos econômicos e tributários da aplicabilidade da imunidade do ITBI, evidenciando as limitações significativas no alcance normativo da imunidade tributária com a adoção do Tema 796 de repercussão geral pelo STF.

Palavras-chave: Imunidade tributária; Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI); Integralização de capital social;

Abstract

This article aims to examine the normative extension of the tax immunity of the Real Estate Transfer Tax (ITBI) in operations involving the payment of subscribed capital with real estate, as provided for in Article 156, § 2 of the Federal Constitution of 1988. The analysis was based on doctrinal and jurisprudential research, with the aim of deepening knowledge about the main rule of this tax and clarifying business operations of payment of subscribed capital from a legal perspective, through the systematic analysis of Brazilian positive law. Furthermore, we investigated the factual and procedural context of a paradigmatic case chosen by the Federal Supreme Court (STF) to resolve national controversies on the subject (Topic 796 of STF’s General Repercussion Regime). Finally, we analyzed the economic and tax impacts of the applicability of ITBI immunity, highlighting the specific limitations in the normative scope of tax immunity raised by Topic 796.

Keywords: Tax immunity; Real Estate Transfer Tax (ITBI); Payment of subscribed capital.

Introdução

A imunidade tributária no contexto do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) representa tema de grande relevância e complexidade dentro do direito tributário brasileiro. Este artigo se propõe a explorar, com alguma profundidade, essa temática, com foco nos casos em que imóveis são integralizados ao capital social de empresas. A questão central é compreender até que ponto a imunidade tributária se aplica nesses casos, considerando as nuances constitucionais, legais e jurisprudenciais, buscando esclarecer as ambiguidades e os debates que envolvem a questão.

Para isso, é necessário interpretar as normas imunizantes com precisão, investigar o alcance efetivo da imunidade tributária e examinar como o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se posicionado sobre o tema. Esses pontos são essenciais para formar um entendimento abrangente e fundamentado da matéria.

A norma pilar está prevista no artigo 156, caput e inciso II, da Constituição Federal de 1988, que atribui aos municípios a competência para instituir um imposto sobre a transmissão de bens imóveis entre vivos, a qualquer título e por ato oneroso, bem como sobre direitos reais relacionados a esses imóveis, excetuando-se os de garantia e a cessão de direitos à sua aquisição. Além disso, essa disposição também fundamenta a imunidade tributária, estabelecendo que o ITBI não incide sobre a transmissão de bens ou direitos que sejam incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica, por meio da integralização de capital, nem sobre as transmissões resultantes de incorporação, fusão, cisão ou extinção da pessoa jurídica. A exceção se aplica somente quando a atividade principal da sociedade empresarial for a comercialização desses bens ou direitos, a compra/venda/aluguel de imóveis ou a locação mercantil (Brasil, 1998).

Importante destacar que o Código Tributário Nacional (Brasil, 1966) também dispõe sobre o ITBI e a imunidade tributária, fornecendo diretrizes para a interpretação e aplicação dessas normas. O CTN, ao regulamentar os aspectos tributários, oferece um arcabouço jurídico que orienta os contribuintes e os entes tributantes, proporcionando um entendimento mais claro das obrigações fiscais e das isenções.

Nessa mesma linha, é especialmente necessária a análise dos reflexos do julgamento do Tema 796 do Supremo Tribunal Federal – STF (Recurso Extraordinário 796.376 do Estado de Santa Catarina), afetado em Repercussão Geral, que discutiu o alcance da imunidade tributária do ITBI. Esse julgamento esclareceu como a imunidade se aplica a imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica, particularmente quando o valor total desses bens ultrapassa o limite do capital social a ser integralizado.

O STF determinou que essa imunidade se aplica apenas ao valor dos imóveis que corresponda ao capital social integralizado; ou seja, qualquer valor que exceda esse limite está sujeito à tributação. Apesar de ser um tema de repercussão geral já julgado e definido, existem muitas discussões e debates sobre as zonas limítrofes entre tributação e imunidade ao ITBI. Isso ocorre porque há uma falta de disciplina específica voltada a restringir o gozo da imunidade, mesmo que o CTN estabeleça requisitos, ainda persistem controvérsias sobre a interpretação teleológica, que, como será discutido, introduziu limitações não previstas pela Constituição Federal.

Justifica-se a relevância deste artigo pela frequência com que a integralização de imóveis ao capital social ocorre no ambiente empresarial e pela importância de um entendimento claro e consistente sobre a aplicação da imunidade tributária. Pois a correta aplicação da legislação tributária é fundamental, tanto para a segurança jurídica das empresas, quanto para a arrecadação estatal. Assim, este artigo visa a preencher lacunas existentes no conhecimento sobre o tema, oferecendo uma análise das disposições legais e das interpretações jurisprudenciais, além de avaliar os impactos econômicos dessa imunidade. Em última análise, ao proporcionar uma compreensão mais aprofundada sobre o alcance da imunidade tributária no ITBI, este artigo pretende contribuir para a melhoria da aplicação da legislação tributária, promovendo maior eficiência e segurança jurídica no âmbito tributário.

1. Revisão bibliográfica

1.1. Imunidade tributária e as limitações ao poder de tributar

As imunidades tributárias são entendidas como exceções que ganham relevância quando se consideram as normas que distribuem a competência tributária entre os diferentes entes federativos. Schoueri (2021, p. 434) explica que isso se dá porque a imunidade atua como uma limitação à competência tributária. Após ser estabelecida pela Constituição Federal (Brasil, 1988), essa competência permite que um ente federado crie um tributo sobre um determinado fenômeno econômico, enquanto a imunidade estabelece uma restrição ao exercício dessa competência.

Segundo Lima Júnior (2023, p. 133) as imunidades tributárias possuem a natureza de cláusulas pétreas, pois são garantias concedidas pelo legislador constituinte originário que protegem determinadas situações, fatos e pessoas da tributação, por refletirem finalidades essenciais. Dessa forma, nenhuma emenda constitucional pode revogar (abolir) essas imunidades, conforme o disposto no inciso IV, §4º, art. 60 da Constituição Federal (Brasil, 1988).

Embora isso não impeça a criação de novas imunidades, o constituinte derivado não pode alterar aquilo que foi considerado, pela Assembleia Nacional Constituinte, como insuscetível de tributação, elevando-o à condição de garantia fundamental do cidadão frente ao Estado.

Para a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Regina Helena Costa (2019, p. 112), as imunidades tributárias abrangem situações em que a tributação não se aplica e possuem uma dupla natureza. De um lado, são normas constitucionais que definem os limites da competência tributária, ao estabelecer casos em que o imposto não pode ser cobrado; de outro, representam um direito público subjetivo concedido às pessoas beneficiadas, garantindo-lhes dispensa de tributação.

Com base nessa perspectiva, Costa (2019, p. 113) define imunidade tributária como uma “exoneração estabelecida pela Constituição (Brasil, 1988), expressa em normas que impedem a atribuição de competência tributária ou derivam de princípios constitucionais, conferindo a certas pessoas o direito de não serem tributadas, de acordo com os limites definidos pela norma”.

Por sua vez, Carvalho (2018, p. 205) define imunidade tributária como um “conjunto restrito e claramente definido de normas jurídicas presentes na Constituição Federal (Brasil, 1988)”. Essas normas estabelecem, de forma explícita, a limitação da competência das entidades políticas para cobrar tributos que se aplicam a situações específicas e bem delimitadas.

A exclusividade da Lei Maior (Brasil, 1988) para tratar de imunidades decorre do fato de que essas normas são parte integrante da competência tributária, como tais, elas só podem ser estabelecidas pela Lei Maior (Brasil, 1988), que é responsável pela distribuição de competências entre os entes federativos no Brasil (Dias, 2020, p. 18).  

Carvalho (2018, p. 206), ao examinar o conceito de imunidades com maior profundidade, argumenta que elas não devem ser vistas como limitações à competência tributária. Enquanto limitações, têm a finalidade de restringir ou eliminar competências, as imunidades definem o alcance da competência atribuída a cada ente tributante, estabelecendo, junto com outras normas constitucionais, o escopo das atribuições dos entes tributantes.

De acordo com Coêlho (2020, p. 136), as normas tributárias definem situações tributáveis, enquanto as normas imunizantes e isentivas definem situações intributáveis, no plano normativo, todas as previsões de tributabilidade e intributabilidade se integram no contexto da norma tributária. Portanto, as imunidades também delimitam o poder do Estado de legislar para instituir tributos.

É importante distinguir entre limitação constitucional ao poder de tributar e limitação das competências tributárias. Para Dias (2020, p. 18) o poder de tributar é uma capacidade política, enquanto a competência é um conceito jurídico derivado das normas legais. Imunidades tributárias limitam o poder de tributar ao impedir que os entes políticos realizem certas ações que aumentariam a arrecadação, simultaneamente, funcionam como normas de competência negativa, ao vedar determinadas atribuições a esses entes.

Carvalho (2018, p. 206) destaca que as imunidades têm uma função estruturante, estabelecendo regras para a incidência dos tributos e definindo as situações em que a tributação não é permitida. O autor defende que a imunidade deve ser clara e autoaplicável, sem necessidade de recursos adicionais para a sua compreensão. Assim, a interpretação das normas imunizantes deve respeitar suas características intrínsecas para não distorcer o seu propósito e violar os princípios constitucionais.

No presente artigo, é importante distinguir entre duas categorias: as imunidades incondicionadas, que têm aplicação direta e imediata, sem necessidade de outra norma que as regule; e as imunidades condicionadas, que dependem de uma lei complementar para definir os requisitos de sua aplicação. A diferenciação, no entanto, está na necessidade de verificar, nas imunidades condicionadas, se os requisitos estabelecidos pelo legislador infraconstitucional foram atendidos (Serrano, 2023, p. 75).

1.2. Análise normativa da imunidade do ITBI

No contexto do ITBI a imunidade é especificada no inciso II do artigo 156, da Constituição Federal (Brasil, 1988), que delega aos municípios a competência para instituir o imposto sobre a transmissão intervivos, por ato oneroso, de propriedade de bens imóveis. A incidência do ITBI abrange direitos reais sobre imóveis, como o usufruto e a servidão, mas exclui direitos de garantia, como hipotecas e penhores, que não implicam na transferência plena da titularidade.

Esta norma assegura que os municípios possam arrecadar receitas decorrentes das transferências efetivas de patrimônio imobiliário, fortalecendo a sua autonomia financeira. Vejamos:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

II – Transmissão intervivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

Além da previsão constitucional, o imposto, sua imunidade e a exceção a ela estão regulamentados nos artigos 35, 36 e 37 do Código Tributário Nacional (CTN) (Brasil, 1966). Embora o código mencione que a competência sobre o ITBI pertença aos estados, na verdade, o tributo é de competência dos municípios. Essa divergência ocorre porque o CTN foi promulgado antes da Constituição de 1988 (Brasil, 1988), quando a ordem constitucional vigente atribuía aos estados a competência sobre a transmissão de bens imóveis causa mortis, já que, à época, esse era considerado um único tributo de competência estadual (Machado, 2019, p. 88).

Assim, o artigo 36 do CTN (Brasil, 1966) define as regras para a aplicação da imunidade tributária ao ITBI, verbis:

Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:

I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;

II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.

Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.

O artigo supramencionado especifica que o imposto não é cobrado na transferência de bens ou direitos que sejam incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica, como integralização de capital social. Idem para as transferências resultantes de fusão ou incorporação de uma empresa por outra. Além disso, o artigo assegura que o ITBI não incida na devolução desses bens aos alienantes originais, caso sejam retirados do patrimônio da pessoa jurídica adquirente.

O objetivo da regra é facilitar a mobilização (custos de entrada) e posterior desmobilização (custos de saída) de bens imóveis, promovendo a formação, fusão, transformação, cisão e extinção de sociedades comerciais e civis, sem embaraçar a movimentação dos imóveis com o ITBI, quando comprometidos com tais situações. Essa exceção, estabelecida ao final do artigo 156, inciso II, § 2º, assegura a aplicação justa da imunidade do ITBI, impedindo o seu uso como meio de evasão fiscal, fundamental para manter o equilíbrio fiscal e a integridade do sistema tributário (Brasil, 1966).

A análise da definição da hipótese de incidência tributária e da consequente obrigação tributária exige um exame detalhado da norma tributária, em sentido estrito, conhecida como “regra-matriz de incidência tributária”. Conforme ensina Schoueri (2021, p. 288), essa expressão refere-se à hipótese e à relação jurídico-tributária que daí se estabelece, representando um método essencial para a compreensão do fenômeno tributário.

Segundo Maia e Antunes (2022, p. 250) a regra-matriz de incidência tributária é composta por três aspectos antecedentes: material, temporal e espacial, que definem a hipótese tributária; e dois aspectos consequentes: quantitativo e pessoal, que determinam a obrigação tributária. Cada um desses aspectos é fundamental para identificar quando e como o fato gerador de determinado tributo ocorre, bem como para estabelecer quem são as partes envolvidas e o valor da obrigação a ser recolhida.

No caso específico do ITBI, a análise dos aspectos antecedentes define quando e onde ocorre a transferência de propriedade, enquanto os aspectos consequentes estabelecem quem são os sujeitos da relação tributária (contribuinte e Fisco) e qual será o montante devido. Inicialmente, constata-se que a Constituição Federal (Brasil 1988) delineou dois critérios materiais para a incidência do ITBI; o primeiro é a transmissão “intervivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis (seja por sua natureza ou por acessão física[3]) e de direitos reais sobre imóveis, com exceção dos direitos de garantia, como hipoteca, anticrese[4] e propriedade fiduciária instituída como forma de garantia; o segundo critério material é a cessão de direitos sobre a aquisição de tais bens ou direitos.

O critério espacial, que delimita a competência territorial do tributo, está relacionado ao município onde se localiza o bem imóvel. A Constituição (Brasil, 1998) atribui expressamente aos municípios a competência para instituir e cobrar o ITBI, reforçando que o território do Município onde o imóvel está situado é o espaço geográfico relevante para a incidência do imposto. Por fim, o critério temporal, que é o último aspecto antecedente da regra-matriz de incidência tributária, refere-se ao momento da transmissão da propriedade do imóvel, que ocorre quando o título é registrado no Cartório de Registro de Imóveis, nos termos do artigo 1.245, caput e §1º, do Código Civil (Brasil, 2002). Esse dispositivo estabelece que a propriedade do imóvel só é efetivamente transmitida após o registro do título no Registro de Imóveis. Assim, o momento da incidência do ITBI coincide com a conclusão formal da transferência de propriedade, consolidada no registro (Maia; Antunes, 2022, p. 251).

Conforme Coêlho (2020, p. 135), os princípios que embasam a imunidade do ITBI estão diretamente ligados à atividade econômica, eles promovem a formação de estruturas societárias essenciais para o crescimento e desenvolvimento econômico ao isentar a transmissão de bens ou direitos para a integralização de capital subscrito, demonstrando a intenção dos legisladores constituintes de estimular o investimento privado, a oferta de trabalho, enfim, o progresso econômico e social.

A doutrina especializada aponta que o constituinte decidiu imunizar as operações previstas no art. 156, §2º, I, da Constituição (Brasil, 1988) como uma forma de incentivar o crescimento e a capitalização das empresas, evitando que o ITBI se tornasse um obstáculo ao desenvolvimento econômico. Baleeiro (2015, p. 157), por exemplo, defende que a imunidade do imposto em transmissões destinadas à formação de empresas é um meio de fomentar o desenvolvimento econômico do país. De modo semelhante, Barreto sustenta que a imunidade tem como objetivo facilitar a constituição e a alteração de empresas, promovendo a livre iniciativa, o crescimento das empresas e, por consequência, o desenvolvimento econômico. (2009, p. 161-162).

De fato, a personalidade jurídica exerce um papel essencial na organização e no incentivo às atividades econômicas e sociais. A criação de uma pessoa jurídica, separada da figura dos sócios e com patrimônio próprio, proporciona maior eficiência administrativa à atividade desenvolvida e aumenta a liquidez do capital investido. Além disso, possibilita a adoção de mecanismos para prevenir, gerir e resolver conflitos entre os sócios, entre outros benefícios (Andrade Júnior; Felício, 2019, p. 336-338).

Assim, conforme definido por Ataliba (1994, p. 306-307), a imunidade do ITBI se classifica como uma imunidade específica, pois se aplica exclusivamente a esse imposto e é dirigida aos municípios, que são os responsáveis por sua instituição. Além disso, trata-se de uma imunidade circunstancial, que protege uma situação particular, delimitada pela norma constitucional, não possuindo como objetivo principal a proteção de valores constitucionais amplos e fundamentais.

1.3. A Transmissão de bens imóveis em realização de capital social

Para Braum (2022, p. 22) o capital social reflete a contribuição dos sócios para a empresa, tanto no momento de sua criação, quanto em etapas futuras, fornecendo os recursos essenciais para alcançar os objetivos da sociedade. Em outras palavras, a integralização do capital consiste na transferência de ativos (valores ou bens) para o patrimônio da sociedade, com o propósito de gerar riqueza.

Nesse cenário, o capital social pode ser composto por qualquer bem (corpóreo ou incorpóreo[5]) que possua um valor passível de ser registrado no balanço da sociedade, incluindo bens imóveis. Esses bens devem ser transferidos à sociedade, de acordo com as normas que regem a sua natureza jurídica. No caso de bens imóveis, o instrumento legal adequado para a sua transferência, devido à sua natureza jurídica especial, é a transcrição no Registro de Imóveis do ato societário, devidamente registrado na Junta Comercial, que aumenta o capital social com a conferência do imóvel (Lamy Filho, 1999, p. 204).

Assim, os bens imóveis são incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica, deixando de pertencer ao antigo proprietário. Em troca, a empresa que adquire o imóvel emite novas ações ou quotas, que são entregues ao antigo proprietário do bem, conferindo-lhe a condição de sócio ou acionista.

Em relação à transferência de bens imóveis, como mencionado, o legislador constituinte procurou estimular a formação de empresas e impulsionar o crescimento econômico, limitando a capacidade dos municípios de cobrar o ITBI. Assim, foi definido que o imposto não se aplicaria à transmissão de bens ou direitos que fossem incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica para fins de integralização de capital, nem às transferências resultantes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica. A exceção aplica-se somente quando a atividade principal do comprador for a comercialização desses bens ou direitos, a locação de imóveis ou o leasing mercantil (Brasil, 1988; Braum, 2022, p. 23).

Essa norma impede que os municípios tenham competência para criar leis que instituam a cobrança do ITBI na transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital. Essa limitação constitucional é reforçada pelo CTN (Brasil, 1966), que também confirma a não incidência do imposto.

Ademais, a jurisprudência nacional, como a posição do STJ no EDcl no AgRg no REsp 798.794/SP (Brasil, 2006), era consistente em entender que a administração municipal deveria considerar dois fatores, ao avaliar pedidos de reconhecimento da imunidade tributária do ITBI. Primeiramente, era necessário verificar se a transferência do imóvel teria ocorrido como parte da integralização de capital social de uma pessoa jurídica. Em segundo lugar, deveria ser analisado se a atividade preponderante da pessoa jurídica receptora dos imóveis não se enquadrava como atividade imobiliária. A atividade preponderante do transmitente, por outro lado, era considerada irrelevante para a determinação da imunidade tributária do ITBI. Assim, esse entendimento prevaleceu até o julgamento do Tema 796 pelo STF (2020) (Carrazza, 1997, p. 125; Braum, 2022, p. 23).

Se ambos os critérios fossem atendidos, ou seja, se o valor integral do imóvel transferido fosse destinado ao capital social, e a atividade preponderante da empresa receptora não fosse imobiliária, estariam preenchidos os requisitos para a concessão da imunidade tributária do ITBI. Nesse contexto, uma negativa municipal ao reconhecimento da imunidade tributária do ITBI, nessa situação, seria considerada inconstitucional. No entanto, essa interpretação passou a ser reavaliada após o julgamento do Tema 796 de Repercussão Geral (STF, 2020), conforme será discutido no próximo capítulo.

1.4. Alcance da imunidade do ITBI

A natureza densa e complexa do Direito Tributário se reflete, tanto nos prolongados processos judiciais que frequentemente envolvem questões tributárias, quanto nos debates acalorados e nas extensas negociações políticas que caracterizam a tramitação de proposições legislativas de ordem tributária no Congresso Nacional. Essas propostas legislativas, em sua maioria, impactam diretamente a carga tributária dos contribuintes e as receitas dos entes federativos, prolongando ainda mais o ciclo de discussões (Coelho, 2016, p. 338).

O texto do artigo 156, §2º, I, da Constituição Federal permite identificar duas situações em que a imunidade tributária foi concedida pelo constituinte: (i) a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica para a realização de capital social; e (ii) as transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de uma pessoa jurídica.

Contudo, Silva (2021, p. 188) observa que há uma exceção a essa imunidade, ela não se aplica quando a atividade principal do adquirente é a compra e venda desses bens ou direitos, a locação de imóveis ou o arrendamento mercantil.

Assim, a questão central reside na interpretação da expressão “salvo se, nesses casos”. De acordo com a análise de Guilherme Traple (2012, p. 89), a vírgula e o vocábulo “nem” presentes no dispositivo são cruciais para entender essa expressão, uma vez que a conjunção aditiva com efeito de negação sugere uma divisão entre circunstâncias distintas. O autor explica que a expressão poderia ser substituída por “e não”, o que indicaria a separação de dois contextos diferentes. Além disso, o termo “nesses casos” é visto como uma contração da preposição “em”, que visa a adequar o texto ao português formal.

Dessa forma, o termo “esses” seria usado para se referir a uma ideia mencionada anteriormente, o que implica que a expressão “nesses casos” também retoma os termos precedentes. Com base nessa interpretação, há duas situações que podem ser consideradas para imunização: a transmissão em realização de capital social e as transmissões resultantes de alterações societárias e extinção de pessoa jurídica. Na visão literal, a exceção à imunidade se aplicaria apenas às últimas situações, ou seja, a imunidade não seria concedida se a atividade preponderante fosse de natureza imobiliária, como especificado no dispositivo (Silva, 2021, p. 119).

A interpretação da norma constitucional envolve compreender, investigar e disseminar o conteúdo semântico dos enunciados presentes na Constituição (Brasil, 1988), tanto em seus aspectos formais, quanto materiais. Essa atividade tem o objetivo de revelar o significado e o conteúdo da norma para, posteriormente, aplicá-la a um caso concreto (Canotilho, 1995, p. 214).

Barroso (2014, p. 107-108) explica que a interpretação constitucional exige também a definição do conceito de construção. O autor leciona que a Constituição é composta principalmente por normas principiológicas, que são abstratas e visam a abranger situações que não estão detalhadas no texto. Enquanto a interpretação busca o sentido literal de uma expressão, a construção vai além, permitindo que se tirem conclusões sobre questões que não estão diretamente expressas; essas conclusões são extraídas do espírito da norma, embora não constem de sua letra. Assim, a interpretação se restringe ao texto, enquanto a construção pode incluir considerações externas.

Nesse contexto, em um cenário atualizado, ainda não resta nítido, muito menos consolidado, quais seriam os limites ou alcance de gozo da imunidade tributária do ITBI, visando a uma aplicação precisa de uma interpretação dos dispositivos legais, a jurisprudência vigente é fundamental para definir os limites dessa imunidade.

1.4.1. A interpretação gramatical do artigo 156, §2º, I

Como já mencionado, a controvérsia sobre a interpretação do artigo 156, §2º, I, da Constituição (Brasil, 1998), gira em torno da expressão “nesses casos“. A questão central que surge é se os “casos” mencionados no texto constitucional incluem ambas as exceções previstas no dispositivo — ou seja, a primeira relacionada à transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica durante a realização de capital social, e a segunda referente às transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica — ou se se restringem apenas às transmissões resultantes de reorganizações societárias.

De acordo com Barroso (2014, p. 131), a interpretação jurídica deve começar pelo texto da norma, buscando o conteúdo semântico das palavras, o que justifica o uso inicial da interpretação gramatical.

Segundo a gramática, os pronomes demonstrativos “este”, “esse” e “aquele” e suas variações têm a função de indicar a posição de objetos ou seres no tempo ou espaço, eles são utilizados para apontar a proximidade ou distância entre os elementos do discurso. Maia e Antunes (2022, p. 262) explicam que “este” indica proximidade com a pessoa que está falando, “esse” sugere proximidade com a pessoa com quem se fala, e “aquele” se refere a algo distante de ambas as partes.

Aplicando essa regra gramatical, parece que o constituinte de 1967 usou a expressão “salvo se estas” para se referir exclusivamente às transmissões de bens em fusões, incorporações, extinções ou reduções de capital de pessoas jurídicas. Excluindo, portanto, a transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica da exceção à regra de imunidade, verbis:

§ 3º O imposto a que se refere o n.º I não incide sobre a transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica nem sobre a fusão, incorporação, extinção ou redução do capital de pessoas jurídicas, salvo se estas tiverem por atividade preponderante o comércio desses bens ou direitos, ou a locação de imóveis (Brasil, 1967).

No entanto, é relevante destacar que a Constituição Republicana de 1891 (Brasil, 1891) não previu qualquer hipótese de não incidência do imposto sobre a transmissão de propriedade (art. 9º, §3º). As Constituições subsequentes de 1934 (art. 8º, ‘c’), 1937 (art. 23, I, ‘b’) e 1946 (art. 29, III), embora não tenham introduzido a não incidência, inovaram ao prever expressamente a incidência do imposto sobre a transmissão de propriedade imobiliária intervivos, inclusive nos casos de incorporação ao capital de sociedade. Isso pode levar à conclusão de que o uso do pronome “estas” na Constituição de 1967 (Brasil, 1967) tenha sido um erro linguístico do legislador.

Por outro lado, Frota (2018, p. 119) entende que o termo “nesses casos”, presente no inciso I do §2º do art. 156 da Constituição (Brasil, 1998), se refere a todos os casos mencionados anteriormente no inciso, sem distinção entre a primeira parte (transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica como capital social) e a segunda parte (transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica). Frota argumenta que, se o legislador tivesse a intenção de diferenciar entre as duas partes do inciso, teria utilizado a expressão “nestes casos” para se referir especificamente às hipóteses de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.

Segundo Maia e Antunes (2022, p. 264), a modificação no texto visou, inicialmente, a ampliar a exceção para situações em que o comprador do imóvel, no caso da extinção de uma pessoa jurídica, fosse uma pessoa física e não uma outra entidade, desde que sua atividade principal estivesse relacionada ao setor imobiliário. No entanto, essa justificativa se torna menos convincente, pois ao examinar os registros da Assembleia Nacional Constituinte, não se encontra nenhuma evidência, explicação ou discussão que sustente essa intenção.

Diante disso, conclui-se que a interpretação gramatical do artigo 156, §2º, I, da Constituição Federal (Brasil, 1998) não oferece elementos suficientes para uma compreensão clara do alcance da exceção à regra de imunidade. Embora existam argumentos linguísticos que sugiram que a expressão “nesses casos” visava a condicionar apenas a segunda hipótese de imunidade, tais como a escolha deliberada de incluir a expressão “nesses casos“, quando poderia ter sido omitida; o uso do vocábulo “nem”, que delimita as hipóteses, com a expressão “nesses casos” inserida na última situação de não incidência, esses argumentos são enfraquecidos pela controvérsia sobre o significado de “esse”, em contraste com “este”; e a escolha do termo “esse”, quando poderia ter sido usado “este” (Maia; Antunes, 2022, p. 265).

1.4.2. A interpretação teleológica

Além da interpretação gramatical, existe a interpretação teleológica que busca compreender a norma com base na sua finalidade, ou seja, o objetivo para o qual foi criada. Segundo o Vocabulário Jurídico Tesauro[6], esse método interpretativo visa a identificar a razão finalística da norma, indo além do seu conteúdo literal. A teleologia, portanto, foca na descoberta do propósito subjacente à criação da norma, permitindo uma interpretação mais eficiente ao esclarecer o motivo pelo qual a regra foi elaborada[7].

Segundo Zahran (2015, n.p), ao combinar a interpretação teleológica com o contexto histórico, o método histórico-teleológico se propõe a captar a intenção da norma, levando em consideração a realidade histórica no momento da sua criação e a finalidade prática pretendida, que permite que a norma seja interpretada de forma mais abrangente, já que leva em conta tanto os aspectos linguísticos, quanto os objetivos que ela visa a atingir.

As imunidades têm como objetivo evitar a elaboração de normas que instituam tributação sobre determinados sujeitos e situações essenciais para a promoção de valores fundamentais à sociedade; nesse sentido, a doutrina defende que a interpretação teleológica deve orientar a aplicação desse instituto. Machado (2015, p. 160) enfatiza essa perspectiva ao destacar que o aspecto finalístico é fundamental e que a norma imunizante visa a garantir que o Estado respeite todas as formas de manifestação.

É importante lembrar que essa legislação não pode restringir o alcance da imunidade prevista pelo Constituinte. Assim, cabe ao intérprete realizar uma interpretação literal, como se fosse uma mera verificação de requisitos, bem como aplicar a interpretação teleológica. Essa abordagem pretende avaliar o alcance e a finalidade da norma imunizante, garantindo que os valores considerados fundamentais pelo Constituinte para o Estado Democrático de Direito não sejam indevidamente limitados (Lima Júnior, 2023, p. 133).

Para Jorge (2014, p. 36) a interpretação não deve ser vista apenas como um ato de extrair o sentido já presente no texto, mas como um processo de construção do significado a ser realizado pelo intérprete, que pode ser alcançado por meio de outros métodos interpretativos, como o teleológico.

Carrazza (1997, p. 534) ressalta que cabe ao intérprete, ao lidar com a lei, afastar termos inúteis ou redundantes e buscar o verdadeiro significado das palavras. No entanto, o intérprete não pode atribuir qualquer sentido ao texto normativo, devendo fazê-lo de acordo com o contexto social e histórico em que se insere, seguindo os métodos de interpretação.

Machado (2019, p. 82) defende que o exegeta deve priorizar o método teleológico ao interpretar normas constitucionais, buscando preservar o princípio da supremacia da Constituição (Brasil, 1998). Maximiliano (2005, p. 314) compartilha dessa visão, destacando a importância do método teleológico na interpretação constitucional. Essa abordagem é amplamente sustentada na doutrina brasileira, especialmente no que diz respeito às normas de imunidade tributária, que devem ser interpretadas dentro do contexto do sistema tributário e dos princípios constitucionais que fundamentaram a sua criação.

As imunidades tributárias possuem um elemento finalístico e sua interpretação deve buscar concretizar as finalidades expressas no texto normativo. Nesse sentido, Costa (2021, p. 115-116) afirma que a interpretação da norma imunitória deve ser feita de maneira equilibrada, a fim de evidenciar o princípio ou o valor que ela abriga. Assim, não é legítima uma interpretação ampla e extensiva que inclua mais do que a constituição pretende, nem a chamada “interpretação literal”, que poderia restringir indevidamente os limites da exoneração tributária. Em ambos os casos, a intenção constitucional estaria comprometida.

Castro, ao discutir o argumento teleológico como justificativa para a imunidade do ITBI em operações societárias, apresenta mais dois pontos de significativa relevância. Em primeiro lugar, ele afirma que, juridicamente, não ocorre uma transmissão de propriedade que configure a hipótese de incidência tributária nas operações de integralização de imóveis ao capital social de uma pessoa jurídica. Segundo ele, “o que ocorre na integralização de imóvel a sociedade é a substituição de bens imóveis (terrenos ou prédios) detidos pelos sócios, por bens móveis (quotas representativas do capital social da sociedade)” (2013, p. 253).

Em segundo lugar, mesmo que se admita a existência de uma transmissão, ele sustenta que essa não ocorre de forma onerosa. Para justificar esse ponto, argumenta que não há onerosidade para o transmitente, pois não lhe são impostas obrigações ou deveres adicionais, decorrentes da transmissão (Castro, 2013, p. 253).

Considerando que o método teleológico busca compreender a finalidade de uma norma, ou seja, a ratio essendi do preceito normativo, para, a partir disso, determinar seu real sentido e alcance, a interpretação do artigo 156, §2º, I, da Constituição Federal (Brasil, 1998) deve ser guiada pelo propósito da imunidade tributária nele prevista (Soares, 2019, p. 50).

Nesse contexto, Greco esclarece que a imunidade funciona como um verdadeiro incentivo à criação e reorganização empresarial, uma vez que a empresa poderá utilizar seus bens para obter crédito e contratos, utilizando-os como garantia real (2018, p. 1843). Isso significa que a interpretação da imunidade prevista no inciso I, §2º, do art. 156 deve estar alinhada com a finalidade de estimular o empreendedorismo (livre iniciativa), a capitalização e o desenvolvimento econômico. Assim, para garantir que a norma de imunidade atinja a sua máxima eficácia, pode-se argumentar que a expressão “salvo se, nesses casos” deve ser interpretada de forma restritiva, limitando a exceção às transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de empresas.

Diante do exposto, conclui-se que a interpretação teleológica do artigo 156, §2º, I, da Constituição Federal (Brasil, 1998) oferece um ponto de partida para entender a extensão da exceção à regra de imunidade. No entanto, a justificativa baseada na finalidade da norma de imunidade pode ser confrontada pela própria finalidade da norma de exceção. A exceção relacionada à atividade preponderante tem o intuito de evitar que pessoas jurídicas sejam criadas com o único propósito de escapar da cobrança do ITBI, o qual seria aplicado normalmente se a operação fosse realizada por uma pessoa física.

1.5. Entendimento doutrinário sobre a exceção à imunidade do ITBI

A doutrina tributária brasileira aborda de forma limitada o alcance da expressão “salvo se, nesses casos“, que introduz a segunda parte do inciso I, §2º, do art. 156 da Constituição Federal (Brasil, 1988). No mais das vezes, a doutrina simplesmente aponta a incidência do ITBI na integralização de imóveis ao capital social de pessoa jurídica imobiliária, sem aprofundar discussões ou controvérsias sobre possíveis restrições à exceção.

Costa (2021, p. 160) ressalta que o art. 156, § 2º, I, da Constituição (Brasil, 1988) prevê duas regras imunizantes com características objetivas e políticas. Contudo, essa imunidade é limitada quando a atividade principal do adquirente envolve a compra e venda de bens ou direitos imobiliários, a locação de imóveis ou o arrendamento mercantil. Segundo Costa, a imunidade não se aplica se o adquirente exercer essas atividades preponderantemente, sendo irrelevante a atividade do cedente ou transmitente; o objetivo da norma, de acordo com sua análise, é facilitar a transformação, formação, fusão, cisão e extinção de sociedades civis e comerciais.

Coêlho (2020, p. 246) também trata da exceção à imunidade em casos de integralização de capital em pessoa jurídica imobiliária, e observa que a norma visa simplificar a mobilização e desmobilização de bens imóveis, favorecendo a formação e transformação das sociedades sem que a movimentação de imóveis seja onerada pelo ITBI, exceto quando os adquirentes tenham por atividade preponderante a compra e venda de imóveis ou a locação, conforme previsto no art. 37, §§ 1º e 2º do CTN (Brasil, 1966).

Ambos os autores concordam que o objetivo central dessas normas imunizantes é evitar o embaraço fiscal nas operações societárias envolvendo imóveis, exceto em situações específicas em que a atividade preponderante dos adquirentes se relaciona diretamente com o mercado imobiliário.

Kiyoshi Harada (2021, p. 89-90) é um dos poucos estudiosos que faz uma análise detalhada sobre a exceção à imunidade tributária na integralização de capital social com bens ou direitos. Com base em uma interpretação gramatical do texto constitucional, Harada divide essa imunidade em duas categorias: a) imunidade autoaplicável e b) imunidade condicionada. Ele argumenta que a conjunção “nem”, presente no inciso I, §2º, do art. 156, indica a existência de duas situações distintas, cada uma com uma imunidade própria.

Na primeira parte do dispositivo, a imunidade é autoaplicável, abrangendo a transferência de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica para realização de capital; já na segunda parte, que trata da transmissão de bens em casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção de uma pessoa jurídica, a imunidade é condicionada. Para que ela se aplique, é necessário que a atividade preponderante do adquirente não envolva a compra e venda de bens ou direitos, a locação de imóveis ou o arrendamento mercantil. Harada conclui que apenas a imunidade em reorganizações societárias está sujeita a essa condição da atividade preponderante, enquanto a imunidade na integralização de capital é incondicional, não sendo necessário verificar as condições estabelecidas no final do dispositivo.

Esse entendimento também é compartilhado por Alexandre (2016, p. 663), que aponta a ressalva quanto à atividade preponderante da adquirente apenas para operações de fusão, incorporação e cisão. Nesses casos, se a atividade principal do adquirente for a compra e venda de imóveis, locação ou arrendamento, haverá incidência do ITBI. O autor menciona, por exemplo, a situação em que uma imobiliária incorpora outra, o que justifica a tributação por envolver uma atividade típica do setor.

Dessa forma, a maioria dos doutrinadores parece concordar que a exceção à imunidade do ITBI aplica-se à integralização de bens imóveis ao capital social de pessoa jurídica cuja atividade principal seja o comércio de imóveis, locação ou arrendamento. Contudo, muitos desses posicionamentos são rasos no que se refere à interpretação gramatical e teleológica da norma.

1.6. Os Recursos Extraordinários nº 796.376/SC e nº 1.495.108/SP (Temas 796 e 1348)

Antes de analisar criticamente a aplicabilidade e a limitação da imunidade tributária no ITBI, é fundamental abordar o conteúdo completo do Recurso Extraordinário nº 796.376/SC (que deu origem ao Tema 796, do instituto de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal) para uma melhor compreensão dos argumentos que levaram à sua conclusão (STF, 2020).

Em 1º de maio de 2010, seis pessoas físicas formalizaram a criação de uma sociedade empresária limitada, denominada “Lusframa Participações Societárias Ltda.” Na ocasião, os sócios estabeleceram que o capital social da empresa seria de R$ 24.000,00 (vinte e quatro mil reais), valor integralizado mediante a transferência de 17 (dezessete) bens imóveis. Esses imóveis estavam registrados nas respectivas Declarações de Ajuste Anual de Imposto de Renda (DIRPF) dos sócios, totalizando R$ 802.724,00 (oitocentos e dois mil, setecentos e vinte e quatro reais). Ao serem transferidos para a pessoa jurídica, a diferença entre o valor declarado e o valor atribuído ao capital social (ágio) foi contabilizada na conta de reserva de capital[8].

Após o registro do ato constitutivo da sociedade na Junta Comercial do Estado de Santa Catarina, a Lusframa Participações Societárias Ltda. solicitou, em procedimento administrativo junto ao Município de São João Batista, o reconhecimento da imunidade tributária referente ao ITBI na transferência dos imóveis mencionados, como parte da integralização do capital social. Durante esse processo, o município reconheceu que a atividade principal da Lusframa Participações Societárias Ltda. não era de natureza imobiliária.

No entanto, posteriormente, o município concedeu a imunidade tributária do ITBI apenas sobre o valor de R$ 24.000,00 (vinte e quatro mil reais), estipulando que a diferença entre o valor dos imóveis declarados pelos sócios (R$ 802.724,00) e o valor destinado ao capital social (R$ 24.000,00) deveria ser considerada como base de cálculo para a aplicação da alíquota do ITBI. Isso significava que, segundo a interpretação do município, o ITBI deveria incidir sobre a quantia de R$ 778.724,00 (setecentos e setenta e oito mil, setecentos e vinte e quatro reais).

O município justificou sua posição argumentando que a imunidade tributária do ITBI se restringe apenas aos valores utilizados para a subscrição do capital social, não se estendendo a valores excedentes.

Inconformada com a decisão administrativa, a Lusframa Participações Societárias Ltda. ajuizou uma ação de mandado de segurança na Justiça Estadual de Santa Catarina, buscando o reconhecimento da imunidade tributária sobre a totalidade da transferência dos imóveis utilizados para a integralização do capital social, sem que houvesse a incidência do ITBI sobre qualquer valor.

O juiz da Vara Única do Município de São João Batista, com base em manifestação favorável do Ministério Público, concedeu liminar favorável à Lusframa Participações Societárias Ltda., determinando que o Secretário de Fazenda do Município de São João Batista se abstivesse de cobrar o ITBI sobre a transmissão dos imóveis incorporados ao patrimônio da empresa, para fins de realização do capital social.

Após a decisão, o Município de São João Batista interpôs recurso de apelação ao Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, buscando a revisão da sentença. O município argumentou que a base de cálculo para o ITBI deveria ser a diferença entre o valor total declarado dos imóveis pelos sócios (R$ 802.724,00) e o valor destinado ao capital social (R$ 24.000,00), totalizando R$ 778.724,00, e não apenas o valor do capital social.

No segundo grau, a Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Santa Catarina novamente manifestou apoio ao contribuinte e contrariedade à tributação pretendida pelo município, postulando pela manutenção da sentença de primeiro grau. No entanto, a 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, à unanimidade, deu provimento ao recurso do município, reformando a sentença e negando a segurança solicitada pela Lusframa Participações Societárias Ltda. A decisão da câmara fundamentou-se na interpretação de que a imunidade do ITBI para integralização de capital social não impedia a tributação sobre valores adicionais ao capital social.

A Lusframa Participações Societárias Ltda., então interpôs Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, pedindo a reforma da decisão do Tribunal de Justiça e a concessão da segurança. O recurso foi admitido pelo Tribunal de Justiça em decisão monocrática, em 13 de dezembro de 2012.

Neste contexto, o Ministério Público, então representado pela Procuradoria-Geral da República, manifestou-se pela primeira vez, no processo, contra os interesses do contribuinte, opinando pelo desprovimento do Recurso Extraordinário.

No dia 05 de agosto de 2020, o Plenário do STF analisou o Recurso Extraordinário apresentado pela Lusframa Participações Societárias Ltda., sob o rito da repercussão geral. Naquela sessão, a maioria dos ministros decidiu negar provimento ao recurso, seguindo o voto divergente do ministro Alexandre de Moraes, que contou com o apoio dos ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Roberto Barroso e Rosa Weber. Os ministros Marco Aurélio (relator), Ricardo Lewandowski, Edson Fachin e Cármen Lúcia ficaram vencidos. A tese fixada pelo STF foi: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal de 1988, não abrange o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.”

O ministro Alexandre de Moraes, ao redigir o voto vencedor, argumentou que seria uma interpretação extensiva indevida considerar que a imunidade abarcaria imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica, que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, mas sim a outro fim, como a formação de reserva de capital, como ocorreu naquele caso concreto. Ele ressaltou que a norma constitucional não permite que valores excedentes às quotas subscritas sejam isentos de ITBI, pois isso iria em prejuízo ao Fisco municipal e, portanto, à res publica.

Dessa forma, o julgamento do STF envolveu um caso em que imóveis foram incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica, não para integralizar o capital subscrito, mas para formar uma reserva de capital. Essa foi a principal razão da decisão (ratio decidendi). Logo, a aplicação da tese fixada no Tema 796 deve se limitar aos casos em que os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica são destinados à formação de reserva de capital, e não à integralização do capital subscrito (esses sim imunes ao ITBI), definindo assim o alcance da repercussão geral.

Além do Tema 796 (relativo ao RE 796.376/SC), há também o recente Tema 1348, relativo ao RE nº 1.495.108/SP em que se discute o alcance da imunidade do ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição, para a transferência de bens e direitos em integralização de capital social, quando a atividade preponderante da empresa é a compra e a venda ou a locação de bens imóveis. Contudo, esse segundo recurso extraordinário somente teve o acórdão que atribuiu repercussão geral ao caso publicado em 08/11/2024. Ou seja, o STF ainda analisa o mérito do caso.

O recurso foi apresentado por uma empresa administradora de bens contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) que considerou válida a cobrança de ITBI pela Prefeitura de Piracicaba relativo a um imóvel integralizado a seu capital social. Para a Justiça estadual, a exceção prevista na Constituição se aplica ao caso, em razão da atividade da empresa.

No STF, a administradora sustenta, entre outros pontos, que a incidência do imposto para empresas de compra e venda ou locação de bens imóveis só se aplicaria para transmissões de imóveis decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.

Em manifestação pelo reconhecimento da repercussão geral, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, explicou que a discussão trata exclusivamente de interpretação do artigo 156, parágrafo 2º, inciso I da Constituição, a fim de definir se a ressalva constante da última parte do dispositivo condiciona as duas hipóteses de imunidade do ITBI ou apenas a segunda relativa às transmissões de bens imóveis decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.

Ele destacou que, como o STF ainda não fixou orientação vinculante sobre o tema, tem sido recorrente o questionamento judicial sobre a cobrança de ITBI nessas situações. A resolução da controvérsia sob a sistemática da repercussão geral promoverá a isonomia e a segurança jurídica.

Por fim, Barroso ressaltou a relevância da questão, que tem repercussão sobre a arrecadação tributária dos municípios e sobre o regime de incentivo à livre iniciativa e à promoção de capitalização para o desenvolvimento de empresas.

Ainda não há data prevista para o julgamento do mérito do recurso.

1.6.1. Análise crítica e controvérsias

A definição do alcance da imunidade tributária do ITBI foi debatida no julgamento do Recurso Extraordinário 796.376/SC, que deu origem ao Tema 796 no Supremo Tribunal Federal (STF, 2020). Esse julgamento trouxe à tona uma série de argumentos e interpretações divergentes entre os ministros, refletindo a complexidade do tema e as diferentes perspectivas jurídicas e econômicas envolvidas.

No voto do relator, ministro Marco Aurélio, prevaleceu uma interpretação ampla e favorável ao contribuinte. Em caráter obiter dictum, o ministro relator observou que a imunidade do ITBI na integralização de capital não deveria ser condicionada à atividade preponderante do adquirente. Ele argumentou que a exceção à imunidade prevista no art. 156, §2º, I, da Constituição (Brasil, 1988) se aplica exclusivamente às transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica (Antunes; Maia, 2023, p. 271).

De acordo com o ministro Marco Aurélio, a Constituição (Brasil, 1988) não estabelece um limite explícito para a imunidade, e qualquer interpretação restritiva poderia prejudicar o incentivo à formação de capital social e ao crescimento econômico das empresas; ele defendeu que a imunidade tributária deve ser aplicada de maneira a não limitar as formas de integralização de capital, assegurando segurança jurídica e promovendo investimentos.

Por outro lado, o voto divergente do ministro Alexandre de Moraes adotou uma interpretação mais restritiva da imunidade tributária do ITBI. Moraes argumentou que a imunidade deve ser aplicada apenas ao valor correspondente ao capital social a ser integralizado, excluindo qualquer valor excedente registrado como reserva de capital. Ele sustentou que uma interpretação ampla poderia abrir espaço para abusos fiscais e para a elisão tributária, contrariando a finalidade original da imunidade prevista na Constituição (Brasil, 1988). Moraes destacou que a norma deve ser interpretada de maneira restritiva para evitar distorções e assegurar que o benefício fiscal seja utilizado conforme a sua finalidade constitucional

Nesse sentido, o voto vencedor do ministro Alexandre de Moraes, consagrou a tese de que “a imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.” (Tema 796).

A Suprema Corte fez uma distinção clara entre as hipóteses previstas no texto constitucional, demonstrando que a segunda parte do dispositivo condiciona a imunidade à não exploração de atividade imobiliária, enquanto a primeira parte concede imunidade incondicionada (Lima Júnior, 2023, p. 158).

Na decisão, o ministro Alexandre de Moraes partiu de uma interpretação gramatical do dispositivo constitucional, esclarecendo o conteúdo semântico da norma, o que permitiu à Corte Suprema avançar na interpretação e definir o alcance da imunidade tributária e da expressão relacionada ao valor dos bens envolvidos. A decisão confirmou que a transmissão de bens e direitos na integralização de capital foi excluída, de forma irrestrita, da incidência do ITBI, sem qualquer limitação (Lima Júnior, 2023, p. 158).

Com base nessa interpretação, foi estabelecido que a exceção à imunidade do ITBI aplica-se apenas às transmissões de bens decorrentes de “fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.” A decisão seguiu o entendimento do doutrinador Kiyoshi Harada (2021, p. 89), afirmando que a imunidade sobre os imóveis entregues para subscrição de capital é incondicionada e autoaplicável, independentemente da atividade desenvolvida pela pessoa jurídica adquirente.

No entanto, a decisão não abordou em profundidade várias controvérsias, como (i) a escolha do termo “nesse” em vez de “neste”, (ii) a interpretação histórica da norma de imunidade e sua exceção, e principalmente, (iii) a razão pela qual a norma diferencia entre as hipóteses de integralização de capital e as de reorganizações societárias (Antunes; Maia, 2023, p. 271).

Schoueri (2021, p. 276) destaca que o ministro Alexandre de Moraes, em sua consideração obiter dictum, argumentou que a imunidade ao ITBI na integralização de capital não deve ser restrita à atividade preponderante do adquirente. Ele observou que o artigo 156, § 2º, I, da Constituição (Brasil, 1988), ao mencionar a exceção “salvo se, nesses casos“, refere-se especificamente às transmissões decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção, e não à integralização de capital.

Schoueri (2021, p. 276) aponta que o entendimento da Suprema Corte é questionável por duas razões principais. Primeiro, a imunidade tributária deve abranger operações societárias que envolvam a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de uma pessoa jurídica. Uma vez identificada essa operação, a imunidade deve se aplicar independentemente da discrepância entre o valor do capital social e os imóveis incorporados. Segundo, a expressão “salvo se, nesses casos” não parece excluir a transmissão em realização de capital. A diferenciação proposta pelo STF não encontra uma justificativa clara e parece que a exceção para a atividade preponderante visa a evitar a criação de pessoas jurídicas exclusivamente para evitar o pagamento do ITBI pela pessoa física.

É importante destacar que a interpretação do ministro Alexandre de Moraes implica uma declaração de inconstitucionalidade, sem redução de texto, do caput do artigo 37 do CTN, o que inviabiliza a sua aplicação ao caso previsto no artigo 36, I, do mesmo código (Brasil, 1966).

A principal controvérsia nesse julgamento residiu na extensão da imunidade tributária do ITBI e na questão de se ela deve ser aplicada apenas ao valor do capital social ou também aos valores excedentes contabilizados como reserva de capital. As divergências entre os ministros refletem diferentes abordagens interpretativas e preocupações quanto aos impactos econômicos e fiscais das suas decisões.

Em suma, a decisão do STF que gerou o Tema 796 de Repercussão Geral (STF, 2020) tem implicações significativas tanto para os contribuintes, quanto para a arrecadação fiscal dos municípios. A interpretação restritiva adotada pode limitar a utilização de imóveis como meio de integralização de capital, enquanto a interpretação ampla, defendida nos votos vencidos, pode facilitar a captação de recursos pelas empresas, mas reduzir a arrecadação municipal de ITBI.

De qualquer forma, é sempre aconselhável entender corretamente a finalidade dos institutos jurídicos para, a partir daí, dar-lhes interpretação consentânea.

Pois de acordo com o artigo 200 da Lei 6.404/76, conhecida como Lei das S.A.:

Art. 200. As reservas de capital somente poderão ser utilizadas para:

I – absorção de prejuízos que ultrapassarem os lucros acumulados e as reservas de lucros (artigo 189, parágrafo único);

II – resgate, reembolso ou compra de ações;

III – resgate de partes beneficiárias;

IV – incorporação ao capital social;

V – pagamento de dividendo a ações preferenciais, quando essa vantagem lhes for assegurada (artigo 17, § 5º).

Nesse contexto, a incorporação ao capital social é somente uma, dentre cinco possibilidades de utilização das reservas de capital. O que nos leva à conclusão intuitiva de que as reservas de capital podem ou não ser utilizadas para fins de integralização ao capital social.

1.6.2. Impactos jurídicos

Mesmo não constituindo precedente vinculante, as considerações feitas no voto condutor sobre a exceção à imunidade do ITBI têm influência em decisões judiciais relacionadas ao tema. Após o julgamento do Tema 796, os municípios passaram a interpretar o conceito de “excedente” mencionado na tese fixada pelo STF ao avaliar pedidos de reconhecimento de imunidade tributária do ITBI na transferência de bens imóveis para a integralização de capital social de uma pessoa jurídica. Com base nessa interpretação, passaram a cobrar o ITBI sobre a transmissão de imóveis, mesmo quando a atividade principal da empresa adquirente não era imobiliária, aplicando o imposto sobre a diferença entre o valor venal do imóvel e o valor pelo qual foi transferido à pessoa jurídica (Braum, 2022, p. 31).

Diante desse entendimento, os contribuintes começaram a recorrer ao Poder Judiciário para garantir o direito à imunidade tributária na transmissão de imóveis para a realização de capital social. Assim, além do próprio julgamento do STF, é necessário examinar os desdobramentos desse precedente no Judiciário. Este artigo se concentrou nas decisões mais recentes dos tribunais de justiça dos estados mais populosos de cada região do Brasil, a fim de estabelecer um critério claro para a análise.

O Tribunal de Justiça do Paraná, ao interpretar o Tema 796, decidiu que o ITBI deve incidir sobre a diferença entre o valor venal do imóvel transferido e o valor atribuído pelo transmitente para o aumento de capital social. O tribunal entendeu que o Tema 796 não se aplica apenas aos casos de transferência de bens a título de reserva de capital, mas em qualquer situação onde haja diferença entre o valor venal e o valor de transferência para integralização de capital social. Além disso, concluiu que a imunidade total do ITBI só é aplicável quando o valor de mercado do imóvel for igual ou menor que o valor do capital social, independentemente do valor declarado para fins de imposto de renda (Brasil, 2021a).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo adotou a mesma posição, afirmando que “independentemente da escrituração do valor excedente do imóvel como reserva de capital, a empresa beneficiária da incorporação torna-se proprietária do bem cujo valor de mercado é significativamente superior ao valor pelo qual foi recebido” (Brasil, 2022b). Diversos julgados desse tribunal corroboram a ideia de que a diferença entre o valor venal do imóvel e o valor atribuído ao aumento de capital social constitui a base de cálculo sobre a qual deve incidir o ITBI.

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás seguiu a mesma linha dos tribunais mencionados anteriormente, optando por tributar a diferença entre o valor venal dos imóveis e o valor atribuído a eles, para fins de aumento de capital social. No entanto, chama a atenção a interpretação dada ao Tema 796 por esse tribunal, que afirma que essa diferença entre o valor venal e o valor do aumento de capital necessariamente forma uma reserva de capital sujeita à tributação pelo ITBI (Brasil, 2022a).

No entanto, há uma decisão isolada no Tribunal de Justiça de São Paulo que diverge dessa posição quase que unânime. Essa decisão diferenciou o caso tratado pelo STF em repercussão geral dos demais casos apresentados ao Judiciário, entendendo que o precedente do STF só deveria ser aplicado nos casos em que houvesse ágio no aumento de capital, ou seja, quando o valor dos imóveis fosse destinado à conta de reserva de capital. De acordo com esse entendimento, a imunidade tributária do ITBI deveria ser mantida integralmente, mesmo que os imóveis fossem transferidos para aumento de capital a um valor inferior ao valor venal (Brasil, 2021b).

Similar ao que ocorreu em São Paulo, o Tribunal de Justiça de Goiás também emitiu uma decisão isolada que contraria essa posição predominante. Nesse caso, o tribunal entendeu que a imunidade tributária do ITBI na transmissão de imóvel para realização de capital é incondicional e independe do valor atribuído ao bem para esse fim. Segundo essa decisão, o contribuinte pode, conforme permitido pela legislação federal, transmitir o bem pelo valor de sua declaração de bens, sem que isso gere um “excedente” sujeito à tributação, conforme estabelecido no Tema 796 do STF (Braum, 2022, p. 33).

Em resumo, o entendimento quase unânime tem sido o de que, se o transmitente transferir um imóvel a uma pessoa jurídica (mesmo que sua atividade preponderante não seja imobiliária) e atribuir a esse bem um valor inferior ao venal, a base de cálculo do ITBI será a diferença entre o valor venal e o valor pelo qual o capital social foi aumentado. Por exemplo, se um imóvel é transferido a uma pessoa jurídica para realização de capital por R$ 100.000,00, mas seu valor venal é de R$ 150.000,00, a diferença de R$ 50.000,00 será considerada a base de cálculo para a aplicação da alíquota do ITBI. Isso se aplica independentemente da atividade principal da pessoa jurídica.

A decisão da Supremo Corte no Tema 796, que abordou a imunidade tributária do ITBI sobre a transmissão de bens imóveis integralizados ao capital social de empresas, teve impactos significativos tanto para os contribuintes quanto para os municípios. Essa decisão, favorável ao entendimento de que a imunidade do ITBI não abrange os valores excedentes destinados à reserva de capital, acabou beneficiando a arrecadação municipal, mas impondo custos adicionais às empresas e desincentivando a prática de integralização de imóveis como capital social. A complexidade e as divergências inerentes ao tema refletem a necessidade de um equilíbrio entre incentivar o crescimento econômico e assegurar a sustentabilidade financeira dos municípios, pois continuariam a poder tributar os valores excedentes ao capital social integralizado, o que significa uma base tributária mais ampla para a cobrança do ITBI, resultando em maior arrecadação de receitas municipais.

Com uma maior arrecadação, os municípios teriam mais recursos para financiar serviços públicos e investimentos em infraestrutura, educação, saúde e outras áreas essenciais, o que contribui para o desenvolvimento local e a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos

2. Metodologia

Este artigo, enquanto investigação teórica e bibliográfica, se apoiou em obras acadêmicas (livros), artigos científicos e jurisprudência. O método utilizado para conduzir a pesquisa envolveu a análise doutrinária sobre o tema, com ênfase na revisão de publicações científicas relacionadas à incidência do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) na integralização do capital social.

As fontes foram obtidas nas plataformas Google Acadêmico e Scielo utilizando palavras-chave como “imunidade”, “ITBI”, “Tema 796 STF” e “capital social”. Foram selecionados artigos em língua portuguesa, acessíveis gratuitamente e que abordassem o ITBI na integralização de capital social, dando preferência aos mais recentes. Além disso, foram incluídos artigos que analisaram decisões de outros tribunais no contexto do Tema 796. Foram excluídos artigos publicados em língua estrangeira, aqueles disponíveis apenas em formato físico e os que não estavam acessíveis gratuitamente.

A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa para a interpretação dos dados coletados, que permitiu uma avaliação detalhada das contribuições dos autores e uma interpretação aprofundada sobre os limites da imunidade tributária.

3. Considerações finais

Este artigo buscou examinar o alcance da norma constitucional imunizante do Imposto sobre a Transmissão Onerosa de Bens Imóveis por ato intervivos (ITBI), na hipótese de integralização do imóvel ao capital social de empresa, conforme discussão que teve a sua repercussão geral reconhecida pelo STF (Tema 796).

A questão central investigada foi a forma como o STF tem interpretado a imunidade tributária, no contexto da integralização de imóveis ao capital social e a relação dessa interpretação com a prática jurídica atual. Diante disso, o artigo revelou que o STF tem adotado uma abordagem mais restritiva, aplicando a imunidade apenas às operações onde o valor dos imóveis é diretamente incorporado ao capital social, excluindo aquelas em que os imóveis são registrados como reserva de capital.

A análise demonstrou que o STF tem favorecido a arrecadação tributária em situações em que o valor dos imóveis supera o capital subscrito. A avaliação das implicações dessa interpretação indicou que ela pode impactar a prática empresarial e a segurança jurídica, ressaltando a necessidade de maior clareza nas normas aplicáveis e na sua interpretação. As decisões judiciais têm seguido uma interpretação extensiva do Tema 796, com a maioria concordando com a posição dos municípios de que o “excedente”, mencionado na tese, corresponde à diferença entre o valor venal do imóvel e o valor pelo qual ele foi transferido à pessoa jurídica para integralização de capital social. Assim, o entendimento predominante é de que o ITBI deve incidir sobre essa diferença.

Em suma, este artigo buscou analisar a imunidade tributária relativa ao ITBI, na expectativa de contribuir para uma aplicação eficaz e segura da legislação tributária dentro do contexto empresarial, promovendo maior clareza e segurança jurídica, tanto às empresas quanto ao próprio sistema tributário nacional.

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[3] Um imóvel por acessão física é um bem imóvel que sofreu um acréscimo por meio de intervenção humana ou por causas naturais. A acessão pode ser natural ou artificial. A acessão natural ocorre por meio das forças da natureza, como a formação de ilhas, aluvião, avulsão e abandono de álveo. Já a acessão artificial ocorre por meio da intervenção humana, como construções e plantações.

[4] A anticrese é um direito real de garantia que consiste na transferência de um imóvel ao credor, para que este possa usar os frutos e rendimentos do bem para pagar a dívida.

[5] Direitos de propriedade intelectual, como obras científicas, patentes, marcas, desenhos industriais, softwares, indicação geográfica e proteção de cultivares.

[6] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/tesauro/pesquisa.asp?pesquisaLivre=REQUISITO. Acesso em 20/01/2025.

[7] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/tesauro/pesquisa.asp?pesquisaLivre=INTERPRETA%C3%87%C3%83O%20TELEOL%C3%93GICA#:~:text. Acesso em: 8 out. 2024.

[8] As reservas de capital são valores recebidos pela empresa que não se caracterizam como receita, isto é, não transitam pelo resultado do exercício, sendo contabilizados diretamente à conta de Patrimônio Líquido (Art. 200 da Lei 6.404/76).


Jhully Hermes de Castro. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – UNICEPLAC (2024). E-mail: jhully.jhully50@gmail.com

Fernando de Magalhães Furlan. Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – UNICEPLAC. E-mail: fernandomfurlan@gmail.com


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A boa fé e seus aliados processuais no exercício da litigância elegante e cristalina dos operadores do direito em todos os seus segmentos

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

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A boa fé e seus aliados processuais no exercício da litigância elegante e cristalina dos operadores do direito em todos os seus segmentos

Lorenzo Martins Pompílio da Hora e Durval Pimenta de Castro Filho

RESUMO: O presente artigo científico tem por propósito, em síntese, uma análise do exercício do direito probatório aliado ao princípio da boa-fé, como elementos processuais estruturantes de um procedimento potencialmente gerador de uma sentença com resolução de mérito seguramente justa e efetiva, de acordo com a norma fundamental do artigo 6º do Código de Processo Civil, conforme reclama o Estado Democrático de Direito, resguardado pela denominada Constituição Cidadã, promulgada em 5 de outubro de 1988.  

Palavras – chave: princípio da boa-fé; direito probatório; devido processo legal.

ABSTRACT: The purpose of this scientific article is, in summary, an analysis of the exercise of the right to evidence combined with the principle of good faith, as structuring procedural elements of a procedure potentially generating a sentence with a surely fair and effective resolution of the merits, in accordance with the fundamental rule of article 6 of the Civil Procedure Code, as demanded by the Democratic Rule of Law, protected by the so-called Citizen Constitution, promulgated on October 5, 1988.

Keywords: principle of good faith; evidentiary law; due process of law.

Propedêutica

A Boa-fé cresceu, superou todos os percalços da puberdade, da adolescência, atingiu a maioridade e atualmente se faz presente nos mais diferentes cenários cognitivos da vida jurídica.

Superou um momento clássico, sujeito a concepções preestabelecidas e ao mesmo tempo limitadoras do seu potencial de generosidade com o bom senso, a probidade na arte de litigar entre as partes.

O legislador processual civil  hodierno contemplou a boa-fé, colocando-a sob a égide das normas fundamentais, de acordo com a redação do artigo 5º do Código de Processo Civil, bem como elencou, no artigo 80 do precitado Estatuto, condutas reveladoras de uma litigância temerária, caracterizadoras de má-fé, entre as quais a que altera “a verdade dos fatos”.

Podemos afirmar que agir de boa-fé, é agir no paradigma da verdade, da evidência, alieno da sombra da subversão do que é certo, seja sob o aspecto objetivo e subjetivo, de modo que a intenção e o agir estejam inarredavelmente alinhados com a finalidade a que se propõe o benévolo agente alcançar.

Em termos, quem provoca a jurisdição para, segundo o disposto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil, afastar “lesão ou ameaça a direito”, tem o dever de fazê-lo com fundamento na legitimidade de sua pretensão, amparado em norma jurídica assecuratória da alegada titularidade, bem como na prova, pena de responsabilização reparatória pela temeridade da infundada litigância, conforme inteligência do artigo 79 do Código de Processo Civil. 

Desenvolvimento

Para o alcance de melhor abordagem do instituto, sob o aspecto preliminarmente conceitual, valem-se os articulistas de expressiva manifestação doutrinária, trazendo à lume, primeiramente, o magistério do atemporal civilista ORLANDO GOMES:

A expressão boa-fé não tem, no particular, o sentido em que é usada no Direito das Coisas. No Direito das Obrigações, significa, segundo BARASSI, referente a um modelo abstrato, ao qual deve adequar-se a execução da obrigação. Não é fácil enunciá-lo. Ao se estabelecer que as partes de uma relação obrigacional oriundas de contrato precisam agir com boa-fé, quer-se dizer que lhes cumpre observar comportamento correto, que corresponda à legítima confiança do outro contratante.[1] (Grifos no original).

As locuções reveladoras da boa-fé, segundo o precitado ensinamento, são a confiança, o comportamento fidedigno, a lisura, em suma, o empenho do agente em direção ao fim colimado pela avença, partindo-se do pressuposto restritivamente contratual.

A boa-fé como sinalizam ROSENVALD & FARIAS:

Demais disso, não se pode olvidar a boa-fé objetiva como princípio fundamental das relações civis, especialmente das relações negociais, obrigacionais e contratuais. Não prevista na estrutura codificada de 1916, a boa-fé objetiva materializa uma necessária compreensão ética das relações privadas. Aliás, já tivemos oportunidade de afirmar que a boa-fé objetiva “significa a mais próxima tradução da confiança, que é o esteio de todas as formas de convivência em sociedade”. A Lei Civil, inclusive, acolhe a boa-fé objetiva de forma expressa, como princípio fundamental das relações jurídicas privadas, mencionadas nos arts. 113 e 422, como regra interpretativa dos negócios jurídicos e das obrigações como um todo, como mecanismo de imposição de limites ao poder de contratar e para estabelecer deveres implícitos nas relações do mundo negocial (…).[2]

Acontece que esses visionários do Direito já antecipavam que os limites da boa-fé não ficariam apenas no Direito Civil. Ocupariam espaços legais em outros textos normativos, até porque em suas cuidadosas pesquisas de citações notificaram:

Valendo-se da advertência de PALOMA MODESTO, “todo o processo de descoberta da norma de decisão para a resolução dos casos passa, necessariamente, pelos princípios constitucionais – verdadeiros balizadores da realização e da concretização da Constituição – , não tendo pretensão de exclusividade (…).[3]

E assim aconteceu, na renovação da Lei Processual Civil, até o momento, juntamente com episódios institucionais consagrados de Lei Processual Penal integrativa para fazer companhia as conquistas constitucionais, também tivemos a boa-fé presente de forma substancial e expressa na Lei Processual. Restando claro que a sua presença também faz parte das metodologias de busca da verdade real, contraditório, ampla defesa substancial, devido processo legal, entre outros.

Dispensáveis maiores ilações para reconhecer que a boa-fé não é um ornamento legal, mas sim um princípio que veio para ficar nos momentos mais cruciais do Estado-Juiz em vários ritos normativos, no âmbito civil e penal, entre outros, a citar: NEGÓCIOS JURÍDICOS, HOLDING FAMILIAR, ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA EXTRAJUDICIAL, INVENTÁRIOS EXTRAJUDICIAIS, A DINÂMICA E AS FERRAMENTAS DE COBRANÇAS DECORRENTES DE INADIMPLEMENTOS, NARRATIVAS E ACUSAÇÕES SEM STANDARD PROBATÓRIO, INVESTIGAÇÃO POLICIAL VICIADA POR INQUISITÓRIOS PROVENIENTES DE ILAÇÕES, COLABORAÇÃO PREMIADA, ABUSO DE ATORIDADE, QUEBRAS DA CADEIA DE CUSTÓDIA, ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL.

O DIREITO A PRODUÇÃO PROBATÓRIA, CONTRADITÓRIO, MOTIVAÇÕES INTRÍNSECAS E EXTRÍNSECAS DAS DECISÕES JUDICIAIS e outros temas sensíveis que nos levariam a discorrer por inúmeras páginas, até porque a natureza humana ainda pode ser uma incógnita que carece do manto da boa-fé, ou seja, é preciso que haja entre as partes credibilidade mútua.

Assim, podemos nos defrontar, hipoteticamente, com uma simples investigação policial em que o agente da perquirição, depois de ter acesso preliminar a todas as medidas invasivas e cautelares de quebras de sigilo do investigado, faz uma narrativa desprovida da verdade, como, por exemplo, de que só teria descoberto determinado bem de propriedade deste após uma recente diligência de busca do imóvel do invadido, mesmo depois de ter minuciosamente averiguado toda a respectiva situação fiscal daquele que é alvo da persecução criminal preliminar.[4]

Vale dizer, uma típica inverdade que não resiste a um exame superficial na cronologia de eventos que precederam a buscar domiciliar. Ou seja, uma conduta de má-fé do agente público, aliena da legalidade constitucionalmente assegurada pela via principal da norma fundamental contida no artigo 5º, inciso LIV. 

O suporte e a assistência consolidadora é multidisciplinar, comunicação com todas as metodologias periciais, psiquiátricas, neuropsicológicas, psicológicas que por não poderem estar mais eclipsadas e distantes dos princípios constitucionais encontram o seu forte engajamento na Boa-fé.

Parceira incólume do processamento dos feitos judiciais para limitar os abusos irresponsáveis e descomprometidos em qualquer segmento institucional, desde a instauração do feito até o almejo da coisa soberanamente julgada.

Como afirma constantemente o Doutor e Professor da Universidade Federal de Santa Catariana, Juiz Federal Alexandre Moraes da Rosa em suas encantadoras obras e monografias: “NÃO VALE TUDO NO PROCESSO PENAL”.

A boa-fé pede emprestado a expressão: “NÃO VALE TUDO SEM BOA-FÉ”.

Na acepção da boa-fé objetiva temos uma contrapartida numa lide que envolve uma litigância com elegância, sem o slogan: saiba levar vantagem em tudo, que há alguns bons anos atrás era exposto pelo denominado “canhotinha de ouro”, considerado o melhor meio campista do mundo da irretocável Seleção Brasileira Tricampeão Mundial de Futebol na Itália – GERSON DE OLIVEIRA NUNES.

Um jogador de meio-campo taticamente inteligente, eficiente e tecnicamente talentoso, foi considerado o “cérebro” por trás da Seleção Brasileira que venceu a Copa do Mundo de 1970.

Além do análogo contexto futebolístico, também ficou famoso nos anos 70 por protagonizar uma campanha publicitária do produto cigarro Vila Rica, na qual dizia “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também…“. Essa frase presumidamente resumiria a suposta, por assim dizer, malandragem brasileira[5] e acabou caindo na cultura midiática como o símbolo do jeitinho desonesto de ser e da corrupção, ficando conhecida como “Lei de Gérson“. Após a associação maliciosa e indevida, ele se lamentou publicamente, em diversas ocasiões, de ter seu nome ligado a esses defeitos morais associados pela cultura midiática ao povo brasileiro.

E certamente não merecia essa associação pelo valor de atleta que também representou o Brasil em todas as suas atuações.

Ocorre que esse slogan, além de ser reprimido pelo próprio GERSON, não deixou de traduzir uma situação em que as lides processuais se esmeravam eclipsando elementos e narrativas inoportunas e provas obtidas ilicitamente. Aí temos o bom local para a percepção da acepção da boa-fé como destacam, mais uma vez ROSENVALD & FARIAS:

Compreende a boa-fé objetiva um modelo ético de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de conduta, caracterizada por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção, de modo a não se frustrar a legítima confiança da outra parte (…)[6]

A boa-fé se impõe como um arquétipo capaz de conduzir o conteúdo geral da colaboração intersubjetiva, trazendo o princípio a ser combinado, conduzido de maneira coordenada às normas integrantes da também locução ritos processuais, no intuito de lograr própria concreção.[7]

Hodiernamente, há um limite que concorre para promover a cognição daqueles que decidem, podendo exercitá-la em sede sumária parcial ou mesmo exauriente numa percepção de um cognicismo justo. Não é por mero acaso legislativo que a norma fundamental contida no texto do artigo 6º do Código de Processo Civil dispõe que, além da cooperação dos sujeitos processuais para abreviação do procedimento, no que obviamente estiver alinhado com o devido processo legal, devem igualmente concorrer para que, ao fim e ao cabo, tenha lugar “decisão de mérito justa e efetiva”.

A propósito da centralidade judicial relativamente à condução do procedimento, oportuna é a lição de EMÍLIO SANTORO, Professor de Sociologia do Direito na Universidade de Florença, litteris:

O perfil do juiz ator fundamental do rule of law traçado por Dicey parece muito semelhante àquele do juiz ator fundamental do ‘Estado constitucional de direito’ desenhado por Luigi Ferrajoli. Também para ele, o juiz está caracterizado por uma ‘função e uma dimensão pragmática desconhecida à razão jurídica própria do velho juspositivismo dogmático e formalista’; atribui-se ao juiz a ‘responsabilidade civil e política’ de perseguir, através operações interpretativas ou jurisdicionais ‘a efetividade dos princípios constitucionais – contudo, sem que seja possível iludir-se que estes sejam alguma vez inteiramente realizáveis’.[8]   

RUI ROSADO DE AGUIAR JUNIOR, reportando-se ao revogado Código de Processo Civil de 1973, doutrina que a função limitadora “veda ou pune o exercício de direito subjetivo, quando caracteriza “abuso da posição jurídica (…)”:

{…} Outro exemplo está no art.22 do Código de Processo Civil, que não extingue o direito do réu que deixar arguir, na sua resposta fato, modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do autor, dilatando o processamento da lide, mas faz recair sobre ele os ônus derivados de sua omissão (…).[9]

Numa situação hipotética, entretanto possível, teríamos na seara cível o cenário em que a parte ré promove juntada extemporânea de inúmeros documentos, acrescendo ser este momento posterior à réplica apresentada pela parte autora, com fundamento na redação do artigo 435, caput, do Código de Processo Civil, interpretando a locução “em qualquer tempo”, sob o palio da mais intensa literalidade. Nesse contexto, é de bom alvitre recordar a lição de CARLOS MAXIMILIANO, afirmando que “O processo gramatical, sobre ser o menos compatível com o progresso, é o mais antigo (único outrora).”[10] INOCÊNCIO GALVÃO TELLES obtempera que “A lei, em princípio, deve ser entendida da maneira que melhor corresponda à consecução do resultado que o legislador teve em mira. A lei está para a ‘ratio iuris’ como o meio para o fim, e quem quer o fim quer o meio.”[11]

Quanto ao aspecto preliminarmente teórico, alusivo a decisão de saneamento do feito, acerca da manifestação do autor sobre os documentos coligidos pela ré, cumpre, primeiramente, resgatar o denominado princípio da preclusão consumativa, isto é, uma vez exercida validamente a respectiva faculdade processual, não mais estará assegurada à parte a possibilidade de realiza-la novamente, instituto que se revela por intermédio da redação do artigo 200, caput, do Código de Processo Civil.

Na hipótese em que a parte não exerce a faculdade que lhe compete durante o assegurado prazo legal e/ou judicial, cumpre reportar à preclusão temporal, vale dizer, tempus regit actum; logo, expirado o prazo, tal faculdade terá sido peremptoriamente acobertada pela preclusão temporal, exceto na hipótese ventilada no artigo 223 do Código de Processo Civil.

Assim, caso a ré não tenha, durante o prazo da contestação, coligido aos autos processuais toda a prova pré-constituída, isto é, pré-existente à instauração da demanda e ao seu alcance, e de cuja produção presumidamente haveria de tirar proveito, inferir-se-á que tal faculdade teria sido definitivamente acobertada pela preclusão temporal.

Entretanto, caso a ré tenha exercido o contraditório, na fase postulatória, promovendo a juntada aos autos de documentação presumidamente idônea e concernente ao objeto da ação, para provar a existência “de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (…)”, segundo informa a redação do artigo 373 do Código de Processo Civil, teve lugar a preclusão consumativa, razão pela qual eventual juntada posterior de documento, há que, necessariamente, ser enquadrada na categoria de documento novo, conforme estabelece a norma contida no texto do artigo 435, caput, do Código de Processo Civil. Outro não é o sentido da copiosa jurisprudência do Egrégio Tribunal Regional Federal da Segunda Região, revelada pela v. decisão proferida em sede de Apelação Cível nº 0151933-02.2015.4.02.5109/RJ, Relatoria do Desembargador William Douglas Resinente dos Santos, amparada em sólida jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça, cuja ementa é parcialmente transcrita:

De acordo com o art. 434, do Código de Processo Civil, incumbe à parte instruir a petição inicial ou a contestação com os documentos destinados a provar suas alegações. Entretanto, tal comando pode ser excepcionado, quando surgem documentos novos decorrentes de fatos supervenientes, já alegados pela parte, mas que por algum motivo só foram produzidos ou conhecidos posteriormente. Nesse sentido:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. JUNTADA DE DOCUMENTOS NA APELAÇÃO. DOCUMENTO NOVO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
1. A regra prevista no art. 396 do CPC/73 (art. 434 do CPC/2015), segundo a qual incumbe à parte instruir a inicial ou a contestação com os documentos que forem necessários para provar o direito alegado, somente pode ser excepcionada se, após o ajuizamento da ação, surgirem documentos novos, ou seja, decorrentes de fatos supervenientes ou que somente tenham sido conhecidos pela parte em momento posterior, nos termos do art. 397 do CPC/73 (art. 435 do CPC/2015).(Grifou-se).[12]

O v. e monocrático julgado acima retratado acompanha a sólida manifestação pretoriana do Colendo Superior Tribunal de Justiça, extraída dos autos do Agravo Interno no Recurso Especial nº 2034103/SP, Relatoria do Ministro Moura Ribeiro, integrante da Terceira Turma, e que a correspondente ementa segue parcialmente transcrita:

(…)

2. A invocação do art. 435, parágrafo único, do CPC não pode ser utilizada de forma indiscriminada pela parte com o intuito de juntar documentos em qualquer fase do processo, inclusive após a prolação de sentença, na tentativa de, por vias transversas, desconstituir a coisa julgada.[13]

No que diz respeito, ainda, à juntada de documento posteriormente à demanda (rectius, ao protocolo da petição inicial) ou à contestação cumpre observar tal admissibilidade expressa na redação do artigo 350 do Código de Processo Civil, quando o autor, se for o caso, manifestar-se em réplica,[14] haja vista que a norma em referência não restringe a modalidade probatória aplicável. Logo, presume-se que obtendo o autor documento novo a oportunidade de coligi-lo aos autos do processo seria, pena de preclusão, na ocasião da réplica, exceto, obviamente, na hipótese de posterior surgimento ou alcance pela parte.

Dessa forma, se os documentos coligidos pela ré, sobre os quais o autor foi judicialmente instado a se manifestar, não se revestem da qualidade albergada na redação do artigo 435, caput, do Código de Processo Civil, conforme a revelação pretoriana acima colacionada, eficácia probatória de nenhuma natureza terão, razão pela qual não poderão concorrer para a formação da convicção judicial, de modo a atender o predicado fundamental contido no artigo 6º do Código de Processo Civil. Ou seja, não poderá o prístino Julgador disponibilizar sua capacidade de percepção, acerca da verdade dos fatos, orientado por modalidade probatória ilegítima para o alcance da finalidade a que se presta a elevada atividade do Dignatário Judicial, isto é, o proferimento de inarredável “decisão de mérito justa e efetiva (…)”, segundo os termos da precitada norma fundamental processual civil.

Sabidamente que o ente público, independentemente da categoria republicana que ostentar, detém, justificadamente, prerrogativas funcionais na dinâmica processual, de acordo, por exemplo, com o disposto nos artigos 183, caput, e 345, inciso II, do Código de Processo Civil, sem, entretanto, deixar o albergue da lealdade processual e da paridade de armas, pena de franca violação ao preceito maior do devido processo legal, consoante a norma contida no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil.

No que concerne a uma decisão saneadora, ato judicial interlocutório cuja finalidade é, segundo a lição de GALENO LACERDA, “(…) desimpedir o caminho para a instrução da causa, seu objeto, certamente, há-de ser o exame da legitimidade da relação processual (…)”.[15] Dessarte, sob os auspícios da redação do artigo 357 do Código de Processo Civil, referentemente à justificativa da modalidade probatória a requerer, 02 (dois) temas precisam ser milimetricamente explorados pelo requerente: admissibilidade da prova e pertinência da prova.

A propósito, a juízo dos articulistas, a respeito do assunto, o melhor conceito, sem prejuízo da proficiência da destacada comunidade de intérpretes, é da lavra do atemporal EDUARDO COUTURE, ensinando que “Prova pertinente é aquela que versa sôbre as alegações e fatos que são realmente objeto de prova.”[16] (Grifo no original).

Referentemente à prova admissível, disserta o precitado autor que “está-se fazendo referência à idoneidade ou falta de idoneidade de um determinado meio de prova para demonstrar um fato.”[17]

C.J.A. Mittermayer, citado por LUIZ OTÁVIO DE OLIVEIRA AMARAL, disserta que “prova é o complexo dos motivos produtores da certeza. A prova consiste na demonstração da existência ou da veracidade daquilo que se alega em juízo. Alegar sem provar não tem valor.” [18] (Grifos no original).

Acerca do contexto probatório, assinala DURVAL PIMENTA DE CASTRO FILHO, inspirado na lição do memorável Eduardo Couture, verbis:

(…) o convencimento judicial acerca da verdade dos fatos não será formado com espeque na eloquência dos respectivos patronos, narrativa dos fatos sob a ótica autoral, ou conforme o engendramento da matéria de defesa por obra do réu, mas, necessariamente, segundo a lavra de EDUARDO COUTURE, mediante o ‘contrôle das proposições que os litigantes formulam em juízo (176)’. É o que se denomina prova. [19]

Em suma, a locução admissibilidade da prova concerne à modalidade da prova que se pretende produzir (documental, testemunhal, material, pericial), ou qualquer outro meio, ainda que não especificado no ordenamento, segundo informa a redação do artigo 369 do Código de Processo Civil; logo, a expressão prova admissível diz respeito à idoneidade do meio probandum, ou seja, o quanto a modalidade probatória requerida concorrerá efetivamente para a formação da convicção judicial, vale dizer, em que medida contém suficiente higidez para revelar a verdade dos fatos sob a ótica do sentenciante, que decidirá com fundamento nos princípios da livre investigação das provas e da livre convicção motivada, este último igualmente denominado persuasão racional e adstrição, conforme o disposto no artigo 371 do Código de Processo Civil.

No que diz respeito à locução pertinência da prova concerne ao fato probandum, isto é, se o que a parte pretende provar tem relação direta com o objeto da ação. A título de exemplo, a prova testemunhal em ação de responsabilidade civil por danos materiais, causados em razão de colisão de veículos na via pública, em horário de rush, seria, em tese, além de admissível, pertinente. É factível que, naquele horário e logradouro houvesse fluxo de transeuntes, aptos a descrever como os automóveis colidiram, que é o cerne da questão.     

Em apertada síntese, para que haja prova,[20] será necessário a conjugação de 02 (dois) elementos fidedignamente inarredáveis da instrução: meio (probandum) e fato (probandum), os quais, uma vez alinhados, revelarão a verdade dos fatos, ainda que formal ou relativa.

Dessarte, será preciso que no requerimento de produção de provas a parte conjugue simultaneamente a respectiva admissibilidade e pertinência, de modo a convencer o sentenciante que, tanto a modalidade probatória pretendida, como o fato a provar (objeto da prova), concorrem, no mesmo paradigma de instrução, para o seu convencimento, sem o que estará à míngua de elemento idôneo e revelador da verdade dos fatos, impedindo-o de atender a norma fundamental do artigo 6º do Código de Processo Civil, reiteradamente citada durante o curso da pesquisa. 

Nesse Standard processual e probatório, teremos uma perspectiva da exteriorização de conduta da boa ou má-fé[21] e é esta a avaliação que nos conforta, e não as intenções. O fluxo do processo sentirá deveras sucessivas interrupções e substancial prejuízo na sua construção. Uma ferramenta com inúmeros vazios em todos os sentidos, pois, segundo o magistério do atemporal ENRICO TULLIO LIEBMAN, “El mismo es derecho instrumental y dinámico, y pertenece al derecho público.”[22]

Conclusão

A boa-fé presente em nosso Código de Processo Civil de 2015, Diploma Legal que entrou em vigor no dia 18 de março do ano de 2016, veio para proporcionar mais segurança jurídica não só nas decisões, mas também na postura daqueles que buscam uma interação transparente e justa entre as partes, isto é, sob a égide da cooperação dos atores processuais, de modo a alcançar o desiderato do proferimento de uma “decisão de mérito justa e efetiva”, segundo a norma fundamental contida no artigo 6º do sobredito Estatuto Processual.

Para tanto, será preciso que a provocação da atividade jurisdicional, amparada no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República, tenha por fundamento a credibilidade da parte referentemente à sua titularidade sobre determinado bem jurídico, credibilidade construída por uma conjugação de fatores que, a seu juízo, acabaram por erigi-la a condição de prejudicado pelo inadimplemento alheio, malgrado o Estado-juiz em sentido contrário possa vir a entender.

Em apertada síntese, o princípio da boa-fé aliado à dinâmica probatória tecnicamente admissível e pertinente, conforme expusemos no decorrer da pesquisa, concorrem sobremaneira para o desenvolvimento do denominado processo justo, terminologia reveladora de um conceito embora indeterminado, porém seguramente construtivo pelos atores processuais, quando, por exemplo, o juiz, ao detectar a presença de irregularidade sanável, determina a chamada do feito à ordem para recolocá-lo sob a égide da legalidade, mormente em se tratando de contraditório e ampla defesa, princípios sabidamente de índole constitucional fundamental, portanto, indene de violação de qualquer natureza. 

Referentemente aos aliados processuais, locução que intitula a pesquisa e concorre para o exercício da litigância com probidade e elegância, lastreada principalmente em contraditório regular e ampla defesa, potencialmente geradores do processo justo, mediante o deferimento e produção de prova admissível e pertinente, destaque-se, conclusivamente, que a relação jurídica instaurada em juízo (rectius, processual), entre outras características, autônoma, complexa, dinâmica e dialética, tem por exclusivo desiderato reanimar e consolidar a paz social, reconhecendo a quem de direito a almejada e valiosa titularidade sobre um bem da vida.  

Referências

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[1] GOMES, Orlando. Obrigações, 2 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense, 1968, p. 107-108.

[2] FARIAS, Cristiano Chaves de & ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral, 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 37.

[3] Idem, p. 36.

[4] Reportam-se os articulistas ao inquérito policial, previsto no artigo 5º do Código de Processo Penal.

[5] Locução que contém caráter inegavelmente pejorativo correspondente à uma conduta em que o agente, subvertendo o princípio da boa-fé, aufere vantagem, não necessariamente econômica, aproveitando-se da impercepção de outrem acerca daquela realidade. 

[6] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. Op. cit., p. 127.

[7] Mesmo entendimento sinalizado por MARTINS-COSTA, Judith. BRANCO, Gerson. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro, São Paulo Saraiva, 2002, p.199.

[8] SANTORO, Emílio. Estado de direito e interpretação: por uma concepção jusrealista e antiformalista do estado de direito, tradução de Maria Carmela Juan Buonfiglio e Giuseppe Tosi, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 102.

[9] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor: de acordo com o novo Código Civil, 2 ed. Rio de Janeiro: Aide, 2004.

[10] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 121.

[11] TELLES, Inocêncio Galvão. Introdução ao estudo do direito, vol. I e II, 11 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 248.

[12] ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Apelação Cível nº 0151933-02.2015.4.02.5109/RJ. Relator Desembargador William Douglas Resinente dos Santos. Julg.: 25.10.2021. Disponível em: https://juris.trf2.jus.br/. Acesso em: 23 jul. 2024.

[13] BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial nº 2034103/SP. Relator Ministro Moura Ribeiro. Terceira Turma. Julg.: 21.08.2023. Pub. DJe: 23.08.2023. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/. Acesso em: 23 jul. 2024.

[14] Certo que não terá lugar a réplica se a dinâmica processual, in casu, contiver revelia.

[15] LACERDA, Galeno. Despacho saneador, 2 ed. Porto Alegre: Fabris, 1985, p. 57.

[16] COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil, tradução de Benedicto Giaccobini, Campinas – São Paulo: RED Livros, 1999, p. 158.

[17] Idem, p. 158.

[18] AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Teoria geral do direito, 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 515, apud MITTERMAYER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal, Campinas: Bookseller, 1996, p. 75.

[19] CASTRO FILHO, Durval Pimenta de. Estudos preliminares de teoria geral do processo civil, 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 236.

[20] Leia-se: elemento revelador da verdade dos fatos.

[21] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. [Et al]. Primeiros comentários ao Código de Processo Civil, 3 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

[22] LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de derecho procesal civil, traducción de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires: EJEA, 1976, p. 26.

A Reforma Tributária e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.


Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

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Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

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Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

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A Reforma Tributária e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)

Filipe Janson Lima Milhomem[1] e Fernando de Magalhães Furlan[2]

Resumo:

O presente artigo tem como objetivo geral analisar os impactos da criação do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)[3], inovação trazida pela Reforma Tributária, no federalismo fiscal brasileiro. Entre os objetivos específicos, busca-se apresentar a conformação tributária brasileira pré-reforma; entender a repartição das competências tributárias e sua importância para a persecução do interesse público; analisar as principais mudanças deflagradas pela alteração legislativa advinda da Emenda Constitucional n° 132/2023, com enfoque na constituição do Comitê Gestor do IBS. Além disso, o artigo se propõe a discutir se a transferência, pelos entes federativos, de atribuições decorrentes do poder de tributar, especialmente em relação às competências tributárias, ao referido Comitê, pode representar uma proposta tendente a abolir a forma federativa de Estado. A metodologia empregada é de caráter qualitativo, consistindo em uma pesquisa bibliográfica que abrange a análise de obras acadêmicas, artigos científicos, legislações e documentos oficiais. Concluímos que a atuação do Comitê Gestor do IBS mitiga a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e dos Munícipios, sem que isso, porém, signifique, por si só e a priori, uma afronta ao pacto federativo.

Palavras-chave: Reforma Tributária; Comitê Gestor do IBS; Pacto Federativo.

Abstract:

The general objective of this paper is to analyze the impacts of the creation of the IBS (Levy on Goods and Services) Steering Committee, an innovation brought about by the Tax Reform to the Brazilian fiscal federalism. The specific objectives include presenting the pre-reform Brazilian tax system, understanding the distribution of tax powers and its importance for pursuing the public interest, analyzing the main changes triggered by the legislative amendment brought about by Constitutional Amendment 132/2023, with a focus on the creation of the IBS Steering Committee and discussing whether the transfer by the federal entities of powers deriving from the right to tax to the aforementioned Committee may represent a proposal to abolish the federal form of State. The methodology employed is qualitative in nature, consisting of bibliographical research that includes the analysis of academic works, scientific articles, legislation and official documents. In the end, it was found that the actions of the IBS Steering Committee mitigate the autonomy of the states, the Federal District and the municipalities, but this does not in itself mean an affront to the federative pact.

Keywords: Tax Reform; IBS Management Committee; Federative Pact.

  1. INTRODUÇÃO

Para que um Estado federado exista, é necessário que os estados membros tenham a capacidade de determinar a sua própria estrutura institucional, permitindo a descentralização do poder e a viabilização da persecução do interesse público. Tal noção se estende ao âmbito fiscal, devendo os entes possuírem autonomia tributária, em homenagem ao federalismo fiscal.

Autonomia, segundo leciona Carvalho Filho (2022, p.05), “significa ter a entidade integrante da federação capacidade de auto-organização, autogoverno e autoadministração.” No caso desta última, para o seu exercício pleno, é imprescindível que o ente possa realizar o recolhimento e gerenciamento dos seus próprios recursos, especialmente no que toca a receita advinda dos tributos.

Contudo, a criação do Conselho Federativo, inovação trazida pela Emenda Constitucional n° 132/2023, parece ameaçar a referida autonomia, visto que há uma tendência à concentração da receita tributária, a qual está consubstanciada, por exemplo, na norma constante do inciso III do art. 156-B da proposta, cujos termos apontam que ao Conselho Federativo caberá “efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” (Brasil, 2023, p.1).

Da análise de tal previsão, assim como de outras que integram a proposta, verifica-se que há uma mitigação do poder dos entes federados de administrar os seus próprios recursos, vez que a competência que antes era por eles exercida, é transferida ao Conselho. Esta medida, pode representar um grave abalo para a autonomia dos entes federados e para o equilíbrio da federação, o que atenta diretamente contra a forma federativa de Estado, cláusula pétrea (art. 60, §4°, I, da Constituição Federal).

Ademais, um conselho com competências que são primariamente dos entes federados, enfraquecem os corpos legislativos competentes, os quais são as instâncias apropriadas para a proposição, análise, debate e resolução de assuntos tributários, sob jurisdição estadual e municipal. Tais entes legislativos (assembleias legislativas e câmaras de vereadores) são compostos por representantes eleitos pelo povo, legalmente autorizados a lidar com tais questões, ao contrário de um conselho composto por burocratas selecionados por critérios técnicos e distantes do escrutínio público.

Lado outro, é forçoso reconhecer que o atual sistema tributário nacional é demasiadamente complexo e defasado. Há uma infinidade de normas tributárias e constates disputas entre os entes federados (e.g. “guerra fiscal”). Nesse cenário, um conselho composto por representantes das pessoas políticas, responsável por coordenar a arrecadação, fiscalização, cobrança e distribuição das receitas dos tributos, pode significar um nível mais aprofundado de integração entre as entidades federativas, fortalecendo a busca por um federalismo fiscal cooperativo e equilibrado.

Assim, o presente artigo analisará, por meio de pesquisa bibliográfica, se o modelo proposto poderá acarretar a sujeição dos entes subnacionais ao ente central; situação que resultaria em perda de autonomia, estando, assim, viciada por inconstitucionalidade material à Emenda Constitucional n° 132/2023. Ou se, em sentido oposto, será um passo positivo na mitigação dos imbróglios presentes na atual conjuntura do tributarismo brasileiro, com os consequentes efeitos benéficos, tanto para os sujeitos passivos da relação jurídico-tributária (contribuintes), quanto para o federalismo.

  • BREVE RESTROPECTO HISTÓRICO DOS TRIBUTOS NO BRASIL

Para os fins do presente artigo, é essencial que façamos um análise histórico-evolutiva do Direito Tributário no Brasil, a fim de entendermos a conformação que este ramo teve ao longo dos séculos, e como ganhou os contornos atuais.

Nos primeiros 30 anos posteriores ao descobrimento do Brasil, com os portugueses com os olhos voltados para as Índias, a atividade predominante desenvolvida em solo nacional era a extração de pau-brasil. Sobre tal atividade, conforme Balthazar (2005), já incidia tributo, o qual era chamado de “Quinto do pau-brasil”.

O quinto era cobrado pela Coroa Portuguesa, detentora suprema das riquezas da, então, Ilha de Vera Cruz, de todos os particulares que exploravam a aludida madeira. Por não haver moeda corrente, explica Oliveira et al (2023), o tributo era pago “in natura”, isto é, com o próprio produto.

No período de 1530 a 1550, são editados dois importantes documentos por Portugal, a saber, a Carta de Doação e a Carta Foral. O primeiro, esclarece Balthazar (2005), disciplinava as doações de porções de terras aos representantes do Rei de Portugal na Colônia, os denominados donatários. Tem-se, portanto, a instituição das Capitanias Hereditárias, no total de 14. Já o segundo, tratava, sobretudo, das espécies de tributos a serem pagos pelos colonos e suas respectivas alíquotas.

Em 1560, com a comércio aquecido pela necessidade de mão de obra, e a instituição do pernicioso sistema escravocrata, iniciou-se a cobrança de tributos sobre as operações que envolviam exportação e alienação de escravos, que possuíam o status de res (coisa). Mudança significativa no sistema exposto, aduz Oliveira et al (2023), se deu quando o General Gomes Freire de Andrade, foi nomeado Vice-Rei, momento em que passaram a incidir tributos sobre outras mercadorias produzidas ou extraídas na colônia, tais como: algodão, açúcar, ouro e aguardente.

Neste período, ante a crise do mercado de açúcar, tem-se a inauguração do Ciclo do Ouro, em que milhares de colonos se dirigiam a Minas Gerais em busca de jazidas de metais e pedras preciosas. Sobre essa nova atividade econômica, aclara Mesgravis (2015), recaíam dois tipos principais de cobranças tributárias, quais sejam, o Quinto do ouro e a polêmica “Derrama. O quinto correspondia a 20% do ouro[4] extraído e registrado nas Casa de Fundição, o qual deveria ser pago para a Coroa. A Derrama, por sua vez, era uma espécie de constrição patrimonial forçada, motivada pelo inadimplemento do quinto devido.

Tal constrição, passou a ser usada massivamente durante a decadência da economia mineradora[5], ocasião em os colonos, aponta Balthazar (2005), acumularam diversas dívidas com o governo, vez que não tinham mais condições de pagar os tributos. Assim, a pesada carga tributária provocou inúmeros conflitos entre os colonos e Portugal, sendo a Inconfidência Mineira o mais conhecido deles.

A vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, que fugia da sanha imperialista de Napoleão, modificou profundamente a estrutura e o governo do Brasil da época. Com a abertura dos portos marítimos às nações amigas, Balthazar (2005) instrui que sobre os produtos importados passaram a incidir tributos cuja alíquota padrão era de 24% para os países aliados, com exceção da Inglaterra, cuja alíquota era de 15% e de Portugal, que era de 16%. Fato curioso é que, nessa época, já havia uma espécie de imunidade tributária para os livros, podendo ser essa a origem da imunidade de imprensa (livros, jornais, periódicos e papel), presente na Constituição de 1988.

Ademais, foram instituídos tributos sobre os prédios urbanos, no valor de 10% sobre o valor de lucro dos prédios, bem como nas transmissões imobiliárias e causa mortis. Em virtude da precária administração tributária, Oliveira et al (2023) afirma que era comum a ocorrência do fenômeno da bitributação, isto é, quando há incidência tributária mais de uma vez sobre o mesmo fato gerador.

Diante disso, a fim de dar mais eficiência ao sistema de cobranças e fiscalização tributária, destaca Oliveira et al (2023), são criados os Conselho da Fazenda, o Conselho Ultramarino e a Alfândega. A partir de tais estruturas, aumentou-se o escrutínio dos tributos devidos e sua arrecadação.

Em que pese o aumento das hipóteses de incidência e o fortalecimento do Fisco, leciona Linck (2009, p.89) que “a doutrina entende que esses tributos cobrados na época do Brasil Colonial não faziam parte de um conjunto harmônico de normas, de princípios, e de institutos, devidamente sistematizados, capazes e caracterizar um Direito Tributário brasileiro”.

Após o retorno da família real à Portugal e a Declaração da Independência, em 1822, com o país independente, assinala Oliveira et al (2023), surge a necessidade de erigir uma estrutura administrativa firme, funcional e efetiva, especialmente na seara tributária. Nesse diapasão, a Constituição de 1824, também conhecida como “Constituição da Mandioca[6], previa em seu art. 36 que era da Câmara o dever de criar tributos, além disso aduzia o art. 175, inciso XV, que “ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção dos seus deveres” (Brasil, 1824, p.1).

Nesse período, Dom Pedro I implementa uma minirreforma fiscal. Dentre as mudanças, conforme Ferreira (2012), houve a eliminação de certos tributos, como o Quinto do ouro (Decreto de 30 de agosto de 1828), e concessão de isenção a outros, como o de jornais e revistas. Além disso, minorou-se a alíquota sobre produtos como o charque, o sal, o trigo e o algodão.

Com o intuito de descentralizar o controle financeiro, Oliveira et al (2023) afirma que foram instituídas as chamadas tesourarias provinciais, órgãos incumbidos de gerir e estruturar a atividade financeira das regiões. Em virtude disso, as províncias puderam estabelecer os seus tributos e destinar o produto de sua arrecadação, como bem lhes aprouvesse.

Em 1834, por meio do Ato Adicional foram criadas as chamadas “Rendas Gerais”, “que definiu diversos tributos sobre diversos serviços e produtos, como: importação, exportação, compra de embarcações estrangeiras, estabelecimentos comerciais, mineração de ouro, entre outros” (Oliveira et al, 2023, p.1). 

A Constituição de 1891, promulgada após a Proclamação da República, também conhecida como Golpe Republicano, foi um importante passo na conformação do sistema tributário que conhecemos hoje. Com a adoção da forma federativa de Estado, leciona Linck (2009), os entes federados passaram a ter autonomia administrativa, política e financeira, passando a existir a possibilidade de a União e os estados instituírem e cobrarem os seus próprios tributos.

É sobre o manto daquela Magna Carta que surge o Imposto de Renda. Instituído pela Lei Orçamentária 4.625, seu art. 31 versava que “Fica instituído o imposto geral sobre a renda, que será devido, anualmente, por toda a pessoa física ou jurídica, residente no território do país, e incidirá, em cada caso, sobre o conjunto líquido dos rendimentos de qualquer origem” (Brasil, 1922, p.1).

Inaugurada a Era Vargas, promulga-se a Constituição de 1934. Essa, consoante Oliveira et al (2023), trouxe a vedação à bitributação de forma expressa e delimitou os tributos de competência da União e dos estados. Além disso, conferiu aos municípios competência tributária e criou as contribuições de melhoria.

As inovações daquela Lei Maior pavimentaram o caminho para a sistematização do Direito Tributário. Balthazar (2005, p.90) advoga que “se ainda não foi o texto que sistematizou a legislação tributária, firmou princípios antes ausentes das Cartas anteriores ou presentes de forma implícita ou ilimitada, como é o caso do princípio da imunidade recíproca“.

Sob o Estado Novo, fase ditatorial da Era Vargas, foi outorgada a Constituição de 1937. Salienta Balthazar (2005), que essa não albergou mudanças significativas, apenas pontuais, como, por exemplo, o imposto sobre indústria e profissões, anteriormente de competência privativa dos estados, foi transferida para os municípios (metade da arrecadação desse imposto já lhes pertencia). Superada a Ditadura Vargas, em 1946, mais uma Carta Magna é promulgada e que, quanto à matéria tributária, possibilitou:

[…] a cobrança de tributos extraordinários, para além daqueles definidos na Constituição em situações específicas. Acrescentou o princípio de capacidade contributiva, isto é, definiu como regra a necessidade de a União, Estados e Município considerarem quanto cada cidadão pode contribuir para uma cobrança mais justa de tributos e instituiu o princípio da anualidade, no qual as rendas e despesas eram avaliadas com a frequência anual (Oliveira et al, 2023, p.1).

 Primando pela clareza, a Lei Maior de 1946 discriminou as competências de cada ente federado, prevendo, a título de ilustração, em seu art. 15, que competia à União decretar impostos sobre a (I) importação de mercadorias de procedência estrangeira; (II) consumo de mercadorias; (III) produção, comércio, distribuição e consumo, e bem assim importação e exportação de lubrificantes e de combustíveis líquidos ou gasosos de qualquer origem ou natureza, estendendo-se esse regime, no que for aplicável, aos minerais do País e à energia elétrica; (IV) renda e proventos de qualquer natureza; (V) transferência de fundos para o exterior; (VI) negócios de sua economia, atos e instrumentos regulados por lei federal; e (VII)  propriedade territorial rural, (Brasil, 1946).

No que diz respeito aos impostos estaduais, o art. 19 definiu que os impostos que recaíam sobre a (I) transmissão de propriedade causa mortis; (II) vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive industriais, isenta, porém, a primeira operação do pequeno produtor; (III) exportação de mercadorias de sua produção para o estrangeiro, até o máximo de 5% (cinco por cento) ad valorem, vedados quaisquer adicionais; (IV) os atos regulados por lei estadual, os do serviço de sua Justiça e os negócios de sua economia, competiam aos estados (Brasil, 1946).

Desse modo, a Constituição, defende Linck (2009, p.91), “estabeleceu com maior clareza os repasses da União e dos estados das rendas obtidas através da tributação aos municípios e outorgou ao Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas, a fiscalização da administração financeira.”

Em 1964, após o golpe de Estado, instaura-se no Brasil a ferrenha Ditadura Militar. Com o fim de atender a uma política econômica arrojada, em 1965, é iniciada uma reforma tributária. Essa reforma, em conjunto com outras medidas adotadas, proporcionou o chamado Milagre Econômico, vez que estabeleceu:

[…] normas que determinavam a aquisição de recursos adicionais não-inflacionários para cobrir o déficit da União e que buscavam o equilíbrio das finanças com a economia mundial. Houve também a edição de leis que estabeleciam meios que facilitassem e que aperfeiçoassem a arrecadação fiscal, como, por exemplo, a Lei 4.506/64 que alterou a legislação do imposto sobre a renda; ainda, a criação de uma comissão especial formada por juristas e por técnicos do Ministério da Fazenda com a finalidade de elaborar um anteprojeto de emenda constitucional (Linck, 2009, p.92).

Nesse cenário, é aprovada a Emenda à Constituição n° 18/65, que, finalmente, deu os contornos normativos finais para o sistema tributário nacional. Essa, foi recepcionada pela Constituição de 1967, que passava a ter a previsão expressa de três espécies de tributos, a saber, impostos, taxas e contribuições de melhoria. Antes da Emenda, leciona Scaff (2014, p.1):

[…] a divisão da competência tributária se pautava por um critério meramente político, sem nenhuma correspondência econômica. A legislação de estados e municípios não possuía nenhum vínculo com as incidências federais, se constituindo em sistemas autônomos. Estados e municípios criavam incidências amparados no que atualmente se chama de “competência residual”, que antes era ampla em todos os entes federados e tornou-se centrada na União, onde remanesce até os dias atuais (embora hoje a amplitude da arrecadação federal ocorra no âmbito das contribuições, e não no dos impostos).

Diante disso, Linck (2009, p.92) assevera que tal emenda “surgiu para terminar de desenhar o sistema tributário brasileiro, uma vez que organizou de forma ordenada a cobrança dos tributos, ao limitar as competências e ao estabelecer os princípios que deveriam ser seguidos pelas administrações”.

No ano seguinte à publicação da referida emenda, foi instituído o Código Tributário Nacional (CTN), estabelecendo assim uma separação definitiva entre o Direito Tributário e o Direito Financeiro. A tributação, pelo espírito do CTN, para Linck (2009), deixou de ser apenas um meio para a manutenção do Estado, passando a assumir uma função mais ampla de política econômica.

O CTN apresentou ainda, em seu art. 3°, o conceito de tributo que é “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (Brasil, 1966, p.1).

Vale pontuar que, apesar da criação de um sistema tributário nacional, fundamentado em princípios e normas de competência, estabelecidos pela Constituição Federal, os anos subsequentes à sua promulgação foram marcados por uma fase obscura na história do Brasil. A Carta Magna e as legislações ordinárias, segundo Linck (2009), possuíam pouco valor diante dos Atos Institucionais[7], que emprestavam um verniz de legitimidade para o Estado autoritário e repressivo que o Governo Militar erigiu.

Contudo, ares democráticos passaram a soprar no Brasil. Em 1985 se encerra o Regime Ditatorial, sendo promulgada a atual Constituição Federal de 1988. Estribada em valores como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, a Lei Maior, defende Linck (2009), passa a privilegiar a isonomia tributária e a capacidade contributiva dos sujeitos passivos.

Nessa toada, para Linck (2009), com o advento da “Constituição Cidadã” (1988), o tributo perde seu caráter meramente arrecadatório, destinado apenas à preservação e funcionamento das pesadas engrenagens do Estado. Passa, então, a ser um valioso meio de garantia e patrocínio das políticas públicas e outras ações e diretrizes voltadas para a efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Assim, o estudo do Direito Tributário passou a ter como foco a busca pela harmonia entre o poder de tributar do Estado e os direitos fundamentais do contribuinte.

Ademais, buscando se adequar aos princípios, direitos e garantias constitucionais, o conceito de tributo é ampliado, passando a ser entendido como:

[…] uma fonte de recursos financeiros destinados ao custeio de despesas públicas gerais (art. 167, IV) ou especiais (arts. 149, 149-A e 195); (b) é instituído e cobrado pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (arts. 148, 149, 149-A, 153-156); (c) no exercício de um poder de tributar limitado (Seção II); (d) exigido de pessoas jurídicas ou físicas enquanto sujeitos passivos de relações obrigacionais (art. 150, § 7º); (e) em função de “fatos geradores” definidos em lei (arts. 146, III, “a”, e 150, III, “a”), que, por sua vez, podem ser atos administrativos ou dele decorrentes (art. 146, II e III), direitos ou negócios jurídicos de direito privado sem vinculação com uma ação estatal (arts. 153-156), tais como a propriedade de bens móveis (art. 155, III) e imóveis (arts. 153, VI, e 156, I), a importação de produtos (art. 153, I), operações de crédito, câmbio e seguro (art. 153, V), a transmissão causa mortis e doação de bens ou direitos (art. 155, I), a circulação de mercadorias (art. 155, II), a prestação de serviços (art. 156, III), entre outros mais (Sehn, p. 44, 2024).

No entanto, nem tudo são flores. Há ainda muitas fragilidades e desigualdades no sistema tributário vigente, especialmente no que diz respeito à efetivação da capacidade contributiva. A maior carga fiscal, advoga Balthazar (2005), está encerrada nos impostos indiretos, isto é, aqueles incidentes sobre o consumo. Em razão disso, uma pessoa de baixa renda tem, proporcionalmente, maior comprometimento de sua renda do que uma pessoa que dispõe de alto poder aquisitivo, o que contribui para o aprofundamento das desigualdades sociais.

  • COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

Um Estado federado é, por definição, um conjunto de entes livres. Tais entes possuem parcelas de poder, cuja distribuição é conferida, em regra, por lei. Uma das ramificações desse poder, ensina Carvalho Filho (2023), é a autonomia, caracterizada pela autoadministração, autogoverno e auto-organização.

Um fator de especial importância para a plenitude e manutenção da autonomia do ente federado, é a sua capacidade financeira, isto é, a disponibilidade de recursos capazes de viabilizar a consecução dos objetivos sociais, políticos e econômicos da entidade estatal. No cenário brasileiro, a arrecadação tributária é grande fonte de recursos públicos.  A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, em prestígio ao federalismo fiscal[8], possuem a capacidade de instituir e cobrar os seus próprios tributos, a fim de arrecadarem haveres para financiar o interesse público (Sehn, 2024).

Desse modo, para a existência de um federalismo saudável e equilibrado, é necessário que haja regras claras no que concerne à delimitação das competências tributárias e da repartição de receitas provenientes dos tributos. Competência tributária, leciona Mazza (2024), é a aptidão para criar, modificar, reduzir e extinguir tributos, por meio de lei, em observância ao princípio da legalidade. Como se depreende do próprio conceito, pode-se afirmar que a aludida competência é uma espécie de competência legislativa, cabendo ser exercida pelo Parlamento.

Por ser um tipo de competência legislativa, explica Mazza (2024), é a Constituição Federal que define as competências tributárias, isto é, ela que atribuirá ao ente os poderes inerentes à sua competência. Tendo isso em vista, a atual Carta Magna conferiu aos entes federados, ou seja, às pessoas jurídicas de direito público integrantes da Administração direta (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), a titularidade da competência tributária, a qual é indelegável. Desse modo, podemos asseverar que a Lei Maior não cria tributos, apenas atribui poder para que a entidade federativa competente o faça.

Ademais, cabe fazermos uma relevante distinção entre competência tributária e capacidade tributária ativa. A primeira, de viés legislativo e abstrato, leciona Mazza (2024), diz respeito à habilitação para criar tributos. Já, a segunda, de caráter administrativo e concreto, se refere ao exercício da aptidão para cobrar e arrecadar tributos, o que não deve ser feito, necessariamente, pela pessoa jurídica que o institui.

 Assim, de acordo Sabbag (2021), um ente pode criar tributo, mas outro o cobrar, sem que isso implique em delegação ou usurpação de competência. A esse fenômeno, damos o nome de parafiscalidade (art. 7°, do CTN)[9].

Faz-se, ainda, pertinente esclarecer que a Magna Carta, conforme expõe Mazza (2024), se valeu de diferentes métodos para repartir competências tributárias entre a União e os entes subnacionais, trazendo em seu bojo 5 (cinco) espécies de competência, a saber, competência privativa, comum, cumulativa, especial e residual.

Na privativa, afirma Sabbag (2021), determinado imposto é atribuído a um ente tributante, sendo que a Constituição prevê quais são os impostos e a quem lhes cabe. Assim, o Imposto sobre a Circulação de Bens e Serviços (ICMS) é conferido aos estados e ao Distrito Federal (no exercício de sua competência estadual) e o Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN) é atribuído aos municípios e ao Distrito Federal (no exercício de sua competência municipal).

Por sua vez, segundo Mazza (2024), a competência comum é concedida concomitantemente a todas as pessoas políticas, podendo ser usada quando essas realizarem o fato gerador[10] do tributo, o qual é vinculado a uma prestação do ente federativo (por exemplo, taxas devidas em razão do exercício do poder de polícia). Lado outro, expõe Sehn (2024), a competência cumulativa (art. 147, da CF) é aquela que habilita uma entidade federativa a cobrar e fiscalizar os seus tributos, além de tributos cuja competência caberia, originalmente, a outro ente federado. É o que ocorre com a União em relação aos territórios federais, por exemplo. A União passa a acumular a competência tributária estadual e, caso o território não seja divido municípios, também a competência tributária municipal. A título de exemplo e melhor visualização, tínhamos a competência cumulativa da União sobre o então território federal de Fernando de Noronha (hoje distrito estadual de Pernambuco), que, dada a exiguidade de seu território, não estava (e ainda não está) dividido em municípios.

Já a competência especial, aduz Sabbag (2021, p.50), pode ser entendida como sendo “o poder de instituir empréstimos compulsórios (art. 148 da CF) e contribuições especiais (art. 149 da CF)”.

 É válido mencionar, aclara Sabbag (2021), que tal tributo só pode ser usado em situações fáticas específicas, quais sejam: (I) calamidade pública, (II) guerra externa ou sua iminência e (III) investimento público de caráter urgente e relevante interesse nacional (art. 148, I e II, da CF c/c art. 15, I e II, do CTN).

Por fim, a competência residual (art. 154, I, e art. 195, § 4.º) diz respeito à possiblidade de a União instituir impostos que não estejam contemplados na Lei Maior, assim como outras fontes de contribuição para o financiamento da Seguridade Social[11], por meio de lei complementar. Ao tratar do assunto, Sabbag (2021, p.50) ensina que:

[…] No que tange aos impostos, a competência residual indica que o imposto novo deverá ser instituído, por lei complementar, pela União, obedecendo-se a duas limitações: (I) respeito ao princípio da não cumulatividade; e (II) proibição de coincidência entre o seu fato gerador ou a sua base de cálculo com o fato gerador ou a base de cálculo de outros impostos;

[…] Quanto às contribuições para a seguridade social, o raciocínio é parcialmente idêntico, tendo em vista o atrelamento textual do art. 195, § 4.º, da CF ao art. 154, I, da CF. Nessa medida, as contribuições residuais para a seguridade social devem respeitar os seguintes parâmetros: (I) instituição, por lei complementar, pela União; (II) respeito ao princípio da não cumulatividade; (III) proibição de coincidência entre o seu fato gerador ou a sua base de cálculo com o fato gerador ou a base de cálculo de outras contribuições.

Do exposto, não é temerário declarar que a competência tributária é um dos mais significativos instrumentos de descentralização política e financeira, que permite que cada um dos entes federados, em suas respectivas esferas de atuação, busquem a implementação do interesse público. Neste contexto, a distribuição de competências tributárias é uma afirmação da Federação brasileira. A despeito disso, o modelo vigente vem sofrendo críticas. Conforme entendem Marcus Abraham e João Ricardo Catarino (2018), o federalismo fiscal à brasileira é assimétrico, vez que a União, em comparação com as outras pessoas jurídicas da administração direta, concentra um número consideravelmente maior de competências, o que a coloca em um patamar de superioridade[12].

Assim, mostrava-se imperioso mudar a conformação tributária vigente, a fim de resolver mazelas como a da concentração de competências pela União, já aludida, assim como outras tão prementes quanto. Em vista disso e com o intuito de corrigir distorções e perniciosidades do sistema tributário nacional, foi proposta e promulgada a Emenda à Constituição n° 132/2023, a qual estudaremos mais detidamente a seguir.

  •  EMENDA CONSTITUCIONAL n°132/2023 E AS MAZELAS DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

O Sistema Tributário Brasileiro é, sem dúvida, um dos mais ultrapassados e problemáticos do mundo. A maioria dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, de acordo com Eduardo Maneira (2022), quanto à tributação do consumo, adotou, há décadas, o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), que possui uma alíquota padrão. No Brasil, há 5 (cinco) impostos que incidem sobre o consumo, com diferentes entes competentes para cobrá-los. Tal fato faz com que tenhamos um desenho tributário complexo e confuso, em sentido totalmente antagônico ao de outras nações mais desenvolvidas, o que nos coloca em uma posição de atraso e isolamento.

São inúmeros os entraves e distorções gerados pelo atual modelo tributário brasileiro. Porém, a fim de não sermos exaustivos, vamos nos ater aos pontos mais sensíveis, de acordo com Brasil (2023), quais sejam: base de cálculo fragmentada, cumulatividade, complexidade, guerra fiscal, opacidade e litigância exacerbada.

De início, é relevante pontuar que a incidência de alguns impostos sobre o consumo é determinada pela identificação de seus respectivos fatos geradores (fatos tributários imponíveis), isto é, a circulação de uma mercadoria ou a prestação de um serviço. Essa distinção, segundo Brasil (2023), nem sempre é simples, especialmente em um mercado cada vez mais permeado por produtos digitais, os quais, muitas vezes, ficam em uma zona cinzenta. Isso acaba por gerar insegurança para o contribuinte e conflitos de competência entre os entes tributantes.

 Outro embaraço, para Brasil (2023), é a cumulatividade, que impede o creditamento do sujeito passivo em relação aos tributos já recolhidos e assoberba a produção nacional, deixando o país em desvantagem competitiva em comparação com outros países. Tal cumulatividade, se dá tanto em razão dos “tributos cumulativos, como o ISS e a PIS/COFINS, no regime cumulativo; como também em razão das inúmeras restrições ao creditamento nos tributos não cumulativos, como o ICMS, a PIS/COFINS e o IPI não cumulativos” (Brasil, 2023, p.03).

Em continuação, temos a elevada complexidade do sistema tributário. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (2021)[13], desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, já foram editadas 466 mil normas que versam sobre matéria tributária, o que equivale a 37 normas tributárias por dia útil. Além disso, conforme estimativa do mesmo instituto, no Brasil, as empresas desembolsam, por ano, cerca de R$ 181 bilhões de reais, com o intuito de acompanharem as constantes mudanças legislativas. Desse modo, fica claro que esse emaranhado de normas contribui para a defasagem e evasão de investimentos no mercado interno e para desestimular a iniciativa privada.

Além disso, uma pesquisa realizada pela Doing Business (2021) com a PWC[14], revelou que no Brasil gasta-se, em média, 1.500 horas nos cálculos e adimplemento de tributos, um número que é consideravelmente maior do que o de outros países, conforme a figura 1:

Figura 1 – Ranking de complexidade tributária geral

             Fonte: IBS sistemas (2020) apud Doing Business Subnacional Brasil 2021

Acrescente-se a esse cenário, já demasiadamente caótico, a guerra fiscal travada entre as entidades federativas, sobretudo os estados. Muitos dos impostos são pagos no estado de origem (por exemplo, o Imposto sobre a Circulação de Bens e Serviços – ICMS). Em virtude disso, sustenta Brasil (2023) que, com o objetivo de atrair empresas para os seus territórios, as unidades federativas travam uma batalha ferrenha, se valendo, para vencê-la, de armas como a concessão de benefícios tributários, especialmente. Em decorrência disso, temos o estabelecimento de um entrave que só serve para aumentar as desigualdades regionais e desmantelar a harmonia federativa.

Outrossim, no que tange à opacidade do sistema, pode-se afirmar que:

[…] atualmente é praticamente impossível se saber a carga tributária efetivamente cobrada, dada a profusão de alíquotas, reduções de base de cálculo, benefícios fiscais e regimes especiais de tributação, além de haver incidência de tributos sobre tributos, cálculo por dentro, restrições à não cumulatividade e existência de créditos presumidos na cadeia (Brasil, 2023, p. 03).

Assim sendo, ante a ausência de transparência, mostra-se patente o predomínio da insegurança jurídica para o contribuinte. Por fim, o elevado grau de litigiosidade é outro fruto amargo que deriva do caos fiscal. A alta litigância fica demonstrada, de acordo o relatório “Justiça em Números”, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (2021)[15], no exorbitante número de execuções fiscais em curso nos tribunais nacionais[16], as quais já somavam 28,8 milhões, representando uma taxa de 89,7% de congestionamento. É o que se pode ver na representação gráfica retratada na figura 2:

Figura 2 – Série histórica do impacto da execução fiscal na taxa de congestionamento

  Fonte: Conselho Nacional de Justiça (2021)

Considerando esse quadro alarmante, em 2019, pontua Eduardo Maneira (2022), foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição n° 45, a qual, após longos debates e alterações nas duas Casas Legislativas, foi promulgada em 20/12/2023, redundando na Emenda Constitucional nº132/2023 (Reforma Tributária). Com foco na simplificação, na segurança jurídica, na alteração do modo de repartição de receitas e na eliminação da regressividade tributária, a Reforma Tributária buscou eliminar ou, ao menos, minorar as dificuldades supra referidas.

A Reforma tributária trouxe diversas mudanças para o sistema tributário nacional, sendo a criação do IVA dual, indubitavelmente, a mais significativa delas. O IVA, Imposto sobre Valor Agregado, representa a conjugação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e com o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), por isso a terminologia dual. E terá alíquota estimada em 27,27% (Mello, 2024).

A CBS, de competência da União, foi instituída para substituir o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), principais contribuições incidentes sobre o consumo (Spina, 2024). O IBS, por sua vez, foi criado em substituição ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias (ICMS), de competência dos estados e do Distrito Federal, e ao Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN), o qual é de competência dos municípios e do Distrito Federal (no exercício de sua atribuição municipal), segundo se vê na figura 3:

Figura 3– Nova configuração tributária  

Fonte: Agência Senado, 2023.

Para os fins do presente artigo, passaremos a destrinchar os aspectos relativos ao IBS.

Após a promulgação da Emenda Constitucional n°132, a Constituição Federal, em seu artigo 156-A, passou a prever a criação do IBS, uma espécie de imposto com gestão compartilhada entre os estados, o Distrito Federal e os municípios, e que será regulamentado por meio de lei complementar nacional (Brasil, 1988). Tal imposto tem por preceito a neutralidade, que nada mais é do que a tentativa de repelir distorções relativas ao consumo, e a padronização em todo o Brasil, o que produz simplificação e segurança jurídica, tanto para entes tributantes quanto para os contribuintes (Brasil, 2024).

Com a finalidade de atingir esses objetivos, o novo imposto em comento (i) terá tratamento legislativo uniforme em todo território nacional; (ii) não admitirá exceções relativas a benefícios e incentivos fiscais, salvo as previstas na Carta Magna; (iii) terá suas alíquotas-referência fixadas pelo Senado Federal e as alíquotas específicas definidas por cada ente competente, sendo que tais alíquotas devem ser as mesmas para todas as operações com bens materiais, imateriais, direitos ou serviços, com exceção das hipóteses previstas na Constituição[17] (Brasil, 1988).

Ademais, a instituição do IBS pretende acabar com a perniciosa dinâmica do imposto em cascata, em que o imposto incide em várias etapas do processo de circulação de mercadorias e impede o creditamento do contribuinte, deixando a operação complexa e custosa. Por isso, o IBS será (i) não cumulativo, isto é, haverá a compensação do imposto devido com o total arrecadado em todas as operações; (ii) não integrará a sua própria base de cálculo; (iii) será exigido pelo valor da soma das alíquotas do estado e do município final do negócio jurídico[18] (Brasil, 1988).

No que concerne à estrutura legislativa do IBS, a Lei Maior definiu que (i) é a própria Constituição que atribui competência para a regulamentação do IBS; (ii) tal regulamentação se dará por lei complementar que, no momento, está em fase de tramitação na casa revisora (Senado Federal), sob o nome Projeto de Lei Complementar n° 68/2024; (si) terá alíquota-referência estabelecida pelo Senado Federal; (iv) lei específica, editada pelos entes subnacionais, quais sejam, estados, Distrito Federal, e municípios, fixará alíquotas incidentes sobre as operações onerosas com bens ou serviços deflagradas nas zonas de sua competência, desde que sejam o destino (Brasil, 1988).

Em relação às imunidades dos IBS, isto é, situações em que não incidirá o imposto, mesmo que implementado o seu fato gerador, definiu o Projeto de Lei Complementar n° 68/2024, que são imunes (i) as exportações de bens e serviços para o estrangeiro; (ii) as transações deflagradas pelos entes políticos; (iii) as operações onerosas realizadas por entidades religiosas e templos de qualquer crença, incluindo suas organizações de assistência e beneficência; (iv) as operações desenvolvidas por partidos políticos, abrangendo também suas fundações, entidades sindicais representativas dos trabalhadores e instituições privadas sem fins lucrativos dedicadas à educação e assistência social; (v) as operações com livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão; (vi) prestações de serviços de comunicação, nas bandas de radiofrequência, nas modalidades de radiodifusão sonora e televisiva, destinadas à recepção livre e gratuita pelo público, dentre outras (Brasil, 2024).

Da análise das diretrizes, pode-se notar que, com a união das competências, somada à troca da incidência do tributo da origem para o destino, haverá uma maior uniformidade no tratamento do imposto pelos entes federados, o que, potencialmente, poderá conter as “guerras fiscais” entre eles, promovendo uma distribuição de renda mais equilibrada, além de mitigar as desigualdades regionais e aumentar a competitividade na iniciativa privada. Lado outro, conforme ensina Florêncio (2021, p. 116), a eliminação da competência exclusiva, pode extenuar “a possibilidade de os entes federados concederem benefícios fiscais, uma vez que estes não mais detêm a competência legislativa para outorga de isenções, nem a capacidade tributária ativa exclusiva para exigência do crédito tributário”.

Ao lado da uniformização, com o advento do IBS, temos também a simplificação do atual modelo praticado, vez que haverá maior clareza sobre a natureza da operação, a incidência do fato gerador e a atribuição de cobrança e arrecadação do ente, abolindo outro problema crônico do sistema tributário nacional que é o conflito de competências. Nesse sentido, ensina Albano (2024, p. 75) que:

[…] o IBS promete encerrar discussões outrora travadas a título de   conflito   de   competência decorrentes da dubiedade da natureza jurídica das operações sob   a   incidência   do   ISS, ICMS   ou   que   se encontravam no limbo. Situação esta que enseja   não   apenas   insegurança   jurídica   ao sujeito passivo   da   relação   tributária, como também aumenta exponencialmente o “custo Brasil”.

Vale mencionar que a Reforma Tributária estabeleceu um cronograma de substituição para a implementação dos novos tributos e a extinção dos antigos, o qual terá início em 2026. Ao longo deste período, o sistema tributário nacional se encontrará imerso em um regime de transição, no qual os novos tributos serão arrecadados simultaneamente aos antigos, os quais estão destinados ao aniquilamento gradual. A substituição total dos tributos mencionados se dará, somente, ao término do prazo previamente estipulado, qual seja, 2033 (Brasil, 2024). Vejamos na figura 4, abaixo, o esboço das modificações:

Figura 4– Transição Fiscal  

Fonte: Agência Câmara dos Deputados, 2024.

Por fim, a administração do IBS ficará a cargo do chamado Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, o qual foi introduzido no Sistema Tributário Nacional pela Reforma Tributária e cuja atuação será regida por lei complementar, atualmente em tramitação no Congresso Nacional (Brasil, 2023).

  • COMITÊ GESTOR DO IBS

O Comitê Gestor do Imposto Sobre Bens e Serviços (CG-IBS)[19], ainda em fase de apreciação e deliberação legislativa, no âmbito do Projeto de Lei Complementar n° 108/2024, possuirá, conforme o art. 156, §1°, da CF, natureza jurídica de “entidade pública sob regime especial[20], gozando de autonomia técnica, administrativa, orçamentária e financeira”. É por meio dele que os entes federados exercerão as competências administrativas relacionadas ao IBS, a saber, “I-editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto; II-arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre Estados, Distrito Federal e Municípios; III-decidir contencioso administrativo” (Brasil, 1988).

O desenho constitucional e institucional do Comitê buscou privilegiar a integração dos entes federativos e uma representatividade paritária, de modo que a entidade pública será composta por dois grupos, cada um com 27 membros, sendo um responsável por defender os interesses de cada estado e do Distrito Federal, e outro por representar o agrupamento de municípios e o Distrito Federal. Neste último caso, 14 (quatorze) dos 27 (vinte e sete) membros serão eleitos, por meio de votos com peso igual de cada Município, já os outros 13 (treze) serão escolhidos levando em consideração os votos de cada Município, ponderados pela população correspondente (Brasil, 1988).

Ademais, no tocante às deliberações no CG-IBS, temos que estas serão aprovadas, atendendo a um critério cumulativo, pela maioria absoluta dos representantes, isto é, 8 (oito membros) e “de representantes dos estados e do Distrito Federal que correspondam a mais de 50% (cinquenta por cento) da população do País” (Brasil, 1988, seção V-A, art. 156-B, §4°, inciso I, al “b”). Já em relação ao bloco municipal, faz-se necessária a maioria absoluta de seus membros participantes do Comitê para aprovação das resoluções. Ao comentar a estrutura de representação e os critérios de voto adotados, Albano (2024, p. 76) observa que:

O critério meramente quantitativo é aliado ao qualitativo de representação populacional em nível nacional. A exigência qualitativa cria um obstáculo à possibilidade de regionalização das   decisões.   É   dizer:   as   regiões   norte   e nordeste que representam 16 dos 27 componentes do bloco estadual de tal forma que, em conjunto, asseguraria a maioria em quórum, não representam o quantitativo populacional necessário à aprovação

A instauração do CG-IBS será, em um primeiro momento, custeada pela União no período de 2025 a 2028. Após o referido período, com a efetiva operacionalização do IBS, o financiamento da entidade será feito por meio de uma parcela do produto da arrecadação do imposto. Cabe mencionar que os valores despendidos pela União serão ressarcidos (Brasil, 2024).

Do ponto de vista de comando organizacional, é válido aduzir que o comitê será presidido por alguém com notório saber no campo da administração pública, sendo nomeado após deliberação e aprovação do Senado Federal, por sua maioria absoluta. Além disso, o presidente do comitê gestor, à semelhança dos ministros de Estado, poderá ser convocado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, assim como por suas respectivas comissões, para apresentar informações, sob sanção de incorrer em crime de responsabilidade (Brasil, 1988).

Por sua vez, o controle externo, ou seja, a fiscalização contábil, operacional, e patrimonial do CG-IBS, segundo art. 40 do PLP n° 108/24, ficará a cargo dos tribunais de contas estaduais ou municipais (Brasil, 2024).

É possível afirmar que algumas alterações deflagradas pela Reforma Tributária indicam a possibilidade de desmantelo da organização federativa do Estado, o que significaria malferir cláusula pétrea (art. 60, inciso IV, da CF). Nesse sentido, a primeira problemática que pode ser aventada, está relacionada à criação de um imposto, como é o caso do IBS, de gestão compartilhada, disciplinado por lei complementar federal (Brasil, 1988). Os impostos substituídos pelo IBS, quais sejam, ICMS e ISS, eram instituídos e tinham as suas alíquotas definidas, por lei, pelo ente competente para editá-la, no exercício de sua competência exclusiva, a qual é conferida pela Lei Maior.

Agora, é uma lei complementar, de caráter nacional, que ditará as regras que os entes federados deverão observar no tratamento do novo imposto. Destarte, aclara Albano (2024, p. 81) que “o ente não mais   terá   autonomia   para   definir   os elementos básicos do tributo, tais como o seu fato gerador, a sua base de cálculo, o sujeito passivo tributário e as penalidades. Diante disso, é forçoso reconhecer o incremento do poder federal e o consequente achatamento da autonomia dos entes federativos”.

Por outro lado, não se pode ignorar o fato de que uma harmonização legislativa teria o condão de arrefecer as guerras fiscais e mitigar as desigualdades regionais. A possibilidade de edições de leis autônomas pelos estados e municípios, muitas vezes, produz um cenário de insegurança jurídica e abala o equilíbrio federativo, vez que cada ente almeja atrair para si a receita advinda dos tributos. Assim, ensina Merheb (2024, p.1) que “[…] o prejuízo não é à autonomia e, sim, à predação fiscal, que expande distorções alocativas e incentiva a rivalidade”.

Outro ponto nevrálgico, e que merece atenção, diz respeito às competências do CG-IBS. Nota-se que a entidade passará a exercer as competências tributárias que atualmente cabem aos entes subnacionais. Atribuições como arrecadar o imposto, efetuar compensações, conceder benefícios, distribuir a receita da arrecadação, e decidir o contencioso administrativo não serão mais realizadas pelos próprios entes, mas sim pelo comitê gestor, o que pode produzir uma assimetria federativa (Brasil, 1988).

Dessa maneira, a atuação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios se restringirá a definir as alíquotas específicas do imposto quando forem destino da circulação de serviços ou mercadorias e a votarem no colegiado do CG-IBS, cujas regras de deliberação e aprovação foram retromencionadas. Acerca disso, Martins (2023, p.1) entende que:

A criação de uma entidade com competências próprias de ente federativo, esvazia a competência dos órgãos legislativos competentes, instâncias apropriadas para proposição, discussão, deliberação e decisão acerca de matérias tributárias de competência de estados e municípios. Órgãos legislativos estes compostos por representantes eleitos pelo povo, legitimados, portanto, para tratarem de tais assuntos, diferentemente de um conselho que será formado por burocratas escolhidos por critérios técnicos e longe dos olhos da população.

Contudo, em que pese a perda de parcela de autonomia pelos entes tributantes, o que se transferirá à entidade pública será, tão somente, o exercício da atividade em favor de uma integração e cooperação tributárias, preservando-se a titularidade desta, o que não implica, necessariamente, em uma proposta tendente a abolir a forma federativa de Estado. Tanto é assim, que as entidades subnacionais manterão sua ingerência sobre outras figuras tributárias que lhes competem, o que desnatura a ideia de elisão federativa (Albano, 2024, p.82).  

Ademais, a vedação à concessão de incentivos e benefícios fiscais, com exceção daqueles previstos na Constituição Federal, é mais uma questão sensível na conformação tributária dada pela Reforma. Com a instituição do IBS, as entidades políticas regionais e locais não mais poderão conferir benefícios fiscais em sua zona de competência. Tal medida se justifica pela necessidade de atingir o propósito da uniformização tributária pretendido pela Reforma, a fim de alcançar as benesses ligadas a essa harmonização, como segurança jurídica, correção das distorções fiscais, disparidades regionais e locais, dentre outras (Brasil, 1988).

Porém, é imperioso reconhecer que a aludida vedação retira parte da autonomia do ente tributante, o que por si só, não fere de morte a organização do Estado. Ainda subsistirão outras formas de gerar atratividade fiscal e estimular investimento, sem que isso represente discrepâncias e prélios aviltantes (Meherb, 2024, p.1).

É válido, ainda, aduzir que as entidades federativas perderam. em prol do CG-IBS, a legitimidade para resolver o contencioso administrativo em relação ao imposto. Caberá aos entes apenas lavrar os autos de infração, não possuindo mais poder para processá-los e julgá-los. Essa característica, combinada com outras já supramencionadas, torna o IBS uma espécie tributária sui generis, vez que a “[…] União institui o imposto; estados e municípios, instituem as alíquotas e fiscalizam o imposto; e o Comitê Gestor promove a arrecadação, a partilha do imposto e julga os processos administrativos tributários oriundos de autos de infração lavrados por estados e municípios” (Harada,2024, p.1).

Uma solução para a manutenção da autonomia e para fazer frente à ameaça de afronta à cláusula pétrea da forma federativa do Estado, é redesenhar a estrutura e as atribuições do CG-IBS, de modo a devolver aos entes subnacionais as competências que lhes são típicas e que decorrem do seu poder de tributar. Dessa maneira, manter-se-ia sua capacidade de autoadministração, o que permite maior efetividade na busca da realização do bem comum e do fortalecimento da estrutura financeira das entidades federadas (Martins, 2023, p.1).

Lado outro, manter o atual sistema é, indubitavelmente, conservar as anomalias que ele possui hoje. Vale dizer que mitigação de autonomia, não implica, em si mesma, em abolição do arcabouço federativo. Nessa toada, Albano (2024, p.82) assevera que:

[…] a criação de uma entidade pública composta   por representantes   dos entes federativos não denota, por si só, intuito de abolir a forma   federativa.   Na verdade, remodela os contornos federativos ao passo que substitui a multiplicidade legislativa, a ausência de uniformidade e o mau uso das políticas de incentivo por uma atuação integrada, concentrada em    uma entidade pública composta por representantes dos níveis federativos, em sua totalidade quanto estadual e majoritário quanto ao municipal. Pode-se, por assim dizer que em matéria de tributação sobre o consumo observa-se uma faceta do federalismo que pode ser denominada de integrativo-representativo já que:  integra os entes -em contraposição às autonomias estanques, isoladas e conflituosas -e o faz mediante a estruturação de uma entidade   representativa que deliberará os temas afetos ao tributo de competência compartilhada.

Teme-se que essa retirada de autonomia dos entes subnacionais, estribada no fundamento de aumento da cooperação federativa e na correção de problemas que há tempos afligem os contribuintes, seja apenas um subterfúgio para justificar uma centralização autoritária e cerceadora. Assim, corre-se o risco de que a idílica troca de benefícios mútuos, transforme-se, ao fim e ao cabo, na preponderância de um ente sobre outro, o que promoveria uma falência do federalismo fiscal (Conti; Mascarenhas, 2023, p. 125).

Entretanto, é irrefragável que a criação do IBS e do comitê responsável por gerí-lo, a priori, pode significar um passo importante para a reestruturação do nosso teratológico sistema tributário. A alteração do exercício direto, para uma atuação colegiada e representativa por parte dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, aliada a uma harmonização tributária, parece ser um caminho viável para a edificação de um sistema caracterizado pela simplicidade, transparência, justiça tributária, e cooperação. Assim, se bem implementada, pode ser uma inovação capaz de robustecer o pacto federativo, elevando a integração entre os entes pactuantes, além de fazer florescer esperanças de recuperação de uma máquina fiscal que há muito tempo respira por aparelhos.

  • CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com uma proposta arrojada e ambiciosa, a Reforma Tributária pretende, por meio do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), produzir uma profunda e bem-vinda reestruturação do sistema tributário brasileiro. Ao conjuminar o ICMS e o ISS, transformando-os em IBS, a alteração legislativa almeja simplificar o sistema, eliminar a perniciosa e contraproducente cumulatividade, além de propiciar maior transparência às operações tributárias. Tais mudanças são significativos avanços para o combate e eliminação dos vermes que corroem, há bastante tempo, o federalismo fiscal. A guerra fiscal entre os estados e a complexidade da legislação tributária estão entre eles.

Além disso, com uma reformulação da tributação sobre o consumo, que tanto aflige os contribuintes, especialmente os mais pobres, associada a uma mitigação das desigualdades regionais e locais, a Reforma Tributária busca promover a justiça tributária, privilegiando a capacidade contributiva e a criação de um ambiente saudável e atrativo para os negócios. Ao vedar as concessões de incentivos e benefícios fiscais e uniformizar a legislação, a receita do IBS pode ser redistribuída de modo mais igualitário, vez que se eliminam as distorções geradas pelas inúmeras leis autônomas, editadas pelos entes políticos, e a sanha competitiva entre eles. No entanto, este propósito somente poderá ser atingido se os entes subnacionais tiverem a liberdade de fixar as alíquotas do novo tributo, de forma a atender às necessidades regionais e locais.

É relevante pontuar que a substituição da antiga dinâmica tributária pela nova, a qual findará em 2033, exigirá articulação e colaboração entre diferentes níveis de governo. Nesse interregno, em que haverá a coexistência dos antigos e do novo imposto, será importante, para não dizer indispensável, a adoção de mecanismos que permitam uma transição suave e que minimizem os impactos negativos sobre a arrecadação. Desse modo, o aprimoramento da comunicação e educação fiscal para preparar os contribuintes e as administração tributária são peças-chave para o sucesso das alterações. 

A centralização, em um Comitê Gestor, das competências que antes eram exercidas pelos entes federados, representa uma transformação de paradigma na administração tributário-fiscal brasileira. Em que pese essa abordagem estar estribada na promessa de maior uniformidade e eficiência, é incontendível que ela suscita receios em relação à preservação da autonomia dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, corolário de uma federação. Dessa maneira, haverá a inarredável necessidade de equilibrar a integração e a cooperação entre os entes políticos, com a preservação de sua independência, com vistas a não se ultrapassar a linha tênue entre mitigação de autonomia e abolição do federalismo, o que tornaria parte da Reforma Tributária inconstitucional.

Assim, face ao exposto, aprioristicamente, não se pode afirmar taxativamente que a criação do IBS e do Comitê responsável por geri-lo sejam propostas tendentes a abolir a forma federativa de Estado. É fato, contudo, que os entes subnacionais terão um achatamento em sua autonomia, porém isso não leva necessariamente a uma corrosão do federalismo. A partir da implementação do novo modelo tributário, poderemos ter, na verdade, a celebração de uma repactuação federativa, marcada pela integração, cooperativismo e representatividade. Caberá, assim, em grande medida, ao Conselho Federativo e ao Comitê Gestor delinear o futuro de nosso sistema tributário pátrio.

REFERÊNCIAS

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13. BRASIL. Lei n° 5172, de 25 de outubro de 1966 [Código Tributário Nacional]. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Brasília: Presidência da República, 1966. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 11 ago. 2024

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21. FERREIRA, L.C. Evolução histórica da tributação no Brasil e algumas sugestões para a reforma tributária. Dissertação (Mestrado em Ciências Cont. Atuariais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, p. 131. 2012. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/1503. Acesso em: 10 ago. 2024.

22. FLORÊNCIO, Paulo Henrique Procópio. O novo IBS como alternativa à guerra fiscal do ICMS: um estudo das soluções e do risco de violação ao pacto federativo. São Paulo – SP. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. 2021, p. 111-126. Disponível em: https://revistas.pge.sp.gov.br/index.php/revistapegesp/article/view/740/1441. Acesso em: 02/12/2024.

23. GOMES, Fabio L. Reforma Tributária: tributação, desenvolvimento e economia digital. São Paulo: Grupo Almedina, 2022. E-book. ISBN 9786556274409. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786556274409/. Acesso em: 15 ago. 2024.

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29. MAZZA, Alexandre. Curso de Direito Tributário. São Paulo: SaraivaJur, 2024, 10ª ed.

30. MELLO, E. R. Direito fundamental a uma tributação justa. São Paulo:Atlas,2013.

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[1]Graduando do Curso de Direito, do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. E-mail: filijanson@gmail.com.

[2] Professor do Curso de Direito, do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). E-mail: fernandomfurlan@gmail.com.

[3] De acordo com a Reforma Tributária, o IBS substituirá, gradativamente, o ICMS e o ISSQN.

[4] Balthazar (2005, p. 58) leciona que “Além do ouro, havia também o diamante, riqueza intensamente explorada e objeto da ação feroz do fisco lusitano. Os mesmos mecanismos de arrecadação utilizados nas regiões auríferas chegaram às áreas de diamante (Distrito Diamantino), só que de modo mais severo. Houve uma novidade, o Quinto foi substituído pelos contratos de monopólio”.

[5] A diminuição da produção aurífera também se refletiu nos rendimentos dos impostos de Entradas. Tratava-se da cobrança de uma taxa significativa sobre todos os artigos importados e exportados que era feita de acordo com o peso da mercadoria. Essa forma, um tanto estranha de cobrança, tinha grandes inconvenientes para o desenvolvimento da economia em geral e da atividade mineradora: produtos como ferramentas, ferro bruto e outros artigos necessários para desenvolver qualquer trabalho saíam muito caros, enquanto bens de luxo, como tecidos, joias, sapatos, saíam muito baratos, o que encorajava o consumo de ostentação (Mesgravis, 2015, p. 51).

[6] A Constituição de 1824 ficou conhecida como a “Constituição da Mandioca” porque estabelecia que somente brasileiros com renda anual similar a 150 alqueires de mandioca poderiam votar. 

[7] Os Atos Institucionais foram normas jurídicas excepcionais que suplantavam quaisquer outras, inclusive a Constituição, e foram editadas pelos comandantes das Forças Armadas ou pelo presidente da República durante o Regime Militar (1964-1985).

[8]    Segundo Elizabete Mello (2013. p.27): O    Federalismo    Fiscal    consubstancia    na divisão do poder de tributar entre os entes Federativos (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios).  Esse poder de    tributar    não    se    refere    apenas    à competência tributária de criar/instituir e legislar    sobre    os    tributos    descritos    na Constituição    Federal    de    1988 (artigos 145/149-A), mas    também    se    refere    à capacidade    tributária    para    fiscalizar    e arrecadar os tributos.

[9] Art. 7º A competência tributária é indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público a outra, nos termos do § 3º do art. 18 da Constituição”.

[10] Conforme disposição do art. 114 do Código Tributário Nacional, fato gerador é “a situação definida em lei como necessária e suficiente para a ocorrência da obrigação tributária”.

[11] Consoante o art. 1° da Lei 8.212/91, a Seguridade pode ser definida como sendo um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar o direito relativo à saúde, à previdência e à assistência social”.

[12] Acerca disso, Marcus Abraham e João Ricardo Catarino (2018, p.199) lecionam que há uma […] preocupação quanto ao desequilíbrio do poder fi­scal entre os três entes federativos, uma vez que a indesejada concentração do poder no federalismo fi­scal brasileiro em favor da União, em detrimento dos Estados e Municípios, propicia negativas consequências, tais como: a) o enfraquecimento do processo democrático decorrente da luta entre as forças políticas regionais e a central; b) uma indesejada competição ­fiscal – vertical e horizontal – entre os entes federativos, conhecida como “guerra fi­scal”; c) a incapacidade de o governo central exercer satisfatoriamente sua função coordenadora em todo o território, gerando práticas autônomas dos governos regionais e locais incompatíveis com o interesse nacional; d) a minimização dos processos de redução das desigualdades regionais e do estímulo ao desenvolvimento social e econômico local.

[13] Disponível em: https://ibpt.org.br/em-media-legislacao-brasileira-edita-quase-40-normas-tributarias-por-dia-desde-1988-revela-estudo-do-ibpt/. Acesso em: 27/11/2024.

 

[15]Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf. Acesso em: 27/11/2024.

[16] Ainda segundo o relatório o maior impacto das execuções fiscais está na Justiça Estadual, que concentra 86% dos processos. A Justiça Federal responde por 14%; a Justiça do Trabalho por 0,2%; e a Justiça Eleitoral por apenas 0,01% (CNJ, 2021, p. 06).

[17] Art.156-A, §1º, VI, daConstituiçãoFederalde1988, incluído pela Emenda Constitucional nº132/2023.

[18] Art.156-A, §1º, VII, VIII, IX, da Constituição Federal de1988, incluído pela Emenda Constitucional nº132/2023.

[19] A instância máxima de decisões do CG-IBS será o Conselho Superior, a ser criado 120 dias após a sanção da lei complementar. O Conselho terá 54 membros remunerados: 27 indicados pelos governos dos estados e do Distrito Federal e outros 27 eleitos para representar os municípios e o DF. Também haverá número igual de suplentes. Além do Conselho Superior, outros órgãos do Comitê Gestor do IBS são: diretoria executiva, com ao menos nove diretorias; secretaria geral; assessoria de relações institucionais e federativas; corregedoria e auditoria interna. Fonte: Agência Senado.

[20] Uma entidade pública sob regime especial é, em regra, uma autarquia que possui características próprias que a diferenciam das autarquias comuns, como maior autonomia administrativa, técnica ou financeira. Essas prerrogativas devem estar previstas na lei de criação da autarquia. A Agência Senado informa que o Comitê Gestor não terá vinculação a nenhum órgão público. Contudo, de acordo com o Decreto-Lei 200/1967, artigo 4º, inciso II, que dispõe sobre a organização da Administração Federal: “[a] Administração Federal compreende: I – A Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios e II – A Administração Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria: a) Autarquias; b) Empresas Públicas; c) Sociedades de Economia Mista e d) fundações públicas”. E no artigo 19 prevê que: “[t]odo e qualquer órgão da Administração Federal, direta ou indireta, está sujeito à supervisão do Ministro de Estado competente”.

Extrafiscalidade na distribuição de renda no Brasil: análise dos instrumentos de política fiscal da Lei nº 14.754/23 (Lei das off-shore)

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.


Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

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Extrafiscalidade na distribuição de renda no Brasil: análise dos instrumentos de política fiscal da Lei nº 14.754/23 (Lei das off-shore)

Ester Ramos dos Santos Santiago[1] e Fernando de Magalhães Furlan[2]

Resumo:

O objetivo deste estudo é avaliar a efetividade da extrafiscalidade tributária na promoção da equidade econômica no Brasil. A pesquisa se dedicará à análise da concentração de renda sob a ótica da política fiscal, buscando identificar o papel dos instrumentos fiscais na redução das desigualdades. Em remate, a Lei nº 14.754/23 será abordada como um caso prático de política tributária progressiva, ilustrando as potencialidades e desafios dessa estratégia A justificativa reside na descomunal concentração de renda no país, ínsita em um sistema tributário de natureza essencialmente regressiva. A ineficiência das políticas fiscais na redistribuição de renda torna as transferências diretas uma medida paliativa, mas não estrutural, para combater as disparidades socioeconômicas. A tributação de fundos offshore e exclusivos, conforme prevista na referida legislação, representa uma ruptura paradigmática e um avanço significativo na política fiscal brasileira. Essa medida visa corrigir as distorções inerentes à estrutura tributária nacional, que, historicamente, sobrecarrega os segmentos de menor renda, por meio de impostos indiretos. Assim, ao canalizar recursos financeiros dos setores de alta concentração de renda para políticas públicas sociais, o Estado promove uma distribuição mais justa da renda, desde o processo de arrecadação. Embora a implementação desta nova imposição tributária possa não gerar impactos macroeconômicos imediatos e expressivos, sua implementação é essencial para a construção de um sistema tributário mais progressivo. Para alcançar os fins propostos, a pesquisa adotará uma abordagem metodológica indutiva, de natureza eminentemente bibliográfica, que incluirá análise de doutrina, artigos acadêmicos e relatórios sobre a estrutura tributária e econômica do Brasil, além da utilização de dados empíricos fornecidos pela Receita Federal do Brasil, IBGE, IPEA e outras fontes para mapear a distribuição da carga tributária e os impactos econômicos. Quanto à abordagem, adota uma perspectiva qualitativa e quantitativa; e em relação aos fins, é descritiva e exploratória.

Palavras-chave: Extrafiscalidade Tributária; Política Tributária Progressiva; Distribuição de Renda; Lei nº 14.754/23.

Abstract:

The objective of this study is to evaluate the effectiveness of tax extra-fiscality in promoting economic equity in Brazil. The research will focus on analyzing income concentration from the perspective of fiscal policy, seeking to identify the role of fiscal instruments in reducing inequalities. Finally, Law No. 14,754/23 will be addressed as a practical example of progressive tax policy, illustrating the potential and challenges of this strategy. The justification lies in the colossal concentration of income in the country, stemming from a tax system that is essentially regressive in nature. The inefficiency of fiscal policies in income redistribution makes direct transfers a palliative, but not structural, measure to combat socioeconomic disparities. The taxation of offshore and exclusive funds, as stipulated in the legislation, represents a paradigm shift and a significant advancement in Brazilian fiscal policy. This measure aims to correct the distortions inherent in the national tax structure, which historically overburdens lower-income segments through indirect taxes. By channeling financial resources from sectors with a high concentration of income to social public policies, this initiative promotes a fairer distribution of income during the collection process itself. While the implementation of this new tax measure may not generate immediate and significant macroeconomic impacts, it is essential for the construction of a more progressive tax system. To achieve the proposed goals, the research will adopt an inductive methodological approach, primarily relying on a bibliographic review. This will include an analysis of doctrine, academic articles, and reports on Brazil’s tax and economic structure. Additionally, the study will utilize empirical data from the Federal Revenue Service, IBGE, IPEA, and other sources to map the distribution of the tax burden and its economic impacts. Regarding the approach, it adopts both a qualitative and quantitative perspective; as for its purposes, it is descriptive and exploratory.

Keywords: Tax Extra-fiscality; Progressive Tax Policy; Income Distribution; Law No. 14.754/23.

1. Introdução

Com o fim do autoritarismo do regime militar e em resposta às demandas sociais, a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 estabeleceu uma nova ordem político-social, consolidando um Estado Democrático de Direito, com foco na justiça social. O deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara dos Deputados durante a promulgação da Constituição Federal de 88, destacou o influxo e o valimento das reivindicações populares, declarando: “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar.”[3]

A alarmante desigualdade histórica e as aspirações sociais, em um cenário de concentração de renda nas mãos de poucos e uma vasta massa populacional vivendo em condições de extrema pobreza e miséria, foram forças motrizes das lutas que resultaram na Constituição Federal de 1988. Dessarte, a Constituição, com seu caráter garantista, estabeleceu princípios tributários fundados na justiça fiscal e social, reconhecendo a necessidade de utilizar o sistema tributário como mecanismo para amenizar as disparidades socioeconômicas.

O artigo 170, inciso VII, da Constituição Federal de 1988 consagra a redução das desigualdades regionais e sociais como princípio fundamental da ordem econômica brasileira. Essa norma, alinhada a outros dispositivos constitucionais, visa garantir a todos uma existência digna, promovendo a distribuição equitativa da carga tributária e assegurando direitos sociais fundamentais, como educação, saúde e trabalho.

Paradoxalmente, a realidade brasileira é sublinhada por uma alta concentração de renda, com o 1% mais rico da população detendo 28,3% da renda total do país (Montferre, 2023). Sob a ótica estrita da política fiscal, não desconsiderando que a desigualdade é fruto de múltiplos fatores, a relação entre tributação e desigualdade revela que a neutralidade tributária, ao não considerar a capacidade contributiva dos indivíduos, tende a acentuar as disparidades existentes.

É patente o fato de que o sistema tributário brasileiro não satisfaz os princípios de justiça fiscal e social, nem o princípio da equidade, que preconiza uma tributação baseada na capacidade contributiva, de maneira oposta, perpetua a copiosa desigualdade de renda com uma tributação hegemonicamente regressiva.

Impende, ainda, frisar que a desigualdade não é apenas um problema moral, mas também um obstáculo ao desenvolvimento econômico e à coesão social do país. Com efeito, é inevitável a necessidade de ações afirmativas para mitigar as dissimilitudes sociais, especialmente em um contexto exacerbado pela pandemia de COVID-19[4], que acometeu o país em um quadro iminente de estagflação[5].

Diante disso, a pesquisa examina como os mecanismos tributários extrafiscais influenciam a distribuição de renda no Brasil, ilustrando a eficácia da Lei nº 14.754/23 e os desafios para promover uma distribuição mais equitativa.

Para compreender os desafios na promoção da equidade de renda no Brasil, é necessário realizar uma análise do cenário tributário e econômico atual. Assim, a seção inicial deste estudo visa identificar esses desafios por meio de uma revisão histórica do cenário tributário internacional, seguida de uma contextualização do panorama tributário e econômico atual do país.

Partindo do pressuposto que a política fiscal constitui um instrumento crucial no combate à desigualdade de renda e riqueza, conforme demonstrado em estudos empíricos mencionados na seção anterior, a segunda seção deste trabalho explora de forma abrangente como a extrafiscalidade tributária pode ser empregada como um instrumento de política fiscal, visando a construção de um sistema tributário mais progressivo.

Por derradeiro, a última seção deste estudo examina os mecanismos de extrafiscalidade tributária presentes na Lei nº 14.754/23, que tributa a renda obtida por pessoas físicas residentes no Brasil em aplicações financeiras no exterior, em entidades controladas e trusts, avaliando seu impacto na distribuição de riqueza.

2. Análise do panorama tributário e econômico atual

2.1. A influência das políticas tributárias na concentração de riqueza e desigualdade: um estudo comparativo entre EUA, Reino Unido e Europa Continental, no Século XX

Desde os estudos dos fisiocratas no século XVIII, a distribuição de riqueza e renda tem sido um tema central na economia. Os fisiocratas focavam na distribuição do excedente agrícola, por considerarem a agricultura como principal fonte de riqueza. Essa preocupação foi expandida pelos economistas clássicos, como Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx, que ampliaram a análise para outras formas de produção e para a distribuição do valor gerado pelo trabalho (Iturriet et al, 2016, p. 15).

No século XX, as conflagrações mundiais, com proeminência para a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), alinhadas às políticas públicas pós-guerra implementadas por cada nação, tiveram um papel fundamental na atenuação das disparidades sociais. No entanto, essa trajetória não foi linear. A partir dos anos 1970-1980, a desigualdade reacendeu em diversas nações, evidenciando a influência das dinâmicas institucionais e políticas específicas de cada país (Piketty, 2014, p. 307).

Insta salientar ainda que, ao longo do século XX, países que adotaram políticas fiscais mais progressivas, taxando de forma mais elevada a renda, a riqueza e as heranças de indivíduos e famílias mais abastados, conseguiram reduzir de maneira consistente a concentração de renda e riqueza. Nações como Japão, Suécia, França e Alemanha exemplificam essa tendência. Em contraste, sociedades com sistemas tributários mais liberais, como o Reino Unido e os Estados Unidos, enfrentaram desafios distributivos mais significativos, embora mitigados pela presença histórica de impostos quase confiscatórios sobre a transferência de riqueza (Humberto, 2011, p. 8).

Em resposta direta à Grande Depressão, entre as décadas de 1930 e 1970, o governo dos Estados Unidos, sob a liderança de Franklin D. Roosevelt, implementou um conjunto de políticas econômicas e sociais conhecido como New Deal. Essas políticas, lastreadas nos princípios da justiça social, visavam redistribuir a riqueza, elevando substancialmente a alíquota dos impostos sobre a renda dos mais ricos, que chegava a 80-90%. A concentração excessiva de renda e poder, segundo a análise da época, contribuíram diretamente para o colapso financeiro que precipitou a crise (Piketty, 2014, p. 628).

Sucede que, ao fim dos anos 1970, a narrativa de declínio econômico nos Estados Unidos tornou-se cada vez mais comum, com a mídia destacando o sucesso industrial da Alemanha e do Japão. No Reino Unido, o cenário era ainda mais preocupante, com o PIB per capita caindo abaixo dos níveis observados na Alemanha, França, Japão e, até mesmo, na Itália. Essa percepção de declínio e atraso foi um fator crucial no surgimento da “revolução conservadora”, que teve como principais líderes Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos (Piketty, 2014, p. 630-631).

A partir do decênio de 80, sob a influência de políticas neoliberais, tanto o governo americano, quanto o britânico mudaram radicalmente de direção. Influenciados por tais políticas, ambos países prometeram reduzir o Welfare State[6], as taxas de imposto sobre a renda dos mais ricos foram drasticamente reduzidas, caindo para 30-40% nos anos de 1980-2010. Esse movimento marcou uma reviravolta rumo a políticas que favoreciam o crescimento das grandes fortunas e a diminuição das intervenções estatais na economia (Piketty, 2014, p. 630-631).

Em comparação, países da Europa continental, como França e Alemanha, e o Japão, mantiveram maior estabilidade em suas políticas fiscais, conservando as alíquotas sobre as rendas mais altas em torno de 50-60%, entre 1930-2010. Embora esses países não tenham seguido o caminho de desregulamentação e corte de impostos dos anglo-saxões (Estados Unidos da América e Reino Unido), a taxa de crescimento do PIB per capita foi símil. Logo, as evidências empíricas sugerem que a redução da taxa marginal superior, uma política frequentemente associada à teoria da oferta[7], não é uma panaceia para o crescimento econômico (Piketty, 2014, p. 631-632).

É imperioso observar que a era Reagan-Thatcher, influenciada por pensadores como Friedrich Hayek e Milton Friedman, foi marcada por um desdobramento sinuoso das disparidades globais. As políticas associadas ao neoliberalismo, que incluem a redução de impostos para os mais abastados, a desregulamentação dos mercados e a privatização de empresas estatais, contribuíram para o enfraquecimento dos mecanismos de redistribuição de renda e a concentração de riqueza e poder em uma elite econômica restrita (Santos, 1999, p. 119).

Embora a retórica neoliberal defenda um mercado livre e a mínima intervenção estatal, na prática, o capitalismo exige concentração de poder econômico e intervenção estatal para operar de maneira eficaz, regular a economia, controlar monopólios e garantir a estabilidade. A falta de reconhecimento dessas necessidades práticas molda a política econômica e impacta adversamente a democracia, ao promover medidas que reduzem a intervenção estatal e nutrem uma utopia (Santos, 1999, p. 120-121).

Defender o capitalismo puro implica em rejeitar integralmente a Terceira Via[8], que procurou fugir da polarização característica da Guerra Fria. O sistema capitalista se desenvolveu ao longo da evolução social, incorporando características e contradições inerentes que não podem ser ignoradas. Apesar de sua promessa de eficiência e liberdade, o capitalismo laissez-faire[9] não elimina, mas sim intensifica, as contradições sociais; é imprescindível uma intervenção estatal para funcionamento do mercado e o impulsionamento do crescimento econômico e do emprego (Santos, 1999, p. 126-130)

Através de um decote da ascensão das políticas neoliberais nos EUA, é possível observar que a sua saída da recessão econômica foi às custas da população de baixa renda. Durante a administração Reagan, foi implementada uma série de políticas econômicas conhecidas como Reaganomics ou trickle-down economics, objetivando estimular o crescimento econômico por meio de cortes de impostos, especialmente para os mais abastados, e pela desregulamentação da economia, sob a premissa de que esses benefícios se alastrariam para o restante da sociedade (Komlos, 2018, p. 10-11).

Arthur Laffer postulou a existência de um ponto ideal de tributação, além do qual aumentos nas alíquotas podem comprometer a arrecadação. No entanto, os resultados práticos das políticas econômicas implementadas pelo Governo Reagan, que se fundamentaram, em parte, na curva de Laffer, não corresponderam às expectativas teóricas. Apesar de um crescimento econômico moderado, observou-se um esvaziamento da classe média, com os benefícios desse crescimento sendo direcionados demasiadamente para os mais ricos (Komlos, 2018, p. 11-13).

Dados do Country Economy indicam que, entre 1980 e 2001, o índice de desigualdade na distribuição de renda nos EUA aumentou em 24,2%.

A trajetória das políticas tributárias nos EUA demonstra como as escolhas políticas podem impactar sobremaneira a distribuição de renda e a estrutura social de um país. As políticas econômicas Reaganomics intensificaram a concentração de riqueza e aumentaram significativamente a dívida pública, que dobrou de 30% para 60% do PIB, gerando repercussões que suplantam o tênue crescimento econômico. Esse panorama sublinha a importância de políticas tributárias e econômicas na promoção de uma distribuição mais equitativa dos recursos (Komlos, 2018, p. 13).

A desigualdade não é um fenômeno natural, mas resulta em demasia de escolhas políticas e econômicas de cada Estado, desafiando a visão determinista da curva de Kuznets[10]. De maneira objetiva, verifica-se que a desigualdade é um componente multidimensional, moldado por aspectos históricos, institucionais e políticos, que influenciam a mobilidade social e as oportunidades de cada indivíduo (Piketty, 2014, p. 307, 347-350).

Em remate, para Piketty, em sua obra seminal O Capital no Século XXI, a desigualdade é um fenômeno hermético, resultado da interação de diversos fatores que são influenciados por aspectos institucionais — como leis, políticas governamentais e a atuação de instituições econômicas e sociais — que moldam a dinâmica entre o Estado e as elites econômicas, e fatores estruturais — como relações de poder dentro da sociedade, a organização da produção e as regras que governam a propriedade e o comércio. Esses aspectos se inter-relacionam de forma intrincada, contribuindo para a perpetuação ou mitigação das disparidades socioeconômicas.

2.2. Análise histórica e perspectivas do sistema tributário brasileiro, segundo Varsano

O sistema tributário hoje vigente no país é fruto de uma lenta evolução que se conforma às linhas gerais das teorias a respeito, tradicionalmente encontradas na literatura econômica” (Varsano, 1996, p.19). Em um primeiro momento, o sistema tributário brasileiro do início, do século XX, mantinha características herdadas do período imperial, com uma forte dependência dos impostos sobre o comércio exterior. Até a década de 1930, praticamente metade da receita pública brasileira provinha dos tributos sobre produtos estrangeiros que entravam no país (Varsano, 1996, p. 2).

A Constituição Republicana de 1891 preservou aspectos do sistema tributário antepositivo. Todavia, ao instituir o federalismo[11], conferiu autonomia financeira aos demais entes federativos, visando garantir que pudessem exercer as suas funções de maneira independente em relação à União. Essa medida, no entanto, demandou a criação de um sistema tributário mais complexo, com a adoção do regime de separação de fontes tributárias (Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891; Varsano, 1996, p. 2).

Diversas fontes de renda foram incorporadas à base tributária durante as primeiras décadas da República, como impostos sobre vencimentos pagos por cofres públicos e sobre benefícios distribuídos por sociedades anônimas.  Com a necessidade de financiar as crescentes despesas do Estado, somada a influência de modelos tributários de outros países e a pressão por uma maior justiça tributária, três décadas após a promulgação da Constituição de 1891, a lei nº 4.625 de 1922 instituiu um imposto de renda abrangente (Nóbrega, 2014, p. 28-29; Varsano, 1996, p. 2).

Art. 31. Fica instituído o imposto geral sobre a renda, que será devido, annualmente, por toda a pessoa physica ou juridica, residente no territorio do paiz, e incidirá, em cada caso, sobre o conjunto líquido dos rendimentos de qualquer origem (Brasil, 1922).

Rui Barbosa, primeiro ministro da Fazenda do período republicano, foi um defensor fervoroso do imposto sobre a renda, dedicando parte do seu relatório de janeiro de 1891 a essa temática. Ele abordou a história e a aplicação do imposto, enfatizando as suas qualidades como justo, indispensável e necessário. No entanto, destacou que, no Brasil, a atenção governamental estava predominantemente voltada para impostos indiretos, especialmente os direitos de alfândega, em detrimento do imposto sobre a renda (Nóbrega, 2014, p. 27).

Desde o início das discussões sobre o Imposto de Renda no Brasil, o princípio da justiça social, que preconiza a contribuição proporcional dos mais ricos para o financiamento do Estado, foi um dos principais argumentos em defesa desse tributo. No entanto, a implementação do IRPF enfrentou diversas resistências políticas. Após a sua instituição em 1922, o imposto passou por profusas modificações, sendo influenciado por debates nacionais e por tendências internacionais. A estrutura atual, com alíquotas progressivas, é resultado desse longo processo de construção (Cardoso, 2016, p. 41).

No que concerne à tributação interna sobre produtos, desde o ano seguinte à promulgação da Carta Republicana, vigorou um imposto sobre o fumo, estendendo a tributação a outros produtos, antes do final do século XIX, estabelecendo-se o imposto sobre o consumo. Em 1922, foi criado o imposto sobre vendas mercantis, que posteriormente foi denominado imposto sobre vendas e consignações e transferido para a competência estadual (Varsano, 1996, p. 2-3).

A Primeira Guerra Mundial provocou uma mudança no perfil da arrecadação, com uma maior ênfase nos impostos sobre o consumo interno. A Constituição de 1934 e as leis complementares posteriores introduziram mudanças significativas no sistema tributário brasileiro, diminuindo a dependência de impostos sobre o comércio exterior e aumentando a importância dos impostos sobre o consumo interno. Essa nova dinâmica, iniciada no início do século XX, se manteve ao longo das décadas seguintes, caracterizando o sistema tributário brasileiro até os dias atuais (Cardoso, 2016, p. 41; Varsano, 1996, p. 3).

Art. 8º Também compete privativamente aos Estados: 

I, decretar impostos sobre: 

d) consumo de combustiveis de motor de explosão; 

e) vendas e consignações effectuadas por commerciantes e productores, inclusive os industriaes, ficando isenta a primeira operação do pequeno productor, como tal definido na lei estadual; 

g) indústrias e profissões; 

f) exportação das mercadorias de sua producção até o maximo de dez por cento ad valorem, vedados quaesquer addicionaes; 

(Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1934)

Em virtude da Segunda Guerra Mundial a participação do imposto de importação na receita total reduziu bruscamente. Entre 1946 e 1966, a tributação passou a explorar, sobretudo, as bases domésticas de consumo, que, às vésperas da reforma de 1960, era responsável por mais de 45% da receita tributária da União. O Imposto de Vendas e Consignações correspondia a quase 90% da receita tributária estadual e o Imposto de Indústrias e Profissões, gerava quase 45% da receita tributária dos municípios (Varsano, 1996, p. 4-6).

Em 1952, o governo brasileiro criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) com o objetivo de atrair capital estrangeiro, por meio da oferta de incentivos e utilizando o Imposto sobre Produtos Importados como ferramenta de proteção à indústria nacional. Esse impulso à industrialização resultou em um aumento da despesa do Tesouro Nacional, que alcançou 13% do PIB, no início dos anos 60. Esse aumento nas despesas públicas não foi acompanhado por um crescimento equivalente das receitas (Varsano, 1996, p. 7).

Diante da crise econômica e política, surgiu a necessidade de uma reforma tributária para resolver o problema orçamentário e angariar recursos essenciais às demais reformas. Contudo, o que ocorreu foi uma reestruturação do aparelho arrecadador, gerando grande descontentamento entre as elites econômicas, devido à alta carga tributária sobre o setor produtivo, resultante da cumulatividade dos impostos sobre o consumo e do crescente imposto de renda sobre pessoas jurídicas, tornando ineficaz o aprimoramento do sistema arrecadatório (Varsano, 1996, p. 7-8).

Entre 1964 e 1966, foi implementado um novo sistema tributário no Brasil, cuja prioridade era restaurar as finanças federais e atender às demandas de alívio tributário dos setores empresariais, que sustentavam politicamente o regime. Nesse período, foram realizadas diversas reformas significativas: a administração fazendária foi reestruturada; o Imposto de Renda passou por revisões substanciais, resultando em um expressivo aumento da arrecadação; e o Imposto sobre o Consumo foi reformulado, originando o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) (Varsano, 1996, p. 9).

A reforma tributária da década de 1960, além de ter alcançado, com sucesso, o objetivo de restaurar rapidamente as finanças federais, com uma notável recuperação da receita do Tesouro Nacional, eliminou os impostos cumulativos, substituindo-os pelo Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), estabelecendo um sistema com objetivos econômicos, que servia como um instrumento estratégico para o crescimento acelerado, delineado pelos mandatários do período (Varsano, 1996, p. 9).

Logo, o foco principal era aumentar o esforço fiscal da sociedade para alcançar o equilíbrio orçamentário e gerar recursos para incentivos à acumulação de capital, visando a impulsionar o crescimento econômico, favorecendo os detentores da riqueza e negligenciando a equidade. De acordo com a estratégia traçada, o governo federal controlaria o processo de crescimento, centralizando decisões econômicas e moldando o setor privado, por meio de incentivos fiscais. Enquanto os estados e os municípios receberiam recursos suficientes para cumprir as suas funções sem prejudicar o crescimento (Varsano, 1996, p. 9-10).

Apesar da concessão intensa de incentivos fiscais, a carga tributária do Brasil manteve-se acima de 25% do PIB até 1978, com a União arrecadando cerca de 75% dos recursos. No entanto, desde 1970, o governo já percebia que esses incentivos estavam corroendo a receita excessivamente. Para reforçar suas fontes de financiamento, o governo federal introduziu o PIS (Programa de Integração Social), que trouxe de volta a cumulatividade na tributação. Além disso, determinou que parte dos incentivos fosse direcionada para programas sociais e de desenvolvimento regional, reduzindo os benefícios fiscais das empresas (Varsano, 1996, p. 10).

A partir de 1975, o sistema praticamente deixou de ser utilizado como um instrumento para implementar novas políticas econômicas e sociais. Isso se deu por diversos fatores, incluindo o esgotamento do modelo econômico adotado durante a fase do “milagre brasileiro”, incluindo a difusão de incentivos fiscais, que comprometeram a capacidade arrecadatória do Estado. As deficiências, em termos de equidade, se tornaram tão pronunciadas que ajustes na legislação do Imposto de Renda foram realizados em 1974 para mitigar a regressividade da tributação (Varsano, 1996, p. 11).

Com a Constituição de 1988 foi estabelecido um sistema tributário resultante de um processo participativo e democrático, com decisões de caráter eminentemente político, inobstante à competência técnica da equipe. Todavia, devido à dificuldade de coordenação e ao prazo apertado, esse processo constituinte ímpar na história do Brasil apresentava riscos. Como resultado, o sistema tributário emergente, definido nas comissões, acabou sendo insuficiente para financiar o Estado, consolidando um desequilíbrio orçamentário existente em vez de resolvê-lo (Varsano, 1996, p. 12-13).

Em suma, a descentralização ocorrida com o fortalecimento da Federação e autonomia fiscal dos estados e municípios não foi fruto de uma política deliberada, mas sim uma resposta a restrições fiscais. Isso resultou em uma queda na qualidade do sistema tributário, sem solucionar o desequilíbrio financeiro e fiscal, enquanto a capacidade dos governos subnacionais de atender às demandas sociais permaneceu limitada (Varsano, 1996, p. 16).

As iniciativas de correção das distorções arrecadatórias no Brasil, como a implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF)[12] e o Imposto Territorial Rural (ITR), não tiveram o impacto esperado. O IGF[13], apesar de previsto constitucionalmente, nunca foi regulamentado, permanecendo ineficaz como instrumento de redistribuição de riqueza. O ITR, por sua vez, tem tido um impacto limitado nas receitas fiscais, devido à baixa arrecadação, além de ter sua receita compartilhada com os municípios, o que dilui ainda mais a sua efetividade fiscal (Passos et al, 2018, p. 6).

A evolução da carga tributária brasileira revela um perfil distinto dos países da OCDE. Em 2015, a tributação sobre a renda, lucros e ganhos de capital no Brasil era consideravelmente inferior à média da OCDE, enquanto a tributação sobre bens e serviços era significativamente maior.   Essa composição atípica da carga tributária brasileira contribui para a acentuação das distorções econômicas observadas no país (Passos et al, 2018, p. 6).

As principais ineficiências tributárias do Brasil impactam não apenas a distribuição de renda, mas também a volatilidade do crescimento econômico, o baixo nível de investimento e a composição da carga tributária, máxime em relação à tributação sobre o capital e a organização dos tributos sobre bens e serviços. As principais ineficiências distributivas e arrecadatórias são a baixa tributação da renda e do capital, a fraca capacidade de arrecadação dos impostos sobre a propriedade e a ausência de regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (Passos et al, 2018, p. 7).

Como forma de resposta imediata às alarmantes desigualdades, na transição para o século XXI, houve uma crescente visibilidade e eficácia de projetos locais voltados para a garantia de uma renda mínima aos segmentos mais vulneráveis da população, que culminaram na promulgação da Lei nº 9.533/97, que instituiu o Programa Renda Mínima. Este marco legislativo sinalizou o início dos programas de transferência de renda, como uma resposta estruturada às demandas emergentes da população de baixa renda (Lício, 2004, p. 38).

Ocorre que, apesar de seus benefícios, os programas de transferência de renda enfrentam desafios e limitações notáveis, como a fragmentação de recursos e altos custos administrativos (Lício, 2004, p. 38). Ademais, as transferências diretas de renda, por si só, mostram-se insuficientes para corrigir os desequilíbrios macroeconômicos. O Brasil enfrenta profundas desigualdades estruturais, com grande parte da riqueza concentrada em uma pequena elite, onde o 1% mais rico[14] detém 11,77% da renda nacional (PNAD, 2024).

Promover a equidade de renda no Brasil requer não apenas políticas robustas de transferência de renda, mas concomitantemente políticas fiscais que corrijam os desequilíbrios macroeconômicos, fortalecendo a progressividade e a eficiência do sistema tributário. Enquanto as transferências desempenham um papel vital na conjuntura econômica, a política tributária emerge como uma ferramenta pujante na redução das disparidades econômicas e sociais, fazendo com que o Estado goze de um papel ativo no panorama distributivo (Rodrigo, 2016, p. 19).

2.3. Ineficiência tributária brasileira

Cesar Roxo Machado[15], em entrevista à Agência Senado, ressaltou que o sistema tributário brasileiro agrava a concentração de renda em vez de reduzi-la. Embora as reformas apresentadas ao Congresso Nacional frequentemente priorizem a simplificação dos tributos, elas negligenciam a busca por uma justiça tributária, que é crucial. Para ele, os tributos devem ser utilizados como ferramentas para reduzir as desigualdades sociais, não apenas por meio de políticas públicas, mas também no ato da arrecadação, onde os que possuem mais devem contribuir proporcionalmente mais do que aqueles com menos recursos (Westin, 2021).

Ainda de acordo com Cesar Roxo Machado, um dos grandes equívocos no debate sobre tributos no Brasil é a ideia de que a carga tributária no país é excessivamente alta. Ele esclarece que a carga tributária brasileira, representando 33% do PIB, é comparável à de países assistencialistas. Machado questiona: “[q]uando dizem que a carga tributária é alta, eu pergunto: ‘[a] carga é alta para quem?’. Ela só é alta para quem ganha pouco. Os pobres são os únicos que podem dizer que a carga tributária brasileira é alta.” (Westin, 2021).

É importante observar, ainda, que a regressividade do sistema tributário brasileiro, aliada à necessidade de complementar serviços públicos essenciais com recursos privados, impõe uma espécie de duplo pagamento à classe média. Assim, ela arca com uma parcela significativa da carga tributária e, simultaneamente, enfrenta altos custos privados para acessar serviços básicos de qualidade, como saúde e educação. Esse cenário exacerba a desigualdade social e limita a mobilidade social, dificultando a ascensão da classe média.

O impacto da carga tributária sobre a desigualdade deriva da distinção entre tributos diretos, sobretudo progressivos[16], visto que consideram a capacidade econômica do indivíduo, e indiretos, que taxam o consumo, ignorando à capacidade contributiva e resultando em encargo tributário mais penoso sobre a classe baixa, uma vez que a proporção de consumo em relação à renda é maior nas classes mais pobres do que nas mais ricas. Portanto, a progressividade geral do sistema tributário depende dos pesos atribuídos a cada tipo de tributação, o que resulta em uma nova distribuição de renda após a tributação (Rodrigo, 2016, p. 21).

O sistema tributário brasileiro é, senão regressivo quando analisado pela composição da arrecadação tributária, neutro do ponto de vista distributivo, quando considerados outros aspectos metodológicos da literatura especializada. De todo modo, tais fatores reforçam o inequívoco: o sistema tributário tem diminuto potencial para enfrentar a desigualdade, um dos maiores problemas socioeconômicos do país (Passos et al, 2018, pág. 2-3).

Antagonicamente, dados do Boletim de Estimativa da Carga Tributária Bruta do Governo Geral de 2023, publicado pelo Tesouro Nacional, revelam uma maior dependência de tributos sobre bens e serviços (ISS, ICMS, PIS/COFINS etc.) em comparação aos tributos sobre renda, lucros e ganhos de capital. Enquanto os tributos sobre bens e serviços correspondem a 12,68% do total de 24,19% do PIB do país, os tributos sobre renda, lucros e ganhos de capital representam 8,66% do PIB, com uma redução de 0,37 pontos percentuais em comparação ao ano anterior (Ministério da Fazenda, 2024).

O sistema tributário brasileiro é altamente adicto a impostos indiretos, de caráter intrinsecamente regressivo, que podem chegar a representar mais de 45,1% da receita tributária total do país. Por conseguinte, os brasileiros com menor renda desembolsam 21,2% de seus ganhos em impostos indiretos e 3,1% em impostos diretos. Em contrapartida, os brasileiros com maior renda pagam 7,8% de seus rendimentos totais em impostos indiretos e 10,9% em impostos diretos, comprometendo o princípio da capacidade contributiva (Pestana, 2024, p. 4-5).

Ao invés de promover a justiça social, a neutralidade do sistema tributário brasileiro, em sua atual estrutura, reforça e perpetua as desigualdades históricas. O senador Jaques Wagner (PT-BA), afirma que a isenção de Imposto de Renda a dividendos distribuídos a pessoas físicas destoa das políticas fiscais do resto do mundo, contribuindo para que o Brasil tenha um sistema tributário altamente regressivo, que não tributa a renda e o patrimônio dos mais ricos (Westin, 2021).

Ademais, enquanto a renda do trabalho é tributada de maneira progressiva, com alíquotas que podem chegar a 27,5%, os rendimentos provenientes de ganhos de capital muitas vezes são tributados a taxas significativamente mais baixas e lineares. Os ganhos líquidos mensais de até R$20 mil em operações na bolsa de valores de mercadorias, de futuros e assemelhadas, inclusive day trade, são tributadas à alíquota de 20% e as demais operações à alíquota de 15%, conforme dispõe a lei nº 11.033 de 2004.

O economista Eduardo Fagnani[17] ressalta a afirmação falaciosa de que a redistribuição da carga tributária, diminuindo o tributo dos desfavorecidos e o aumentando dos opulentos, por meio da tributação da renda e do patrimônio, é uma política peculiar a países de governo de esquerda. Na realidade, trata-se de uma política liberal, que foi um ponto de inflexão, tanto para a revitalização da economia norte-americana após a crise de 1929, quanto para a expansão das políticas sociais na Europa do pós-guerra (Westin, 2021).

Historicamente, o modelo de política fiscal brasileiro tem priorizado a eficiência econômica em detrimento da justiça distributiva, sob a premissa de que uma maior progressividade tributária poderia comprometer o crescimento econômico. Esse enfoque resultou em um sistema tributário com menor ênfase na redistribuição de renda e maior ênfase na eficiência arrecadatória, sustentado pela crença de que uma tributação menos progressiva poderia minimizar distorções econômicas e evitar a evasão de capitais para países com regimes fiscais mais favoráveis (Passos et al, 2018, p. 12).

É necessário equilibrar os aspectos da equidade, que se refere à justiça fiscal, e da eficiência, capacidade do sistema tributário de minimizar as distorções que a tributação pode causar na economia. Um sistema eficiente é capaz de arrecadar impostos sem causar interferências significativas na economia, evitando prejudicar a produção, o consumo ou os investimentos. Dessa forma, a formulação de políticas tributárias deve levar em conta tanto a necessidade de promover justiça social quanto a de evitar distorções econômicas, avaliando cuidadosamente os objetivos e interesses da sociedade (Passos et al, 2018, p. 6).

3. Extrafiscalidade como mecanismo de redistribuição de renda no Brasil

A obrigação tributária possui uma natureza peculiar que a distingue de outras relações jurídicas. Na relação jurídico-tributária, a obrigação surge da lei, ex lege, e não da vontade das partes, ex voluntate. Isso significa que não prevalece a liberdade de iniciativa ou contratual, tampouco a autonomia individual da vontade, mas sim a soberania estatal. Assim, as finanças públicas são oriundas das competências estabelecidas pela Constituição, das finalidades públicas e das despesas essenciais para a manutenção do Estado e a realização de seus objetivos constitucionais (Neto, 2012, p. 67).

O tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir; que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada (Brasil, 1966).

A função precípua arrecadatória do tributo é vinculada pela Constituição Federal, a qual estipula que o tributo é a principal fonte de receitas para o financiamento das competências institucionais do Estado Fiscal[18], ao passo que a restringe à exploração econômica e confere um papel secundário às demais formas de arrecadação de receitas públicas (Neto, 2012, p.67). Por meio do instrumento fiscal, “o Estado supre-se das economias privadas a fim de atender às carências políticas” (Quiroga, 2005, p. 560 apud Neto, 2012, p. 67).

A tributação, enquanto mecanismo de geração de recursos, desempenha um papel crucial no financiamento de políticas públicas destinadas à concretização de direitos fundamentais. Nesse sentido, as normas tributárias são vistas como instrumentos de custeio para a implementação de ações que visam à efetivação desses direitos. Particularmente relevantes são os direitos de segunda geração, como saúde, educação, previdência e assistência social, que requerem intervenções positivas do Estado, geralmente de elevado custo (Barros, 2017, p. 41).

Para viabilizar o custeio desses direitos, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 149, determina tributos específicos cuja arrecadação é vinculada a determinadas finalidades. Um exemplo claro é o artigo 195, que estabelece que a seguridade social será financiada por meio de contribuições sociais, evidenciando a conexão entre os direitos que integram a seguridade social — saúde, assistência e previdência — e os tributos designados para o seu financiamento, as contribuições (Barros, 2017, p. 41).

Por meio da política fiscal, o governo molda a economia valendo-se das exações e dos dispêndios. Essa ação se desenrola por intermédio das funções alocativa, distributiva e estabilizadora. A função alocativa consiste no fornecimento de bens públicos, que não possuem um acesso democratizado, suprindo necessidades básicas da sociedade. A função distributiva envolve mecanismos que ajustam a distribuição de forma mais equitativa, utilizando instrumentos como impostos progressivos, subsídios e transferências. Por fim, a função estabilizadora visa a garantir o crescimento da economia, do emprego e o controle da inflação (Mori, 2009, p. 22-23).

Nesse contexto, o governo exerce uma função crucial na regulação da economia. A trajetória do pensamento econômico sobre a intervenção estatal apresenta uma evolução significativa, transitando da crença na existência de mecanismos automáticos de ajuste econômico para a percepção da necessidade do Estado na estabilização do produto interno e do emprego. A Grande Depressão constituiu um marco decisivo. Naquela época, houve queda de 30% do PIB, entre 1929 e 1933, enquanto a taxa de desemprego alcançou 25,2%, em 1933, e a economia norte-americana demonstrou ausência de mecanismos automáticos eficazes para restabelecer o pleno emprego e a estabilidade dos preços (Mori, 2009, p. 24-25).

Decerto, o tributo é essencialmente instrumental. Todavia, a atividade tributária é inclinada para o alcance do interesse público de forma mediata, gerando receita pública (fiscalidade), e imediata, intervindo na ordem econômica (extrafiscalidade). No primeiro cenário, é perceptível uma estrita relação entre receita e despesa, sendo alcançado o interesse público no redirecionamento das verbas para a Administração Pública, a qual realiza o alcance direto do interesse público. No segundo cenário, o tributo deixa de ser um meio e torna-se um fim em si mesmo, atuando diretamente como instrumento de política pública, independente da realização da despesa pública. (Neto, 2012, p. 64)

Cabe notar que a distinção dos dois fundamentos não se dá, na prática, de forma perceptível, dado que não há dessemelhanças formais entre os tributos fiscais e extrafiscais, exceto no que concerne às derrogações e peculiaridades positivadas do fenômeno extrafiscal. Ademais, quanto à finalidade visada e à eficácia produzida, nota-se uma coexistência de ambos os fundamentos da norma tributária (Neto, 2012, p. 65-66).

A terminologia extrafiscalidade não se encontra positivada no ordenamento pátrio, originando-se de uma construção doutrinária. O vocábulo refere-se a uma situação atípica de exercício da competência tributária: elementos que extrapolam o interesse arrecadatório, preconizando o tratamento individualizado de situações específicas ou normas tributárias. Dessarte, a extrafiscalidade expõe uma faceta mais complexa dos tributos: como instrumentos de política pública, atuando na intervenção econômica e social (Neto, 2012, p. 62)

O prefixo “extra” do adjetivo “extrafiscal” apresenta certa ambiguidade, subentendendo-se que há a inclusão no discurso tributário de temas não pertinentes à sua matéria, devendo a tributação ser, em alguma medida, neutra. A neutralidade fiscal alvitra a não interferência do tributo no processo econômico, este não devendo alcançar outros fins, senão o arrecadatório. Afirmar que as exações não devem extrapolar a finalidade arrecadatória é assumir que, inevitavelmente, os tributos farão mais do que alimentar os cofres públicos (Neto, 2012, p. 62;75)

O pensamento de que o imposto tem funções econômicas, sociais e políticas, data da criação dos primeiros tributos. Nunca houve tributo neutro. Todos os impostos têm função social, econômica e política, inclusive aqueles que costumeiramente não são tidos por extrafiscais, porque os próprios impostos chamados de pura fiscalidade são transferidores de riquezas de uma para outra classe ou criadores de novas fontes de produção para o bem-estar social (Deodato, 1949, p. 147-148 apud Neto, 2012, p. 76).

Cumpre observar que a não interferência pode representar um “intervencionismo às avessas”, na medida em que contribui para a manutenção ou acentuação das desigualdades existentes. O direito tributário busca, principalmente, gerar receita para o Estado, mas também pode influenciar comportamentos, por meio da extrafiscalidade. A neutralidade do sistema tributário é, na verdade, direcionada a fins específicos e não é absoluta; ela visa evitar distorções e promover efeitos positivos que ajudem a cumprir objetivos constitucionais e garantir a isonomia (Neto, 2012, p. 92-93).

Uma análise intrigante sugere que a desigualdade de renda e riqueza possui um caráter inercial significativo, moldado por fatores estruturais e aspectos institucionais. Isso resulta em diversas decisões políticas que favorecem uma dinâmica entre o Estado e as elites econômicas. As instituições têm o potencial de mitigar a desigualdade por meio de intervenções tributárias, que podem criar oportunidades ou acarretar desvantagens. O sistema político institucional desempenha um papel crucial como mediador nas questões distributivas da economia (Silva, 2020, p. 44).

Desde 1988, diversas legislações foram implementadas para regulamentar e reformar o sistema tributário brasileiro. Mudanças significativas ocorreram em 1995 e 1996, com um pacote tributário destinado a estimular o investimento, o que gerou resultados contrários ao esperado. Recentemente, o debate nacional tem se concentrado na simplificação tributária e na diminuição da carga fiscal. Embora novas propostas visem a desonerar o setor produtivo — um aspecto crucial para o desenvolvimento — elas não são suficientes para garantir um crescimento inclusivo e uma sociedade mais justa, resultando em um foco na eficiência, em detrimento da equidade (Silva, 2020, p. 45).

Outra margem de interpretação que os étimos do termo extrafiscalidade sugere é de que o tributo pode alcançar outras finalidades além da arrecadatória e gerar mudanças significativas na conjuntura em que se encontra. É assumir que, inquestionavelmente, a atividade tributária suplanta o caráter instrumental e o elemento finalístico do tributo, influenciando a atividade econômica, realocando recursos e moldando as condutas dos contribuintes. A extrafiscalidade possibilita a análise da eficácia e da finalidade da matéria tributária, expandindo a interpretação das alusivas normas jurídicas (Neto, 2012, p. 62-63)

Infere-se que o termo extrafiscalidade abrange mais de um sentido, sendo aplicável em âmbitos distintos. Celso de Barros Netos (2012), elucida as diferentes exteriorizações do fenômeno da extrafiscalidade: (1) intento não financeiro que respalda o uso atípico do tributo; (2) regime jurídico especial, o qual expõe faceta diversa da arrecadação e impõe supressões à espécie; (3) leis e regulamentos que não apenas buscam a arrecadação de tributos (norma jurídica tributária extrafiscal) e (4) impactos sociais e econômicos gerando norma tributária. Nesse contexto, a extrafiscalidade é considerada uma abordagem eficaz (Neto, 2012, p. 80-84).

O sistema tributário brasileiro apresenta distorções que prejudicam a economia, especialmente quando analisado sob a ótica da eficiência tributária. Enquanto a equidade se preocupa com a isonomia entre contribuintes e sua capacidade de pagamento, a eficiência busca minimizar as distorções econômicas causadas pela tributação. Portanto, é crucial considerar os objetivos sociais ao projetar o sistema tributário, já que, em certos casos, eficiência e equidade podem exigir abordagens opostas para promover a justiça social. (Passos et al, 2018, p. 6).

As normas tributárias podem ser vistas como instrumentos essenciais para a efetivação de direitos fundamentais, especialmente aqueles de terceira geração. Nessa perspectiva, não se estabelece uma oposição entre tributos e direitos fundamentais, e a tributação não se limita a ser um mero meio de financiamento. Ao contrário, a legislação tributária desempenha um papel ativo na realização desses direitos, que são entendidos como metas a serem alcançadas. Um exemplo ilustrativo é a utilização de “normas tributárias indutoras” — por meio de agravamentos ou desonerações — direcionadas à proteção ambiental, conforme estipulado no artigo 225 da Constituição (Barros, 2017, p. 41).

É pertinente mencionar que a extrafiscalidade não se limita a uma única categoria tributária, manifestando-se pelas diversas espécies e por meio de diferentes mecanismos e formas. Isso abrange, desde a hipótese de incidência e as normas tributárias, até outras disposições que possam alterar os efeitos da norma original e a destinação específica dos recursos. A atuação extrafiscal pode ser exercida de maneira positiva, por meio de incentivos ou agravamentos, ou de forma negativa, por meio de desagravos, visando a alcançar as suas metas específicas. Insta salientar que a essência tributária da norma permanece inalterada, embora a sua finalidade seja extrafiscal (Neto, 2012, p. 95-96).

A política fiscal, ao utilizar a tributação como ferramenta, busca promover a justiça social, onde aqueles com maior capacidade contributiva pagam mais impostos, permitindo que o Estado invista em benefícios para toda a sociedade. Contudo, a realidade brasileira diverge desse modelo ideal. Ao contrário dos países da OCDE, que priorizam a tributação da renda e da riqueza, o Brasil impõe uma carga tributária maior sobre o consumo e a prestação de serviços, invertendo a lógica esperada (Silva, 2020, p. 64 e 65).

O imposto progressivo é um método relativamente liberal para diminuir desigualdades, pois mantém a livre concorrência e a propriedade privada, ao mesmo tempo que altera os incentivos privados de forma previsível e contínua, seguindo regras estabelecidas democraticamente em um Estado de direito. Esse tipo de imposto reflete um compromisso ideal entre justiça social e liberdade individual. Por isso, não é surpreendente que os países anglo-saxões, historicamente mais valorizadores das liberdades individuais, tenham avançado com mais firmeza na progressividade fiscal no século XX (Piketty, 2014, p. 627).

A questão dos impostos transcende a técnica, sendo fundamentalmente política e filosófica. Tradicionalmente, distingue-se entre impostos sobre a renda, sobre o capital e sobre o consumo. No entanto, um critério mais relevante para classificar os impostos é a sua natureza proporcional ou progressiva. Um imposto é considerado proporcional quando a taxa é a mesma para todos e é progressivo quando a taxa é maior para os mais ricos. Os impostos regressivos, por sua vez, são aqueles que a taxa diminui para os mais ricos, seja por escaparem do regime ordinário ou ou devido à estrutura do sistema, como ocorreu com o poll tax, que contribuiu para a queda de Margaret Thatcher em 1990 (Piketty, 2014, p. 612-614).

A progressividade fiscal tem um impacto significativo na desigualdade. A análise da progressividade exclusivamente com base na renda atual tende a subestimar a desigualdade, uma vez que não leva em conta a riqueza herdada, a qual é frequentemente sujeita a uma tributação inferior. Deste modo, ao incluir a herança na análise, a desigualdade se mostra ainda maior, especialmente entre os mais ricos. Logo, o imposto progressivo é essencial para o funcionamento do Estado de Bem-Estar Social, mas enfrenta desafios, como a escassez de discussões aprofundadas sobre sua relevância e a concorrência fiscal entre países, que possibilita indivíduos de alta renda eludirem a tributação (Piketty, 2014, p. 614-616).

4. Análise da extrafiscalidade da Lei nº 14.754/23: tributação de rendas no exterior e impacto na distribuição de riqueza

As estruturas societárias no exterior são os instrumentos financeiros mais utilizados pelos brasileiros para investir fora do país, sendo ordinariamente denominadas de entidades offshore[19] que, em sua maioria, estão localizadas em jurisdições consideradas paraísos fiscais[20] (Navarro, 2022, p. 196; Piovesan et al, 2023). A Medida Provisória nº 1.171, de abril de 2023, introduziu mudanças significativas na tributação de rendimentos auferidos por pessoas físicas residentes no Brasil, em investimentos no exterior, sujeitando-os ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), além de promover uma atualização na tabela progressiva do IRPF (Caldeira, 2023, p. 4).

As offshore são consideradas mais fáceis de manejar, em comparação com outros instrumentos de investimento internacional. Do ponto de vista legal, essas estruturas oferecem soluções eficazes para aqueles que desejam preservar e perpetuar o patrimônio alocado. Sob a perspectiva fiscal, destacam-se vantagens como a possibilidade de compensar ganhos e perdas na carteira de investimentos no exterior, consolidando os lucros e prejuízos na própria entidade. Para mais, havia a isenção de tributação sobre os lucros no país de domicílio da entidade offshore, bem como a possibilidade de diferimento do imposto de renda sobre eventuais lucros e ganhos (Navarro, 2022, 196).

Esses arranjos societários possibilitavam, ainda, o acúmulo de capital isento de tributação no exterior. Ao mesmo tempo que o diferimento[21] da tributação traz vantagens para o investidor, ele prejudica os interesses nacionais ao comprometer a equidade tributária e distorcer a alocação de recursos (Caldeira, 2023, p. 7). Um investidor que adquire um título do Tesouro de outro país é tributado no Brasil ao receber os juros. No entanto, ao utilizar empresas em jurisdições de baixa ou nula tributação, os juros ficavam isentos de impostos no Brasil, sendo a tributação aplicada apenas na transferência do lucro para a pessoa física, como em dividendos ou retiradas (Ministério da Fazenda, 2023, p. 6).

Verifica-se que o comprometimento do interesse nacional se manifesta no fato de que os aportes brasileiros estão sujeitos à tributação antes de qualquer reinvestimento (Ministério da Fazenda, 2023, p. 7). Isso leva a uma preferência por remeter recursos para o exterior, em vez de investir localmente, resultando em distorções no mercado. Dados do Ministério da Fazenda (2024) indicam que cerca de 100 mil brasileiros possuem ativos que somam mais de R$1 trilhão no exterior, os quais permaneciam quase isentos de tributação, até serem transferidos para o Brasil (Piovesan et al, 2023). Além disso, esse diferimento gera injustiça tributária e contribui para a concentração de renda, uma vez que favorece os contribuintes de alta renda, que são os principais detentores desses investimentos no exterior.

A discussão sobre a tributação de lucros em paraísos fiscais é longínqua. Ao longo dos anos, diversas propostas legislativas foram apresentadas com o objetivo de incluir esses rendimentos na base de cálculo do Imposto de Renda, como a Medida Provisória 627/2013, que propunha tributar esses lucros a 15%, e o Projeto de Lei 2.337/2021, que estabelecia alíquotas de até 27,5% (Ministério da Fazenda, 2023, p.7). A mais recente tentativa frustrada foi o texto da MP 1.171/23, incorporado à MP 1.172/23, que reajustou o salário-mínimo. Após negociações políticas, a MP 1.172/23 foi aprovada, sem a inclusão desse ponto (Piovesan et al, 2023).

A lei 14.754/2023 representa um avanço em relação a tentativas anteriores de regulamentar a tributação de investimentos no exterior. Oriunda do Projeto de Lei 4.173/2023, retoma a discussão sobre a tributação de rendimentos obtidos por brasileiros em fundos e outras entidades financeiras estrangeiras, similar ao que foi proposto na Medida Provisória 1171/23. A Exposição de Motivos[22] nº 00105/2023, relativa ao PL 4173/23, destaca a desigualdade e a regressividade do sistema tributário brasileiro. No que diz respeito aos trusts[23], instrumentos usados por famílias de alta renda para planejamento patrimonial e sucessório, aponta que a ausência de regulamentação sobre sua tributação cria insegurança jurídica.

A retromencionada legislação, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2023-2026), conduziu transmutações significativas no regime tributário nacional, especialmente no que concerne à tributação de ativos financeiros no exterior pertencentes a pessoas físicas residentes no Brasil. Isto posto, constata-se que esse novo encargo tributário suplanta a mera arrecadação, forcejando implementar as seguintes políticas públicas: (1) redistribuição de renda; (2) esquivança da evasão fiscal; e (3) fomento à transparência. Outrossim, viabiliza-se proveitos na melhora da competitividade das empresas brasileiras e fortalecimento da cooperação internacional.

Com o objetivo de tornar a tributação mais uniforme e progressiva, o §1º do art. 2º institui uma nova diretriz para a tributação dos rendimentos provenientes de capital aplicado no exterior, instituindo a alíquota única de 15% para esses haveres. O caput do artigo define que os rendimentos de capital obtidos fora do país devem ser declarados separadamente na Declaração de Ajuste Anual (DAA). No caso dos ganhos de capital obtidos por meio de alienação, baixa ou liquidação de bens e direitos localizados no exterior, que não sejam aplicações financeiras, a tributação segue normas específicas previstas na Lei nº 8.981/1995 (Brasil, 2023).

É facultado à pessoa física que possui uma entidade controlada no exterior a escolha pelo regime de transparência fiscal desta instituição, exclusivamente para fins de imposto de renda. Esse regime propende otimizar a tributação e impedir que a offshore seja empregada como um instrumento para adiar a incidência de tributos sobre lucros e rendimentos. A classificação dos bens da offshore como propriedade direta da pessoa física permite à Receita Federal garantir uma tributação mais imediata sobre o patrimônio e os rendimentos provenientes desses ativos (Ministério da Fazenda, 2023, p. 26).

Art. 8º Alternativamente ao disposto nos arts. 5º, 6º e 7º desta Lei, a pessoa física poderá optar por declarar os bens, direitos e obrigações detidos pela entidade controlada, direta ou indireta, no exterior como se fossem detidos diretamente pela pessoa física. (Brasil 2, 2023)

 O § 3º do art. 2º conserva a isenção para a variação cambial de depósitos não remunerados mantidos no exterior, revogando o § 4º do art. 25 da Lei nº 9.250/1995, aprimorando a redação do dispositivo para proporcionar maior segurança jurídica. Os §§ 4º e 5º do art. 2º incluem no Projeto as normas de tributação referentes aos ganhos obtidos com a alienação de moeda estrangeira em espécie, estabelecendo a isenção da incidência do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) até o limite de US$ 5.000,00 (cinco mil dólares americanos) (Brasil, 2023).

O art. 5º aborda questões relacionadas à subtributação dos lucros de sociedades e outras entidades, sejam elas personificadas ou não, localizadas no exterior e controladas por pessoas físicas residentes no Brasil, que se coadunam ao conceito de controlled foreign corporations (CFC), assegurando a tributação periódica desses rendimentos e evitando o deferimento tributário (Brasil, 2023).

Naturalmente, há um desestímulo à sonegação fiscal com uma tributação mais veemente aos rendimentos obtidos no exterior. Na DAA, o cidadão tributante deverá incluir todos os rendimentos provenientes de aplicações financeiras no exterior do ano-base, como juros recebidos e resgates de títulos, tanto de investimentos diretos quanto de empresas offshore, aplicando uma alíquota de 15%. A tributação ocorre quando os lucros são reconhecidos no balanço, independentemente da decisão sobre a distribuição de dividendos. A obrigatoriedade de declarar separadamente esses rendimentos viabiliza um aumento na transparência, na arrecadação e combate à evasão fiscal (Ministério da Fazenda, 2023, p. 4; 10-11).

Insta mencionar ainda que a tributação de trusts fundamenta-se no conceito de transparência fiscal, comumente aplicado em outros países para regulamentar esse instituto. Inicialmente, os ativos transferidos para o trust são considerados como pertencentes ao instituidor. Posteriormente, quando esses ativos são disponibilizados ao beneficiário ou no caso de falecimento do instituidor, eles são transferidos para a titularidade do beneficiário (Ministério da Fazenda, 2023, p. 12).

Art. 10. Para fins do disposto nesta Lei, os bens e direitos objeto de trust no exterior serão considerados da seguinte forma:

I – Permanecerão sob titularidade do instituidor após a instituição do trust; e

II – Passarão à titularidade do beneficiário no momento da distribuição pelo trust para o beneficiário ou do falecimento do instituidor, o que ocorrer primeiro.

(Brasil, 2023)

A legislação em pauta se caracteriza como uma norma redistributiva que visa corrigir as distorções no sistema tributário brasileiro, ao instituir a tributação sobre os rendimentos de investimentos no exterior, em demasia realizados pela classe abastada da sociedade. Essa medida tem como objetivo decrescer a concentração de riqueza e promover uma distribuição mais equitativa dos recursos. O vácuo legislativo anterior produzia injustiças fiscais, à medida que consentia com o acúmulo de capital dos contribuintes de alta renda sem o devido aporte tributário (Ministério da Fazenda, 2023, p. 8).

Pode-se concluir que a tributação de pessoas físicas tem o potencial de introduzir um certo grau de progressividade no sistema, tendo em vista a viabilidade de graduação dos impostos pessoais, em função da renda auferida pelo contribuinte, em contraste com a tributação de empresas, que tendem a ser regressiva. Deste modo, fica evidente que o aprimoramento da administração tributária é fundamental para garantir a qualidade do sistema tributário (Piketty, 2014, p. 632).

5. Considerações finais

A querela sobre a distribuição de riqueza e renda tem sido um ponto crucial nas discussões econômicas, ao longo da história. A ideologia neoliberal do século XX, ao enfraquecer os instrumentos de redistribuição de renda, contribuiu para a formação de uma aristocracia moderna, concentrando riqueza em uma elite econômica. Desse modo, o contexto histórico e político-tributário global evidencia a necessidade da intervenção estatal para alcançar uma sociedade mais alinhada a um ideal democrático.

Como reação às crescentes desigualdades, o Brasil tem intensificado a implementação de programas de transferência de renda. Entretanto, a eficácia desses programas é limitada, uma vez que, isoladamente, não corrigem os desequilíbrios macroeconômicos, funcionando como medidas paliativas. Portanto, torna-se essencial a coadjuvação de políticas tributárias com as de transferência de renda para alcançar resultados mais abrangentes.

Logo, as fissuras centrais do sistema tributário brasileiro afetam não só a distribuição de renda, mas também o crescimento econômico, o nível reduzido de investimentos e a eficiência da carga tributária, especialmente no que diz respeito à tributação do capital e à organização dos tributos sobre bens e serviços.

É certo que a ação primeva das exações é o financiamento do Estado. Todavia este não é o depauperamento de seus efeitos. A tributação tem o potencial de influir na alocação de recursos econômicos e nos comportamentos presentes no sistema fiscal, contribuindo para uma distribuição mais equitativa da renda por meio da extrafiscalidade, dentre outros objetivos econômico-sociais.

Nessa vereda, a extrafiscalidade se revela um instrumental estratégico para a condução das políticas públicas, permitindo que o Estado, por meio da modulação da carga tributária, direcione as atividades econômicas e sociais para o alcance de objetivos específicos. Ao romper com o princípio da neutralidade fiscal cega e irrestrita, a tributação passa a ser utilizada como um mecanismo de intervenção estatal, viabilizando a redistribuição de renda e o desenvolvimento econômico.

Em síntese, a extrafiscalidade, ao transformar o sistema tributário em um instrumento de engenharia social, permite ao Estado direcionar o desenvolvimento econômico e social, promovendo a equidade, a eficiência econômica e a sustentabilidade. Ao adotar uma perspectiva multidimensional da política fiscal, o Estado pode conciliar os objetivos de crescimento econômico com a promoção da justiça social.

Posta assim a questão, frisa-se que a transformação necessária da política fiscal não se resume à simples elevação da carga tributária para alguns segmentos da população e à redução para outros. Ela exige uma análise crítica e uma otimização da eficiência do gasto público, reconhecendo que a forma como o governo aloca os recursos arrecadados é tão importante quanto a maneira de arrecadá-los.

Dessa maneira, a redistribuição de renda eficiente visa a alcançar a igualdade material, uma questão principiológica constitucional, e não somente penalizar os mais abastados, mas acorrer aos menos favorecidos e fomentar o desenvolvimento social.

Nesse contexto, a Lei nº 14.754/23, que dispõe sobre a tributação de aplicações financeiras e rendimentos no Brasil e no exterior, representa um avanço significativo na busca por maior equidade no sistema tributário brasileiro. Essa legislação surge como uma resposta à injustiça fiscal gerada por investimentos em paraísos fiscais, que nada contribuem com a evolução da sociedade e da economia brasileiras.

Com a intensificação da taxação de rendas superiores e a promoção da progressividade fiscal, a normativa busca contribuir para uma distribuição mais justa da riqueza, incorporando dispositivos que promovem maior transparência e evitam a fuga de capitais, assegurando que todos cumpram suas obrigações tributárias, independentemente da localização dos investimentos.

Em linhas gerais, ao tributar rendas que anteriormente escapavam à tributação, essa medida reduz a regressividade do sistema tributário, alinhando-o aos princípios de justiça social e equidade da Constituição de 1988, avançando para um sistema tributário mais justo e eficiente, com uma cobrança tributária mais equitativa e uma diminuição das possibilidades de evasão fiscal.

A desigualdade não é um fenômeno orgânico, mas decorre, em grande parte, das decisões políticas e econômicas adotadas por cada Estado. Este trabalho, de caráter eminentemente teórico, destaca uma problemática que intensifica a natureza multidimensional da inequidade de renda, sem pretender oferecer uma solução definitiva ou uma panaceia para essa questão histórica.

Ao ensejo da conclusão deste artigo, é fundamental reconhecer que a integração entre normas tributárias e direitos fundamentais não apenas reforça a função do sistema tributário como meio de financiamento, mas também o posiciona como um agente ativo na promoção de objetivos sociais. Assim, a tributação pode ser uma ferramenta poderosa para fomentar políticas públicas que visem à justiça social, à sustentabilidade e à igualdade, refletindo um compromisso com a realização plena dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.

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[1]Graduanda do curso de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – UNICEPLAC. E-mail: esterramosdpdf@gmail.com.

[2] Professor do curso de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – UNICEPLAC. Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne).

[3]Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, publicado no DANC de 5 de outubro de 1988, p. 14380-14382.

[4] Em 11 de março de 2020, o surto do SARS-CoV-2 foi caracterizado pela OMS como uma pandemia (OPAS).

[5]O neologismo denota um cenário de estagnação econômica combinada com inflação elevada, além do aumento do desemprego (Banco Mundial).

[6] Estado de Bem-Estar Social (do inglês, Welfare State) é um modelo de governo assistencialista e intervencionista.

[7] A ‘supply-side econonomics’ (economia do lado da oferta), defende que cortes significativos de impostos para indivíduos e corporações, juntamente com a desregulamentação e incentivos para investimentos, podem aumentar a oferta de bens e serviços, levando ao crescimento econômico sem inflação. Baseada na Lei de Say e apoiada por economistas clássicos e monetaristas, essa abordagem também é criticada pelos keynesianos, que acreditam que a demanda agregada é o principal motor da economia.

[8] Corrente ideológica da social-democracia que consiste em propor um modelo econômico que combina a proteção social com a eficiência do mercado, buscando um equilíbrio entre a intervenção estatal e a liberdade econômica.

[9] Expressão Francesa que significa “deixe fazer”. Ela simboliza o liberalismo econômico na sua forma mais pura, defendendo que o mercado deve funcionar sem intervenções do governo. 

[10] Teoria econômica proposta pelo economista Simon Kuznets, que descreve a relação entre o desenvolvimento econômico e a desigualdade de renda em uma sociedade. Segundo essa teoria, o crescimento econômico tende, em primeiro plano, a aumentar a desigualdade de renda. Contudo, no seu estágio mais avançado, observa-se uma diminuição orgânica das disparidades econômicas (Piketty, 2014)

[11] Forma de organização do Estado em que os entes federados são dotados de autonomia administrativa, política, tributária e financeira e se aliam na criação de um governo central por meio de um pacto federativo. O Federalismo surgiu da necessidade, principalmente, de países com grandes extensões territoriais descentralizar o seu poder. Nesses países, há diversidades culturais, climáticas, sociais e econômicas, de modo que as necessidades e prioridades diferem muito de uma região para a outra (Enap, 2017, p. 7).

[12] Países que cobram IGF: Espanha, Noruega, Suíça, Argentina, Bolívia, Uruguai e Colômbia.

[13] O Brasil apresentou proposta no G20 para criar um imposto global sobre grandes fortunas para financiar o enfrentamento das mudanças climáticas e da pobreza extrema, angariando a simpatia de algumas das nações mais poderosas do planeta para a iniciativa. Ministros da Alemanha, da França e da Espanha expressaram entusiasmo pela ideia, e a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), prometeu ajuda para tirá-la do papel (Balthazar, 2024).

[14] Outra forma de estudarmos a desigualdade de rendimentos, além do cálculo do Índice de Gini, é analisando os percentis de renda. Os percentis, decis e quantis são calculados ordenando a população de forma crescente a partir do nível de renda. Se uma economia possui 100 pessoas, por exemplo, ordenam-se essas pessoas por ordem de renda e divide-se a população em grupos com o mesmo número de pessoas. Assim, se existem 10 subsegmentos, temos os decis – cada grupo contendo 10% da população. Por fim, os dados ainda podem ser subdivididos em percentis, neste caso a população é dividida em centésimas partes, cada parte teria 1% dos dados. Para calcular uma medida de distribuição de renda, obtemos a renda apropriada por cada um dos decis da distribuição de renda, juntamente com o último percentil, que é o valor equivalente ao 1% mais rico da população. (PNAD, 2024).

[15]  Vice-presidente de Assuntos Tributários da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) (Agência Senado, Westin, 2021)

[16] Aumento (diminuição) da alíquota conforme o montante sujeito à cobrança aumenta (Rodrigo, 2016)

[17] Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Agência Senado, Westin, 2021)

[18] A doutrina chama de “Estado Fiscal” o modelo de estado cujas necessidades são essencialmente cobertas por impostos. A ideia de Estado Fiscal pode ser entendida como a projeção financeira do Estado de Direito (Neto, 2012, p.67).

[19] Offshore é um termo utilizado para designar “empresas” constituídas no exterior. Essas empresas podem ser uma sociedade limitada, ou uma sociedade por ações, como conhecemos no Brasil. Além disso, a depender da lei do país em que são constituídas, as offshores podem ser constituídas como sociedades ou entidades não personificadas, que não têm equivalente no Brasil, como partnerships, foundations e fundos de investimento com normas bem diferentes dos fundos brasileiros. Nos fundos de investimento com classes de cotas (como os segregated portfolio funds), cada classe de cotas deve ser considerada como uma entidade separada (Ministério da Fazenda, 2023, p. 5).

[20] Os brasileiros podem constituir empresa em qualquer país, seguindo a lei daquele país. No entanto, para investimentos financeiros, tipicamente, as off-shores são constituídas em países que não tributam a renda, ou que a tributam a alíquotas muito baixas, conhecidos como paraísos fiscais. A definição legal de jurisdição de tributação favorecida e de regimes fiscais privilegiados constam do art. 24 e do art. 24-A da Lei no 9.430, de 1996 (Ministério da Fazenda, 2023, p.8).

[21] Diferimento tributário é permitir a postergação do recolhimento do imposto até um momento futuro, que pode demorar muitos anos para ocorrer (Ministério da Fazenda, 2023, p.7).

[22] A exposição de motivos é um texto que acompanha proposições legislativas (p.e. projetos de lei), explicando a proposta e as razões para a edição e aprovação da norma proposta. 

[23] Os trusts são contratos regidos por lei estrangeira que trazem regras de destinação do patrimônio das pessoas que o instituem (“instituidores”) para os seus herdeiros (“beneficiários”). Os trusts funcionam como uma espécie de testamento mais sofisticado. O patrimônio fica em nome de um terceiro, que pode ser uma empresa especializada ou uma pessoa (“trustee”). O trust pode conter termos, encargos e condições para distribuição do patrimônio aos herdeiros (Ministério da Fazenda, 2023, p.12).

A regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


A regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade

Pedro Victhor Gomes Lacerda

Resumo

Nos últimos anos, tem havido um crescente interesse na regulação de tecnologias emergentes, como a inteligência artificial e a blockchain. No entanto, a regulação por meio da tecnologia apresenta desafios únicos, uma vez que essas tecnologias são complexas e dinâmicas, com efeitos imprevisíveis e difíceis de avaliar. A economia da complexidade oferece uma estrutura teórica para entender esses desafios e explorar as possibilidades e limites da regulação pela tecnologia. Este artigo tem como objetivo discutir as implicações da economia da complexidade para a regulação pela tecnologia e destacar as questões críticas que precisam ser abordadas para alcançar uma regulação eficaz e equitativa. Nessa perspectiva, será abordado o papel da regulação na tecnologia, bem como as implicações da regulação pela tecnologia para a governança democrática, a justiça social e a responsabilidade. Por fim, serão apresentadas algumas perspectivas futuras para a regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade.

Introdução

A crescente utilização dos algoritmos em todos os aspectos da nossa vida. A evolução da tecnologia, a popularização de tecnologias pessoais como os computadores e os celulares alinhados com a popularização e o “fácil acesso” à internet colocaram a internet no centro das discussões de várias áreas acadêmicas. Reflexo desse fenômeno, as empresas de tecnologia hoje são posicionadas como as mais influentes do mundo, sendo protagonistas nas discussões que envolvem tecnologia e a proteção de direitos pessoais (ULBRICHT; YEUNG, 2022).

Os governos, universidades e o setor privado vêm fazendo grandes investimentos para não apenas para coletar e armazenar dados, mas também para descobrir maneiras de extrair novos conhecimentos dos crescentes bancos de dados (MEDINA, 2015).

A cultura da alta tecnologia é tomada por um entusiasmo – também movido por interesses capitalistas – que celebra a tecnologia como uma solução mágica para os problemas sociais, ao mesmo tempo em que abraça valores como a individualidade, responsabilidade social e superioridade do poder inovativo do setor privado frente ao poder estatal.

Apesar do entusiasmo com as infinitas possibilidades oferecidas pelo avanço da tecnologia, o crescimento desorganizado das inovações tecnológicas pode trazer riscos à direitos até então bem definidos e protegidos pelo direito.

O avanço da tecnologia e sua relação com a proteção de direitos pessoais e coletivos exige, portanto, uma revisitação às categorias jurídicas e uma adaptação da regulação existente (FRAZÃO, 2017).

Os primórdios da regulação pela tecnologia

Em meados da década de 1990, em um contexto de euforia pós-comunista, com a consolidação do poder político dos Estados Unidos, surgiu no ocidente um novo tipo de sociedade que, ao contrário da experiência comunista recém fracassada, prometia liberdade irrestrita e um ambiente completamente livre das amarras estatais.

O ciberespaço surgiu de uma experiência militar dos Estados Unidos, e prometia um tipo de sociedade que o espaço real nunca permitiria, onde não só as leis do mundo físico não se aplicariam no ambiente virtual, mas, na visão do movimento libertário, o governo por uma questão de legitimidade não poderia regular o ciberespaço.

Lessig (2000) afirma que a mão invisível do ciberespaço – ou seja, o processo espontâneo de desenvolvimento e regulação do ambiente digital – está construindo uma arquitetura exatamente oposta à que existia em sua concepção inicial. Antes vista como um ambiente de liberdade e privacidade, hoje a arquitetura da internet é usada para coletar dados, monitorar comportamentos e controlar informações (PASQUALE, 2015).

Reindeberg (1997) entende que o código atua como uma restrição ao comportamento humano no ciberespaço, cunhando o conceito de “Lex Informatica” como o conjunto de regras para fluxos de informação impostas pela tecnologia e redes de comunicação. De acordo com esse conceito, o código é tratado como lei (code is law), ou seja, a arquitetura do código é tratada como o meio mais eficaz de regulação do comportamento.

Basicamente, duas correntes teóricas divergem acerca do tratamento regulatório da regulação do ciberespaço. O ciberlibertarianismo argumenta que, uma vez que as leis do mundo físico estão sujeitas à territorialidade e jurisdição, não seria possível aplicá-las ao ambiente transfronteiriço do mundo virtual. Não obstante, ainda defendem que haveria uma ilegitimidade legislativa, visto que, sendo o ciberespaço um ambiente único e integrado, não haveria

autoridade ou Estado com legitimidade para impor restrições ao mundo digital. Nesse sentindo, defendem que a regulação digital deve ocorrer por outros meios que não pelos dispositivos jurídicos tradicionais do direito.

O ciberpaternalismo, por sua vez, afirma que as atividades desenvolvidas na internet se assemelham a atividades transnacionais que, se acontecessem no mundo físico, seriam reguladas. Assim, buscam integrar a arquitetura da internet ao contexto fático e jurídico do mundo físico, de modo que as ações praticadas no ciberespaço sejam amparadas pelas mesmas normas do mundo físico, porém com o auxílio de tecnologias adaptativas para o ambiente digital.

Entretanto, Ostercamp (2021) afirma que ambas as correntes apresentam fragilidades, pois assumem implicitamente que o código é capaz de exercer o controle perfeito do ambiente digital, seja por meio da autorregulação, seja por meio de uma autoridade estatal. O autor afirma que o código pode ser contornado, e que o controle imperfeito exercido pelo código deixa lacunas regulatórias que podem ser preenchidas por outros fatores, como a influência das leis, mercados ou normas sociais.

De Fillipi e Hassan (2016), ao tratar da regulação no contexto do blockchain, sugerem uma transição do code is law para o code as law, onde o código pode ser usado para implementar regras específicas no ambiente tecnológico. Entretanto, tal medida também esbarra em limitações provenientes da natureza incompatível do direito com o código. A linguagem utilizada pelo código é específica e literal, enquanto a linguagem jurídica possui uma textura aberta e generalizada, para que o dispositivo legal possa se subsumir às situações da vida cotidiana com maior facilidade, deixando a cargo do julgador a aplicação da norma em cada caso concreto.

Converter a linguagem natural do direito para a linguagem binária do código é um desafio para os juristas e programadores. Apesar de haver exemplos de aplicação desse tipo técnica, como os smart contracts, à medida que o cenário fático se torna mais complexo, também é mais desafiador programar normas que se adaptem a cenários mais complexos e com mais variáveis.

Para além das teorias de code is law e code as law, Ostercamp sugere uma descrição alternativa conhecida como code and law, onde defende que a regulação do ciberespaço não é puramente arquitetônica, mas um híbrido de arquitetura e processo social. Para além da

arquitetura do código, algumas funções regulatórias são determinadas por seres humanos por meio de leis e hierarquias.

Segundo Hidelbrandt (2016), em razão da interdependência entre direito e tecnologia, é fundamental que juristas e cientistas da computação se comuniquem e colaborem de maneira mais cooperativa para que compreendam as perspectivas e necessidades uns dos outros. Tal medida, contudo, envolve uma abordagem interdisciplinar e a atuação de vários outros agentes públicos e privados que têm interesses e objetivos diversos em pauta.

Regulação pela tecnologia

A regulação pela tecnologia, denominada por Ulbricht e Yeung (2022) como “regulação algorítmica”, pode ser definida como as tentativas conscientes de gerenciar riscos ou alterar comportamentos para alcançar um objetivo “pré-especificado”. Essas tentativas ocorrem por meio de procedimentos codificados para solucionar um problema por meio da transformação de dados de entrada em um resultado desejado (YEUNG, 2018).

Esse conceito direciona sua atenção a analisar como os sistemas computacionais são projetados, configurados e implementados para atingir um propósito específico, bem como os impactos sociais causados por esses mecanismos. A dificuldade de compreender o algoritmo em sua totalidade pode levar a uma concepção equivocada do algoritmo como um processo isolado, ou uma falha em perceber como o poder pode ser exercido através da tecnologia (BEER, 2017).

A regulação algorítmica pode ser entendida como um processo que envolve essencialmente três componentes: (i) o estabelecimento de padrões; (ii) a coleta de informações; e (iii) a aplicação de padrões e modificações de comportamento. No primeiro nível, definem-se as normas e os critérios que devem ser atendidos pelo sistema algorítmico para atingir o objetivo determinado; no segundo nível, atua-se de forma reativa (detectando violações com base em dados históricos) ou preditiva (aplicando algoritmos de aprendizado para prever e interferir em comportamentos futuros); por fim, no último nível o sistema pode administrar uma sanção especificada automaticamente ou fornecer assistência a um tomador de decisões humano (YEUNG, 2018).

Hildebrandt (2018) divide a regulação algorítmica em duas: (i) code driven regulation, onde os algoritmos podem operar automaticamente e modificar o comportamento dos usuários

sem a necessidade de intervenção humana direta, e (ii) data driven regulation, onde os algoritmos preditivos usam dados para monitorar e prever comportamentos a fim de fornecer suporte ou aconselhamento de decisão.

Na regulação orientada por código (code driven regulation), o comportamento a ser regulado depende de uma série de condições “se isso” e ações correspondentes “então aquilo” (em inglês, “if this, then that”, ou IFTTT). Ou seja, se uma determinada condição for atendida, uma ação será tomada automaticamente sem a necessidade de intervenção humana. Segundo Hitelbrand, esse tipo de lógica é determinística e previsível, pois quem determina “isso” como condição do “aquilo” decide o output do sistema, que não tem qualquer discrição.

Tais decisões podem ser visualizadas como uma árvore onde, a depender da entrada, os caminhos serão traçados de maneiras diferentes e, consequentemente, a decisões diferentes e pré-determinadas. Entretanto, a regulação nesse contexto depende de como as normas (legais ou não) foram traduzidas para o código de computador.

Quanto à essa questão, Ostercamp (2021) afirma que, embora o código que integre a lei possa permitir a execução automática ex-ante, a generalidade do código e a reatividade das formas tradicionais do direito podem resultar no código ultrapassando o desenvolvimento do direito tradicional, levando ao surgimento cíclico de novas tecnologias que se diferenciam das restrições legais impostas.

Já na regulação orientada por dados (data-driven regulation), o código é informado pelos dados nos quais foi treinado em vez de ser informado por especialistas que traduziram as regras e as colocaram no código. Esse modelo de regulação utiliza técnicas como machine learning e análise de dados para monitorar, prever e influenciar o comportamento das pessoas e organizações.

A regulação orientada por código, como dito, pressupõe saídas pré-determinadas pelo programador, de acordo com a lógica IFTTT. Nesse sentido, é essencial que a estrutura do código que determina suas decisões finais a partir dos inputs gerados pelos usuários seja transparente para que os usuários entendam como as decisões são tomadas e como as regras são aplicadas.

Também é essencial que os usuários tenham a possibilidade de contestar decisões que consideram injustas ou equivocadas, o que só será possível a partir da obtenção de informações acerca do funcionamento do próprio código. No fim das contas, a regulação orientada por

código é um reflexo das decisões humanas automatizadas, de modo que o código não fala por si, mas apenas executa os comandos pré-determinados pelos desenvolvedores que, por sua vez, podem refletir seus próprios vieses e crenças no algoritmo.

Já a regulação orientada por dados, embora seja uma poderosa ferramenta para identificar tendências e padrões, também apresenta riscos significativos. Se os dados utilizados para alimentar o algoritmo não forem representativos ou não incluírem todas as variáveis relevantes, as decisões tomadas com base nesses dados podem ser parciais ou discriminatórias.

Em alguns casos, os algoritmos podem tomar decisões não compreensíveis para o humano. Isso ocorre porque tais decisões são baseadas em modelos matemáticos complexos que podem ser difíceis de compreender até mesmo para especialistas em dados, o que pode tornar a decisão algorítmica ocasionalmente “irrefutável”, não por sua lógica absoluta, mas pela dificuldade de destrinchar os passos que levaram à decisão.

O conjunto desses fatores compõe o processo de regulação algorítmica, onde os sistemas regulatórios são continuamente avaliados e ajustados para garantir a conformidade com os padrões estabelecidos. Entretanto, é preciso refletir sobre como os padrões são estabelecidos e quem é responsável por esse tipo de decisão, pois a depender de quem escolhe a tecnologia e os fins de sua utilização, tanto a estrutura social quanto estatal podem ser alteradas de acordo com a alocação de direitos e de recursos (FRAZÃO, 2017).

O poder social dos algoritmos

Para aprofundar como o algoritmo e seu processo de formação interagem com a sociedade, é preciso, primeiramente, definir como abordá-lo. Existem diversas formas de se tratar o assunto, assumindo o algoritmo como um conjunto de linhas de código, como objetos ou até mesmo como processos sociais.

De toda forma, não é possível separar o algoritmo do contexto social em que está inserido e constantemente aprimorado. Abordá-lo como um objeto puramente técnico que tem como objetivo racionalizar as tomadas de decisão humanas seria ignorar todo o contexto de seu desenvolvimento. Os algoritmos são modelados a partir de visões de mundo e com objetivos previamente definidos que certamente influenciam sua forma de comportamento e os processos de ajustes e recodificação a depender do resultado gerado (BEER, 2017).

Latour (1994), a partir de sua concepção da teoria ator-rede – um conjunto de atores humanos e não-humanos conectados a partir de relações de interdependência –, ajuda a entender como uma ampla variedade de atores (programadores, designers, usuários, dados, plataformas etc.) nesse contexto interagem para criar e moldar o funcionamento do algoritmo.

Portanto, o algoritmo não seria uma entidade autônoma e independente, mas o resultado da interação de pessoas e organizações que participam da sua criação e modificação. Os algoritmos, nessa perspectiva, não são construídos a partir de um conjunto objetivo de dados ou regras, mas sim moldados por interesses, visões de mundo e perspectiva dos atores envolvidos.

Burrell e Fourcade (2021) defendem a existência de uma nova classe na sociedade digitalizada, composta por um grupo formado essencialmente por desenvolvedores de software, CEOs de empresas de tecnologia, investidores e professores de ciência da computação e engenharia, a qual denominam “the coding elite”.

Essa elite tem como principal habilidade a capacidade de entender e criar códigos algorítmicos. A referida comunidade é altamente influente na sociedade digital e circula por diferentes posições de poder em startups, grandes empresas de tecnologia, laboratórios de pesquisa e desenvolvimento e salas de aula. Inclusive os autores definem como problemática a relação entre indústria e academia, tendo em vista que profissionais com papéis estratégicos em grandes indústrias também figuram no corpo docente das mais influentes universidades que contribuem para a criação do conhecimento tecnológico. Tal relação resulta em uma linha tênue entre o conhecimento científico e os interesses corporativos, visto que os precursores das teorias acadêmicas também são os executivos das grandes empresas de tecnologia. Desse modo, há de se questionar até que ponto as discussões acadêmicas não estariam sendo pautadas por interesses empresariais.

A elite do código expõe de forma clara uma segregação epistemológica crucial para entender a regulação algorítmica e o desenvolvimento dos processos tecnológicos: o grau de compreensão do código. Se somente os programadores e profissionais da tecnologia da informação são capazes de compreender a estrutura dos códigos que são utilizados em todos os âmbitos da vida cotidiana, estes se comunicam entre si em uma linguagem não acessível para o restante da sociedade, o que prejudica a forma do diálogo aberto da sociedade quanto aos paradigmas tecnológicos enfrentados atualmente.

Pasquale (2015) afirma que, em razão do contexto de seu desenvolvimento, os algoritmos se tornaram verdadeiras “caixas-pretas”, que dependem de processos computacionais sofisticados e são protegidos como segredos comerciais. Entretanto, esses algoritmos são capazes de exercer ou influenciar tomadas de decisão com consequências substanciais em diversas áreas da sociedade, o que demanda uma maior responsabilidade e, portanto, transparência por parte dos desenvolvedores desses algoritmos.

A abordagem sociológica da construção algorítmica mostra como a construção do código não é linear ou objetiva, mas movida por uma variedade de interesses, atores e contextos que tornam o desenvolvimento do código imprevisível. Nesse sentido, ao abordar a perspectiva econômica da regulação pela tecnologia, é necessário também recorrer à uma abordagem que não seja refém de mecanismos determinísticos ou absolutos, visto que o contexto da evolução tecnológica é formado por uma variedade de fatores e elementos.

A regulação pela tecnologia sob a ótica da economia da complexidade

O desenvolvimento tecnológico de maneira geral e a regulação pela tecnologia podem ter um impacto significativo na economia. Embora sejam nítidos os avanços proporcionados pela tecnologia, o seu mau uso pode trazer sérias consequências em termos de segurança, privacidade, concorrência etc.

Brian Arthur (2013) defende, sob a ótica da economia da complexidade, que o não- equilíbrio é o estado natural da economia, que está sempre aberta a reações. Uma das principais razões desse estado natural de desequilíbrio é a inovação tecnológica.

Arthur (2009) afirma que a economia é uma expressão de suas tecnologias. A economia, segundo o autor, é moldada e influenciada pelas tecnologias que são utilizadas nas atividades econômicas e sociais. As tecnologias moldam a estrutura econômica, enquanto a economia medeia a criação de novas tecnologias.

A economia, portanto, não seria simplesmente um recipiente para as atividades econômicas, mas uma ecologia complexa de tecnologias, decisões e atividades que estão continuamente se reformando e criando nichos de oportunidade para novas tecnologias emergirem. O caráter da economia muda à medida que novas tecnologias são introduzidas e novas oportunidades são criadas.

Os processos tecnológicos também estão ligados à determinismos advindos da economia neoclássica. Mirowski (2002) alerta sobre o surgimento de uma classe de economistas que acreditam que os computadores podem ser usados para criar modelos econômicos precisos e, portanto, prever o comportamento econômico futuro. De acordo com essa linha de pensamento, os economistas argumentam que a grande capacidade de processamento de dados e variáveis podem permitir a construção de modelos econômicos precisos como nunca visto antes.

Esse pensamento é criticado por Skidelski (2020), que afirma que, como os profissionais da tecnologia, economistas acreditam que, com dados e poder de processamento suficientes, podem “quebrar o código” do comportamento humano. Essa prática advém da redução das estruturas sociais à meras transações econômicas e do tratamento do homem como agente racional, ignorando ou reduzindo demasiadamente o impacto das relações sociais e de variáveis endógenas na análise econômica.

Essa crença, segundo Mirowski (2002), é influenciada pelo aumento da confiança na tecnologia e na ciência. Entretanto, é preciso agir com cautela, pois essa crença pode levar a uma confiança excessiva nos modelos econômicos e à negligência de fatores que não podem ser tão facilmente quantificados ou incorporados aos modelos.

O que esses economistas não levam em conta é que, conforme levantado por Burrell e Fourcade (2021), a elite do código utiliza-se de argumentos baseados em economia comportamental e psicologia social para justificar suas decisões, muitas vezes recorrendo a comparações entre tomadores de decisão humanos e ferramentas algorítmicas, mas em testes projetados para favorecer o código.

Apesar de parecerem argumentos cientificamente embasados e objetivos (o que, em tese, blindariam o próprio algoritmo de questionamentos), muitas vezes estes são estruturados de forma a favorecer os interesses técnicos. Ao comparar a eficiência algorítmica com a tomada de decisão humana, não se leva em consideração, por exemplo, que a tomada de decisão algorítmica também pode ser influenciada por preconceitos ou desigualdades originalmente pertencentes aos humanos e refletidas na criação do código.

O uso prático da matemática é um dos fatores que influenciam a utilização do argumento da objetividade do código. Assim como a linguagem matemática ocidental e sua suposta linguagem neutra e objetiva é utilizada como argumento basilar da economia mainstream, os

processos matemáticos por trás dos algoritmos são usados como justificativa para um output

preciso nas tomadas de decisão.

A visão mais aceita sobre as estruturas matemáticas é que estas são realizações racionais e científicas resultadas de um processo produção intelectual cumulativa, de onde surgiu a ciência moderna e, por consequência, realizações tecnológicas disruptivas. Entretanto, não se questiona se tais estruturas tem a capacidade de suprimir a consciência moral dos indivíduos como agentes livres e de valor para a sociedade. Ou seja, o fato de que as estruturas matemáticas são concebidas e implementadas sem levar em consideração as implicações sociais e éticas do comportamento humano pode ter consequências negativas na sociedade (DE CASTRO, 2019).

Ao fazer esse tipo de análise, não se leva em conta outros fatores que não a objetividade matemática da economia neoclássica. Quando essa objetividade pretensiosamente imparcial é aplicada nos modelos regulatórios tecnológicos, o debate sobre regulação pela tecnologia pode se tornar cada vez mais enviesado e, portanto, mais periculoso aos usuários e à toda sociedade.

A análise da regulação tecnológica como propriedade emergente de um sistema maior permite combinar a análise da regulação como resultado de tomadas de decisão intencionais dos agentes com a compreensão das propriedades do sistema no qual a regulação ocorre e que a torna possível (ANTONELLI, 2011).

Desse modo, é necessário refletir sobre a eficiência dos algoritmos não só na regulação de cenários complexos, mas também levando em consideração que o desenvolvimento dos algoritmos e suas utilizações são movidos por diferentes agentes, interesses e objetivos, sendo imperioso tratar do tema de maneira cautelosa e sem abraçar a suposta objetividade por trás dos modelos criados.

Riscos e perspectivas

Diante do cenário tratado, é possível discutir sobre quais são as perspectivas para o uso da tecnologia como regulação, bem como quais riscos estão relacionados à essa utilização, e o que pode ser feito para superar os problemas apresentados.

Pasquale aponta como um dos riscos da regulação algorítmica a discriminação, ou seja, o viés algorítmico utilizado nas decisões. No caso da regulação orientada por código, esse viés já se torna presente na própria estruturação do algoritmo, quando o desenvolvedor impõe seus próprios vieses no código, de modo que a tomada de decisões será feita a partir da visão de

mundo do próprio desenvolvedor. Esse processo pode acontecer tanto de forma inconsciente quanto de forma proposital, porém implícita, já que os interesses dos criadores dos algoritmos podem estar presentes no código de forma a influenciar as decisões finais.

Já no caso da regulação orientada por dados, os algoritmos podem ser treinados em dados que contêm preconceitos ou desigualdades, absorvendo os padrões dos dados de treinamento e usando esses padrões para tomar novas decisões ou formular novos entendimentos.

Se um algoritmo de contratação for treinado com um conjunto de dados que contém uma proporção muito maior de homens do que mulheres, o algoritmo pode aprender a favorecer os candidatos de sexo masculino. A falta de diversidade nos dados de treinamento também pode levar a uma exclusão sistemática de certos grupos sociais.

Como observou Ferguson (2017) ao analisar o uso do processamento de dados nos departamentos de polícia dos Estados Unidos, se os dados históricos refletirem preconceitos ou práticas discriminatórias, os algoritmos podem perpetuar essas práticas e excluir grupos sociais específicos do policiamento adequado e da justiça criminal.

Outro desafio da regulação pela tecnologia é a falta de transparência dos algoritmos. O’Neil (2017) afirma que a falta de explicabilidade dos algoritmos os tornam problemáticos ao dificultar a avaliação de como estão sendo usados e quais as consequências de suas decisões. Se não é possível saber como um algoritmo toma uma decisão, não é possível avaliar se esta é justa ou não.

Kearns e Roth (2019) também aduzem que essa falta de transparência pode levar a uma falta de confiança nos algoritmos. Se as pessoas não entendem como os algoritmos funcionam e como eles chegam às suas conclusões, é menos provável que confiem neles. Isso pode ser especialmente problemático em determinadas áreas, pois o questionamento no funcionamento dos algoritmos pode levar as pessoas a evitar tratamentos ou diagnósticos na área da saúde, ou até mesmo a questionar processos democráticos eleitorais auditados por algoritmos.

Os algoritmos têm sido automatizados para decisões desde a avaliação de crédito até a contratação em um emprego. São muitas decisões que podem alterar significativamente a vida das pessoas e que, até o momento, são bastante obscuras. Desse modo, é urgente a necessidade de obter um grau de transparência nesse processo que dê à sociedade a segurança de que todos estão sendo avaliados de maneira ética, justa e imparcial.

Quanto à responsabilidade algorítmica, existe uma lacuna interpretativa entre o direito e a tecnologia que não deixa claro quem é responsável pelas decisões tomadas pelos algoritmos. Os algoritmos podem ser altamente complexos e envolver uma variedade de processos, o que pode tornar difícil determinar quem é responsável por decisões específicas.

Eubanks (2018) enfatiza que essa questão é especialmente complexa e problemática, pois nos casos de regulação orientada por código, por exemplo, as pessoas que projetam o código não influenciam diretamente em suas decisões. Além disso, se os dados usados para treinamento desses algoritmos estão contaminados em termos de preconceitos e discriminação, qual seria então o grau de responsabilidade de quem coletou os dados e aplicou no algoritmo? Ou de quem apenas estruturou o código?

Essas são questões ainda sem qualquer resposta definitiva, mas que precisam urgentemente serem refletidas à luz dos avanços tecnológicos e da proteção jurídica tutelada pelo direito. De todo modo, a tecnologia continua vinculada à presença humana, nem que de modo a delegar ou transferir a máquinas a capacidade de decidir (FRAZÃO 2017).

Conclusão

Conforme abordado no âmbito deste trabalho, a regulação pela tecnologia está inserida em um sistema complexo, imprevisível e sujeito a mudanças não-lineares, o que pode levar (e tem levado) a consequências imprevistas e indesejadas, enfrentando desafios devido à natureza dinâmica das mudanças tecnológicas.

Há a crescente necessidade de criação de mecanismos institucionais eficazes para controlar o amplo alcance de ameaças, riscos e impactos adversos que os algoritmos podem causar da sociedade e na vida individual. Nesse sentido, Ulbricht e Yeung (2022) consideram que a regulação estatal é uma opção mais eficaz do que a autorregulação, pois oferece garantias e mecanismos regulatórios baseados no poder coercitivo estatal.

É importante evitar uma visão simplista de que a inovação tecnológica ou necessariamente a melhor forma de promover avanços na sociedade. Em verdade, é necessário que se pense de forma criativa e adaptativa sobre como a estrutura das organizações, processos políticos e sociais podem ser melhorados, e como a tecnologia pode contribuir para esse avanço (MEDINA, 2015).

De fato, a tecnologia proporciona avanços científicos e sociais significativos, que são capazes de mudar a vida de uma pessoa ou de toda uma sociedade. Por outro lado, à medida que o avanço tecnológico fornece novas possibilidades de melhoria, também apresenta novos riscos aos direitos tutelados pelo Estado. É preciso, portanto, encontrar o equilíbrio entre inovação tecnológica e proteção a garantias e direitos individuais e coletivos.

Além do mais, conforme aponta Lessig, é preciso observar até que ponto os criadores de código têm um compromisso com a sociedade, e até que ponto sua maior motivação é agradar outros interessados, como acionistas e empresas privadas.

Deve-se, também, levar em consideração o contexto de criação e desenvolvimento das tecnologias, para que os humanos se mantenham no controle final das tecnologias. Ao pensar em regulação por tecnologias, pensa-se em humanos sendo substituídos por máquinas, entretanto, as máquinas muitas vezes são reguladoras ineficazes, especialmente em ambientes complexos.

Enquanto problemas mais simples podem ser solucionados por meio de códigos binários, questões mais complexas ou que envolvem atividades no mundo real geralmente precisam de regulamentação por meio da lei. Portanto, é essencial a busca pelo equilíbrio entre automação e controle humano, pensando, além da inovação por si mesma, nas implicações sociais e políticas da utilização de novas tecnologias.

Referências bibliográficas

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FRAZÃO, Ana. Premissas para a reflexão sobre a regulação da tecnologia: Para que deve servir a regulação da tecnologia? Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e- analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/premissas-para-a-reflexao-sobre-a-  regulacao-da-tecnologia-16112017>.

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YEUNG, Karen. Algorithmic regulation: A critical interrogation. Regulation & Governance,

v. 12, n. 4, p. 505-523, 2018.


Vantagens e Desvantagens do Compartilhamento de Informações sobre Preços de Medicamentos entre Países

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito pelo IDP/DF

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


Vantagens e Desvantagens do Compartilhamento de Informações sobre Preços de Medicamentos entre Países

Andrey Vilas Boas de Freitas

Resumo

O artigo explora o conceito de compartilhamento de preços de medicamentos entre diferentes países, destacando sua relevância no contexto global de saúde e identificando seus impactos econômicos e regulatórios. A prática visa reduzir a desigualdade de preços e melhorar o acesso a medicamentos, especialmente em países de baixa e média renda. São apresentados os objetivos principais do compartilhamento de preços, que incluem a redução de preços de medicamentos, aumento da transparência e promoção de políticas de preços mais justas. A discussão abrange os desafios enfrentados pelos países ao implementar essa prática, como a resistência de empresas farmacêuticas e a variação nas políticas de saúde. O artigo também analisa diferentes modelos de compartilhamento de preços utilizados em diversos países, bem como suas vantagens e limitações, dependendo do contexto econômico e regulatório local. São apresentados exemplos de países que implementaram práticas de compartilhamento de preços, incluindo as iniciativas na União Europeia, oferecendo insights sobre os resultados alcançados e as lições aprendidas. A conclusão resume os principais achados do artigo e discute as implicações futuras do compartilhamento de preços de medicamentos. O artigo conclui que, embora o compartilhamento de preços possa oferecer benefícios significativos, sua eficácia depende de uma abordagem coordenada e adaptada às necessidades locais.

Palavras-chave: Compartilhamento de Preços, Medicamentos, Transparência de Preços, Acesso a Medicamentos, Modelos de Preços, Negociação de Preços, Regulação de Medicamentos.

Introdução

O compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos tem sido amplamente debatido como uma estratégia potencial para promover maior transparência e equidade nos mercados farmacêuticos globais. Com a crescente preocupação sobre os altos custos dos medicamentos e o acesso desigual a tratamentos essenciais, diversas partes interessadas, incluindo governos, organizações internacionais e empresas farmacêuticas, têm explorado a viabilidade dessa prática. O objetivo principal do compartilhamento de preços é permitir uma comparação mais eficiente entre diferentes mercados e promover uma negociação mais justa, reduzindo as disparidades de preços e facilitando o acesso a medicamentos.

Este artigo se propõe a analisar as principais vantagens e desvantagens do compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos, com base no relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). [1] O relatório da OCDE fornece uma visão detalhada sobre como o compartilhamento de preços pode influenciar a política farmacêutica global e quais são os desafios associados à sua implementação. Entre os benefícios identificados, estão a possibilidade de uma maior transparência, a redução das discrepâncias de preços entre países e a promoção de uma concorrência mais saudável no setor farmacêutico. No entanto, também existem desvantagens potenciais, como a resistência das empresas farmacêuticas e as complexidades regulatórias envolvidas.

Ao explorar essas questões, o artigo pretende fornecer uma compreensão abrangente sobre como o compartilhamento de preços pode moldar o futuro da política farmacêutica e quais são as implicações para os países em desenvolvimento e desenvolvidos. A análise se baseia em exemplos práticos e estudos de caso apresentados no relatório da OCDE, destacando as lições aprendidas e as recomendações para uma implementação bem-sucedida desta prática.

Vantagens

1. Fortalecimento da Capacidade de Negociação

Uma das principais vantagens do compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos é o fortalecimento da capacidade de negociação dos países, especialmente daqueles com mercados farmacêuticos menores ou com menor poder de barganha em relação às grandes empresas farmacêuticas. Países com economias mais modestas ou com menor volume de compras tendem a ter dificuldades para negociar preços mais baixos em relação aos medicamentos de alto custo. Sem informações precisas e comparativas sobre os preços praticados em outras regiões, esses governos ficam em desvantagem ao tentar negociar condições mais favoráveis, sendo muitas vezes forçados a aceitar os preços iniciais oferecidos pelos fabricantes.

No entanto, o acesso a dados de preços praticados em outros países pode transformar essa dinâmica. Quando os governos têm à disposição informações sobre os valores pagos por outros países, especialmente aqueles com mercados semelhantes, eles podem argumentar de forma mais eficaz nas negociações. O conhecimento de que uma empresa farmacêutica ofereceu preços mais baixos em uma jurisdição pode ser usado como um ponto de pressão, incentivando a empresa a estender condições semelhantes a outros países. Essa transparência nas informações aumenta a competitividade do mercado e pode forçar os fabricantes a oferecerem preços mais equilibrados e acessíveis.

Além disso, o compartilhamento de informações pode criar uma espécie de “efeito cascata” nas negociações. Se um país consegue negociar um preço mais baixo com base nas informações de outro, esse preço reduzido pode, por sua vez, ser usado como referência para futuros acordos em outras nações. Isso gera uma cadeia de negociações mais favorável globalmente, à medida que mais países passam a se beneficiar dessas informações compartilhadas.

As economias geradas por negociações mais informadas podem ser substanciais. Em muitos casos, os custos com medicamentos representam uma parte significativa do orçamento de saúde pública. Portanto, qualquer redução nos preços dos medicamentos pode liberar recursos que podem ser reinvestidos em outras áreas prioritárias, como a ampliação do acesso a tratamentos ou a melhoria de infraestruturas de saúde. Para países com orçamentos de saúde mais apertados, como nações de baixa e média renda, essa capacidade de negociar preços mais competitivos pode ser crucial para garantir o acesso da população a medicamentos essenciais, especialmente em áreas como doenças crônicas ou medicamentos de alto custo, como aqueles para o tratamento de câncer e doenças raras.

Assim, o compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos não só fortalece a capacidade de negociação dos governos, como também promove uma maior equidade no acesso a medicamentos em diferentes regiões do mundo.

2. Promoção da Transparência

O aumento da transparência nas transações pode desempenhar um papel crucial na redução das disparidades de preços de medicamentos entre países. Atualmente, há uma grande variação nos preços que diferentes países pagam pelos mesmos medicamentos, o que é amplamente influenciado por fatores como o poder econômico, o volume de compras e as políticas de saúde de cada nação. Essas disparidades muitas vezes resultam em medicamentos inacessíveis para países de baixa e média renda, exacerbando as desigualdades globais no acesso a tratamentos essenciais.

Com uma maior transparência, essas discrepâncias podem ser reduzidas, já que os países com menor poder de barganha podem utilizar as informações de preços pagos por países economicamente mais fortes como referência em suas negociações. Isso promoveria uma maior justiça no acesso a medicamentos essenciais, especialmente aqueles voltados para o tratamento de doenças graves, como HIV, câncer e doenças raras, cujos custos elevados tornam o acesso desigual um problema crítico em diversas partes do mundo.

A transparência também contribui para a criação de um ambiente de maior confiança entre governos e fabricantes de medicamentos. A falta de visibilidade nas transações atuais, nas quais muitos acordos de preço incluem cláusulas de confidencialidade que escondem os descontos e rebates aplicados, pode gerar desconfiança e levar a percepções de que as negociações são injustas ou desvantajosas para determinados países. Ao tornar os preços mais visíveis, os governos podem avaliar melhor o que está sendo oferecido e tomar decisões mais informadas, baseadas em dados concretos.

Essa transparência ajuda a nivelar o campo de jogo, tornando as negociações mais equilibradas e menos propensas a serem influenciadas por táticas comerciais desiguais. Além disso, ao revelar os preços reais pagos por outros países, especialmente aqueles com economias e condições de mercado semelhantes, as empresas farmacêuticas podem ser incentivadas a adotar práticas de precificação mais consistentes e justas em diferentes regiões. Isso não apenas cria um ambiente de mercado mais previsível e equitativo, mas também fortalece a percepção pública de que o acesso a medicamentos está sendo tratado de maneira justa.

Outra consequência positiva do aumento da transparência é que ele pode incentivar os fabricantes de medicamentos a se engajarem em práticas comerciais mais responsáveis e éticas. Quando os preços e as condições de venda são transparentes, as empresas têm menos espaço para discriminar entre mercados, e isso pode pressioná-las a oferecer preços mais acessíveis de forma mais ampla. Assim, a transparência pode funcionar como uma força moralizante no mercado, reduzindo as práticas de preços excessivos em países mais vulneráveis.

Em última análise, a transparência não beneficia apenas os governos, mas também as próprias empresas farmacêuticas. Ao fortalecer a confiança nas negociações e promover a previsibilidade no mercado global, as empresas podem construir relações de longo prazo mais sólidas com os governos, minimizando conflitos e facilitando a entrada em novos mercados. Esse ambiente de confiança e cooperação pode, por sua vez, acelerar o acesso de novos medicamentos a mercados globais, beneficiando tanto os fabricantes quanto os pacientes que precisam de tratamentos essenciais.

Portanto, ao promover maior transparência nas transações, não apenas se reduz as disparidades de preços entre países, mas também se cria um ambiente de maior equidade, confiança e justiça, beneficiando tanto os sistemas de saúde pública quanto a indústria farmacêutica.

3. Aprimoramento do Planejamento Orçamentário

Com acesso a informações mais precisas sobre os preços de medicamentos em diferentes mercados, os governos podem otimizar significativamente seu planejamento orçamentário e a alocação de recursos, resultando em uma gestão financeira mais eficiente e estratégica. Quando os responsáveis pelo orçamento da saúde pública sabem exatamente quanto outros países estão pagando por medicamentos semelhantes, eles podem fazer previsões mais realistas sobre os custos que enfrentarão ao negociar com as empresas farmacêuticas. Esse conhecimento permite que o orçamento de saúde seja estruturado com maior precisão, reduzindo a probabilidade de déficits ou de gastos excessivos, especialmente em áreas críticas como a compra de medicamentos de alto custo para doenças crônicas ou raras.

Essa melhoria no planejamento orçamentário é especialmente relevante para países que utilizam mecanismos de preços de referência externos (External Reference Pricing – ERP). O ERP é uma estratégia comum, na qual os preços de medicamentos em um país são estabelecidos com base em benchmarks de preços praticados em outros países. Com informações detalhadas sobre os preços reais — não apenas os preços de lista, mas também os preços líquidos após descontos e reembolsos —, os países podem ajustar seus próprios preços de maneira mais eficaz. Isso lhes confere uma posição mais vantajosa para negociar com fabricantes, reduzindo a possibilidade de pagar mais do que outras nações em situações comparáveis.

Além disso, o uso de dados de ERP mais precisos também evita que os governos tomem decisões orçamentárias com base em preços desatualizados ou irrealistas. Em muitos casos, os preços de referência publicados em plataformas internacionais não refletem os preços reais pagos após as negociações confidenciais entre países e fabricantes. Isso pode levar a uma alocação inadequada de recursos, uma vez que os países, ao se basearem em preços de lista inflacionados, podem reservar mais fundos do que o necessário para a compra de medicamentos, em detrimento de outras áreas prioritárias do sistema de saúde. Com o compartilhamento mais amplo de informações sobre os preços líquidos, os governos podem ajustar essas alocações com base em dados reais, possibilitando um uso mais eficiente dos recursos disponíveis.

Além disso, esse acesso a informações mais precisas permite que os países respondam mais rapidamente às mudanças no mercado de medicamentos. Se um país sabe que o preço de um medicamento específico caiu significativamente em outra jurisdição, ele pode negociar rapidamente condições semelhantes, ajustando seus planos de compra e redistribuindo os recursos economizados para outras áreas de necessidade, como infraestrutura hospitalar, campanhas de prevenção de doenças ou aquisição de novos medicamentos que antes eram inacessíveis devido aos custos elevados.

Por fim, o impacto de um planejamento orçamentário mais refinado se traduz diretamente na capacidade de fornecer acesso mais amplo e equitativo aos medicamentos para a população. Países que gerenciam seus recursos de maneira mais eficiente são capazes de ampliar seus programas de saúde, garantindo que os tratamentos estejam disponíveis para um maior número de pacientes, sem comprometer a sustentabilidade fiscal de seus sistemas de saúde. Assim, o acesso a informações precisas sobre preços em diferentes mercados não é apenas uma ferramenta de controle financeiro, mas um fator determinante na promoção de sistemas de saúde mais justos e eficientes.

Em resumo, a transparência nas informações de preços oferece aos governos uma base sólida para melhorar a alocação de recursos e maximizar o impacto do orçamento da saúde. Isso é especialmente crucial para aqueles que utilizam mecanismos de preços de referência externos, onde o acesso a dados precisos sobre os preços praticados internacionalmente pode fazer a diferença entre um sistema de saúde sustentável e acessível e um sistema sobrecarregado por custos desnecessários.

4. Facilitação de Compras Conjuntas

Iniciativas de compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos têm o potencial de facilitar consideravelmente programas de compras conjuntas entre países, uma estratégia que pode resultar em economias substanciais. Ao se unirem para adquirir medicamentos em volumes maiores, países podem negociar diretamente com os fabricantes de maneira mais competitiva, aproveitando o poder de compra ampliado que esses consórcios proporcionam. Esse aumento no volume total de compras permite que os países obtenham descontos significativos, o que seria mais difícil de alcançar individualmente, especialmente para países menores com menor demanda de mercado.

Quando vários países se unem para negociar conjuntamente, a balança de poder nas negociações se inclina em favor dos compradores, uma vez que as empresas farmacêuticas ficam mais dispostas a oferecer condições de preço mais atrativas em troca do acesso a mercados maiores e de vendas garantidas em maiores quantidades. Esse tipo de coordenação é crucial para os sistemas de saúde que enfrentam desafios financeiros e pressões orçamentárias, particularmente quando se trata de medicamentos de alto custo ou aqueles voltados para o tratamento de doenças raras, onde os preços podem ser exorbitantes.

Essa estratégia é especialmente relevante em iniciativas regionais ou multilaterais, como o EURIPID na União Europeia. O EURIPID (European Integrated Price Information Database) é uma iniciativa cooperativa que visa promover a transparência nos preços de medicamentos em países europeus. Trata-se de uma base de dados não comercial que permite o compartilhamento de informações sobre os preços oficiais de medicamentos entre os países membros. Criado como uma plataforma para ajudar na regulação e definição de políticas de preços de medicamentos, o EURIPID se tornou um recurso valioso para governos que buscam usar informações precisas e atualizadas de preços para melhorar seus sistemas de saúde.

O principal objetivo do EURIPID é fornecer informações padronizadas e comparáveis sobre os preços de medicamentos em diferentes países, facilitando o uso dessas informações em processos de preço de referência externo (External Reference Pricing – ERP). No ERP, os países comparam os preços de medicamentos praticados em outros mercados para definir suas próprias políticas de preços. O EURIPID oferece aos países membros um ponto de referência confiável, permitindo a tomada de decisões mais informadas e baseadas em dados concretos, minimizando o risco de pagar preços inflacionados.

A base de dados EURIPID contém informações detalhadas sobre os preços de medicamentos, como o preço de lista ex-fábrica, que é o valor inicial estabelecido pelo fabricante, geralmente utilizado como referência para negociações posteriores. Esses dados são atualizados regularmente pelos países participantes, o que assegura que as informações sejam precisas e refletiam a realidade do mercado farmacêutico em tempo real. A plataforma é aberta a países da União Europeia (UE), do Espaço Econômico Europeu (EEE), além de outros países europeus que não são membros da UE. Entre os participantes, estão nações como Alemanha, França, Itália, Espanha, Reino Unido, Suécia, Noruega, Suíça e Israel. A participação no EURIPID é voluntária, e cada país pode decidir o tipo de informação que vai compartilhar, embora a maioria dos países opte por compartilhar os preços de medicamentos de venda ao público e os preços máximos regulamentados.

A plataforma permite que os governos obtenham informações sobre medicamentos tanto on-patent (medicamentos patenteados) quanto off-patent (genéricos e similares), oferecendo uma visão ampla do mercado. O foco principal do EURIPID são os medicamentos reembolsáveis, ou seja, aqueles cujos custos são em parte ou totalmente cobertos pelos sistemas de saúde pública dos países.

Um dos grandes benefícios do EURIPID é a transparência que ele proporciona, especialmente em um mercado farmacêutico que, tradicionalmente, tem sido marcado por acordos confidenciais entre fabricantes e governos. Ao ter acesso a preços comparáveis de medicamentos, os países podem evitar pagar mais por um medicamento do que seus vizinhos, promovendo um mercado mais justo e competitivo.

Além disso, a plataforma facilita o intercâmbio de informações entre os governos, criando um ambiente de cooperação que pode levar a iniciativas de compras conjuntas. Isso é particularmente importante para países menores ou com menor poder de compra, que podem negociar preços mais competitivos ao se unir a outros países em grandes aquisições.

Apesar dos benefícios, o EURIPID enfrenta alguns desafios. Um dos principais é a questão da confidencialidade. Muitos países, ao negociar preços com as empresas farmacêuticas, aceitam cláusulas de confidencialidade que impedem a divulgação dos preços reais (preços após descontos e rebates). Como resultado, o EURIPID se baseia principalmente em preços de lista, que podem não refletir os valores finais pagos pelos governos após negociações. Isso limita a eficácia do sistema para países que buscam ter uma visão mais precisa dos preços reais no mercado.

Outro desafio é que nem todos os países membros da UE participam da iniciativa, e a cobertura de certos medicamentos pode ser desigual. Além disso, a complexidade dos sistemas de precificação de medicamentos, que variam significativamente entre os países, torna difícil a comparação direta de preços, mesmo com a padronização dos dados.

O EURIPID é uma ferramenta poderosa para promover a transparência e facilitar a colaboração entre países na área da saúde. Ao permitir o compartilhamento de informações padronizadas sobre os preços de medicamentos, o sistema ajuda a garantir que os governos possam tomar decisões de precificação mais justas e informadas, potencialmente gerando economias substanciais. Ao usar essas plataformas de informação, os países podem não apenas obter acesso a dados precisos sobre o que outros pagam por medicamentos, mas também organizar esforços de compra coletiva para maximizar os descontos disponíveis. Isso cria uma sinergia, onde o conhecimento compartilhado e o esforço coletivo se traduzem em reduções de custos significativas para todos os envolvidos.

Além disso, essas iniciativas multilaterais de compras conjuntas permitem uma melhor distribuição de riscos e responsabilidades entre os países participantes. Quando países compram em conjunto, o risco de flutuações de preços ou de falta de fornecimento é diluído entre as nações envolvidas, proporcionando maior segurança tanto na disponibilidade de medicamentos quanto na estabilidade dos preços. Esse tipo de cooperação também fortalece as relações diplomáticas e econômicas entre os países, uma vez que o sucesso de programas de compras conjuntas depende de uma coordenação eficiente e de confiança mútua.

Para países que enfrentam dificuldades financeiras ou têm um mercado farmacêutico limitado, a participação em programas de compras conjuntas é uma oportunidade estratégica de obter acesso a medicamentos que, de outra forma, seriam inacessíveis devido aos altos custos. O impacto disso é particularmente relevante para medicamentos inovadores ou de última geração, como os tratamentos para câncer, medicamentos biológicos ou terapias para doenças raras, cujos preços podem ser proibitivos em negociações individuais.

Por fim, a economia gerada por essas compras conjuntas pode ser reinvestida em outras áreas do sistema de saúde, melhorando o acesso a tratamentos, fortalecendo a infraestrutura hospitalar, ou expandindo programas de prevenção e educação em saúde. O sucesso dessas iniciativas regionais e multilaterais, como o EURIPID, serve de modelo para outros países e regiões que buscam formas de reduzir os custos com medicamentos enquanto garantem um fornecimento sustentável e equitativo para suas populações.

Em suma, o compartilhamento de informações de preços e a organização de compras conjuntas entre países não apenas ampliam o poder de negociação, mas também promovem uma gestão mais eficiente dos recursos públicos. Através de iniciativas como o EURIPID, os países podem maximizar os benefícios econômicos e logísticos de comprar em grande escala, fortalecendo seus sistemas de saúde e ampliando o acesso da população a medicamentos essenciais.

Desvantagens

1. Barreiras Legais e Contratuais

Um dos maiores desafios para o compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos são, sem dúvida, as barreiras legais e contratuais que permeiam o setor farmacêutico global. Essas barreiras são formadas por uma combinação de acordos confidenciais estabelecidos entre governos e fabricantes de medicamentos, além de legislações nacionais que protegem essas transações, tornando difícil a implementação de um sistema de compartilhamento de preços que seja verdadeiramente funcional e transparente.

As barreiras legais são especialmente problemáticas, uma vez que cada país possui suas próprias regulamentações sobre transparência de preços e divulgação de dados comerciais. Em muitos países, os preços dos medicamentos estão sujeitos a regulamentações rigorosas que incluem a proteção de segredos comerciais. Isso significa que os governos, mesmo quando conseguem negociar preços mais baixos através de descontos e rebates, não podem legalmente divulgar esses valores, pois estão obrigados a manter sigilo sobre as condições específicas dos acordos com os fabricantes.

A legislação de proteção ao segredo comercial é amplamente aplicada para resguardar os interesses comerciais das empresas farmacêuticas, que alegam que a divulgação de preços negociados poderia prejudicar sua competitividade em diferentes mercados. Por exemplo, se uma empresa oferece um desconto substancial para um país, mas esse preço se torna público, outros mercados podem exigir o mesmo desconto, o que poderia reduzir significativamente a margem de lucro da empresa em regiões mais rentáveis. Por isso, as cláusulas de confidencialidade são usadas para proteger essa informação e impedir a criação de precedentes internacionais que possam comprometer suas estratégias de precificação.

Além disso, em alguns países, há leis específicas que obrigam os governos a manterem confidenciais os detalhes dos acordos de compra de medicamentos. Em nações como os Estados Unidos, por exemplo, a Lei de Segredos Comerciais impõe restrições severas à divulgação de informações comerciais sensíveis, incluindo preços de medicamentos após negociações. Esse tipo de legislação torna praticamente impossível que as autoridades de saúde compartilhem informações sobre os preços reais que estão pagando, mesmo que isso fosse benéfico para o mercado global.

No âmbito contratual, muitos acordos firmados entre governos e fabricantes de medicamentos incluem cláusulas de confidencialidade estritas, que proíbem a divulgação pública dos preços acordados após descontos, rebates ou qualquer outro tipo de concessão financeira. Esses acordos são rotineiramente utilizados em negociações envolvendo medicamentos de alto custo, onde os fabricantes oferecem descontos consideráveis para garantir a venda de seus produtos, mas exigem que esses valores sejam mantidos em sigilo para proteger seus interesses em outros mercados.

Essas cláusulas contratuais são projetadas para proteger os modelos de precificação discriminatória que as empresas farmacêuticas utilizam globalmente. Esse modelo permite que os fabricantes ajustem os preços de acordo com a capacidade de pagamento de cada país ou região, o que, em teoria, pode tornar medicamentos acessíveis em mercados mais pobres. No entanto, a manutenção desses acordos confidenciais impede que os governos de outros países tenham acesso a informações reais de preços, o que poderia ajudá-los a negociar de forma mais eficiente e justa.

Ademais, a existência de cláusulas de confidencialidade em praticamente todos os grandes acordos de compra de medicamentos limita a cooperatividade internacional. Mesmo que alguns países estejam dispostos a compartilhar informações, eles ficam legalmente impedidos de fazê-lo devido às restrições contratuais. A quebra dessas cláusulas pode resultar em litígios jurídicos onerosos, além de prejudicar as relações entre governos e fabricantes, o que dissuade os países de compartilhar dados sensíveis, mesmo em redes fechadas de cooperação.

Essas barreiras legais e contratuais tornam a criação de um sistema de compartilhamento de preços de medicamentos amplamente funcional um desafio considerável. Embora exista um interesse crescente por parte dos países em aumentar a transparência nos preços, as restrições impostas pelos acordos comerciais e pela legislação interna limitam drasticamente o que pode ser compartilhado. Para que um sistema internacional de compartilhamento de informações de preços seja viável, seria necessário uma série de reformas legais e regulatórias em muitos países, além de uma reestruturação significativa dos contratos comerciais com as indústrias farmacêuticas.

Um exemplo claro desse desafio é o fato de que, mesmo em iniciativas regionais, como o EURIPID na União Europeia, os países compartilham principalmente preços de lista de medicamentos, que muitas vezes não refletem os valores reais pagos após as negociações. Os preços de lista, que são os preços iniciais oferecidos pelos fabricantes, podem ser muito mais elevados do que os preços finais, o que limita a utilidade dessas informações para outros países que estão tentando negociar. A falta de transparência sobre os preços líquidos — aqueles que refletem descontos e concessões — impede que o sistema de referência de preços funcione de forma eficaz.

Além disso, qualquer esforço para criar um sistema de compartilhamento funcional exigiria que as empresas farmacêuticas estivessem dispostas a renegociar suas cláusulas de confidencialidade e aceitassem uma maior transparência, o que não é fácil de alcançar. As empresas têm fortes incentivos para manter seus preços confidenciais, já que isso lhes permite ajustar estrategicamente os preços conforme o mercado, maximizando seus lucros.

Portanto, as barreiras legais e contratuais representam um dos maiores obstáculos para o compartilhamento efetivo de informações sobre preços de medicamentos. Embora haja um movimento global em prol da transparência e da cooperação internacional, a proteção dos interesses comerciais e os acordos confidenciais permanecem desafios formidáveis. Superar esses obstáculos exigirá um diálogo constante entre governos, reguladores e a indústria farmacêutica, bem como a implementação de políticas internacionais que possam equilibrar a necessidade de transparência com a proteção de informações comerciais sensíveis.

2. Desalinhamento de Interesses Entre Países

Nem todos os países estão dispostos a compartilhar as informações de forma igualitária, e esse desequilíbrio de interesses representa um dos maiores desafios para a implementação de iniciativas globais de compartilhamento de preços de medicamentos. Embora exista um interesse claro por parte de muitos governos em acessar informações sobre os preços pagos por outros países, principalmente para melhorar sua capacidade de negociação, apenas uma minoria está disposta a divulgar seus próprios dados. Esse desalinhamento de incentivos cria uma barreira significativa à viabilidade de sistemas cooperativos de transparência de preços.

Muitos países, especialmente aqueles com menos poder de compra ou economias menores, veem o acesso a informações de preços internacionais como uma oportunidade crucial para nivelar o campo de negociação com as grandes empresas farmacêuticas. Para essas nações, saber quanto outros países pagam pelos mesmos medicamentos é uma forma de garantir que não estão sendo penalizadas com preços inflacionados. Elas podem usar esses dados para pressionar por condições mais justas e para assegurar que seus cidadãos tenham acesso aos medicamentos a um custo sustentável.

Por outro lado, os países que conseguem negociar preços significativamente mais baixos, muitas vezes devido ao seu poder de mercado ou ao volume de compras, são relutantes em compartilhar essas informações. Isso se deve, em parte, ao medo de perder sua vantagem competitiva nas negociações com a indústria farmacêutica. Se os preços que eles negociaram forem tornados públicos, outros países podem exigir os mesmos descontos, o que poderia comprometer os benefícios que esses países conseguiram em suas negociações exclusivas.

Além disso, países com economias maiores e mais robustas, que muitas vezes são capazes de negociar diretamente com grandes descontos, temem que, ao compartilhar essas informações, possam afetar negativamente seus relacionamentos comerciais com as empresas farmacêuticas. Esses fabricantes, ao perceberem que seus descontos estão sendo divulgados internacionalmente, poderiam se tornar mais reticentes em conceder reduções substanciais no futuro, prejudicando assim os acordos exclusivos que esses países desfrutam.

Esse desalinhamento entre o interesse em acessar dados e a disposição para compartilhá-los cria um grande impasse para a criação de um sistema global de compartilhamento de preços. Para que essas iniciativas sejam eficazes, é necessário que haja reciprocidade — ou seja, todos os países que se beneficiam do acesso às informações devem estar dispostos a fornecer seus próprios dados. Quando essa reciprocidade não é alcançada, o sistema perde legitimidade e eficácia, já que apenas uma parte das informações estará disponível para os demais participantes.

Esse cenário de interesses conflitantes também coloca em risco a confiabilidade e a abrangência dos dados que são compartilhados. Se apenas alguns países estiverem dispostos a divulgar seus preços, e outros optarem por manter sigilo, o valor dos dados disponíveis será reduzido, dificultando a criação de uma base de dados sólida que possa realmente apoiar as negociações globais e regionais. Além disso, a falta de cooperação entre os países mais influentes no mercado farmacêutico pode dissuadir nações menores de participarem dessas iniciativas, uma vez que não há garantias de que obterão as informações que realmente precisam.

Por exemplo, em iniciativas como o EURIPID e outras plataformas regionais de compartilhamento de preços, esse desequilíbrio já é visível. Alguns países participantes estão dispostos a compartilhar apenas preços de lista, que muitas vezes não refletem os preços reais após descontos e rebates. Enquanto isso, países que desejam acessar informações sobre preços líquidos — aqueles que mostram o valor final pago, incluindo descontos — frequentemente ficam frustrados, já que as informações de que realmente precisam não estão disponíveis devido às restrições contratuais e legais impostas por outros membros do sistema.

O efeito desse desalinhamento de interesses na viabilidade de iniciativas globais de compartilhamento de preços é profundo. A confiança é um componente essencial para o sucesso dessas iniciativas, e quando alguns países não estão dispostos a compartilhar informações importantes, isso enfraquece a confiança mútua entre os participantes. Sem um acordo claro de que todos os membros de uma iniciativa de compartilhamento de informações estarão comprometidos com a reciprocidade, será difícil estabelecer um sistema funcional que possa beneficiar todos os envolvidos.

Além disso, a falta de compartilhamento equitativo de informações também pode aumentar as desigualdades globais no acesso a medicamentos. Países com maior poder de compra continuarão a negociar preços mais baixos em segredo, enquanto aqueles com menos influência terão que pagar preços mais elevados, perpetuando as disparidades no acesso a medicamentos essenciais. Essas dinâmicas minam os objetivos fundamentais das iniciativas de compartilhamento de preços, que são justamente promover a equidade e melhorar o acesso global a medicamentos.

Por fim, é importante reconhecer que, sem um maior equilíbrio entre o interesse em acessar e a disposição em compartilhar informações, essas iniciativas correm o risco de se tornarem ferramentas incompletas e, em última análise, ineficazes. A construção de um sistema de compartilhamento global de preços de medicamentos exigirá compromissos tanto de países grandes quanto pequenos, além de reformas nas práticas de negociação e políticas de transparência que incentivem todos a contribuir igualmente.

O desalinhamento entre os países no que diz respeito ao compartilhamento de informações de preços de medicamentos é uma barreira significativa para a criação de um sistema global funcional e eficaz. Embora muitos estejam ansiosos para acessar esses dados, a relutância de alguns em compartilhar suas próprias informações impede o desenvolvimento de um sistema verdadeiramente transparente e equitativo. Superar essa barreira exigirá diálogo internacional, confiança mútua e compromissos recíprocos, além de uma reflexão profunda sobre a importância da transparência para o bem-estar global e o acesso justo a medicamentos.

3. Impacto no Acesso a Medicamentos

Há preocupações significativas de que a maior transparência nos preços de medicamentos possa, em certos casos, ter o efeito inverso ao desejado, levando ao aumento dos preços em mercados que atualmente pagam menos pelos mesmos medicamentos. Embora a transparência seja geralmente vista como uma medida que promove equidade e justiça no acesso, o comportamento das empresas farmacêuticas em um ambiente mais transparente pode acabar criando dinâmicas de precificação mais complexas e, potencialmente, prejudiciais a determinados mercados.

Quando as informações sobre os preços negociados em diferentes países são tornadas públicas, existe o risco de que os fabricantes de medicamentos reajam negativamente. Esses fabricantes, ao verem que seus descontos concedidos em determinados mercados estão sendo divulgados, podem adotar uma postura defensiva, temendo que outros países exijam os mesmos preços reduzidos. Em resposta, as empresas podem tentar ajustar suas estratégias de precificação para minimizar as perdas, o que pode resultar em aumentos de preços em mercados que anteriormente pagavam menos.

Esse fenômeno pode ocorrer porque as empresas farmacêuticas, ao enfrentar a pressão para igualar os preços em vários mercados, podem optar por nivelar os preços por cima, elevando os preços nos mercados que atualmente desfrutam de condições mais favoráveis. Esse comportamento é particularmente relevante para países de baixa e média renda, que muitas vezes recebem medicamentos a preços mais baixos como resultado de negociações individualizadas ou de políticas diferenciadas de precificação. No entanto, se as empresas começarem a perceber que esses preços mais baixos estão sendo comparados globalmente, podem ser menos propensas a oferecer tais concessões no futuro, buscando um modelo de precificação mais uniforme e, potencialmente, mais elevado.

Os fabricantes de medicamentos podem, de fato, resistir a acordos de preço mais baixos ao saber que, em um ambiente de maior transparência, esses valores podem se tornar públicos e repercutir em outros mercados. A indústria farmacêutica – que historicamente adota estratégias de discriminação de preços, ou seja, ajusta os preços conforme o poder aquisitivo e as características de cada mercado – pode ser forçada a rever essa abordagem. Se os preços reduzidos para mercados mais vulneráveis forem revelados, os países economicamente mais fortes podem pressionar por condições similares, ameaçando a margem de lucro das empresas nos mercados mais rentáveis.

Nessa situação, os fabricantes podem, em vez de continuar a conceder descontos, adotar uma postura mais rígida, optando por uniformizar os preços em um patamar mais elevado, eliminando as grandes diferenças entre países. Em última análise, essa reação pode desfavorecer os mercados que hoje conseguem negociar preços mais acessíveis, já que a divulgação de dados pode levar os fabricantes a tentarem evitar perdas em mercados mais lucrativos, impondo condições menos favoráveis em todos os lugares. Esse tipo de ajuste estratégico na precificação global pode prejudicar diretamente os países que mais dependem de preços baixos para garantir o acesso a medicamentos essenciais.

A precificação discriminatória tem sido uma prática comum no setor farmacêutico, permitindo que os fabricantes ajustem os preços de acordo com a realidade econômica de cada país. Em muitos casos, isso permite que países de baixa e média renda obtenham medicamentos a preços mais acessíveis, enquanto os países mais ricos pagam valores mais altos. No entanto, a transparência pode desequilibrar essa estratégia, já que as nações mais ricas, ao terem acesso a informações sobre os preços mais baixos praticados em mercados menos favorecidos, podem exigir a mesma redução de custos.

Por exemplo, um medicamento que é vendido a um preço reduzido em um país de baixa renda pode ser alvo de negociações em países desenvolvidos que querem igualar esse valor. Nesse cenário, as empresas podem se sentir pressionadas a reequilibrar seus modelos de precificação. Elas podem tentar compensar a perda potencial em mercados de alta renda elevando os preços nos países que, anteriormente, tinham vantagens ao negociar em condições mais favoráveis.

Além disso, a pressão para manter a lucratividade global pode levar as empresas a repensarem suas políticas de descontos, o que prejudicaria especialmente os mercados que dependem desses descontos para garantir o acesso a medicamentos caros, como os tratamentos de doenças raras e os medicamentos oncológicos. O resultado pode ser um acesso reduzido em países mais vulneráveis, justamente o oposto do que as políticas de transparência pretendem alcançar.

A resistência dos fabricantes a acordos de preço mais baixos, com medo de que esses valores se tornem públicos, também pode ter consequências políticas. Os governos, especialmente em mercados de alta renda, podem se ver pressionados por suas populações a reduzir os custos dos medicamentos, com base nas informações transparentes que indicam que outros países estão pagando menos pelos mesmos produtos. Isso pode levar a conflitos nas negociações entre governos e empresas farmacêuticas, que buscarão proteger suas margens de lucro, e, como consequência, pode retardar o acesso a medicamentos em certos mercados enquanto as negociações se arrastam.

Além disso, a transparência pode gerar instabilidade nos mercados farmacêuticos globais, à medida que as empresas tentam reformular suas estratégias de precificação para evitar os efeitos da divulgação de dados sensíveis. Isso pode causar incertezas sobre os preços de novos medicamentos e tornar as negociações mais difíceis, especialmente em um ambiente em que os governos estão cada vez mais preocupados com a sustentabilidade dos sistemas de saúde e a escalada dos custos dos medicamentos.

Embora a transparência nos preços de medicamentos seja, em teoria, uma ferramenta poderosa para promover a equidade e o acesso global, há preocupações legítimas de que ela possa levar a efeitos colaterais indesejados, como o aumento dos preços em mercados que atualmente pagam menos. O comportamento defensivo dos fabricantes, que podem resistir a conceder descontos ou ajustar seus preços globalmente para proteger seus lucros, pode minar os objetivos de políticas de transparência e resultar em condições menos favoráveis para os mercados mais vulneráveis. A transparência precisa, portanto, ser implementada com cautela, considerando as complexidades do mercado farmacêutico global e os incentivos comerciais das empresas, para garantir que os benefícios superem os riscos e que o acesso a medicamentos seja realmente ampliado de forma equitativa.

4. Complexidade das Negociações

O compartilhamento de informações de preços pode tornar as negociações com fabricantes mais complexas, pois as empresas podem ajustar suas estratégias globais de precificação. Isso pode criar desafios para os países, que precisariam equilibrar a transparência com a proteção de sua capacidade de obter descontos confidenciais.

Esse equilíbrio é essencial, já que muitos países enfrentam barreiras legais e contratuais para compartilhar preços reais. Enquanto a transparência de preços ajuda a melhorar a accountability e a reduzir custos em saúde, a divulgação irrestrita de preços pode expor informações estratégicas, levando os fabricantes a aumentarem os preços em países com maior capacidade de pagamento para compensar eventuais descontos em países com menor capacidade. Isso pode inviabilizar acordos de preços confidenciais, que muitas vezes são necessários para garantir o acesso a medicamentos de alto custo, como remédios para doenças raras e medicamentos órfãos.

Além disso, o aumento da complexidade das negociações internacionais de preços pode influenciar a sustentabilidade dos sistemas de saúde, especialmente em mercados menores que dependem da capacidade de negociação coletiva ou de acordos regionais. Diversos países preferem compartilhar informações em redes fechadas e controladas, em vez de divulgá-las publicamente, como uma forma de mitigar o impacto negativo que a divulgação aberta dos preços pode ter sobre as negociações e a estabilidade de mercado.

Conclusão

O compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos entre países oferece várias vantagens, incluindo o fortalecimento da negociação e a promoção da transparência. A troca de dados permite que países, especialmente aqueles com menor poder de barganha, se beneficiem de negociações mais informadas e estratégias de precificação baseadas em referências internacionais. Além disso, ao promover a transparência, pode-se reduzir a assimetria de informações que favorece os fabricantes, melhorando a eficiência dos gastos públicos com saúde e facilitando o acesso a medicamentos essenciais.

No entanto, as barreiras legais e o desalinhamento de interesses entre os países representam desafios significativos para a implementação de um sistema eficaz de compartilhamento de preços. Conforme detalhado no relatório da OCDE, muitos países enfrentam restrições legais que impedem a divulgação de preços reais devido a cláusulas de confidencialidade inseridas em acordos contratuais com fabricantes. Essas cláusulas muitas vezes são fundamentais para assegurar descontos ou condições vantajosas de fornecimento, especialmente em mercados de medicamentos de alto custo, como os medicamentos órfãos e de terapias avançadas.

Outro obstáculo importante é o desalinhamento de interesses entre os países. Países com maior capacidade econômica podem não estar dispostos a compartilhar seus preços reais, temendo que isso impacte negativamente suas negociações futuras. Como o relatório aponta, mesmo que haja interesse em acessar informações de outros países, há uma relutância significativa em compartilhar os próprios dados, o que cria um ciclo de falta de cooperação que limita a efetividade de iniciativas de transparência.

Para que essa prática seja viável, será necessária uma colaboração internacional cuidadosa e ajustes nas regulamentações que governam a confidencialidade dos preços. Países terão que trabalhar juntos para criar mecanismos que equilibrem a transparência com a necessidade de proteger negociações estratégicas. Um exemplo de solução pode ser a criação de redes fechadas de compartilhamento de informações, nas quais os dados são trocados de forma confidencial entre autoridades competentes. Além disso, mudanças nas legislações nacionais, como a revisão de cláusulas de confidencialidade e a flexibilização das normas de transparência, serão essenciais para superar as barreiras legais e criar um ambiente de maior cooperação global.

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MOENS, Marjolijn; BARRENHO, Eliana; PARIS, Valérie. Exploring the feasibility of sharing information on medicine prices across countries. OECD Health Working Papers No. 171. Paris: Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD), 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1787/5e4a7a47-en.

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VOGLER S, SCHNEIDER P, ZIMMERMANN N. Evolution of Average European Medicine Prices: Implications for the Methodology of External Price Referencing. Pharmacoecon Open. 2019 Sep;3(3):303-309. doi: 10.1007/s41669-019-0120-9. PMID: 30721410; PMCID: PMC6710305.

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[1] Moens, M., E. Barrenho and V. Paris (2024), “Exploring the feasibility of sharing information on medicine prices across countries”, OECD Health Working Papers, No. 171, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/5e4a7a47-en.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


Ética Profissional e regulamentação normativa aplicados ao marketing jurídico

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayer – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


Ética Profissional e regulamentação normativa aplicados ao marketing jurídico

Carolina Mendonça Guimarães de Alencar Meneses

Resumo: Esta pesquisa visa realizar uma análise aprofundada da ética profissional aplicada ao marketing jurídico no Brasil, destacando a importância dessa temática no contexto legal atual. Serão examinados os regulamentos e legislações em vigor que influenciam a prática do marketing jurídico na advocacia, com o objetivo de proporcionar uma compreensão mais ampla da necessidade de regulamentação dessa área à luz da ética profissional da classe advocatícia. O estudo abordará temas de grande relevância, incluindo a exploração do conceito de ética na advocacia e sua aplicação normativa, os limites estabelecidos para o marketing jurídico, e um breve estudo histórico da regulamentação da advocacia no Brasil. Ao combinar análises teóricas e a revisão da literatura e das normativas atuais, pretende-se promover uma compreensão esclarecedora da interseção entre marketing jurídico e ética profissional, ressaltando a importância da regulação para manter a integridade da advocacia.

Abstract: This research aims to conduct an in-depth analysis of professional ethics applied to legal marketing in Brazil, highlighting the importance of this subject in the current legal context. It will examine the regulations and legislation in force that influence the practice of legal marketing in the field of law, with the objective of providing a broader understanding of the need for regulation in this area in light of the professional ethics of the legal profession.The study will address highly relevant topics, including the exploration of the concept of ethics in the legal profession and its normative application, the established limits for legal marketing, and a brief historical study of the regulation of the legal profession in Brazil. By combining theoretical analyses and a review of current literature and norms, the aim is to promote a deep understanding of the intersection between legal marketing and professional ethics, emphasizing the importance of regulation to maintain the integrity of the legal profession.

Keywords: Legal Marketing. Regulation. Professional ethics. Law.


Introdução

Este trabalho se propõe a examinar e apresentar a matéria ética e regulatória no que se refere ao marketing jurídico. Com o atordoante novo número de profissionais que exercem regularmente a advocacia no Brasil, formado por cerca de 1,3 milhão de advogados até 2022[1] segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ordem dos Advogados do Brasil, 2022), o marketing jurídico permitiu que fosse possível gerar destaque e acentuar o diferencial desses profissionais e respectivos escritórios, frente ao mercado sobrecarregado. Contudo, com o advento das mídias sociais e da publicidade jurídica por essas vias, a regulação da publicidade advocatícia é cada vez mais questionada.

Nesse sentido, esta pesquisa objetiva demonstrar a necessidade de regulação do marketing jurídico, e explicar seus limites com ênfase na conformidade ética profissional, considerando o caráter social da profissão do advogado, o ambiente cada vez mais competitivo e digitalizado no qual ele está inserido e a necessidade de manutenção da discrição e sobriedade inerentes à classe. Dispõe-se também em chegar a uma conclusão no que se refere ao caráter da regulamentação da OAB, apontando se esta é satisfatória ou não, assim como sobre se uso do marketing no contexto jurídico trata-se de algo benéfico para a imagem do advogado e da advocacia. Não há a pretensão, dessa maneira, esgotar todas as nuances do tema, mas sim de oferecer uma visão esclarecedora sobre a relação entre ética profissional e a regulamentação do marketing jurídico, sendo contemplado apenas aquilo que se relaciona com a temática escolhida.

Imbuída dessas visões, trata-se de uma pesquisa exploratória com ênfase na bibliografia estrangeira e nacional, a primeira especialmente apontada aos países que compõem o continente Europeu, pelos conceitos fornecidos em ética. Em âmbito nacional, observou-se sobretudo artigos disponíveis sobre a temática do marketing jurídico. Para a coleta e análise das normativas foi visitado, especialmente, o sítio eletrônico da Ordem dos Advogados do Brasil, a fim de revelar as práticas reguladoras imperantes.

Nessa linha, cabe ainda destacar que servirá como referencial teórico o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados, instituído pela Lei 8.906 de 1994, como base necessária para o presente estudo devido a sua conexão tanto com a ética quanto com o marketing jurídico a ser estudado. Na mesma linha, é importante também indicar os provimentos da Ordem dos Advogados do Brasil assim como outras normativas editadas por esta, com destaque nos Provimentos 75/1992, 94/2000 e 2005/2021, focados na regulação da publicidade advocatícia.

No âmbito da ética profissional, muitos dos conceitos trazidos da escrita de Antônio Lopes de Sá em sua obra serão apreciados neste estudo, assim como os apontamentos do Professor Saul Tourinho Leal, por meio de seu artigo “O Advogado e a Ética”.

Por fim, cabe apontar que o estudo está estruturado de forma a tratar em seu primeiro capítulo da ética profissional no âmbito da advocacia, sequencialmente fala-se do marketing jurídico e ao final trabalha-se a regulamentação trazida pela OAB. Em cada um dos capítulos, traz-se conceitos e análises que visam contribuir para os objetivos do trabalho, objetivos estes revisados e demonstrados satisfeitos nas considerações finais.

1. A ética profissional no âmbito da advocacia

Na aurora da Grécia Antiga, os termos ηθοs e eεθοs (éthos e ethos) surgiram trazendo dois significados diferentes, porém complementares, que diferenciam-se dependendo da grafia utilizada. Segundo Risostomo, Varani e Pereira (2018, p. 25) existem duas formas de escrever e de entender os termos que deram origem à palavra ética: o primeiro, ethos com eta (letra “e” – Η η – em minúscula), é o sentido mais antigo da palavra e significa “morada”, “abrigo”, ou “lugar que se habita” (Figueiredo, 2008, p. 2) podendo vir a ser interpretado como o lugar onde vive o “eu real”, encontrando-se as características que constroem um indivíduo, como seus comportamentos, seus hábitos e sua disposição. Nesse sentido, cada um tem sua própria ética (Nicolescu et al., 2000, p. 56)[2].

Diferentemente, o conceito de Ethos com épsilon (Ε ε – letra E em maiúscula) afasta-se deste, já que vem a significar “costume”, “modo de ser” ou “caráter” (Spinelli, 2009, p. 16), tratando-se muito mais de um ethos social voltado ao “nós” e não ao “eu”, sendo a partir desta concepção que se torna possível a construção de uma ética profissional. Assim discorre Eugênio (2012, p. 22):

A ética profissional pode ser definida como um conjunto de normas ou condutas que deverão ser postas em prática no exercício de qualquer profissão. Ela tem por objetivo alimentar a relação de profissional e cliente trazendo uma segurança quanto ao comportamento humano e social principalmente do profissional, a ética sempre tem que visar à dignidade humana e à construção do bem-estar no contexto social-cultural onde exerce sua profissão.

Nota-se assim que a profissão tem além de sua utilidade para o indivíduo, uma rara expressão social e moral (Sá, 2019, p. 127)[3] que permite que um profissional exerça e demonstre sua habilidade, sabedoria, e ou inteligência de maneira a demonstrar-se útil perante a comunidade. O exercício do labor precisa ser acompanhado pela ética para que exista uma integral imagem de qualidade (Sá, 2019, p. 135) contudo, no caso do advogado, não só por isso, conforme passará a ser demonstrado.

As profissões de cunho social tal como a do advogado, que é capacitado em conhecimento legal para servir a sociedade e os indivíduos, sendo ele ainda indispensável à administração da justiça e inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos termos do artigo 133 da Carta Magna Brasileira, demonstra-se como um dos profissionais em que a ética profissional é um requisito mais do que necessário, exigido não apenas pela sociedade, mas também por normativas da Ordem de Advogados do Brasil.

Em conformidade com a declaração anterior, no âmbito do Direito, a ética profissional exibe-se como um pilar fundamental para a orientação da conduta dos advogados e dos mais diversos profissionais da área jurídica. A Lei 8.906 de 1994, a qual dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil e demais legislações correlatas, trabalham com a visão de garantir que o profissional de Direito atue com toda a transparência, integridade e a responsabilidade necessárias para que se torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia, objetivando, a manutenção da confiança da sociedade no sistema jurídico.

O artigo 1º do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, prevê que o exercício da advocacia deve exigir conduta compatível, dentre outros aspectos, com a moral individual, social e profissional. A justificativa para tal exigência recai no artigo seguinte, que aborda a função e indispensabilidade do advogado à administração da justiça:

Art. 2º O advogado […] é defensor do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e garantias fundamentais, da cidadania, da moralidade, da Justiça e da paz social, cumprindo-lhe exercer o seu ministério em consonância com a sua elevada função pública e com os valores que lhe são inerentes (Brasil, 1994).

Logo, frente ao papel de destaque do advogado perante a sociedade, a ética não pode ser algo individual, exercida de forma irregular pelos indivíduos que atuam nesse labor. Deve, porém, ser voltada ao social, ao “nós”, haja vista que a preservação da imagem da persona do advogado é imperiosa não somente para preservar o profissional em suas relações com o utente a quem os seus serviços são destinados, mas principalmente na manutenção da própria sociedade.

Assim, a ética no âmbito da profissão vem para preservar tanto aquele que pratica o labor e dele se beneficia como o cliente a quem os serviços são destinados. Contudo, no âmbito da advocacia, esta vem também para preservar a classe dos advogados e a sociedade, já que a perda total e absoluta na confiança daquele que deveria ser o motor da realização da paz social (Carneiro, 2014, p. 688), geraria consequências severas em todo o sistema. Notando isso, a ética profissional, quando voltada para a advocacia, não poder ser uma recomendação, mas sim uma norma (Leal, 2009, p. 1) conforme leciona o professor Paulo Lôbo:

[…] A ética profissional não parte de valores absolutos ou atemporais, mas consagra aqueles que são extraídos do senso comum profissional, como modelares para a reta conduta do advogado. São tópicos ou topoi na expressão aristotélica, ou seja, lugares-comuns que se captam objetivamente nas condutas qualificadas como corretas, adequadas ou exemplares; não se confundem com juízos subjetivos de valor.

Quando a ética profissional passa a ser objeto de regulamentação legal, os topós convertem-se em normas jurídicas definidas, obrigando a todos os profissionais. No caso da advocacia brasileira, a ética profissional foi objeto de detalhada normatização, destinada a deveres dos advogados, no Estatuto anterior e no Código de Ética Profissional, este datado de 25 de junho de 1934. O Estatuto de 1994 preferiu concentrar toda a matéria no Código de Ética e Disciplina, editado pelo Conselho Federal da OAB.

[…]

A ética profissional impõe-se ao advogado em todas as circunstâncias e vicissitudes de sua vida profissional e pessoal que possam repercutir no conceito público e na dignidade da advocacia. Os deveres éticos consignados no Código não são recomendações de bom comportamento, mas normas jurídicas dotadas de obrigatoriedade que devem ser cumpridas com rigor, sob pena de cometimento de infração disciplinar punível com a sanção de censura (art. 36 do Estatuto) se outra mais grave não for aplicável (Lôbo, 2007 apud Leal, 2009).

Nota-se que a ética social, a mesma ética que guia as relações profissionais, no âmbito da advocacia, ganha um caráter obrigatório, normativo. Naturalmente, dessa forma, a regulamentação da ética profissional no âmbito do exercício advocatício irá abranger diversos aspectos da rotina do advogado, amparando-o legalmente desde a prospecção de seus assistidos até ao sigilo profissional, que perdura muito depois do final da prestação dos serviços. Dentre os aspectos de interesse para regulamentação normativa, sobretudo nos dias de hoje, destaca-se uma das ferramentas mais utilizadas para se destacar no atual mercado: o marketing jurídico. 

2. O marketing jurídico

A imagem do advogado é um dos objetos de regulação da OAB que, por meio de provimentos e normativas, o faz para preservar a classe e seguir a máxima: “tornar-se merecedor da confiança do cliente e da sociedade como um todo, pelos atributos intelectuais e pela probidade pessoal” (grifo próprio). No entanto, Henri Robert, advogado francês em sua obra de 1921, expõe o complexo embate entre a imagem tradicional do advogado e a reputação que este evoca:

O advogado! Qual imagem essa palavra evoca de imediato na mente dos que vivem afastados do Palácio? Qual sentimento costuma despertar no público?

Para alguns, o advogado é tradicionalmente o ‘defensor do órfão e da viúva’, o paladino abnegado de todas as nobres causas, aquele cujo devotamento se volta inteiramente para todos os oprimidos, todos os infelizes, todos os deserdados da fortuna, e que faz ouvir perante a justiça a voz da piedade humana e da misericórdia.

Mas – tenhamos a modéstia e a clarividência de o reconhecer – essa está longe de ser sempre nossa reputação. Digamos mesmo que na literatura o advogado geralmente não tem boa fama.

Há uma tendência excessiva para representá-lo na figura de um insuportável tagarela, um sujeito espertalhão, chicaneiro, manhoso, encrenqueiro, capaz de defender qualquer causa, alegando inocência mesmo quando está convencido da culpabilidade… (Robert, 2002, p. 5, apud Leal, 2009)[4]

A controvérsia ética é nítida: enquanto o advogado necessita ser o defensor de direitos e garantias, diante do seu papel indispensável para a manutenção da justiça, sua imagem se materializa no imaginário coletivo de forma adversa e problemática. A fim de regular e dirimir isso, a OAB surge para manter os padrões da classe e preservar a imagem do advogado frente à sociedade. Para isso, a OAB tem cada vez mais rápido identificado as tendências modernas e separado o “joio do trigo” na medida em que reconhece os movimentos que surgiram com o advento das mídias, mas regula aquelas que podem ser prejudiciais. Dentre as tendências que surgiram, destaca-se nesta pesquisa, o marketing jurídico.

Conforme proposto por Bertozzi (2006, p. 29 apud Telhado, 2019), o marketing jurídico é conceituado como todos os esforços estratégicos de marketing dentro da comunidade jurídica, utilizando os instrumentos de acordo com o Código de Ética da OAB. De forma similar, apresenta-se o Provimento 205/2021 da própria OAB, que entende que o marketing jurídico caracteriza-se por ser a especialização do marketing destinada aos profissionais da área jurídica, consistente na utilização de estratégias planejadas para alcançar objetivos do exercício da advocacia (Diário Eletrônico da OAB, a. 3, n. 647, 21.07.2021, p. 1) [5].

A partir desses conceitos, é possível identificar que o marketing jurídico é um conjunto de estratégias para alcançar objetivos dentro da advocacia especialmente relevantes nos tempos modernos, com o surgimento do que se chama de marketing jurídico digital. Este permitiu a disseminação de diversos serviços por sítios, redes sociais, fóruns, etc. As vias virtuais permitiram uma forma de gerar destaque e acentuar o diferencial desses profissionais e respectivos escritórios, frente ao mercado sobrecarregado.

Hodiernamente, além do boom de profissionais, houve um aumento dos serviços jurídicos ofertados (Asensi, 2024) que permitiu que a atuação do advogado fosse além da mera propositura e acompanhamento de ações, atuando em diligências em instituições públicas, mediando extrajudicialmente e prestando consultorias a empresas. Contudo, independente do mercado turbulento ou do interesse em prestação de serviços diversos, o advogado possui uma responsabilidade ética em dar visibilidade ao que faz. Explica-se: retomando o conceito do advogado como defensor das garantias individuais, dos direitos e da boa prática jurídica, este não estaria cumprindo o seu dever como advogado se não apresentasse o seu trabalho para a sociedade. Ora, a quem ofereceria seu patrocínio e como serviria ao seu propósito se suas teses ficassem só para si? Ou em prol de qual assistido ficaria frente à tribuna, e para quem prestaria diligências ou consultoria?

Assim, o marketing jurídico evidencia-se como forma de cumprir os objetivos da advocacia, fazendo com que, independentemente de estarem no início ou já experientes no ofício, todos que são capacitados a exercer a advocacia possam demonstrar seus conhecimentos jurídicos à sociedade.

Ocorre, no entanto, que com o crescimento do marketing jurídico, houve paralelamente o surgimento de publicidade advocatícia enganosa e, logo, criminosa. Considerando publicações e artigos de blogs e sítios eletrônicos de escritórios e advogados, a publicidade enganosa é elencada como uma das diversas características da advocacia predatória. Cabe apontar, contudo, que o marketing jurídico não possui caráter criminoso ou enganoso haja vista que, como uma ferramenta normatizada pela OAB, esta não possui em si própria qualquer caráter que possa deslegitimá-la.

Logo, qualquer prática de marketing em meio jurídico que não obedeça às normativas da OAB, não se trata de publicidade advocatícia legítima, mas sim de exercício de ato contrário à carreira, a imagem dos advogados no Brasil e, complementarmente, ao posicionamento da Ordem, não podendo a ética profissional do advogado conviver com qualquer tipo de comportamento permitido nos meios digitais. Assim, é possível constatar-se que o marketing jurídico em si é necessário e benéfico tanto para a sociedade quanto para a classe dos advogados e o exercício fraudulento de publicidade advocatícia trata-se de ato que vai contra normativas estabelecidas, podendo até ser criminoso, não sendo, portanto,  relacionado com o conceito adotado neste trabalho de marketing aplicado ao contexto legal.

3. A regulamentação da Ordem dos Advogados do Brasil

No Brasil, a advocacia começou a ser regulamentada ainda em 1870, por meio das Ordenações Filipinas, que dispunham de regulamentações relacionadas às taxas devidas para o exercício do ofício (Brasil, 1870)[6] e trajes (Brasil, 1870)[7], principalmente. Mas foi apenas em 1921, por meio do Código de Ética Profissional do Brasil criado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, que a publicidade foi primeiramente mencionada, em seu artigo 12:

Art. 12 – É igualmente contrário à ética profissional solicitar serviços ou causas, bem como angariar estas ou aqueles por intermédio de agentes de qualquer ordem ou classe. Nem mesmo pode ser tolerada, aberrante como é das tradições da nobre profissão da advocacia, a propaganda indireta, por meios provocados, de informações e comentários da imprensa sobre a competência do advogado, excepcional importância da causa, magnitude dos interesses confiados ao seu patrocínio e quejandos reclamos. Não é defeso, entretanto, anunciar o exercício da profissão ou escritório, pela imprensa e indicadores, ou por outros modos em uso, declarando suas qualidades, títulos ou graus científicos. (Iasp, 1921 apud Strazzi, 2020)

Após este, só em 1934 foi instituído o Código de Ética Profissional da Ordem dos Advogados do Brasil, o primeiro editado pelo órgão (Strazzi, 2020). Atualmente, as regulamentações que incidem sobre a publicidade advocatícia são, sobretudo, o Provimento 205/2021 e a Lei 8.906 de 1994. Comparativamente, em outros países, como nos Estados Unidos, a prática dessas estratégias de publicidade jurídica não é tão alvo de normatização. Nos EUA foi a partir do caso Bates vs State Bar of Arizona (1977) que a Suprema Corte Americana entendeu que restrições da publicidade dos advogados feriam a First Amendment to the United States Constitution e consequentemente, a liberdade de expressão.

Diferentemente dos EUA e de outros países com tradição no Common Law, a atividade do advogado no Brasil não se confunde com qualquer atividade comercial, gerando restrições quanto à publicidade permitida (Dias, Rosenvald, Fortes e Venturi, 2022a), conforme os art. 5º e 39 do Código de Ética e Disciplina, além do 3º e 4º do Provimento 205/2021. O tema da mercantilização na advocacia, já bem debatido, não apresenta apenas previsão normativa, mas também jurisprudencial. Veja-se:

[…] 2. O Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, Lei nº 8.906/94, expressamente aponta o Código de Ética e Disciplina como documento regulador “dos deveres do advogado para com a comunidade, o cliente, o outro profissional e, ainda, a publicidade[…]” (parágrafo único do art. 33). 3. O Código de Ética e Disciplina da OAB reservou o Capítulo IV para tratar sobre publicidade, prevendo a possibilidade de anúncio do serviço profissional, individual ou coletivamente, “com discrição e moderação, para finalidade exclusivamente informativa, vedada a divulgação em conjunto com outra atividade” (art. 28). Há vedação expressa de oferta de serviços que indiquem, direta ou indiretamente, inculcação ou captação de clientela. Eis que a prática a atividade advocatícia “é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização” (art. 5º). 4. No mesmo sentido apontam os arts. 1º, 3º, 4º e 6º, do Provimento nº 94/2000, do Conselho Federal da OAB e art. 34, inciso IV, da Lei nº 8.906/94, o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. (TRF-2, 2018, online, grifo próprio).

E também:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZATÓRIA. TUTELA DE URGÊNCIA. PUBLICAÇÕES EM REDE SOCIAL QUE UTILIZAM INDEVIDAMENTE A LOGOMARCA DA AGRAVANTE. SUPOSIÇÃO DE QUE A AGRAVANTE SE ENRIQUECE ILICITAMENTE ÀS CUSTAS DOS USUÁRIOS. PUBLICAÇÕES QUE MACULAM A REPUTAÇÃO DA AGRAVANTE. ADVOCACIA É INCOMPATÍVEL COM A MERCANTILIZAÇÃO, NOS TERMOS DO ART. 5º E ART. 7º DO CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB. PUBLICAÇÃO QUE EXTRAPOLA CONTEÚDO MERAMENTE INFORMATIVO, VIOLANDO O ART. 28 DO CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB. PROVIMENTO DO RECURSO PARA CONFIRMAR A DECISÃO QUE DEFERIU A TUTELA RECURSAL. (TRF-2, 2022, grifo próprio)

Assim, clara a antipatia da OAB contra a mercantilização da advocacia é possível compreender a necessidade de regulação pelo órgão, haja vista que o mercantilismo, como uma tendência a subordinar tudo ao comércio, ao ganho ou ao interesse, empobrece a missão do advogado. Dessa forma, retorna-se para os conceitos apresentados de ética, ao apontar que se apenas um advogado, em pleno exercício da ética própria e individual aplica o marketing jurídico como uma ferramenta para mercantilizar a sua profissão, e se desse ato não houvesse consequências, este estará prejudicando toda a sua classe e também a sociedade.

Nesse sentido, é reconhecível que a regulação da OAB faz um papel satisfatório frente a classe e a sociedade brasileira. Isso pois, acompanha as novidades trazidas pelos tempos, conciliando a tradição e a inovação. Mantendo a autonomia do profissional, a OAB apenas proíbe e pune atos contrários a imagem da advocacia, à mercantilização e a quaisquer características negativas que possam, de qualquer forma, serem atribuídas a imagem do  advogado e prejudicar, conforme já foi exposto, a classe e a sociedade no geral.

Considerações finais

Nesses moldes, a presente pesquisa teve como objetivo central examinar a ética profissional e a regulamentação do marketing jurídico no Brasil, buscando entender como as normas vigentes influenciam a prática dessa ferramenta na advocacia em um mercado cada vez mais digitalizado e competitivo. Foi destacado que a ética profissional é uma ética voltada para o social, e que dentro do ambiente da advocacia, sobretudo, é necessário que essa ética seja regulamentada a fim de que não haja consequências para a sociedade ou para a classe dos advogados.

Procurou-se identificar a problemática envolvendo o marketing jurídico e a ética profissional normatizada, chegando-se à conclusão de que a regulação do marketing jurídico é essencial para manter a integridade e a dignidade da profissão. Destaca-se a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que possuiu um papel crucial na definição de limites para a publicidade advocatícia, assegurando que os advogados possam promover seus serviços sem comprometer os valores éticos fundamentais da profissão. Contribui-se, por meio deste estudo, para a conceituação do marketing jurídico como uma nova ferramenta capaz de auxiliar desde o recém-formado até o advogado mais experiente em alcançar seus objetivos dentro da advocacia, mas contrabalanceia-se a inovação trazida, com a necessidade de observância de preceitos tradicionais e inerentes à advocacia. A pesquisa aponta que, ao respeitar as diretrizes estabelecidas pela OAB, os advogados podem utilizar estratégias de marketing para se destacarem no mercado, sem recorrer a práticas mercantilistas que possam prejudicar a imagem da profissão.

Limitou-se o estudo em uma análise principalmente qualitativa, baseando-se em literatura e normativas existentes, sem um levantamento empírico mais aprofundado, focando, sobretudo, na realidade brasileira, não abordando em detalhes como outras jurisdições tratam a questão do marketing jurídico. Visando o crescimento de estudos e artigos voltados à área de marketing jurídico e a inovação que ela traz, entende-se como necessário que novas pesquisas empíricas sejam feitas a fim de que possam avaliar o impacto concreto das práticas de marketing jurídico na percepção pública da advocacia e na captação de clientes.

Em suma, este trabalho conclui que a regulação ética do marketing jurídico, embora desafiadora, é imprescindível para preservar o prestígio da advocacia e garantir que esta continue a servir a justiça e a sociedade de forma íntegra e respeitosa, balanceando a inovação com o respeito às diretrizes éticas e garantindo, por fim, que toda a classe mantenha seu prestígio e sua essência sacerdotal frente a sociedade.

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[1] ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Brasil tem 1 advogado a cada 164 habitantes: CFOAB se preocupa com qualidade dos cursos jurídicos. OAB, Brasília, 17 nov. 2022. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/59992/brasil-tem-1-advogado-a-cada-164-habitantes-cfoab-se-preocupa-com-qualidade-dos-cursos-juridicos. Acesso em: 6 jun. 2024.

[2] Nicolescu B, et al. Educação e transdisciplinaridade. São Paulo: UNESCO, USP/Escola do Futuro, CESP; 2000. p.56.

[3] SÁ, Antônio Lopes de. Ética Profissional. Grupo GEN, 2019.p. 127.

[4]LEAL, S. T. O Advogado e a Ética. Caderno Virtual, v. 1, n. 20, 2009.

[5] DEOAB, a. 3, n. 647, 21.07.2021, p. 1

[6] A licença para advogar cooccdida ao Advogado não formado em Direito. Lcgulcio. ou Iormado nos Unh’cr- sidades csLrangeiras, paga de sello a11nualmcnLc 5$000, c por uma só “cz 50$000. Rcg. n. 68 I – de IOde Julho de 1850 arl. 48. O Advogado formado cm DireiLo nas Faculdades do Imperio .pa”a de no,’os direiLos 60$000; c provido lemporartamenle, 2$000 por anno. L. de 30 dc No- vemhro dc j 8\ I § 5 da ‘fabella annexa.

[7] Não podem entrar nas nudiencias com espada ou trajos prohibidos. AI. de 30 de .Iunbo de 1652. Os do Institulo dos Ad,’ogados e os do Couselho d. Eslado têm vestimenta especial para os auditorios e dias de fe,lividade aacional. D. n. 393 – de 23 de Novembro de 1843 ar·t. 102. (BRASIL,1870)


Carolina Mendonça Guimarães de Alencar Meneses. Graduanda em Direito na Faculdade Presbiteriana Mackenzie com experiência em Direito Tributário e Administrativo, além de atuação em assessoramento na CLDF. Estagiária no Advocacia Mendonça e Diretora na WebAdvocacy – Direito e Economia.


Empoderamento social por meio do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC): uma perspectiva das instituições de ensino fundamental do Distrito Federal

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

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Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

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Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

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Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

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Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

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Empoderamento social por meio do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC): uma perspectiva das instituições de ensino fundamental do Distrito Federal

Valdeberto Pereira de Souza & Fernando de Magalhães Furlan

RESUMO

Este artigo revisa a literatura jurídica que deu início à participação de instituições filantrópicas na consecução de projetos sociais, por meio de parcerias com o Estado. Analisar-se-á o desenvolvimento das normas jurídicas para esse fim e observar-se-á o crescimento das parcerias entre Governos e OSCs (Organizações da Sociedade Civil), e o próprio crescimento numérico delas. Em tendo havido crescimento, buscar-se-á identificar se esse crescimento possibilitou um empoderamento social dos sujeitos alcançados, tendo em vista que tais instituições desenvolvem os seus projetos principalmente nas áreas de saúde, educação, assistência social e cultura. Este artigo toma como corpus as instituições que desenvolvem projetos na área da educação infantil. Assim, a pesquisa de dados se limitou ao âmbito do Distrito Federal. A pesquisa também buscou identificar se essas instituições estão inseridas em áreas centrais ou periféricas da polis, e se os sujeitos alcançados com a consecução dos objetos definidos pelo Estado e pelas OSCs estão inseridos em áreas de maior ou menor poder aquisitivo, já que que tais sujeitos, em razão de sua situação mais precária, sejam aqueles que mais dependam do apoio do Governo.

ABSTRACTO

Este trabajo de investigación revisa la literatura jurídica que ha dado inicio a la participación de instituciones filantrópicas en la consecución de proyectos sociales por medio de parcerías con el Estado. Se analiza el desarrollo de las normas jurídicas para ese fin y se observa si hubo un crecimiento de las parcerías entre Gobiernos y OSCs (Organizaciones de la Sociedad Civil), y también crecimiento del número de instituciones. Y aun si hubo crecimiento, se busca identificar si ese crecimiento posibilitó un empoderamiento social de los sujetos alcanzados, teniendo en cuenta que tales instituciones desarrollan sus proyectos mayormente en las áreas de salud, educación, asistencia social y cultura. En esta investigación se ha tomado como corpus instituciones que desarrollan proyectos en el área de educación infantil. Se limita la investigación en datos que ocurran en el ámbito del Distrito Federal. También se buscará identificar si tales instituciones están ubicadas en áreas céntricas o periféricas de la polis, y si los sujetos alcanzados con la consecución de los objetos definidos por el Estado y por las OSCs están ubicados en áreas de mayor o de menor poder adquisitivo, ya que se espera que tales sujetos, por falta de recursos suficientes, sean aquellos que más dependan de apoyo del Gobierno.

SUMÁRIO

I INTRODUÇÃO

Esse artigo tem por objetivo estudar como as ações previstas no MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil) contribuem para o empoderamento social. Tal empoderamento é proporcionado pela internalização de direitos e deveres sociais que conscientizam os cidadãos na execução de ações que cobrem de seus representantes políticos atitudes para esse fim) em grupos de pessoas que se encontrem em situação de vulnerabilidade social, por meio da aplicação da Lei 13.019, de 31 de julho de 2014, regulamentada pelo Decreto Federal 8.726, de 27 de abril de 2016, que tratam das parcerias entre o Estado e as Organizações da Sociedade Civil (OSCs). O artigo também busca traçar um perfil do desempenho estatal por meio dessas parcerias, visando ao melhoramento das políticas públicas que tratam da oferta de serviços preponderantes para o desenvolvimento social.

O relacionamento entre o Estado e as OSCs, como se concebe atualmente, acentuou-se a partir da nova concepção do Estado, iniciando-se com a Reforma do Estado (Governo Fernando Henrique Cardoso – 1995). Essa relação, ao longo dos tempos, foi ora criticada, ora exaltada, e, passados quase 30 anos, pode-se ter uma visão holística positiva das parcerias, já que se testemunhou um aumento vertiginoso da relação jurídica do Estado com as organizações da Sociedade Civil (OSCs). As OSCs têm uma importância cada vez maior na execução de projetos, por meio da publicização de serviços públicos[1], que outrora estavam exclusivamente nas mãos do Estado. Isso não quer dizer que o Estado tenha perdido a tutela desses serviços, cujo caráter é público, já que, por serem mantidos pelo Estado, este tem total controle da efetividade dos serviços ofertados à comunidade, por meio dos diversos órgãos de controle estatal (Lei 13.019, de 31 de julho de 2014), e responde de forma solidária pelos possíveis desvios que vierem a ocorrer.   

Este artigo se propõe a fazer uma análise crítica das ações previstas na legislação aplicável, levando em consideração os resultados aferidos pelo próprio Governo e por seus órgãos de controle.

Para a análise sobre o crescimento da relação do Estado com as Organizações da Sociedade Civil, OSCs, como já mencionado, coletar-se-ão dados disponibilizados por órgãos oficiais no Distrito Federal, como a quantidade de OSCs por Região Administrativa do Distrito Federal (RA), em diferentes períodos, pois, tais dados podem mostrar se realmente as áreas mais vulneráveis, ou seja, as que mais dependem de ações governamentais para dirimir desigualdades sociais estão sendo os locais preferidos por essas OSCs, e se houve um aumento no número de instituições que surgiram ao longo dos anos nessas regiões.

Ao analisar a Lei, buscar-se-á identificar os artigos que mais influência exercem no combate à desigualdade social e na melhora crescente das condições necessárias para o desenvolvimento social, aqui entendido como uma forma de empoderamento da sociedade.  Com a publicização de serviços públicos, tornando-os mais acessíveis à comunidade, espera-se um aumento no nível de desenvolvimento daqueles que venham a desfrutar de tais serviços. Dessa maneira, pode-se também traçar um panorama do investimento econômico governamental visando à erradicação de problemas que são verdadeiros entraves para a educação e à saúde, por exemplo.

O artigo foca principalmente em projetos desenvolvidos no Distrito Federal que alcancem a educação básica, mais precisamente a educação infantil e a pré-escola, por meio de parcerias entre o Governo do Distrito Federal e as Organizações da Sociedade Civil aqui instaladas.

De forma particular, o artigo também pretende estudar as Organizações da Sociedade Civil (OSCs), o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) e a lei que regulamenta o Terceiro Setor como um todo, apontando prós e contras da relação jurídica entre essas instituições e o Estado. Especificamente, identificar na lei e na doutrina a definição de OSC e as consequências dessa definição na sua existência como pessoa jurídica e nas suas finanças, diferenciando-a, devido ao seu caráter legal, de outras pessoas jurídicas com finalidade de lucro. Também tem o artigo o intuito de perceber se a Lei 13019/94 tem alcance majoritariamente nas áreas centrais ou em áreas periféricas, identificar as ações desenvolvidas que causem o empoderamento social, por meio do conhecimento difundido, do objeto executado e o nível de conhecimento adquirido, por meio da execução de tais projetos e o alcance social do MROSC na concepção das entidades filantrópicas – OSCs.

Esse artigo se baseia na seguinte indagação: “como as ações previstas no MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil) contribuem para o empoderamento social?”.

As ações previstas com a aplicação da lei positivada no MROSC contribuirão para o empoderamento social à medida que cidadãos em situação vulnerável de saúde forem alcançadas por ações de instituições filantrópicas, como um braço alongado do Estado, poupando-lhes recursos e lhes auxiliando na melhoria do acesso à saúde, antes não alcançada sob a gestão exclusiva do Estado. Este é um exemplo de efetividade e eficácia da aplicação da verba pública. As famílias tornar-se-ão empoderadas quando alcançadas por programas de proteção às crianças, como, por exemplo, as creches, administradas por instituições da sociedade civil (OSCs), sem custo para as famílias e com boa qualidade, exigida e fiscalizada pelo Estado, mediante ações previstas com a aplicação do MROSC. Outro exemplo é que as famílias serão empoderadas com as ações previstas no MROSC porque, na maioria esmagadora dos casos, as ações desenvolvidas por instituições filantrópicas ocorrerão em áreas periféricas, ou até mesmo em áreas centrais, e os funcionários contratados para desempenharem as ações de alcance do objeto são, quase sempre, pessoas das próprias comunidades adjacentes a essas ações (programas). São pessoas que não fizeram um concurso público, mas que se sentirão parte do funcionalismo público, participantes do esforço nacional em prol das comunidades mais desassistidas. É o próprio Estado sendo fomentador da criação de empregos e bem-estar social, por meio de atividades desenvolvidas pelas OSCs.

1.1 JUSTIFICATIVA

Este artigo tem como intuito analisar a evolução do Marco Regulatório do Terceiro Setor, após a sua publicação e descortinar a possível influência de tais normas jurídicas no empoderamento dos sujeitos envolvidos, objeto das ações neles previstas.

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 o papel da sociedade civil organizada tem se destacado como apoio ao alcance de resultados almejados pelo Estado, na busca do desenvolvimento da sociedade. A busca por afirmação nesse sentido leva-nos a fazer uma análise sobre o impacto das normas jurídicas que regulam a parceria do Estado com essas organizações civis.

Portanto, o artigo tem a finalidade de fazer uma análise da desenvoltura de tais normas jurídicas no seio social. Identificar se os objetivos almejados por seus precursores, os reformadores do Estado, estão sendo alcançados e o impacto disso para o empoderamento da sociedade.

Este artigo enfoca, sobretudo, as instituições de ensino fundamental do Distrito Federal.

2. EVOLUÇÃO DA PARCERIA DE OSCs COM A PUBLICIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS

Analisar-se-á, sob um enfoque diacrônico, a importância da participação de instituições filantrópicas da sociedade civil organizada, concomitantemente com o avanço da legislação brasileira, no que tange à execução e desenvolvimento de projetos sociais que transformaram ou transformam essa sociedade (e seus indivíduos) em uma sociedade mais justa e consciente do papel a desempenhar de forma intrínseca, para que essa mesma comunidade se empodere de conhecimentos e meios que a façam avançar e crescer no exercício da plena cidadania.

2.1 Reforma do Estado visando à publicização de serviços públicos

Pode-se definir como marco inicial da valorização participativa do terceiro setor (ONGs) na sociedade brasileira o movimento da reforma do Estado, lançado em 1995, sob a gestão federal do presidente Fernando Henrique Cardoso. Naquele contexto reformista introduziu-se o conceito de publicização, que significa a transferência de serviços não exclusivos do Estado, ligados a diversas áreas, tais como: educação, saúde, cultura, fomento à pesquisa científica, dentre outras, para o setor privado que, embora não estatal, seja mantido em parte ou no todo por recursos públicos (BRESSER PEREIRA, 1999, p. 07).

A percepção da necessidade de ampliação do terceiro setor, que fugisse do totalmente público e do totalmente privado, surge com a concepção de que não é apenas o Estado que pratica altruísmo social e protege o interesse público, senão também organizações privadas e pessoas físicas que atuam em múltiplas áreas, como educação, saúde, assistência social, cultura, lazer, preservação do meio ambiente, dentre outras, e cujo interesse está centrado no bem-estar social, na responsabilidade com o bem público e na implementação de ações que visem ao benefício coletivo. Essas ideias coadunam com a declaração de Frei Caneca: “Uma constituição não é outra coisa, que a ata do pacto social, que fazem entre si os homens, quando se ajuntam e se associam para viverem em reunião ou sociedade” (VILLAR, 2004. p. 106).

Nesse diapasão, o Terceiro Setor surge como instrumento propulsor para que o país tenha esse pacto social amplamente implantado, por meio de parceria estatal (Estado) e sociedade organizada (setor privado). Ou seja, tal instrumento constitui-se em força motriz para que os setores organizados da sociedade civil se mobilizem e atuem em áreas de maior impacto social, mediante atitudes instrumentalizadas em ações voluntárias, que não visem lucros, e que tenham enfoque na erradicação de desigualdades sociais. (BRESSER PEREIRA, 1999, p. 09)

Mediante esse panorama, por meio do Decreto Federal 1.366/95, instituiu-se o Programa Comunidade Solidária, com o objetivo de coordenar as ações governamentais cujo objetivo era o atendimento de parcela da população que não dispunha de recursos suficientes para prover as suas necessidades básicas e, em especial, o combate à pobreza e à fome (Decreto 1.366/95, Art. 1º Caput.).

À posteriori, e ainda com o fim de fortalecer a concepção do Decreto 1.366/95, surge a Lei nº 9.790/1999, que dispõe sobre as chamadas OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), como entidades privadas de interesse público, e instituiu o termo de parceria a ser firma com o Poder Público (Estado, em qualquer de suas esferas). A Lei definiu também que seria o Ministério da Justiça que concederia esse título (OSCIP) às instituições que se encaixassem nas qualificações exigidas. Logo após, em 2011, surge o decreto federal que altera o referido dispositivo, instituindo o “Edital de Concurso de Projetos” pelo órgão estatal parceiro para a “obtenção de bens e serviços e para a realização de atividades, eventos, consultoria, cooperação técnica e assessoria, com o meio obrigatório para a seleção da OSCIP, com o intuito de firmar termo de parceria”. (BRASIL, Decreto nº 3.100/99, Art. 8º, caput)

Contudo, podemos assegurar que a relação entre Organização da Sociedade Civil e poder público aperfeiçoou-se com o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, publicado em 2014, com a Lei 13019/2014. Essa lei, regulamentada pelo Decreto 8.726/2016, é o instrumento que rege atualmente a parceria entre Estado e as OSCs no que tange a serviços públicos estatais que visam à melhoria, crescimento e qualidade total nos serviços públicos ofertados à sociedade civil. Como previa Bresser Pereira (BRESSER PEREIRA, 1999):

Dentro do contexto da Reforma Gerencial de 1995, a gestão pela qualidade total ganhou vida nova. As diferenças eram claras: enquanto a administração privada é uma atividade econômica controlada pelo mercado, a administração pública é um empreendimento político, controlado politicamente. Na empresa privada, o sucesso significa lucros; na organização pública, significa o interesse público. É possível transferir os instrumentos de gerenciamento privado para o setor público, mas de forma limitada. Pode-se descentralizar, controlar por resultados, incentivar a competição administrada, colocar o foco no cliente, mas a descentralização envolve o controle democrático, os resultados desejados devem ser decididos politicamente, quase-mercados não são mercados, o cliente não é apenas cliente, mas um cliente-cidadão revestido de poderes que vão além dos direitos do cliente ou do consumidor. Com a explicitação dessas diferenças e o aumento da autonomia e da responsabilização que os dirigentes estão assumindo no âmbito da reforma, o controle de qualidade na administração pública ganhou legitimidade e tornou-se a estratégia gerencial oficial para a implementação da reforma. (BRESSER PEREIRA).

Esse modelo de parceria entre o Estado e a sociedade civil organizada teria o “Contrato de Gestão” (atualmente chamado de “Termo de Colaboração”, pela Lei 13.019/2014) como meio de fiscalizar as práticas administrativas das OSCs. Nas palavras de Violín (2006, p. 200): “por meio do contrato de gestão, o núcleo estratégico define os objetivos das entidades executoras e os respectivos indicadores de desempenho, e garante a essas entidades os meios humanos, materiais e financeiros para sua execução”. Dessa forma, o Estado continua como o grande fomentador da oferta desses serviços, apenas não seria mais o executor, embora mantenha sob seu controle a qualidade das ações das OSCs, por meio dos órgãos estatais de controle. (FERREIRA, 2017, p. 138)

O antigo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE, 1997) cita ainda outras vantagens das parcerias:

Do ponto de vista da gestão de recursos, as Organizações Sociais não estão sujeitas às normas que regulam a gestão de recursos humanos, orçamento e finanças, compras e contratos na Administração Pública. Com isso, há um significativo ganho de agilidade e qualidade na seleção, contratação, manutenção e desligamento de funcionários, que, enquanto celetistas, estão sujeitos a plano de cargos e salários e regulamento próprio de cada Organização Social (Cadernos do MARE, Cad. 2, p. 15, 1997). Verifica-se também nas Organizações Sociais um expressivo ganho de agilidade e qualidade nas aquisições de bens e serviços, uma vez que seu regulamento de compras e contratos não se sujeita ao disposto na Lei nº 8.666 e ao SIASG. (Cadernos do MARE, Cad. 2, p. 16, 1997). Do ponto de vista da gestão orçamentária e financeira as vantagens do modelo organizações sociais são significativas: os recursos consignados no Orçamento Geral da União para execução do contrato de gestão com as Organizações Sociais constituem receita própria da Organização Social, cuja alocação e execução não se sujeitam aos ditames da execução orçamentária, financeira e contábil governamentais operados no âmbito do SIAFI e sua legislação pertinente; sujeitam-se a regulamento e processos próprios (Cadernos do MARE, Cad. 2, p. 16, 1997). No que se refere à gestão organizacional em geral, a vantagem evidente do modelo Organizações Sociais é o estabelecimento de mecanismos de controle finalísticos, ao invés de meramente processualísticos, como no caso da Administração Pública (Cadernos do MARE, Cad. 2, p. 16, 1997).

Com relação a esses pontos, quando da efetivação da reforma do Estado, sobretudo nos governos FHC, surgiram muitas críticas. Para Lúcia Cortes da Costa, a flexibilização da administração pública é importante para acabar com a burocracia e hierarquia, contudo, “sem um plano de carreira e sem a devida revalorização do servidor público, não há como criar uma cultura gerencial qualitativamente melhor” (COSTA, 1998, p. 191).

Segundo Lustosa da Costa (2010), faltou ao governo discutir melhor as funções do Estado, as políticas necessárias, a relação que deveria se estabelecer entre Estado e sociedade, assim como o modelo de gestão pretendido para a coisa pública. O que se observa é que houve uma discussão intensa sobre a função pública, esquecendo-se desses outros fatores importantes, o que tornou a reforma ainda mais polêmica, segundo os mais críticos. Tal linha de pensamento fica clara nas asserções de Lustosa da Costa:

Na verdade, foi o governo que, ao propor as modificações na Constituição e na legislação ordinária, conferiu excessiva ênfase ao problema do servidor público. Isso não quer dizer que a questão da estabilidade e de outras garantias não seja importante e não deva ser debatida pelo Congresso Nacional e por toda a sociedade nele representada. Continua sendo necessário clarificar de uma vez por todas as relações contratuais que o Estado deve manter com as diferentes categorias de servidores. Só assim será possível estabelecer um criterioso e arrojado programa de valorização da função pública. Mas, se a questão fosse apenas demitir funcionários, o governo teria à sua disposição uma série de mecanismos que lhe permitiriam atingir esse propósito, sem a necessidade de gerar tanta controvérsia. […] Entretanto, ao contrário do que foi feito, um programa de reforma do Estado deveria começar pela discussão das grandes missões do Estado moderno, de sorte a precisar o alcance de sua ação legítima. É identificando e definindo as políticas públicas e as esferas de governo que devem implementá-las que o agente modernizador pode estabelecer objetivos em termos de desestatização, democratização e flexibilização. […] Só depois dessas definições é que se deveria ter começado a discutir a função pública. Sabendo-se quais são as atividades típicas de governo, as políticas a implementar e as formas de geri-las, tornar-se-ia possível configurar os diferentes tipos de relações contratuais que o Estado deve manter com os seus servidores e empregados (LUSTOSA DA COSTA, 2010, p.175-176).

Outro ponto em questão é que, para Lustosa da Costa, o entendimento dos reformadores partia da premissa de que “com uma estrutura menor, com menor gasto de recursos, é possível realizar as mesmas funções, o mesmo número de atividades, e aí se incluem as fusões e incorporações, os cortes de pessoal, enxugamento de estruturas” (LUSTOSA DA COSTA, 2010, p. 177). Contudo, na visão do autor, esse era um pensamento equivocado, já que deixava de lado o verdadeiro foco que deveria ser a elevação da qualidade dos serviços públicos prestados, em detrimento de oferecer o serviço só pensando na redução de gastos.

Contudo, o que não é observado pelos críticos, é que esse novo Estado, pós-reforma, foi concebido por uma estrutura técnica racional, o que o tornou mais ágil no desempenho de suas funções e mais eficaz em face das novas necessidades advindas da reordenação política e econômica do mundo contemporâneo, utilizando-se, para isso, de todos os meios legais e possíveis, no que se enquadra a descentralização. Para Di Pietro (1997):

[…] o que muda é principalmente a ideologia, é a forma de conceber o Estado e a Administração Pública. Não se quer mais o Estado prestador de serviços; quer-se o Estado que estimula, que ajuda, que subsidia a iniciativa privada; quer-se a democratização da Administração Pública pela participação dos cidadãos nos órgãos de deliberação e de consulta e pela colaboração entre o público e privado na realização das atividades administrativas do Estado; quer-se a diminuição do tamanho do Estado para que a atuação do particular ganhe espaço; quer-se a flexibilização dos rígidos modos de atuação da Administração Pública, para permitir maior eficiência; quer-se a parceria entre o público e o privado para substituir-se a Administração Pública dos atos unilaterais, a Administração Pública autoritária, verticalizada, hierarquizada (PIETRO, 1997, p. 11-12).

As bases dessa reforma fundamentaram-se no ajuste fiscal, enfocado na diminuição do quadro de servidores e modernização da Administração Pública, mediante o fortalecimento do núcleo estratégico do Estado – legislação, formulação de políticas públicas, fiscalização, regulamentação e financiamento de recursos – bem como de parcerias com setores e serviços da sociedade civil (BRESSER PEREIRA, 2001; AZEVEDO; ANDRADE, 1997).

COSTA (1998) faz uma crítica sobre a publicização e privatização assumida na reforma do Estado, afirmando que foi na verdade uma forma de fortalecimento do Estado de per si e “não na regulação social sobre as desigualdades que o mercado cria, e sim nas transformações de tudo o que antes era regulação em mecanismo de mercado”. (COSTA, 1998, p. 200)

Nós temos uma presença forte do Estado em áreas como saúde, educação e cultura. Com isso, a sociedade civil se retrai e delega ao governo o controle dessas áreas. Quando precisa de um hospital em um bairro, por exemplo, ninguém pensa em se organizar e buscar recursos; o que as pessoas fazem é se voltar para o governo. E, na verdade, a essência da filantropia é a autorregulação social. Por esse motivo, a ideia filantrópica no país está ligada ao conceito de assistencialismo. Só que isso é um equívoco:  mais do que boas ações isoladas ou caridade, a filantropia busca realizar mudanças estratégicas, efetivas e de longo prazo que promovam desenvolvimento econômico e social, e aqui vem coadunar o ideário de Estado reformado cujo conceito está taxado no MARE (Cadernos do MARE, Cad. 2, 1997).

De acordo com o art. 2º, da Lei 13.019/2014 (MROSC): “As parcerias disciplinadas nesta lei respeitarão, em todos os seus aspectos, as normas específicas das políticas públicas setoriais relativas ao objeto da parceria e as respectivas instâncias de pactuação e deliberação (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)”. Com isso, coloca-se em relevo que, apesar de não ser o Estado o executor dos projetos, objeto de parcerias entre si e as OSCs, mantém-se o compromisso de respeito às normas específicas das políticas públicas setoriais que estariam presentes, caso o próprio Estado estivesse ou esteja executando o serviço à sociedade. Portanto, não haveria que se falar em desvio com a publicização, objeto da reforma iniciada em 1995 (BRASIL, 2014).

2.2 OSCs distribuídas por regiões administrativas no Distrito Federal

Para que se possa fazer uma análise criteriosa sobre o crescimento da parceria estatal com as instituições filantrópicas e, por conseguinte, uma análise sobre a efetividade e eficácia da qualidade de serviços públicos desenvolvidos junto à população por ditas OSCs, com a sua publicização, far-se-á necessário identificar quantitativamente primeiro, por meio de gráficos, a quantidade de instituições existentes por regiões administrativas no Distrito Federal e a quantidade de pessoas envolvidas. Tal análise busca identificar se verdadeiramente áreas consideradas de maior vulnerabilidade são o foco das instituições e de aporte de recurso pelo Estado.

Utilizar-se-á como corpus para a análise nesta seção, instituições filantrópicas que se dedicam à educação infantil e alunos matriculados nessas instituições. As Regiões Administrativas foram aqui definidas como áreas não vulneráveis, áreas vulneráveis e áreas mais vulneráveis, segundo dados referentes à renda per capta de seus moradores (Wikipédia, 2023).

1 – Áreas não vulneráveis – Foram classificadas como áreas não vulneráveis, conforme tabela no anexo 1, as cidades cuja renda per capta de seus habitantes está registrada entre os valores R$ 6.778,00 (seis mil, setecentos e setenta e oito reais) e R$ 3.742,00 (três mil, setecentos e quarenta e dois reais), inclusive (WIKIPEDIA, 2023);

2 – Áreas vulneráveis – Foram classificadas como áreas vulneráveis, conforme tabela no anexo 1, as cidades cuja renda per capta de seus habitantes está registrada entre os valores R$ 2.381,10 (dois mil, trezentos e oitenta e um reais) e R$ 1.596,40 (mil, quinhentos e noventa e seis reais e quarenta centavos), inclusive (WIKIPEDIA, 2023);

3 – Áreas mais vulneráveis – Foram classificadas como áreas mais vulneráveis, conforme tabela no anexo 1, as cidades cuja renda per capta de seus habitantes está registrada entre os valores R$ 1.351,20 (mil, trezentos e cinquenta e um reais e vinte centavos) e R$ 797,10 (setecentos e noventa e sete reais e dez centavos), inclusive (WIKIPEDIA, 2023).

Os dados e valores da renda per capta de todas as cidades estão registrados na tabela demonstrada no ANEXO deste trabalho.

Com a coleta dos dados, utilizamos a ilustração, por meio de figura em gráfico, para uma maior percepção visual da real situação de atendimento à comunidade por essas instituições que representam o Estado junto às comunidades que usufruem de serviços de caráter público, embora executados por instituições privadas.

Figura 1. Gráfico de Instituições localizadas em áreas segundo a renda per capta no Distrito Federal

Fonte: própria

Figura 2. Gráfico de alunos matriculados em instituiçoes localizadas em áreas segundo a renda per capta de seus habitantes, no Distrito Federal

Fonte: Dados educacionais 2023

Percebe-se que as áreas mais vulneráveis são as que atualmente mais atraem o surgimento de novas ONGs (FERNADES, 94, P. 67). Se somarmos as áreas mais vulneráveis com as vulneráveis, perceber-se-á que, juntas, comportam quase 80% de todas as ações filantrópicas. Este fato é visto como algo natural, já que são as áreas que mais despertam os anseios de instituições filantrópicas, por expressarem maiores carências em serviços públicos, foco das instituições.

Segundo Fernandes (1994), as ONGs surgem de forma massiva no continente a partir da década de 1970 e, no, Brasil, especificamente na década de 1980. O Brasil, atualmente, detém quase 25% de todas as ONGs da América Latina, dado o seu tamanho e a sua população (FERNANDES, 1994, P. 70).

De acordo com os dados tabulados e copilados de sítios oficias (DADOSEDUCACIONAIS, 2023), percebe-se que o número de pessoas alcançadas pelas instituições filantrópicas, com os projetos sociais desenvolvidos, é muito superior nas áreas de maior vulnerabilidade, o que já era de se esperar, já que o intuito do Estado, com a publicização de serviços públicos, e todo o seu esforço legal (BRASIL, 2014), objetiva principalmente o alcance maior e com maior qualidade de sua presença junto às comunidades mais vulneráveis, valendo-se, para isso, da capilaridade dessas instituições.

Outro motivo que pode justificar uma maior adesão a esses serviços é dicotômico, pois, enquanto nas áreas não vulneráveis as famílias, por diversas razões, não acreditam que os serviços públicos ministrados de forma pública e gratuita, ainda que por instituições privadas, possam ser de qualidade, nas áreas mais vulneráveis a percepção é diferente. Há, inclusive, um clamor social para que tais serviços sejam ampliados. Talvez porque não haja muita escolha para as famílias mais vulneráveis que, ao provarem o atendimento, passem a aprová-lo por conhecerem as instituições e por estas se esforçarem na busca de qualidade para os serviços. Mister acrescentar que há também uma fiscalização do Poder Público visando exatamente à efetividade e qualidade dos serviços prestados.

A comunidade, por sua vez, ao desfrutar de serviços essenciais como saúde e educação, dentre outros, torna-se socialmente empoderada, pois a educação, por exemplo, é uma das mais eficazes ferramentas de transformação social. Gomes de Castro (REPOSITÓRIO, 2018, p. 12) lembra bem que o acesso ao ensino particular, por meio dos serviços dessas instituições, é forma de viabilizar acesso a posições na pirâmide social, dada a qualidade do ensino.

2.3 A Lei 13.019, de 31 de julho de 2014

Era necessário criar uma lei específica que regesse a relação do Estado com as Instituições Organizadas da Sociedade Civil, visando “maior transparência e democracia na efetivação dessas ações, e, ainda, o fortalecimento da sociedade civil, sem deixar de observar os princípios da legalidade, da legitimidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da economicidade e da eficiência” (BRASIL, 2014).

A Lei Federal nº 13.019/2014 estabeleceu novas regras para firmar parcerias entre a Administração Pública e as OSCs. A lei prevê que quando não houver transferência de recursos financeiros, deverá ser celebrado um Acordo de Cooperação. Já quando a parceria envolver a transferência de recursos financeiros, deverá ser celebrado Termo de Colaboração ou o Termo de Fomento (BRASIL, 2014).

O Chamamento Público, instrumento usado para garantir igualdade de competição entre as OSCs na busca por recursos públicos e a seleção da melhor proposta, é o procedimento destinado a selecionar OSC para celebrar parceria com a Administração Pública. O Chamamento Público observará critérios claros e objetivos estabelecidos no edital, que garantam a presença dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e os princípios específicos das políticas públicas setoriais (BRASIL, 2014).

A Lei 13.019/2014 prevê, em seu art. 29 e 30, a possibilidade de se realizar parcerias sem que haja a necessidade de se fazer chamamento público, sem, contudo, ferir os princípios da legalidade, da legitimidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da economicidade e da eficiência” (BRASIL, 2014).

De acordo com o procedimento de Manifestação de Interesse Social, por meio do qual os cidadãos, as OSCs e os movimentos sociais provocam a Administração Pública a reagir sobre a viabilidade de realizar o chamamento público para determinada política pública. As propostas enviadas descreverão o interesse público envolvido e a realidade a ser modificada, melhorada ou desenvolvida. É mister destacar que a OSC autora da proposta aprovada não desfruta de qualquer vantagem no chamamento ou direito de execução do projeto (BRASIL, 2014).

O art. 33 da Lei Federal n° 13.019/2014 estabeleceu alguns requisitos para que uma OSC celebre parceria com o Poder Público:

Figura 3. Exigência da lei para que OSCs firmem convênio com o Poder Público

ESTATUTO QUE CONTENHATEMPO DE EXISTÊNCIA MÍNIMO (CNPJ)EXPERIÊNCIA PRÉVIACONDIÇÕES MATERIAIS E CAPACIDADE TÉCNICA E OPERACIONAL
Objetivo a execução de atividades Cláusula de transferência do patrimônio líquido, em caso de dissolução, a outra pessoa jurídica de igual natureza e preferencialmente com igual objeto social   Cláusula prevendo a escrituração de acordo com as Normas Brasileiras de Contabilidade3 anos para parcerias com a União 2 anos para parcerias com o Estado e o Distrito Federal 1 anos para parcerias com Municípios1 anoComprovada

Fonte: ENTENDENDO-A-LEI- 2023

O art. 34, da Lei 13019/14 ainda estabelece outros documentos a serem apresentados necessariamente: certidão de regularidade fiscal, previdenciária, tributária, de contribuições e de dívida ativa, certidão ou cópia do estatuto da entidade, ata de eleição do quadro dirigente, comprovante de endereço da OSC e relação dos dirigentes, contendo nome, endereço, RG e CPF (BRASIL, 2014).

Com exceção da obrigatoriedade de chamamento público para celebração de parcerias para execução de atividades nas áreas de Assistência Social e Educação, nos casos em que haja credenciamento dessas instituições pelas secretarias gestoras da política, como dispõe o art. 30, inciso VI da Lei 13019/2014, todas as novas regras contidas no MROSC aplicar-se-ão às OSCs que atuem nas áreas de assistência social e educação. Além disso, o artigo 2º-A prevê expressamente que as parcerias respeitarão as normas específicas das políticas públicas setoriais concernentes ao objeto da parceria e as respectivas de pactuação e deliberação.

Também os artigos 27, § 1º e 59, § 2º preveem que os respectivos conselhos se responsabilizarão pela comissão de seleção de propostas, bem como pelo monitoramento e avaliação das parcerias financiadas com recursos de fundos específicos, respeitadas as exigências do MROSC.

Com relação às entidades de assistência social, o tipo de parcerias proposto pela Lei Federal n° 13.019/2014 não contraria as diretrizes e parâmetros estabelecidos nas normas vigentes no âmbito do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. O citado artigo 2º-A reconhece a importância e influência da Comissão Intergestores Bipartite e da Comissão Intergestores Tripartite e dos Conselhos Federal, Estaduais e Municipais. Concomitante a isso, os conselhos sustentam o importante papel de acompanhar e fiscalizar a execução das parcerias entre as entidades de assistência social e a gestão local, e sem prejuízo da fiscalização pela administração Pública e pelos órgãos de controle, conforme estabelecido no art. 60 da Lei Federal n° 13.019/2014. (BRASIL, 2014)

De acordo com o art. 46, da Lei Federal n° 13.019/2014, torna-se possível remunerar trabalhadores do projeto que irão executar a parceria, inclusive de pessoal próprio da organização da sociedade civil, compreendendo as despesas com pagamentos de impostos, contribuições sociais, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, férias, décimo terceiro salário, salários proporcionais, verbas rescisórias e demais encargos sociais e trabalhistas, durante a vigência da parceria. Qualquer despesa para custeio da parceria, antecipadamente prevista no plano de trabalho do termo de colaboração ou termo de fomento, poderá ser executada com recursos da parceria, inclusive despesas de pessoal, diárias e custos indiretos ligados à execução do objeto. O art. 45 da Lei estabelece algumas vedações: despesas não condizentes com a finalidade da parceria, pagamento de servidores ou empregados públicos. (BRASIL, 2014)

Por meio do acompanhamento das parcerias subjaz a possibilidade de utilização de apoio técnico de terceiros (outros entes públicos, ou entidades próximas ao local onde é executada a parceria), com o intuito de promover um acompanhamento mais eficaz e assertivo quanto aos resultados da parceria. As informações coletadas por meio do monitoramento serão objeto de um relatório para a Comissão de Monitoramento e Avaliação, órgão colegiado, instituído por ato normativo próprio, que tem por atribuição acompanhar a execução das parcerias e analisar os relatórios de monitoramento e avaliação, emitindo parecer sobre ele. A ideia da Lei Federal n° 13.019/2014 é fortalecer o monitoramento para facilitar a confirmação do cumprimento do objeto e do alcance da finalidade da parceria durante a análise da prestação de contas. É proibida a exigência de contrapartida financeira como condição para a celebração, podendo, no entanto, tal contrapartida ser ofertada voluntariamente pela OSC. A contrapartida não financeira (em serviços e bens), quando exigida, deve ser informada no termo de colaboração e fomento, como determina o art. 35, §1° da Lei (BRASIL, 2014).

A Lei traz como algo novo uma prestação de contas com foco em resultados, desburocratizada. A OSC deverá apresentar elementos que possibilitem à Administração Pública avaliar se houve o cumprimento das metas e objetivos, ou seja, o alcance do objeto. Geralmente, solicitar-se-á uma prestação de contas simplificada. Em parcerias em que não seja comprovado o cumprimento de metas e do objeto acordado, solicitar-se-á apresentar documentos complementares de comprovação de despesas. Outra inovação é a previsão de que a prestação de contas efetuar-se-á eletronicamente, o que enseja maior transparência e dinamismo. Vale ressaltar que a Lei abre espaço para que outros entes federados (Municípios, Estados-membros e Distrito Federal) estabeleçam as suas próprias regras. Porém, ela também estabelece a necessidade de capacitação (por meio do fornecimento de manuais, por exemplo) para orientar todos os envolvidos na parceria sobre as regras a serem seguidas (BRASIL, 2014).

A Administração Pública deverá aplicar sanções à OSC quando verificar que a execução do objeto ocorreu de forma estranha ao previsto no plano de trabalho. Somente ministros e secretários estaduais ou municipais podem aplicar as sanções previstas na Lei. Além disso, a Lei Federal n° 13.019/2014, reforça a responsabilidade dos servidores públicos ao alterar a Lei Federal nº 8.429/1992, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa. Incluiu-se como ato de improbidade administrativa: (i) “frustrar a licitude de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos”; (ii) “agir negligentemente na celebração, fiscalização e análise das prestações de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas”; e (iii) “descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas”, entre outros (BRASIL, 2014).

Outro ponto relevante é a previsão de fortalecimento das organizações filantrópicas, ou seja, fortalecimento da própria sociedade civil, já que esta é representada por aquelas. A Lei 13.019/2014, a partir de seu art. 13, prevê tal fortalecimento, divulgando trabalhos bem-sucedidos desenvolvidos por ditas instituições para que sejam modelos para as demais. A lei prevê ainda a possibilidade de criação de conselho nacional e/ou regionais para o fomento, com a finalidade de divulgar boas práticas e de propor e apoiar políticas e ações voltadas ao empoderamento das relações de fomento e de colaboração (BRASIL, 2014).

Resta, portanto, evidente que a Lei 13.019/14, chamada de MROSC, novo marco regulatório das parcerias entre Estado (em todas as suas esferas) e instituições civis da sociedade organizada, ONGs, trouxe maior transparência e segurança jurídica para as instituições privadas. Antes do novo marco, muitas delas eram prejudicadas por serem vulneráveis, sob um ponto de vista político, dependendo da benevolência de agentes políticos. A Lei, por fim, estabeleceu parâmetros claros de responsabilidade para ambos os sujeitos envolvidos na parceria.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A prática ou os procedimentos metodológicos dizem respeito ao conjunto de ações e decisões com relação à eleição das técnicas usadas na pesquisa e na metodologia para a construção de um trabalho científico. É importante fazermos uma diferenciação entre metodologia e procedimentos metodológicos. Metodologia é a ciência que estuda os meios (métodos) da confecção do conhecimento, enquanto que os procedimentos metodológicos são todas as técnicas, opções e escolhas do cientista na aplicação dos métodos de investigação, pois, não há ciência sem o emprego de métodos científicos (LAKATOS e MARCONI, 1986).

Para a confecção deste trabalho, buscamos construir um texto científico que alcançasse os objetivos propostos. Assim, buscou-se identificar: (i) se os objetivos lançados com a reforma do Estado, na década de 90, foram ou estão sendo alcançados; (ii) se as propostas lançadas com a publicização de serviços públicos estão, de fato, sendo aplicadas; e (iii) se o “Empoderamento Social” (desfrute de melhor qualidade de vida proporcionada por meio da internalização de direitos e deveres sociais que conscientizam os cidadãos na execução de ações que cobrem de seus representantes políticos atitudes para esse fim) em grupos de pessoas que se encontrem em situação de vulnerabilidade social, é, de fato, perceptível.

O foco deste artigo, logo, é de cunho qualitativo, haja vista que o bojo do trabalho é um resultado crítico-funcional. Para chegar-se a um panorama avaliativo, revisou-se inicialmente a literatura sobre a origem do tema da publicização de serviços no Brasil, oriundo da reforma do Estado, visando a uma maior participação da sociedade organizada para a superação de nós que dificultavam ou dificultam a presença do Estado em áreas (locus) ainda não alcançadas (BRESSER PEREIRA, 1999). A posteriori, tratou-se também do avanço do cabedal legal que se usou para que a relação do Estado com as Organizações da Sociedade Civil fosse algo possível, transparente, producente e estivesse sob a tutela da Lei, até chegar ao ápice dessa relação com o advento do MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil), lei que trouxe grande avanço para a relação Poder público-OSCs (BRASIL, 2014).

Também analisamos os dispositivos da Lei 13.019/2014, identificando quão frutífera é para a comunidade não apenas a sua aplicação, senão também o efetivo conhecimento da mesma pelos cidadãos, objetivando uma conscientização de que, embora as instituições sejam pessoas jurídicas de direito privado, os serviços que elas prestam são serviços públicos, haja visto que são mantidos com verbas públicas, devendo inclusive ser fiscalizadas por aqueles que usufruem de seus serviços e pelos órgãos de controle.

Buscamos, outrossim, trazer dados concretos e atuais, originados na relação do poder público com as instituições filantrópicas (OSCs), e que dessem um panorama de avanço ou retrocesso dessa relação. Tais dados foram coletados em sítios da Internet de órgãos do Distrito Federal, concentrando a pesquisa nessa unidade da Federação. Elaboramos gráficos com os dados coletados para melhor visualização e compreensão do panorama social de serviços prestados pelas instituições filantrópicas. Esses gráficos mostram o quantitativo de instituições e de pessoas alcançadas diretamente nas regiões administrativas do Distrito Federal. Essas regiões foram classificas levando em consideração o poder aquisitivo de seus habitantes.

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

A chamada “Reforma do Estado”, ou melhor, “Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado”, da década de 90, nos Governos FHC, deu maior ênfase ao processo de publicização dos serviços públicos, com o objetivo de colocar parte da responsabilidade do desenvolvimento da Nação sob a responsabilidade da própria sociedade, por meio das Organizações Sociais Não Governamentais (ONGs), e não mais somente do Governo (BRESSER PEREIRA, 1999).

Ao longo dos anos seguintes, o que se viu foi um aumento vertiginoso dessa corrente iniciada no Governo de Fernando Henrique Cardoso. Essa linha de pensamento, que já era popular na Europa, defende que não somente o Governo pode ser fomentador de desenvolvimento, concebendo liderando a execução de projetos que possibilitem melhor aproveitamento de recursos públicos, no tocante à qualidade e efetividade de seus resultados, mas também instituições da sociedade civil organizada.

O Governo fez a sua parte, criando soluções e removendo entraves para o acesso às verbas públicas. E, por outro lado, a sociedade civil se organiza e cria ONGs para diversos campos de atuação, sobretudo na saúde (o que já ocorria de forma bastante tímida, com as Santas Casas), na educação (ampliando o trabalho de pouquíssimas e louváveis instituições religiosas) e na cultura.

Não obstante, era preciso construir um caminho dentro da legalidade, para que tudo fosse feito à luz da transparência. Surge, com isso, o Decreto Federal 1.366/95, que instituiu o Programa Comunidade Solidária, seguido do ideário de reforma do Estado (Cadernos do MARE, Cad. 2, 1997). Com o fim de fortalecer a concepção do Decreto 1.366/95, surge a Lei nº 9.790/1999, que dispõe sobre as chamadas OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público). Em seguida, o 3.100/99 altera o decreto anterior, instituindo o Edital de Concurso de Projetos, pelo órgão estatal parceiro, para obtenção de bens e serviços e para a realização de atividades, eventos, consultoria, cooperação técnica e assessoria, como o meio obrigatório para a seleção da OSCIP, com o intuito de firmar termo de parceria. (BRASIL, Decreto nº 3.100/99, Art. 8º, caput).

Mas, o avanço maior se deu com o MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil), regulamentado pelo Decreto 8.726/2016, considerado pelo Governo e pelas OSCs um grande avanço na normalização da relação do Estado com as OSCs, trazendo segurança jurídica para ambos. O número de Termos de Parceria (instrumento usado para legalizar a parceria entre Estado e OSCs) assinados entre Governos, em todas as suas esferas, e OSCs, só vem crescendo ao longo dos anos, demonstrando que a iniciativa do Governo e da sociedade civil organizada foi frutífero, atingindo os seus objetivos.

Não resta dúvida que houve um grande crescimento no empoderamento social, já que o número de cidadãos alcançados com os projetos desenvolvidos pelas OSCs foi muito grande, quando se compara com anos anteriores ao MROSC. O empoderamento social se dá com o desfrute dos projetos sociais aplicados pelas OSCs, custeados com verba pública e fiscalizados não somente pelo Governo, mas também por órgãos de controle, Receita Federal e Ministério Público. Devido à capilaridade das OSCs, distribuídas em áreas mais vulneráveis da Polis, como demonstram os gráficos das figuras 1 e 2, o alcance dos projetos é maior em relação àqueles em condições de vulnerabilidade social.

Outro fator a considerar é o fortalecimento das OSCs que passam a contar com a confiança da sociedade, devido ao trabalho apresentado na própria localidade onde está inserida. Isto faz com que a própria sociedade seja também fomentadora das necessidades da própria instituição, já que o recurso aplicado no projeto deve ser exclusivo para esse fim, não podendo ser usado para a aquisição de bens que, embora necessários para a sobrevivência da própria instituição, não estejam no rol de itens imprescindíveis para a consecução do objeto.

Com a promulgação da Lei 13.019/2014, regulamentada pelo Decreto 8.726/2016, houve um ganho social do ponto de vista do interesse de OSCs em firmar Termo de Parceria com o Estado, pois, agora, há um sentimento de maior perenidade das políticas públicas, com o comprometimento de agentes de Estado e não somente do Governo de plantão.

As ações previstas no texto legal apontam para um empoderamento social, sob um olhar formativo, já que as ações, sejam elas no campo da saúde, da educação, da assistência social ou da cultura, visam à formação do cidadão, levando-o a ter maior percepção de si mesmo e de seus concidadãos, desenvolvendo seu próprio senso crítico que lhe possibilite compreender melhor o seu papel dentro da sociedade.

O conhecimento da Lei também possibilita ao cidadão perceber os seus direitos e deveres. É a compreensão de que, embora haja uma liberação de verba pública, isso não quer dizer que o cidadão deva estar eternamente agradecido e submetido ao governante. A verba é liberada porque é verba pública, e desde a origem está destinada a ser empregada no serviço que atenda a comunidade, não devendo gerar nenhum sentimento de dívida política a ser paga, senão a gratidão do senso-comum para aqueles que, no estrito cumprimento de suas obrigações, contribuíram republicanamente para a realização do bem comum.

Notou-se, por fim, que, na maioria esmagadora dos casos, as OSCs estão localizadas em áreas urbanas, levando atendimento aos cidadãos dessas áreas, majoritariamente. Há que se fomentar o surgimento de OSCs também em áreas periféricas e rurais, para que se leve ao homem do campo e da periferia dignidade, conhecimento e esclarecimento, por meio de projetos, como se faz em áreas urbanas.

A evolução natural e contemporânea do que foi a Reforma do Estado, dos anos 90, como está demonstrado na Figura 2, seria que o atual MROSC atingisse prioritariamente o cidadão da periferia e do campo, áreas de maiores vulnerabilidades sociais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se dizer que a parceria entre Instituições da Sociedade Organizada (OSCs) e a Administração Pública, felizmente, é um caminho sem volta. O MROSC permite que a sociedade civil auxilie o Estado na administração de projetos importantes para a comunidade, em suas mais diversas áreas, como saúde, educação, assistência social e cultura. As experiências adquiridas até aqui nos mostram que houve um ganho satisfatório com a participação direta dessas instituições na concepção e consecução de políticas públicas.

Este artigo se restringiu a analisar dados coletados sob a realidade do Distrito Federal, apenas uma unidade da Federação. Nossa análise concluiu que a sociedade brasileira se tornou mais empoderada ao longo dos últimos 30 anos. O crescimento do número de instituições filantrópicas cresceu exponencialmente nos últimos anos. A própria sociedade compreendeu que é possível complementar as ações governamentais, usando a própria estrutura da sociedade, para desenvolver projetos dentro das comunidades necessitadas.

É a própria sociedade que melhor conhece as suas necessidades e, assim, está mais preparada para apontar a direção do gasto público. Foi com tal espírito que o país deu início às iniciativas de empoderamento do terceiro setor nos anos 90 e que, mais recentemente, foi ampliado pelo MROSC.

O desafio atual, contudo, é ampliar e aprofundar as parcerias dentro do novo marco regulatório para que atinjam prioritariamente comunidades mais vulneráveis socialmente, especialmente aquelas inseridas na periferia de grandes centros urbanos, bem como na área rural.

REFERÊNCIAS

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BRASIL, Decreto Federal 1.366/95. Dispõe sobre o Programa Comunidade Solidária e dá outras providências; D.O.U. Brasília, DF, 13 de janeiro de 1995 e retificado em 18 de janeiro de 1995. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1995/d1366.htm. Acessado em 12 de maio de 2023.

BRASIL, Decreto nº 3.100 de 30 de junho de 1999. Regulamenta a Lei nº 9.790/99, que dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse público, institui e disci´plina o Termo de Parceria, e dá outras providências; D.O.U. Brasília, DF, 13 de julho de 1999. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3100.htm. Acessado em 12 de maio de 2023

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VIOLIN, Tarso Cabral. Terceiro setor e as parcerias coma administração pública: uma análise crítica. Belo Horizonte: Fórum,2006.


ANEXO

Figura 1. ONGs existentes em cada uma das regiões administrativas

  OSCS POR REGIÃO ADMINISTRATIVA  
BEASLÂNDIAJI Menino Jesus
    CEILÂNDIACentro Social Luterano Cantinho do Girassol
Escola Centro Comunitário da Criança
Instituto Frederico Ozanam
      GAMACentro de Convivência e Educação Infantil Maria Mãe da Providência
Centro de Convivência e Educação Infantil Nossa Senhora do Carmo
Centro de Convivência e Educação Infantil Sagrada Família
Centro de Convivência Educacional Infantil Divino Espírito Santo
    GUARÁCreche Comunitária da QE 38
Creche Sorriso de Maria
Creche Tia Joana do Lúcio Costa
    NÚCLEO BANDEIRANTECentro de Educação Infantil e Assistência Social Leo Tigre Peter
Creche Cantinho de Você
Lar Educandário Nossa Senhora Mont Serrat
    PARANOÁCentro de Educação São Filippo Smaldone – CEFIS
Escola Profa. Maria America Guimarães
Instituto Educacional São Judas Tadeu
    PLANALTINACreche Irmã Dulce
Creche Magia dos Sonhos
Instituto São Vicente de Paulo
              PLANO PILOTOAção Social Paula Frassinetti
Associação de Mães Pais Amigos Reabilitadores de Excep – AMPARE
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE-DF
Associação Pestalozzi de Brasília
Casa da Criança Pão de Santo Antônio
Casa do Pequeno Polegar
Centro Educacional da Audição e Linguagem Ludovico Pavoni – CEAL
Centro Social Comunitário Tia Angelina
Creche Cruz de Malta São João Batista de Jerusalém
Creche Pioneira da Vila Planalto
Creche São Vicente de Paulo
Escola Infantil Casa de Ismael
Escola Infantil Cícero Pereira
JI Casa do Candango
  RECANTO DAS EMASAssociação Beneficente Coração de Cristo
Pró-Vida Centro de Educação Infantil
  RIACHO FUNDO IInstituto de Educação Haidee Neves – IEHN
Instituto de Educação Luiz Hermani
RIACHO FUNDO IIInstituto Nair Valadares – INAV
            SAMAMBAIACentro de Educação Infantil AFMA
Centro Integrado de Educação Infantil Nossa Senhora Mãe dos Homens
Creche Lar de Maria
Creche Maria de Nazaré
Creche Pastor Francisco Miranda
Educandário Espírita Sementinha de Luz
Instituição Educacional Santa Luzia
SÃO SEBASTIÃOInstituto Educacional Dom Leolino e Irmã Cecília Luvizotto
SOBRADINHOInstituto Educacional Pintando o Sete
        TAGUATINGAAssociação de Pais e Amigos Excepcionais e Deficientes – APAED
Casa do Caminho
Centro de Educação Infantil Sonho de Criança – CEISC
Creche Cantinho da Paz
Escola Flor de Lis

Dados coletados no sítio: https://www.educacao.df.gov.br/creches-df/. Acesso em 06/09/2023.


[1] A publicização de atividades é uma forma de descentralização por meio da qual atividades executivas desenvolvidas pela administração direta ou por autarquias tem sua execução repassada para entidades privadas sem fins lucrativos conhecidas como organizações sociais. A publicização de atividade demanda estudos que comprovem ser vantajosa, em sentido amplo, a transferência da execução da atividade por organização social. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/transformagov/catalogodesolucoes/publicizacao-de-atividades. Acesso em: 18/01/2024.


VALDEBERTO PEREIRA DE SOUZA. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos (UNICEPLAC). Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: valdebertop@gmail.com.

FERNANDO DE MAGALHÃES FURLAN. Professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos (UNICEPLAC). Doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). E-mail: fernando.furlan@uniceplac.edu.br.

A inteligência artificial e os impactos no Judiciário brasileiro

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayer – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutoranda em direito pelo IDP/DF e mestre em direito pela UNB

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


A inteligência artificial e os impactos no Judiciário brasileiro

Pedro Gabriel dos Santos Aquino & Fernando de Magalhães Furlan

Resumo

O presente artigo objetivou compreender os desafios enfrentados pelo Judiciário brasileiro no que tange à implementação da inteligência artificial nas tomadas de decisões. Também buscou identificar experiências de tribunais, órgãos públicos e magistrados, para, a partir delas, discutir como minimizar a não aceitação da tecnologia, baseada na inovação e nos desafios que pretende enfrentar. Foi utilizado o método de pesquisa bibliográfica e estudos diretos sobre o tema. A partir das pesquisas, foi observado quais as principais barreiras enfrentadas pelos magistrados para adesão à inteligência artificial. Inicialmente, foi constatado que a baixa oferta de treinamento é um fator relevante, uma vez que, para se utilizar tecnologia tão inovadora, devem os magistrados saber exatamente quais pontos deverão merecer maior atenção. Atualmente já há projetos de lei no Congresso Nacional que trazem uma delimitação sobre o uso da inteligência artificial dentro nos tribunais brasileiros. Todavia, para que todos os tribunais comecem a implementar a IA, deve-se voltar atenção maior para a sua regulamentação.

Palavras-chave: 1° inteligência artificial; 2° aplicação no Judiciário; 3° regulamentação; 4º desafios.

Abstract

The present work aimed to understand the challenges faced by the Brazilian judiciary regarding the implementation of artificial intelligence in decision-making, as well as to identify the experiences of public bodies and magistrates, to be able to discuss how to make this non-acceptance based on the challenges minimized. For this, the method of bibliographical research and direct studies on the subject were used. From the research it was observed which the main barriers faced by the magistrates for the adhesion of artificial intelligence are. Initially, it was verified that the low supply of training is a relevant factor, since the use of such an innovative technology would require magistrates to know in advance the points they should pay attention to. In addition to the lack of implementation of a law that deals directly with the subject presented, it is known that currently there are bills in the National Congress which aim at a delimitation on the use of artificial intelligence within the Brazilian courts.

Keywords: 1º artificial intelligence; 2º application in the Judiciary; 3º regulation; 4º challenges.

Sumário

1.       INTRODUÇÃO

2.       INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO

2.1.    Sistemas que agem de maneira racional

3.       CONCEITOS OPERACIONAIS

3.1.    Machine learning

3.2.    Deep learning

3.3.    Big data

4.       O USO DA INTELIGENCIA ARTIFICIAL NO JUDICIÁRIO

4.1.    Hórus – Tribunal de Justiça do Distrito Federal

4.2.    Victor- Supremo Tribunal Federal

5.       ATUAL REALIDADE NA TOMADA DE DECISÕES E OS LIMITES JUDICIAIS DE ACORDO COM O PROJETO DE LEI Nº 5.501/2019

6.       CONCLUSÃO

Introdução

O presente artigo tem por objetivo tratar da aplicação da inteligência artificial às decisões judiciais, pois é inegável a evolução da tecnologia dentro das diversas áreas do conhecimento, inclusive na área do direito. É preciso, contudo, refletir sobre a evolução tecnológica e a eventual possibilidade de causar prejuízos. Quando falamos de tutela de bens jurídicos e possíveis desdobramentos que isso pode causar na vida das pessoas, o Poder Judiciário tem a missão de dirimir conflitos e trazer a pacificação social.

Desta forma, a adoção da inteligência artificial pelo Judiciário serve para auxiliar na celeridade e qualidade, objetivando contribuir com o trabalho dos juízes e dos servidores dos tribunais. Para que essa evolução seja bem aceita pelos magistrados e serventuários, deve-se, em primeiro lugar, verificar como o uso da inteligência artificial poderá auxiliá-los, seja para mapear processos em repetição ou proferir decisões, com o auxílio físico do juiz.

A inteligência artificial é uma maneira de reprodução, por meios tecnológicos, dos pensamentos e ações que poderiam ser tomados ou pensados no dia-dia. O Judiciário atualmente tem notado a relevância da tecnologia, de forma geral, para uma abordagem específica, observando, de maneira enfática, a contextualização social e cultural da sociedade. Reparemos que máquinas programadas para tarefas racionais podem oferecer perspicácia em várias facetas da experiência humana, ao passo que os seres humanos empregam a tecnologia para ajustar e aprimorar o seu desempenho.

A inserção da inteligência artificial (IA) nas dinâmicas processuais judiciais traz um alívio, mesmo que ainda não evidenciado, em face de processos novos, pois muitos são os avanços em que a autonomia da inteligência artificial poderá proporcionar aos tribunais. Assim, é crucial que os tribunais realizem uma reestruturação, simplificando procedimentos e assegurando que, ao avaliar o mérito de cada caso, possam atender eficazmente às necessidades da sociedade, sem comprometer os princípios legais fundamentais estabelecidos. Ou seja, entregar Justiça com qualidade e em tempo razoável.

Inicialmente, examinaremos e conheceremos sobre a inteligência artificial e seu progresso tecnológico, no contexto da incorporação dos sistemas aos tribunais brasileiros. Especialmente quando se discute a viabilidade de um “juiz-robô”, na perspectiva jurídica de poder e ter a capacidade jurídica e ética para tomar, de forma autônoma, uma decisão. A inteligência artificial, no âmbito jurídico, é percebida como uma ferramenta criada pela humanidade para auxiliar os tribunais na sua adaptação às crescentes exigências da sociedade contemporânea.

No terceiro capítulo, iniciaremos nossa análise explorando os conceitos da inteligência artificial. Posteriormente, abordaremos os conceitos de machine learning, big data e deep learning, com um enfoque mais específico nas distintas facetas tecnológicas que compõem a inteligência artificial. Consideraremos como a crescente busca por avanços tecnológicos trouxe, ao campo jurídico, a adoção de sistemas que refletem a perspectiva dos profissionais do direito em direção a um contínuo esforço de progresso e melhoria no sistema de Justiça.

Em seguida, no quarto capítulo, abordaremos o uso e os impactos da inteligência artificial no Poder Judiciário, com base nos princípios e no direito. Nosso objetivo é compreender os benefícios que acompanham a aplicação da inteligência artificial, examinando as crescentes expectativas da sociedade em relação ao Judiciário, desde o momento da entrada de um pedido, até a prolação de uma decisão final. Para ilustrar, consideraremos dois projetos, já em uso no Brasil, como exemplos: o sistema “Hórus”, adotado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, e o sistema “Victor”, atualmente em uso e atualização pelo Supremo Tribunal Federal. Esses sistemas foram projetados para processar informações em larga escala de maneira significativamente mais rápida do que os seres humanos.

No quinto e último capítulo, o tema central de discussão se concentra na necessidade de analisar cada caso de forma individualizada. Partimos do pressuposto de que a maioria da população brasileira vê o Poder Judiciário como a única instância para a resolução de conflitos, o que, por sua vez, leva a uma sobrecarga do sistema, potencialmente resultando em dificuldades na prestação eficaz de serviços jurisdicionais. Além disso, abordaremos proposições legislativas que destacam a importância da proteção da privacidade, dos dados pessoais, da transparência e da supervisão humana na operação de sistemas de inteligência artificial. A ênfase será sempre na busca pela qualidade e eficiência dos serviços oferecidos à sociedade.

O desenvolvimento deste artigo seguirá uma abordagem metodológica, baseada em pesquisa bibliográfica-documental, como procedimento técnico. O método de abordagem empregado será o dedutivo, e a análise adotada terá uma natureza predominantemente qualitativa. Para obter uma compreensão abrangente do cenário social atual, relacionado à adoção de novas tecnologias, recorreremos a uma variedade de fontes, incluindo livros, estudos acadêmicos, recursos online, artigos científicos, periódicos, monografias e textos legislativos.

2. Inteligência artificial e desenvolvimento tecnológico

A inteligência artificial é uma forma de reprodução do pensamento e ações humanas, realizada por sistemas e máquinas, a partir de robôs, com a capacidade de realizar tarefas que vão além do simples raciocínio lógico e respostas rápidas que, na maioria as vezes, exigem de interferência humana. Atualmente, um robô ou sistema com inteligência artificial, tem, na maioria das vezes, a plena capacidade de raciocinar de maneira autônoma. Quando falamos da inserção da inteligência artificial no direito brasileiro, devemos ir muito além de pensar somente em sistema, mas devemos considerar, também, a agilidade na prestação jurisdicional e a contextualização social e cultural, pois são importantes e fundamentais para o direito. (NICOLA, 2021)

Por meio da inserção da (IoT) Internet of Things, popularmente conhecida como “Internet das coisas”, a capacidade de conectividade, como, por exemplo, na casa inteligente, da inteligência artificial traz consigo centenas de possibilidades a partir de conectividades parecidas com essa para o meio jurídico. (NICOLA, 2021)

O aprendizado rápido e assertivo faze parte de um conjunto de algoritmos sofisticados, que estimulam o aprendizado por meio de processamento, análise e pesquisa de dados, além da coleta de informações. Dessa maneira, o sistema pode simular o raciocínio de um profissional do Direito. Atualmente, esses softwares vêm sendo usados de maneira difundida nos escritórios de advocacia, mas também nos tribunais, uma vez, que são utilizados como um suporte, o que traz uma organização e agilidade maior ao trabalho. Para que um sistema de software se torne uma solução de inteligência artificial é necessário, de forma genérica, que deixe de, simplesmente, auxiliar e passe a exercer atividade direcionada à decisão, atuando como assistente virtual dos profissionais e tribunais.

Existem dois tipos de inteligência artificial, que se relacionam bem com o mundo jurídico: (i) a inteligência artificial forte, ramificação da inteligência artificial em que o sistema tem uma maior assertividade de raciocínio lógico, uma autoconsciência que emula o raciocínio lógico com perfeição; e (ii), a inteligência artificial fraca, que não tem a capacidade de imitar o raciocínio humano, pode também auxiliar de maneira assertiva, tratar um grande volume de dados, elaborar relatórios, porém, sem a capacidade da consciência humana. Nesse caso, as máquinas utilizam softwares e algoritmos criados para finalidades específicas, como simular uma conversa humana, por exemplo, o ChatGPT[1].

As mudanças que a tecnologia trouxe na última década foram de grande importância para o desenvolvimento mundial. O aperfeiçoamento da inteligência artificial (IA) e de muitas outras manifestações digitais trouxeram novos desafios inimagináveis para a humanidade, sobretudo, ao mundo jurídico, uma seara com poucas inovações até recentemente. Esse incessante avanço científico e tecnológico tem contribuído de maneira altamente positiva em várias disciplinas do conhecimento humano. À medida que nos deparamos com um vasto leque de possibilidades, vários especialistas e pesquisadores propõem a perspectiva de um futuro iminente, onde a inteligência artificial possa vir a suplantar ocupações atualmente conduzidas por seres humanos. (BUBNOFF; SERRANO, 2023).

Nesse sentido, a Doogue O´Brien George[2], uma firma de advocacia da Austrália, lançou um serviço de consultas online, uma espécie de advogado robô, que proporciona às pessoas a oportunidade de se prepararem para comparecer a um tribunal e defender os seus interesses, por meio da defesa adequada, sem a presença de um advogado, por meio de um texto escrito com base em informações inseridas no seu banco de dados. Hoje em dia, a inserção da IA dentro do Judiciário está também presente no exterior. Um sistema chamado Smartsettle[3] tem ajudado a resolver conflitos judiciais no Reino Unido. O algoritmo junta as prioridades das partes e ajuda-as a escolher as melhores formas para a resolução do conflito, assim chegando a um ótimo acordo (BUBNOFF; SERRANO, 2023).

Por esse motivo, a inteligência artificial traz consigo a capacidade de receber, processar e a autonomia de autoaprendizagem.

Com base em algoritmos de IA, é possível oferecer recomendações personalizadas para os usuários, seja em sítios de compras, plataformas de streaming ou aplicativos de música. Essas recomendações economizam tempo ao apresentar opções relevantes e interessantes, de forma automática, sem que os usuários precisem procurá-las. A IA também pode ser aplicada para prever falhas e realizar manutenção preditiva em equipamentos e máquinas. Isso ajuda a evitar paradas não intuitivas e reduzir o tempo de inatividade, otimizando o uso dos recursos disponíveis.

As aplicações da tecnologia são diversas e, no conjunto, contribuem para inaugurar uma nova fase no desenvolvimento material humano. Isso abrange a redefinição das dinâmicas comerciais, industriais e laborais, bem como das modalidades de interação social. Nesse contexto, emergem duas vertentes no uso da tecnologia, uma que reafirma nossa humanidade e outra que suscita questionamentos sobre ela. Quando a intensa disseminação dos meios digitais começa a tensionar os direitos individuais como, imagem, privacidade, vida pessoal, dados sensíveis, informações e transações que circulam nas redes sociais a um ritmo veloz, incessante, atemporal e em grande escala – é crucial estabelecer limites para coibir opressão, injustiças, intolerâncias, violência, humilhação, perversidades, variadas formas de subordinação e manifestações de desrespeito. (SARLET, 2022, p.16)

Ao utilizar máquinas como meio de facilitação, substituindo o ser humano em algumas tarefas, isso pode gerar a perda de empregos. Contudo, Russel (2013. p 1188) afirma que alguém poderia argumentar que milhares de trabalhadores foram demitidos por esses programas de IA, mas, de fato, se não houvesse os programas de IA, esses trabalhos não existiriam porque o trabalho humano adicionaria um custo inaceitável às transações. Até agora, a automação por meio da tecnologia de IA, criou mais empregos do que eliminou, e criou empregos mais interessantes e com remuneração mais elevada.

No entanto, é importante mencionar que a IA também apresenta desafios e considerações éticas, como a privacidade dos dados, o viés algorítmico e o impacto no mercado de trabalho. É necessário um desenvolvimento contínuo e uma regulamentação adequada para garantir que a IA seja usada de forma responsável e saudável à sociedade. Contudo, mesmo que a IA já esteja inserida na prestação de serviços, tanto na esfera pública, quanto na privada, percebe-se que ainda há certa resistência no Poder Judiciário, especialmente pelos mais tradicionalistas. Por mais que a IA esteja sendo utilizada em alguns tribunais e escritórios do país, ainda está distante de ser reconhecida como algo essencial.


Gráfico 1. Casos novos, por ramo da Justiça

Fonte: Retirado do site justiça em números CNJ

Gráfico 2. Casos pendentes, por ramo da Justiça

Fonte: Retirado do site justiça em números CNJ

Todavia, quando consideramos o relatório do CNJ (2019), percebemos a essencialidade da tecnologia na prestação jurisdicional, tendo em vista que, durante o biênio 2019-2020, o Poder Judiciário brasileiro acumulou 77,1 milhões de processos em tramitação. As figuras 2 e 3 mostram, em gráfico, esse acúmulo.

2.1. Sistemas que agem de maneira racional

Os testes de Turing[4] são altamente debatidos entre os cientistas da computação, em parte por causa da ambiguidade das regras e dos designs variados dos testes. Por exemplo, alguns testes foram criticados por usar interrogadores “não sofisticados”, enquanto outros testes usaram interrogadores que não tinham consciência da possibilidade de estarem conversando com um computador. Vencedores oficiais ou não, alguns computadores recentes nas competições de Turing são bastante convincentes.  Em 2014, por exemplo, um algoritmo de computador convenceu, com sucesso, um terço dos juízes da Royal Society, do Reino Unido, de que também era humano. (VESELOV, 2014)

A inteligência artificial, como vimos, pode ser usada em várias aplicações. Com isso, a IA pode também ser usada para a revisão de contratos, procedimento historicamente lento, e que revela seu imenso potencial para a automatização. Diversas startups, incluindo Lawgeex, Klarity e Clearlaw, estão desenvolvendo sistemas de inteligência artificial capazes de assimilar contratos propostos de forma automática. (CONTE, 2023)

Adicionalmente, essas plataformas têm a capacidade de analisar os contratos de maneira minuciosa, utilizando tecnologias de processamento de linguagem natural (PLN)[5], e de determinar as cláusulas viáveis de um contrato e quais podem apresentar desafios. Desse modo, a complexidade das obrigações empresariais, diante dos seus públicos interessados, pode ser simplificada. Nesse cenário, a Kira Systems[6] se destaca como um exemplo de empresa que desenvolve essa categoria de plataforma. (CONTE, 2023)

O Ministro Victor Nunes Leal foi membro ativo do Supremo Tribunal Federal (STF) durante 9 anos, de 1960-1969, e teve grande impacto no que diz respeito a novas ideias e grande mudanças. O Ministro Victor foi um dos grandes influenciadores do sistema de jurisprudência dos tribunais, por meio de súmulas. Justamente por esse motivo, hoje, o projeto de Inteligência Artificial do STF carrega o seu nome, como justa homenagem à visão dele.

O Sistema Victor, de inteligência artificial aplicada, é um robô, em fase inicial, que foi alimentado com todas as decisões já proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Essa base de dados permite que o sistema auxilie, de maneira prática e eficaz, os magistrados e servidores do tribunal. A expectativa inicial é que essa tecnologia possa agilizar o trâmite processual, otimizar o tempo necessário para análise e reduzir erros, substituindo o processo manual por um mais automatizado.

Enquanto, anteriormente, uma análise puramente manual de um determinado recurso demorava cerca de 44 minutos, o sistema VICTOR é capaz de realizar a mesma tarefa em apenas 5 segundos. Isso indica uma redução significativa do tempo necessário para a realização dessa etapa do processo, o que pode contribuir para uma maior celeridade processual. O Sistema Victor é voltado para a análise de admissibilidade recursal e de repercussão geral. 

O Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou, em 2023, os testes de mais uma IA que irá auxiliar no tribunal. Batizada de VitórIA, o sistema visa a ampliar o conhecimento jurídico e fazer uma espécie de triagem de temas repetidos ou similares. A ferramenta fará essa identificação por meio do acervo de processos do próprio tribunal, fazendo, ainda, com que processos de mesmo conjunto possam resultar em uma resolução de repercussão geral. (BRASIL, 2023).

Para o SFT, a utilização de IA é essencial, afirma Rodrigo Canalli, assessor-chefe da Assessoria de Inteligência Artificial (AIA): “é um projeto voltado para ampliar a capacidade de análise de processos, propiciar julgamentos com maior segurança jurídica, rapidez e consistência, evitando, por exemplo, que processos similares tenham tratamento diferente”.

Os bots[7] podem provar ser altamente eficazes em oferecer ajuda legal às massas. A utilização de bots pode se revelar extremamente eficaz ao oferecer assistência jurídica e proporcionar amplo acesso aos serviços legais à população em geral. Um bot de advogado, por exemplo, é, essencialmente, um software que possui a capacidade de desempenhar tarefas automatizadas, normalmente executadas diretamente por um profissional.

Dentre os exemplos mais destacados de bots jurídicos, destaca-se o aplicativo DoNotPay, considerado o pioneiro como advogado virtual; assim como o assistente júnior de escritório, BillyBot. Este último auxilia indivíduos a obter orçamentos para serviços de mediação jurídica. (CONTE, 2023).

E não somente o STF está usando a IA para aprimoramento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, também implementou um sistema de inteligência artificial (IA) chamado Sócrates, que tem como objetivo reduzir o tempo da tramitação processual em cerca de 25%, desde o momento da distribuição até a primeira decisão em recurso especial. Hoje, cada tribunal está trabalhando de forma autônoma, no que diz respeito à inteligência artificial. O próprio sistema do Processo Judicial Eletrônico (PJe) não tem uma padronização entre os tribunais dos estados. (CNJ, 2019).

Hoje, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) lidera o ranking de tribunais, com sistema de inteligência artificial já em funcionamento (CNJ, 2020). Atualmente, o TJDFT conta com quatro projetos, já desenvolvidos e em uso, e mais dois projetos em fase final de testes, sendo eles:

  • Amon – basicamente um sistema de reconhecimento facial, a partir de imagens. Foi desenvolvido com o objetivo de supervisionar a administração unificada do acesso às instalações do tribunal. Desde junho de 2020, esse sistema tem capacidade para verificar a identidade de cada indivíduo, por meio de reconhecimento facial, o que resulta em um aprimorado controle de ingresso no Tribunal. Como resultado, o TJDFT consegue fortalecer a segurança para juízes, funcionários e todas as pessoas que entram nos edifícios da instituição;
  • Artiu – sistema para agilização do envio de mandados à Coordenadoria de Administração de Mandados (COAMA), que necessita do CEP do destinatário para a distribuição e o cumprimento apropriados. Caso essa informação não esteja disponível, devido a dados ausentes ou inconsistências, a inteligência artificial (IA) procura determinar o setor de destino do mandado e, de forma automatizada, realiza os ajustes necessários no endereço. (TJDFT, 2021);
  • Hórus – projeto que conta com aplicação da tecnologia de um sistema vinculado à inteligência artificial e tem se revelado valioso no âmbito judicial, presente também no TJDFT. Essa IA tem sido empregada, com êxito, para agilizar o andamento e a prestação de Justiça. Tanto as Varas de Execuções Fiscais (VEF), quanto os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), têm aproveitado plenamente essa inovação em suas tomadas de decisão. Na VEF, o projeto Hórus foi implantado e trouxe uma notável agilidade na administração de processos já digitalizados. Ele integrou, de maneira eficaz, a digitalização de processos físicos ao PJe e possibilitou movimentações processuais no sistema judicial legado, o SISTJ.

Simultaneamente, o sistema empregado pelos CEJUSCs já possuía a capacidade de importar processos automaticamente. A implementação do projeto no VEF elevou essa capacidade, permitindo que os CEJUSCs classificassem novos procedimentos, por meio de IA avançada, que, por sua vez, enriquecem o aprendizado das máquinas. (DISTRITO FEDERAL, 2019)

O programa “Natureza Conciliação” atende às demandas dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, os CEJUSCs. O sistema de conciliação que esses centros usavam anteriormente, já tinha a capacidade de importar automaticamente processos do PJe, reduzindo-os a termos. Após a conclusão daquele projeto, o sistema agora possui a capacidade de avaliar procedimentos usando o processo de aprendizado da máquina (machine learning).

Cada processo importado cria um procedimento que resulta em uma ou mais sessões de conciliação. Após a sua criação, cada um desses processos deve passar por uma avaliação para obter as informações possíveis para conduzir a sessão. O próprio sistema automatizou essa etapa, que busca eliminar as tarefas repetitivas. (DISTRITO FEDERAL, 2021).

  • Toth – é um sistema em projeto que visa a definir a classe e a(s) matéria(s) do processo, durante o fluxo de peticionamento. Baseia-se no treinamento de algoritmos. Como se trata de um sistema em fase inicial, os testes, quando possíveis, serão realizados na 1º Vara Cível, de Família e de Órfãos e Sucessões de Santa Maria-DF. São projetos que visam a ajudar o Poder Judiciário do DF e Territórios e, além disso, trazem agilidade e mais assertividade na tomada de decisões. Aliás, o TJDFT está com mais um projeto em desenvolvimento, visando auxiliar os processos de execução fiscal.

Segundo (Rodas, 2022), o desenvolvimento e evolução rápida da Internet e dos sistemas de comunicação levou à criação desse novo formato de interação. Uma vez que os sistemas agora são criados com a finalidade de promover a automatização e os serviços jurídicos, sem a necessária atuação de um advogado, nem todos tem aceitado bem essa nova tendência.

3. Conceitos operacionais

A inteligência artificial implica uma importante e significativa mudança de paradigmas na sociedade contemporânea, um avanço para facilitar as atividades cotidianas. Estamos passando por uma evolução nunca imaginada, principalmente em relação à quantidade de informação recebida e processada ao longo do dia por vários canais, e a responsabilidade no seu tratamento e aplicação.

É perceptível que as tecnologias que vêm sendo criadas atualmente são no sentido de prestar maior e melhor assistência ao ser humano, como, por exemplo, a aplicação nas diversas áreas da ciência e da medicina. Porém, o fascínio tem sido estudar e entender a capacidade da Inteligência Artificial. Após diversas pesquisas, foi possível identificar que uma certa porcentagem da programação é capaz de, compreender, prever, além de perceber situações e manipular ações que sejam até maiores que a sua própria capacidade. Essas percepções são possíveis por conta da capacidade interlocutória que a Inteligência Artificial adquire (RUSSELL; NORVIG, 2013).

De acordo com Russell e Norvig (2013), a inteligência artificial e a computação estão familiarizadas devido à capacidade de processamento e pela conexão da tecnologia presente em ambos. Para Farias e Medeiros (2013), o surgimento do computador integrador, durante as décadas de 1940 e 1950, foi o ponta pé inicial para toda uma geração de computadores e, assim, abrisse as portas para a formalização do conceito conjunto entre algoritmo e computação. 

Outro momento importante na evolução da inteligência artificial foi o final do século XX, quando surgiram novas tecnologias, novos programas inteligentes e máquinas que mostravam ter uma grande capacidade para processar. O objetivo principal dessas máquinas era concorrer, de maneira igualitária, com a capacidade humana. Muitas vezes as máquinas não só conseguiram atingir a meta esperada, como superaram e ultrapassaram os limites estipulados. Certa vez, um computador e um software, criados pela IBM, surpreenderam pela velocidade em realizar cálculos muito complexos. A sensação, para quem estivesse assistindo, era a de que o computador estava, efetivamente, raciocinando (TEXEIRA, 2013).

A inteligência Artificial, além de todas as suas possíveis evoluções, em vários aspectos, busca, de maneira prioritária e essencial, se equiparar à forma de pensar do ser humano. Contudo, na verdade, a IA vem, desde meados dos anos 2000, se mostrando superior ao humano. Segundo Winston (1993), a área de atuação da Inteligência Artificial, vai além da produção de um equipamento ou mesmo de um estudo. Apoiado nesse ponto de vista, um estudo realizado desenvolveu diversas técnicas e ideias, dentre elas a ciência cognitiva, que busca a hipótese de total compreensão, dentro do seu espaço e construção no tempo.

De acordo com Russell; Norvig (2013), a inteligência artificial é uma área amplamente ativa e presente em diversas disciplinas científicas e na educação, tornando desafiador estabelecer uma definição precisa, sendo, em certa medida, uma disciplina empírica. Da mesma forma, Pacheco (2019) concorda que a inteligência artificial está intimamente ligada à engenharia de criação de máquinas inteligentes, com foco principal em programas de computador, destacando que não existe uma definição definitiva para essa área. Assim, é inegável que a base fundamental da inteligência artificial reside na busca pela racionalidade humana e na tentativa de aproximá-la ou até mesmo superá-la.

Dessa forma, a inteligência artificial deixou de analisar pequenas coisas, como linhas e números, e começou a analisar grandes coisas, com maior volume de dados, o chamado big data, de forma simultânea, com dados de diferentes tipos e possibilidades, alterando também a forma de coleta e qualidade.

3.1. Machine learning

Para melhor ilustrar, as áreas de aplicação da Inteligência Artificial dividem-se em três: Machine Learning, Deep Learning e Natural Learning Processing (TACCA; ROCHA, 2018).

O aprendizado de máquina, conhecido por Machine Learning, é uma parte de estudo da Inteligência Artificial, que explora os estudos existentes e a construção de algoritmos computacionais, partindo do aprendizado de dados presentes. A principal finalidade de um sistema de Machine Learning é construir um sistema de computador que tenha um banco de dados já pré-instalado, e que, ao final, gere um modelo de predição, classificação ou detecção, buscando um padrão de vários conjuntos variáveis, com o escopo de prever implicações específicas (ARAÚJO, et al., 2023).

A constante busca por praticidade, otimização e celeridade na resolução de problemas jurídicos resultou na utilização exacerbada do Machine Learning, despertando nos operadores do direito uma necessidade de evoluir. Assim, com o passar do tempo foram desenvolvidas diversas ferramentas com o intuito de economizar tempo, minimizar falhas e auxiliar na tomada de decisões.

Diante disso, softwares vêm sendo desenvolvidos todos os dias. A jurimetria é um exemplo de um software criado com a finalidade de aplicar o direito, por meio de uma análise simples e direta. Os posicionamentos e reiterações que ocorrem no âmbito do Direito visam a conferir efetividade às normas e instituições (MARINHO, et al. 2022. p.11-16).

A jurimetria está se tornando parte integral da prática jurídica cotidiana, à medida que a forma de oferecer e consumir serviços legais passa por transformações significativas. A revolução da ciência de dados e da inteligência artificial, que já revolucionou outros setores nas últimas décadas, chegou inevitavelmente ao campo jurídico. Essa transformação afetará diversos aspectos da profissão jurídica, sendo uma das mudanças mais marcantes a integração da jurimetria com a necessidade dos clientes de ter uma ferramenta habitual para análises, estudos e tomada de decisões. A Tikal Tech, uma startup de tecnologia com sede em São Paulo, está dedicada ao desenvolvimento de soluções inovadoras para o setor jurídico. Eles introduziram a LegalNote, uma ferramenta que faz uso de robôs para rastrear a internet em busca de qualquer alteração ou tramitação dos processos cadastrados por advogados. Após coletar os dados do processo, os robôs passam por um processo de aprendizado de máquina para ler, classificar e identificar as informações pertinentes ao advogado (MARINHO et al. 2022. p.11-16).

É importante destacar que os chatbots não estão destinados a substituir o atendimento humano, ou seja, não são “robôs-advogados” que representem uma ameaça às profissões jurídicas no Brasil. Na verdade, os chatbots inteligentes estão projetados para auxiliar os profissionais, permitindo-lhes concentrar-se em oferecer um atendimento mais eficaz e liberando-os de tarefas repetitivas. Isso proporciona mais tempo para lidar com questões que exigem uma análise mais aprofundada e abrangente. Consequentemente, à medida que o software é utilizado, ele aprende e se torna cada vez mais inteligente e preciso na interação entre o sistema judiciário e a sociedade.

É relevante mencionar que o cientista britânico Stephen Hawking expressou preocupações sobre o potencial risco de a inteligência artificial em robôs representar uma ameaça à humanidade, podendo levar ao fim da raça humana, caso a IA alcance seu pleno desenvolvimento. Em uma conferência realizada em 2015, aquele físico teórico afirmou que “os computadores superarão os humanos com sua IA nos próximos 100 anos.” (HENRIQUE, 2015).

Destaca-se, do mesmo modo, que as ocupações podem ser parcialmente automatizadas, de forma que o objetivo das automatizações e aplicações não é a substituição de um advogado, mas o seu devido auxílio, em determinadas situações. Por exemplo, algoritmos que filtram dados sensíveis (pré-determinados), com a finalidade de trazer mais eficiência ao trabalho dos advogados.

A dinâmica diz respeito à automação na revisão de documentos probatórios em litígios, em que os algoritmos de machine learning não desempenham o papel de substituir – nem têm a capacidade de fazê-lo – tarefas cruciais do advogado. Essas tarefas incluem a determinação da relevância de documentos ambíguos, de acordo com as normas legais vigentes ou a avaliação de seu potencial valor estratégico em um processo judicial (MARINHO et al. 2022. p.11-16).

Em vez disso, em muitos cenários, os algoritmos podem ser eficazes na tarefa de filtrar uma grande quantidade de documentos que, provavelmente, são irrelevantes, permitindo que o advogado economize seus recursos cognitivos limitados ao não precisar analisá-los detalhadamente. Além disso, esses algoritmos podem identificar documentos potencialmente relevantes, destacando-os para chamar a atenção do advogado. Assim, o algoritmo não substitui o advogado, mas automatiza certos aspectos das tarefas (REBELO, 2018).

Os programas e algoritmos de machine learning estão sendo usados para gerar tipos de modelos preditivos, sejam eles aplicados à prática do direito ou não (REBELO, 2018).

Os tribunais de Justiça dos estados divergem em algumas questões no que tange à aplicação de uma norma sobre o assunto, uma vez que ainda não se tem uma legislação clara sobre o tema. No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 3ª Vara de Fazenda Pública, o Juiz Luis Manuel suspendeu a licitação para a aquisição de câmeras para o sistema de reconhecimento facial. Em sua decisão, o juiz argumentou que a utilização do reconhecimento facial poderia violar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e representar uma grave ameaça a direitos individuais. Assim escreveu o magistrado (GUIMARÃES, 2023):

“A dimensão do impacto que o sistema tecnológico de monitoramento por reconhecimento facial produz impõe a responsabilidade ao Poder Público de apenas considerar o seu uso após a definição de regras legais precisas que ponderem os objetivos da segurança pública com os direitos fundamentais. Daí porque não há como adquirir o sistema de videomonitoramento sem se saber como esses dados podem ser processados (Lei Geral de Proteção de Dados) e como devem ser ponderados em proteção aos direitos fundamentais”.

A inserção da inteligência artificial dentro do Judiciário é algo controverso, vez que os próprios juízes divergem entre si no que tange à matéria. Alguns processualistas chegam a dizer que a introdução da inteligência artificial viola os princípios da Constituição e as normas nacionais vigentes, presentes no Marco Civil da Internet e do Código de Defesa do Consumidor. O TJMG permitiu ao usuário de um aplicativo o direito de apresentar defesa baseada em dados eletrônicos, uma vez que o uso de recursos digitais se tornou imprescindível no ambiente social (GUIMARÃES, 2023). 

Por sua vez, o TJSP não teve o mesmo entendimento em caso semelhante, em que a inteligência artificial da Amazon, durante uma verificação padrão, suspendeu a conta da usuária-autora, por coincidências entre a conta dela e a de seu noivo, tendo ela ficado impossibilitada de exercer a função de vendedora na plataforma.  Ao tomar a sua decisão, a juíza levou em consideração que “no sofisticado sistema de informação da Amazon, claramente gerenciado por inteligência artificial, surgiu essa coincidência cadastral”. Diante dessa circunstância, a magistrada considerou que a “suspensão da conta é justificada, a fim de preservar o mínimo de segurança dos usuários da plataforma”. No entanto, dado que a vendedora entrou em contato com a Amazon e explicou “os eventos de maneira transparente”, ao solicitar a reativação da conta, a magistrada não viu justificativa para manter a suspensão da conta. Consequentemente, ela concluiu que a Amazon “causou uma falha no serviço ao não reativar a conta da autora dentro do razoável prazo estabelecido por lei, que é de 30 dias (de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, artigo 18, parágrafo 1º)” (GUIMARÃES, 2023). 

3.2. Deep learning

Em uma outra vertente da Inteligência Artificial, o Deep Learning funciona como um subconjunto de aprendizados, em uma rede neural com três ou mais camadas. As redes que compõe o Deep learning buscam simular a atividade cerebral. Contudo, a inteligência artificial ainda é mais utilizada com a permissão de que se aprenda com grandes volumes de informações e dados. De qualquer forma, redes neurais com mais de 3 camadas podem ser mais assertivas no que tange a aprimorar as suas conclusões.

As redes neurais do Deep Learning são interconectadas, o que tem produzido resultados que impactam ao deparar com padrões existentes nos dados, ou ainda estabelecer lógicas ou relacionais (BATHAEE, 2012, p. 13-14).

Contudo, além do conceito de camada, há também o conceito de bloco, que auxilia no compêndio da complexibilidade. O que ocorre é que, quando se fala em blocos de conhecimento, são eles muito voláteis, podendo conter entre uma ou mais camadas neurais, ou, ainda, conter um modelo inteiro, que pode ser ajustado em uma mesma rede neural. (PEIXOTO, 2020)

O Deep learning traz uma grande influência para todos os aplicativos e sistemas que usam a IA como referência, trazendo, em si, um maior e melhor sistema de automação, com a realização de tarefas sem a interferência humana. A tecnologia do Deep learnig está mais presente no nosso cotidiano do que imaginamos. Ela é, por exemplo, a base dos softwares presentes nos aparelhos de TV ativados por comando de voz, nos assistentes virtuais, bem como em carros autônomos.

Qual, afinal, qual a diferença entre o Deep learning e o Marchine learning? A principal finalidade do Deep learning é eliminar parte do pré-processamento dos dados que são inseridos, normalmente adquiridos durante o processo de aprendizado da máquina (machine learning). A importância da utilização desses algoritmos é justamente para que haja uma filtragem no controle de dados que não são estruturados, como por exemplo, imagens, que dispensa parte da dependência de especialistas humanos.

Soluções baseadas em Deep learning têm alcançado resultados altamente avançados em contextos mais desafiadores, como o desenvolvimento de classificadores na área de visão computacional, sistemas de suporte a diagnósticos e mecanismos de recomendação em diversas aplicações (PEIXOTO, 2020).

3.3. Big data

O conceito de big data é duplamente amplo. De um lado, busca relacionar-se a um conjunto de dados numa escala massiva, e, por outro, objetiva a compreensão da tecnologia e de processos envolvidos. O processo de melhoramento de dados é levado a cabo por algoritmos, que fazem a interpretação, por meio, também, da descoberta e correlação entre os bancos de dados (DOMINGOS, 2012). 

Nos primeiros anos da década de 2000, o analista Doug Laney introduziu a concepção de Big Data, por meio do conceito dos três Vs: volume, velocidade e variedade. O volume representa a acumulação massiva de informações provenientes de diversas fontes, resultando em enormes conjuntos de dados. Esses dados são transmitidos a uma velocidade sem precedentes, demandando um processamento ágil e eficaz. Além disso, os formatos dos dados são notavelmente diversos, podendo ser estruturados ou não, abrangendo uma ampla gama de possibilidades. (NACARATTI; PESSOA, 2018).

Dentro do atual cenário, é fundamental destacar a significativa relevância do campo conhecido como Big Data Analytics na análise de dados e na ampliação das aplicações de informações, particularmente com o auxílio da inteligência artificial (IA). Nesse sentido, é notável que um amplo espectro de disciplinas do conhecimento desempenhou e continua a desempenhar um papel vital no desenvolvimento da IA. Isso se justifica pelo fato de que a IA, enquanto um termo abrangente, engloba tarefas complexas, como aprendizado, raciocínio, planejamento, compreensão da linguagem e robótica, tornando-se um campo multidisciplinar em constante evolução (ALENCAR, 2022).

De fato, seguindo a abordagem de Wolfgang Hoffmann-Riem, identificam-se três distintos métodos analíticos empregados com objetivos específicos, a saber: análise descritiva, análise preditiva e análise prescritiva.

A análise descritiva é empregada para a triagem e a preparação de dados, com a finalidade de avaliação. Um exemplo prático desse processo é a utilização do Big Data para a prática de Data Mining, que envolve a coleta e a sistematização de informações, com destaque para atividades como priorização, classificação e filtragem (SARLET; BITTAR, 2022).

Entretanto, é fundamental que os critérios ou parâmetros previamente estabelecidos estejam em conformidade com as normas legais e adotem princípios de transparência e motivação. É importante ressaltar que, apesar da automação de tarefas jurídicas, os seres humanos ainda desempenham um papel central nesse processo, e a implementação da automatização no âmbito jurisdicional deve ser planejada e validada pelos membros do Poder Judiciário (ALENCAR, 2022).

Os dados extraídos por meio do Big Data são aqueles baseados no comportamento do usuário. A inteligência artificial é programada para o uso da base de dados e utilização de determinada plataforma para aprimorar os conhecimentos. Contudo, ao utilizar a plataforma de maneira diversa da “de costume”, o cruzamento de dados pode acabar bloqueando acessos e causando desconfortos. Como no caso, julgado pelo TJDFT, em que um usuário teve seu endereço de e-mail excluído da plataforma, fazendo com que ele perdesse todos os dados e informações do seu e-mail. Ementa do julgado:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. JULGAMENTO SIMULTÂNEO. CUIMPRIMENTO DE SENTENÇA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. REATIVAÇÃO. CONTA DE EMAIL. MICROSOFT. DESCUMPRIMENTO. JUSTA CAUSA. ASTREINTES. AFASTAMENTO. LEVANTAMENTO DO VALOR. MANUTENÇÃO. 1.A Microsoft, na qualidade de desenvolvedora de softwares de computador, é a detentora da informação relativa à possibilidade técnica de cumprimento ou não da obrigação de reativar a conta de e-mail do Agravado, que, segundo consta, teve o conteúdo nela armazenado definitivamente apagado, não havendo possibilidade de reversão. 2.A conta de e-mail do Autor foi desativada após detectada, por meio da inteligência artificial, suposta contrariedade às regras de conduta do usuário, sendo crível que, nesse contexto, tenham sido apagados todos os arquivos armazenados naquele endereço eletrônico. 3.Sendo pessoal a obrigação, e alegando o devedor justo motivo, a impossibilidade do cumprimento da obrigação de fazer deve ser reconhecida, inviabilizando a continuidade da execução pelo rito do art. 536 e seguintes, sem prejuízo de o credor requerer a conversão em perdas e danos, nos termos do art. 816 c/c o art. 513 do CPC. 4.Em razão da demonstração de justa causa para o descumprimento da obrigação de fazer determinada em sentença, as astreintes fixadas na sentença devem ser excluídas, com fulcro no art. 537, § 1º, II, do CPC. 5.Não obstante o reconhecimento de impossibilidade de cumprimento da obrigação de fazer determinada na sentença exequenda, na instância de origem houve a condenação do réu em astreintes por descumprimento de liminar, penhora do valor correspondente para a satisfação do crédito e efetivo levantamento da quantia pelo credor após o trânsito em julgado da ação de conhecimento, sem que o devedor se insurgisse adequadamente, seja por meio de impugnação ao cumprimento de sentença ou mesmo por petição dirigida ao juiz da causa. 6.É certo que, em tese, a multa imposta para cumprimento de obrigação pode ser modificada a qualquer momento pelo juiz, de ofício ou a requerimento, quando verificado que a medida se tornou insuficiente ou excessiva (art. 537, §1º, I, do CPC), não havendo que se falar em preclusão ou coisa julgada. Contudo, já tendo sido levantado o valor pelo credor, inviável a rediscussão a respeito da adequação da quantia fixada, em agravo de instrumento interposto contra decisão que determina a expedição de ofício ao Banco para liberação do valor penhorado em favor do credor. 7.Em razão do reconhecimento de não serem devidas astreintes no bojo do cumprimento de sentença, perde o objeto agravo de instrumento interposto pelo credor objetivando a majoração da referida multa e a efetivação de demais medidas para a satisfação da obrigação de fazer. 8.Agravo de Instrumento n. 0738492-19.2021.8.07.0000. (DISTRITO FEDERAL, 2022).  

Por fim, é possível inferir que a inteligência artificial não se limitará apenas aos juízes, mas será empregada por todos os envolvidos no sistema de Justiça, o que resultará em um substancial aumento do conhecimento e da compreensão da sociedade sobre como o Direito é interpretado e aplicado por seus atores principais (ALENCAR, 2022).

4. O uso da inteligência artificial no judiciário

O Judiciário tem olhado cada vez mais para a tecnologia, especialmente a inteligência artificial, como um meio para otimizar seus processos. Embora muitos tribunais já estejam adotando a tecnologia, a implementação ainda é inicial. As transformações sociais modernas e a necessidade de se lidar com tarefas repetitivas são impulsionadores dessa tendência.

4.1. Hórus – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT)

No cenário jurídico brasileiro, os avanços tecnológicos têm proporcionado novas maneiras de lidar com a gestão de processos e a tomada de decisões. Uma das ferramentas inovadoras nesse contexto é o sistema “Hórus”, desenvolvido e implementado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).

O “Hórus” representa uma iniciativa de transformação digital no Poder Judiciário, buscando aproveitar os benefícios da inteligência artificial para otimizar e agilizar as operações judiciais. Seu nome, derivado do deus egípcio associado à visão e à percepção, reflete seu propósito: fornecer uma perspectiva mais clara e eficiente sobre os processos judiciais.

O Hórus utiliza algoritmos avançados para analisar dados de processos, identificando padrões e tendências. Isso permite aos magistrados e servidores do tribunal insights valiosos sobre os casos, melhorando a tomada de decisão.

Um dos maiores desafios enfrentados pelos tribunais é a carga massiva de processos. Com a ajuda do Hórus, muitas tarefas repetitivas, como a categorização de documentos e o preenchimento de campos em formulários, são automatizadas, liberando os profissionais para se concentrarem em tarefas mais complexas.

Ao fornecer informações relevantes e insights sobre os processos, o sistema auxilia juízes e servidores a tomar decisões mais informadas e justas. Como mencionado anteriormente, uma das vantagens da IA é a capacidade de reduzir vieses humanos na tomada de decisão. Embora o Hórus não substitua a decisão final do juiz, ele fornece uma análise objetiva, que pode ser usada como referência.

O Hórus é projetado para se integrar perfeitamente com outros sistemas judiciais, garantindo uma operação fluida e coesa. A natureza da inteligência artificial é tal que ela aprende e evolui constantemente. O Hórus está em contínua evolução, adaptando-se às necessidades do TJDFT e às mudanças no cenário jurídico.

Em conclusão, o sistema “Hórus”, do TJDFT é um exemplo notável de como a tecnologia, especificamente a inteligência artificial, está sendo utilizada para modernizar e melhorar o Poder Judiciário brasileiro. Enquanto a IA não está aqui para substituir a percepção e o discernimento humanos, ferramentas como o Hórus demonstram seu valor inestimável como auxiliares na tomada de decisões judiciais.

4.2. Victor – Supremo Tribunal Federal (STF)

Um estudo da Fundação Getúlio Vargas aponta que há 72 tribunais no país que estão embarcando em projetos relacionados à inteligência artificial. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem o programa “Victor”; o STJ conta com o “Sócrates”, e outros tribunais, tanto federais, quanto estaduais, também estão em diferentes estágios de adoção (ROQUE; SANTOS, 2020).

Os sistemas de IA são projetados para processar informações, em grande escala, muito mais rapidamente do que os seres humanos. No contexto do Judiciário, isso pode significar analisar documentos e precedentes legais em questão de segundos, auxiliando na tomada de decisões. A IA pode ajudar a garantir que decisões semelhantes sejam tomadas em casos similares, aumentando a consistência e a previsibilidade das decisões judiciais. Em um país como o Brasil, onde o número de processos judiciais é enorme, a IA pode ajudar a filtrar, categorizar e priorizar casos, reduzindo a carga sobre os magistrados e servidores e acelerando a resolução de disputas (SOUSA, 2020).

O Supremo Tribunal Federal (STF) introduziu o “Victor”, uma plataforma de IA, principalmente para auxiliar na categorização e triagem de processos. Ao identificar os temas dos processos, ele auxilia na aceleração do trâmite processual. A ideia é que, com a ajuda do Victor, o STF possa reduzir o tempo para analisar a admissibilidade de recursos, concentrando-se no mérito das questões judiciais (ROQUE; SANTOS, 2020).

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o “Sócrates” é um assistente virtual projetado para facilitar o acesso à jurisprudência do tribunal. Ele funciona como uma ferramenta de busca, onde advogados, magistrados e o público em geral, podem fazer perguntas e receber referências de jurisprudências relacionadas (SOUSA, 2020).

 A adoção da IA varia entre os tribunais, com alguns em fases iniciais e outros já implementando soluções mais sofisticadas. Esses sistemas podem ajudar em tarefas, desde a organização e digitalização de documentos, até a previsão de resultados com base em precedentes legais (SOUSA, 2020).

A integração da IA no Judiciário não está isenta de preocupações. Há questões éticas sobre a imparcialidade dos algoritmos, sua transparência e a possibilidade de perpetuação de vieses. Além disso, a IA nunca substituirá completamente o discernimento humano necessário na tomada de decisões judiciais (ROQUE; SANTOS, 2020).

No entanto, mesmo com a integração da tecnologia, o sistema judiciário brasileiro ainda enfrenta desafios. A eficiência do sistema é muitas vezes questionada devido ao acúmulo de casos que aguardam resolução. A busca incessante por resultados, muitas vezes, acaba priorizando o volume, ao invés da qualidade dos julgamentos (KOERNER; VASQUES, 2019).

O cenário pós-pandêmico intensificou a digitalização de muitos setores, inclusive o Judiciário. Como apontado por Roque e Santos (2020), o sistema judiciário teve que se adaptar rapidamente ao cenário imposto pela pandemia da Covid-19. Com restrições de interações físicas, o meio virtual se tornou uma ferramenta essencial, não apenas para a população em geral, mas também para juízes, advogados e todos os envolvidos nos processos judiciais.

Atualmente, tem-se observado um aumento nos investimentos em tecnologia para o setor. As mudanças decorrentes dessa integração estão sendo sentidas, especialmente pelos servidores. E a inteligência artificial se destaca como uma ferramenta promissora, visto que ela oferece soluções para lidar com o volume crescente de demandas (SOUSA, 2020).

Atualmente, o foco principal do Judiciário tem sido a produtividade, muitas vezes em detrimento da qualidade. Isso tem levado a uma percepção do sistema jurídico como uma fábrica de soluções rápidas, muitas vezes, sem a devida atenção aos princípios constitucionais e processuais. Em muitos casos, a pressa no processo judicial tornou-se a norma, mesmo que isso implique comprometer a Justiça (KOERNER; VASQUES, 2019).

Um dos principais desafios enfrentados pelos tribunais é a lentidão sistêmica, desde a entrada da demanda, até a sua decisão final. Para enfrentar essa questão, várias estratégias têm sido adotadas, incluindo a implementação de inteligência artificial. No entanto, algumas dessas medidas podem apenas mascarar a verdadeira ineficácia dos tribunais em lidar com as demandas da sociedade (SOUSA, 2020).

Este cenário se originou da expansão dos direitos constitucionais ao acesso à Justiça, permitindo que mais pessoas buscassem soluções judiciais para seus conflitos. Esse aumento no acesso à Justiça ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, período em que houve uma intensa discussão e implementação de direitos humanos, principalmente como uma resposta às atrocidades dos regimes autoritários. Como resultado, houve uma explosão no número de processos judiciais, muitos dos quais não eram essenciais, levando a problemas de tempo e eficiência (SALLES, 2016).

A Constituição Brasileira de 1946 foi o primeiro marco legal a reconhecer o direito de acesso à Justiça, estabelecendo que nenhuma lesão a direitos individuais poderia ser excluída da apreciação judicial (BRASIL, 1946). A Constituição atual manteve essa perspectiva, apenas expandindo e universalizando o conceito, garantindo que qualquer ameaça ou lesão a um direito seja sujeita à revisão judicial (BRASIL, 1988).

Nos últimos tempos, uma maior expectativa tem sido direcionada ao Judiciário pela população. Esse cenário foi chamado por Salles (2016) de “consumo de serviços judiciais”, referindo-se à tendência de levar ao Judiciário uma ampla variedade de questões sociais.

O Brasil, historicamente, tem enfrentado notáveis desigualdades, principalmente para os segmentos sociais mais marginalizados. Isso impulsionou um aumento desenfreado nas ações judiciais, à medida que as pessoas buscavam tratamento justo. No entanto, essa onda crescente de litígios sobrecarregou o Judiciário, levando a atrasos significativos na resolução de processos (SOUSA, 2020).

É vital salientar o papel dos magistrados nesse contexto. Eles enfrentam uma pressão crescente, devido ao aumento do volume de processos, afetando diretamente a sua capacidade de entregar Justiça, de forma eficaz e em tempo hábil. Além disso, a busca pela duração razoável do processo, um direito garantido pela Constituição, tornou-se um anseio, tanto da sociedade civil, quanto dos profissionais do direito (SOUSA, 2020).

A atual paisagem judiciária é, em grande parte, o resultado de políticas passadas que permitiram um acesso excessivo e, por vezes, imprudente ao sistema de Justiça. Esse sistema, em teoria, deveria ser uma opção secundária para a resolução de disputas. Em suas reflexões, Dallari (2008) sugere que a estrutura atual do Judiciário é fortemente influenciada por tradições e práticas anteriores, levando a um descompasso com as demandas da sociedade moderna.

Portanto, torna-se imperativo que os tribunais se reestruturem, simplificando práticas e garantindo que, considerando o mérito de cada caso, possam atender adequadamente às demandas da sociedade sem comprometer os princípios fundamentais estabelecidos na lei.

5. Atual realidade na tomada de decisões e os limites judiciais de acordo com o Projeto de Lei nº 5.501/2019

Lopes (2010) destaca uma falha no processo democrático de direito atual, onde o Poder Judiciário tem priorizado a eficiência numérica em detrimento de uma análise profunda e única para cada caso. Segundo a autora, esse enfoque ameaça pilares democráticos, como o devido processo legal e o contraditório, além de diminuir o valor da decisão fundamentada.

Face a essa realidade, a importância de analisar cada caso individualmente torna-se evidente, pois negligenciar tais detalhes viola princípios vitais para a democracia, como a ampla defesa e o devido processo legal. Em um cenário onde a tecnologia está em ascensão, a contribuição da inteligência artificial (IA) no setor jurídico deve ser examinada em termos de benefícios e desafios. Koerner, Vasques e Almeida (2019) observam que as máquinas, programadas para operações racionais, podem fornecer insights sobre diversas esferas humanas, enquanto os seres humanos utilizam a tecnologia para se adaptar e melhorar o seu desempenho. (ALVES, 2016).

Nesse contexto, a IA no campo jurídico é vista como uma ferramenta desenvolvida pelo homem para ajudar os tribunais a se adaptarem aos tempos modernos. Estas soluções tecnológicas têm a capacidade de atuar como seres humanos, mas com maior rapidez e eficiência. A Resolução 332[8], de 2020, do CNJ, reconhece o valor da IA para o Judiciário. Essa resolução destaca que a IA tem o propósito de melhorar a experiência dos cidadãos e proporcionar Justiça mais equitativa, explorando novos métodos e práticas para alcançar tais objetivos. (TACCA; ROCHA, 2018).

A mesma resolução também esclarece que a IA é alimentada por algoritmos humanos destinados a produzir resultados que imitam o pensamento humano, sempre alinhados aos propósitos para os quais foram criados.

No entanto, apesar do potencial da IA, é essencial reconhecer que, no contexto brasileiro, ainda existem obstáculos para a sua plena implementação. A adoção da tecnologia no sistema jurídico brasileiro tem sido lenta e, em algumas regiões, ainda há muito a ser feito para assegurar direitos que acabam sendo negligenciados.

De acordo com o relatório “Justiça em Números”, do CNJ, de 2020, no ano de 2019, o Judiciário tinha um acúmulo impressionante de 77 milhões de casos pendentes, sendo que 55,8% desses casos estavam em fase de execução. Além disso, é esperado que esse número cresça devido ao influxo de novos processos.

Esse cenário, que domina os tribunais brasileiros, reflete os esforços contínuos para garantir o direito de acesso à Justiça, ao mesmo tempo em que busca soluções para a superlotação e lentidão do sistema judiciário (ALVES, 2016).

O aumento constante da judicialização no Brasil é, em parte, resultado da falta de critérios claros sobre quais casos devem ser julgados e da ineficiência do sistema de precedentes. Isso desencadeia várias questões no sistema judiciário (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Muitos litígios, abordando uma ampla variedade de temas, demonstram a falta de estratégias claras dos órgãos judiciais para lidar com todos os problemas sociais. Além disso, muitos cidadãos veem o sistema judicial como a única opção para reivindicar direitos, como os de saúde, especialmente quando sentem que esses direitos estão sob ameaça. (ALVES, 2016).

De acordo com Barboza (2019), a crescente litigiosidade coloca uma enorme pressão sobre o sistema judiciário, levando a um acúmulo de processos e atrasos na entrega de decisões. A contínua entrada de novos processos é uma das principais causas dos desafios que o Judiciário enfrenta, pois, a demanda não mostra sinais de diminuição e os tribunais não estão equipados para lidar com ela de maneira eficiente (TACCA; ROCHA, 2018).

O fácil acesso ao Judiciário, muitas vezes com garantia de gratuidade de Justiça sem que fosse necessário, significa que muitos cidadãos o veem como a principal solução para seus conflitos, mesmo quando outras alternativas poderiam ser mais rápidas e benéficas. Isso resulta em uma onda crescente de litígios, que vem se tornando quase uma norma cultural. Esse aumento desenfreado de processos cria um peso insustentável sobre os tribunais, que lutam para atender às demandas da sociedade. (TACCA; ROCHA, 2018).

Em suma, embora o acesso à Justiça seja um direito fundamental, a falta de infraestrutura adequada nos tribunais brasileiros para lidar com o volume de casos resulta em um backlog significativo. Conforme indicado pelo CNJ (2020), esses “casos pendentes” são aqueles que ainda aguardam resolução em várias fases do processo judicial.

Acerca dessas garantias, Campos e Pedron (2018) destacam que foi por meio delas que as partes passaram a ter direito de participação na construção do provimento judicial. Para tanto, o processo, segundo os autores, deve se revestir nas garantias de direitos processuais e constitucionais (CAMPOS; PEDRON, 2018).

Todavia, os autores ressaltam que, como consequência do instrumentalismo ainda arraigado no direito brasileiro, onde preocupa-se mais com a rapidez em que se concretiza a resposta judicial do que com as garantias processuais e constitucionais dos sujeitos da lide, ocorre uma relativização, como extrai-se do trecho a seguir (2018, p. 64):

Algumas normas jurídicas sancionadas após a Constituição da República de 1988 demonstram como o instrumentalismo tem ainda influenciado o pensamento daqueles que defendem a busca da celeridade e de uma efetividade no processo, relativizando, muitas das vezes, ao alvedrio do devido processo constitucional (CAMPOS; PEDRON, 2018, p. 64).

Além disso, os tribunais têm se deparado com um congestionamento processual crescente, o que tem limitado o seu poder de prestar seus serviços de maneira adequada às pessoas que os buscam, e por isso, procuram por uma agilidade a todo custo (SAID FILHO, 2017). Nota-se que, para o funcionamento correto e com produtividade da máquina judiciária, é necessário um achatamento da curva das ações processuais, isto é, tratar do grande acervo de processos é crucial para que seja possível combater esse contexto de litigiosidade que assola os tribunais brasileiros, sem suprimir direitos das partes (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Assim, torna-se inegável que a estrutura judiciária não consegue cumprir com aquilo que a lei preceitua, pois tem que lidar com casos simples, que poderiam ser tratados por outros caminhos, e com demandas mais complexas, que deveriam ser analisadas com maior rigor, graças à atratividade do Judiciário para todos os tipos de conflitos sociais (SAID FILHO, 2017).

Ademais, é imperioso ressaltar que esse costume da população de buscar sempre a figura do juiz para dirimir seus conflitos traz problemas não apenas para o desenvolvimento das atividades dos tribunais, uma vez que essa quantidade sobre-humana de processos acarreta uma incapacidade de prestação jurisdicional de qualidade, o que alimenta a supressão de princípios e direitos. (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Nesse mesmo sentido, Wolkart (2015, p. 6) destaca que: “é notório que a crise da Justiça brasileira é de quantidade e de qualidade. A quantidade de processos é imensa, absurda, sobre-humana, em todas as instâncias da Justiça”. Com tal quantidade, naturalmente compromete-se a qualidade. Juízes e tribunais passam a julgar por atacado (WOLKART, 2015). O modelo tradicional de jurisdição, desse modo, encontra-se precário e a realidade dos tribunais, como bem destacado, é de crise, dado que não conseguem responder às demandas que lhe são postas, restando evidente que não deve ser mais adotado. Nesse ínterim, diante dessa fragilidade,, que assevera o espaço jurídico, as ferramentas da tecnologia de informação transformam-se num novo aliado do Judiciário.

A inteligência artificial, apesar de suas notáveis vantagens na otimização de processos, não deve ser utilizada de forma autônoma em julgamentos judiciais. Isso porque poderia contrariar princípios constitucionais brasileiros, como o da ampla defesa e o do contraditório. A ideia é que, embora a IA possa, potencialmente, agilizar algumas atividades judiciais, a decisão final e a responsabilidade devem sempre residir num magistrado humano.

Embora a tecnologia possa melhorar a eficiência dos tribunais, o uso autônomo da IA em julgamentos poderia levar a interpretações tendenciosas ou unilaterais. Isso porque os algoritmos, conforme observado por Koerner, Vasques e Almeida (2019), podem ter vieses, focando em objetivos específicos e marginalizando questões individuais e nuances que são cruciais para um julgamento adequado e justo. (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Essa automação no processo decisório pode comprometer os direitos fundamentais dos cidadãos. Cada caso judicial tem suas particularidades e, portanto, deve ser avaliado à luz dos princípios democráticos, sem depender apenas da análise automática de um sistema.

Quando se pensa em incorporar a IA ao sistema judiciário, é essencial que tal implementação esteja em conformidade com princípios democráticos e respeite diretrizes éticas em IA, como supervisão humana, transparência e responsabilização, como apontado por Brehm et al (2020).

Pedron (2017) reforça a ideia de que o julgamento não é um ato isolado, mas um processo que considera os argumentos e perspectivas das partes envolvidas. Uma decisão judicial não deve ser um produto padronizado, mas uma resposta apropriada às nuances específicas de cada caso.

Assim, enquanto a IA tem potencial para melhorar a eficiência dos tribunais, seu uso não deve objetivar apenas a economia de recursos. A principal prioridade deve ser garantir que os direitos dos cidadãos e a integridade do processo judicial sejam mantidos. Em resumo, a inteligência artificial deve servir como uma ferramenta de apoio, não como um substituto para o discernimento humano no processo judicial. (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

No contexto contemporâneo, enfrentamos o fenômeno do “neoliberalismo processual”, onde os processos judiciais são frequentemente vistos como meros números a serem reduzidos, priorizando-se a eficiência numérica, em detrimento da qualidade da resolução de disputas. Esse enfoque “neoliberal” valoriza a maximização da produtividade, muitas vezes à custa do devido processo legal e dos direitos fundamentais das partes envolvidas (CAMPOS; PEDRON, 2018).

Entretanto, é inegável que os desafios atuais do sistema judiciário brasileiro pedem soluções inovadoras. Muitos desses desafios, conforme apontado por Walkart (2015), envolvem questões de gestão, formação e infraestrutura. De fato, na era pós-moderna, há uma crescente demanda pela intervenção do Poder Judiciário em questões sociais diversas, exacerbando os problemas já existentes na estrutura judicial.

Com a crescente complexidade e volume de demandas judiciais, torna-se essencial repensar as práticas jurídicas atuais, a fim de otimizar a gestão de processos e recursos. Neste cenário, a tecnologia, e mais especificamente a inteligência artificial, surge como uma ferramenta promissora. No entanto, como Rosa (2019) destaca, enquanto a IA pode ajudar a melhorar a eficiência, é crucial garantir que seu uso não comprometa os princípios fundamentais do processo democrático.

É vital que qualquer adoção de IA no sistema judiciário respeite as particularidades de cada caso e os direitos fundamentais das partes. Caso contrário, corremos o risco de sacrificar a Justiça em nome da eficiência. O desafio não é simplesmente acelerar o processo judicial, mas sim garantir que as decisões tomadas sejam justas, equitativas e fundamentadas. (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Em última análise, a implementação da inteligência artificial no Judiciário deve ser feita de forma responsável, sempre respeitando os princípios constitucionais, como o contraditório, a ampla defesa e o juiz natural. É essencial que as decisões judiciais permaneçam fundamentadas, individualizadas e justas, sem cair na tentação de soluções automatizadas e genéricas (CAMPOS; PEDRON, 2018).

Em 16 de setembro de 2019, o Senador Styvenson Valentim introduziu dois projetos de lei direcionados à regulamentação do uso da inteligência artificial (IA) no Brasil: o PL nº 5.051, que define princípios para a aplicação da IA, e o PL nº 5.691, que propõe a Política Nacional de Inteligência Artificial. Embora ambos estejam em tramitação, compartilham similaridades em seu conteúdo. (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

O PL nº 5.051, composto por 7 artigos, destaca o uso da IA visando ao bem-estar humano e enfatiza valores como dignidade, liberdade, democracia, igualdade, direitos humanos, pluralidade e diversidade. Também salienta a importância da proteção da privacidade, dados pessoais, transparência e supervisão humana na operação de sistemas de IA. O projeto sublinha que a IA deve ser um complemento à decisão humana, com a supervisão variando conforme a magnitude da decisão tomada. Em caso de danos resultantes do uso da IA, a responsabilidade recairia sobre o supervisor humano (BRASIL, 2019)

O projeto delineia diretrizes para os entes federativos no avanço da IA no Brasil, que incluem: promover a educação alinhada ao desenvolvimento da IA, desenvolver políticas para proteger e qualificar os trabalhadores, assegurar uma introdução gradual da IA e ter uma abordagem proativa na sua regulamentação. O PL ainda destaca que, quando usada pelo setor público, a IA deve visar à qualidade e à eficiência dos serviços oferecidos à população (BRASIL, 2019).

A justificativa associada ao projeto reconhece o cenário global de adoção da IA, os potenciais benefícios em produtividade e qualidade, mas também os riscos, ressaltando a essencialidade de uma regulação. Ela esclarece que o principal propósito da legislação é garantir que a evolução da IA seja compatível com a valorização do trabalho humano, objetivando o bem-estar coletivo. Conclui enfatizando a necessidade de supervisão humana em todos os sistemas de IA e a responsabilidade do supervisor, além de sublinhar a importância da formação e qualificação profissional na área.

Nesse contexto, Hartmann Peixoto; Silva (2019) afirmam que a proposta legislativa sobre a regulamentação da IA no Brasil parece ecoar preocupações mencionadas por diversos pesquisadores, referindo-se aos desafios dessa tecnologia. As interferências potenciais de algoritmos em debates públicos e processos eleitorais, o uso discriminatório e violação de liberdades civis, uso não autorizado de dados pessoais, aumento do desemprego devido à substituição por máquinas e responsabilização por danos são algumas das inquietações destacadas na literatura. A justificativa do PL é clara ao reconhecer que, apesar dos potenciais benefícios da IA, os riscos associados à sua implementação necessitam de regulamentação.

É inquestionável que todas as atividades, incluindo a IA, devem aderir a princípios fundamentais, como dignidade, liberdade, democracia, direitos humanos e outros, já resguardados constitucionalmente. Barrilão (2016) defende que o direito constitucional pode ser a resposta para as incertezas tecnológicas, focando em mitigar riscos ao progresso tecnológico, sem comprometer valores essenciais da sociedade.

No entanto, ao analisar a adequação e a necessidade, surge um questionamento: seria realmente imperativo um projeto de lei específico para garantir que a IA respeite valores já consagrados na Constituição? Por sua vez, Hartmann Peixoto; Silva (2019) alertam para uma abordagem excessivamente centrada no risco da IA, argumentando que isso pode obscurecer os benefícios evidentes da tecnologia. Brundage (2018) encoraja uma perspectiva mais otimista da IA focando em sistemas que funcionem como o esperado, minimizando erros e respeitando o controle humano. Superando desafios técnicos e éticos, a IA pode trazer impactos significativamente benéficos à sociedade.

A OCDE (2020), por meio da Recomendação nº 449, do Conselho sobre Inteligência Artificial[9], delineou princípios para orientar o desenvolvimento da IA reconhecendo sua expansão global e impacto em diversos setores. O documento destaca que a IA já está influenciando significativamente sociedades e mercados de trabalho. Apesar de reforçar a importância de princípios como inclusão, bem-estar e transparência, também reconhece que muitos destes princípios já são defendidos em legislações pré-existentes, indicando que não estamos iniciando de um vácuo regulatório.

O campo de pesquisa e desenvolvimento em IA apresenta desafios significativos para os reguladores, dados os aspectos inerentes à sua natureza. A IA opera frequentemente em uma estrutura de difícil acesso e transparência, com profissionais de diferentes setores e localidades colaborando em seus componentes. Estes componentes podem ser criados em lugares variados, em tempos distintos e sem uma coordenação centralizada. Além disso, os detalhes operacionais de um sistema de IA podem permanecer secretos e imunes à engenharia reversa. No entanto, essas peculiaridades não são exclusivas da IA; muitas outras tecnologias contemporâneas e anteriores compartilham características similares. Assim, embora a IA possa resistir a regulamentações prévias, será inevitavelmente submetida a responsabilidades que afetarão a conduta da indústria (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

De acordo Hartmann Peixoto e Silva (2019) o PL destaca a supervisão humana como um pilar essencial no uso da IA, o que parece entrar em conflito com a essência autônoma dessa tecnologia. A IA atual busca precisamente a autonomia, permitindo que máquinas executem tarefas cognitivas sem intervenção humana constante. Por exemplo, no domínio do aprendizado de máquina (machine learning), as tecnologias evoluem para operar com mínima supervisão, aprendendo e adaptando-se de maneira independente. A supervisão humana contínua sobre decisões de IA pode ser um ideal irrealista, já que limita o verdadeiro potencial da tecnologia.

A analogia proposta sugere que vincular estritamente a IA à figura de um supervisor humano é semelhante a restringir o Direito a uma mera aplicação de regras preestabelecidas. Assim como o Direito vai além da mera aplicação de normas, a IA tem um potencial que vai além da constante supervisão humana. Em vez de impor supervisão direta, seria mais produtivo estabelecer práticas recomendadas e princípios, refletindo responsabilidades éticas e legais nas fases de validação, verificação e segurança da IA. O projeto de lei ressalta a importância da inteligência artificial (IA) como ferramenta de apoio, e não substituição, às decisões humanas, salientando a necessidade de adequar o nível de supervisão humana à gravidade e implicações das decisões tomadas com auxílio da IA. Essas máquinas, equipadas para simular habilidades cognitivas humanas, como raciocinar e aprender, possuem potencial para exceder habilidades humanas em certas áreas, especialmente na análise de grandes volumes de dados e na previsão de resultados (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Segundo Hartmann Peixoto e Silva (2019), com o auxílio de técnicas como redes neurais, lógica difusa, computação evolutiva e agentes inteligentes, a IA tem sido uma aliada valiosa na tomada de decisões, especialmente em situações complexas e com grandes volumes de dados. A contribuição da IA para a tomada de decisões é reconhecida, mas seu papel na decisão judicial é um tópico sensível.

Decisões judiciais são altamente complexas e podem ser influenciadas por diversos fatores, desde o entendimento do magistrado até suas experiências pessoais. Embora a IA possa minimizar certos vieses humanos, sua incorporação em processos judiciais deve ser feita com cautela, considerando os valores e nuances humanas inerentes a tais decisões (SILVA; SILVA FILHO, 2020).

Estudos indicam que algoritmos podem superar juízes humanos, em termos de precisão e imparcialidade. Contudo, a decisão de conceder à IA o poder de decidir sobre direitos humanos é uma escolha política e social significativa que requer um debate cuidadoso (CAMPOS; PEDRON, 2018).

Nesse sentido, embora a IA tenha demonstrado capacidades notáveis e potencial para melhorar a eficiência e precisão das decisões, sua integração à esfera judicial deve ser vista como uma ferramenta de apoio, e não substituição, à sagacidade e discernimento humanos.

Conclusão

O advento da tecnologia, particularmente da inteligência artificial, tem transformado o modo como diversas instituições operam em nossa sociedade. No cenário jurídico brasileiro, essa transformação tornou-se evidente na forma como os processos são gerenciados e nas decisões que são tomadas. A implementação de sistemas como o “Hórus”, pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), sinaliza um salto significativo nessa direção.

A capacidade de analisar grandes volumes de dados, identificar padrões, automatizar tarefas repetitivas e fornecer insights objetivos é revolucionária para o campo jurídico. Por muito tempo, os tribunais brasileiros enfrentaram desafios relacionados à sobrecarga de processos e à lentidão na tomada de decisões. Ferramentas como o Hórus não apenas atenuam esses desafios, mas também instigam uma melhoria contínua na prestação de serviços judiciais.

Importante destacar que a tecnologia não busca, de forma alguma, substituir o discernimento humano, que é fundamental no campo jurídico. Ao invés disso, a IA serve como uma ferramenta auxiliar que complementa a capacidade humana, fornecendo uma perspectiva mais ampla, reduzindo vieses e garantindo uma abordagem mais eficiente e justa dos casos.

Contudo, é fundamental que a implementação de tais sistemas seja feita com cautela e responsabilidade. Assim como a IA tem o potencial de melhorar significativamente as operações judiciais, seu uso inadequado pode acarretar consequências indesejadas. Por isso, é essencial que haja uma constante avaliação, atualização e treinamento dos profissionais envolvidos.

Neste sentido, a era digital promete grandes avanços para o setor jurídico, com o uso correto e adequado das ferramentas que estão sendo disponibilizadas. As iniciativas como o sistema “Hórus” representam o início de uma jornada que visa a modernização, eficiência e justiça no Poder Judiciário brasileiro. Se conduzida de maneira ética e informada, essa jornada pode resultar em um sistema jurídico mais ágil, transparente e alinhado com as necessidades contemporâneas da sociedade.

Além disso, é vital que, à medida que o sistema e ferramentas semelhantes evoluam, sejam incorporados mecanismos de transparência e responsabilidade. Em um domínio tão sensível quanto o Judiciário, a capacidade de entender e interpretar as decisões tomadas por sistemas de IA é crucial. Cada decisão, mesmo que informada ou sugerida por um algoritmo, deve ser passível de revisão, compreensão e, quando necessário, contestação.

A capacitação dos profissionais que operam no âmbito judiciário é outro aspecto crucial. O advento da IA no sistema judiciário não deve ser visto apenas como uma ferramenta de otimização, mas também como uma oportunidade para formação e educação contínua. A familiaridade com os sistemas de IA, compreensão de suas limitações e potencialidades, e habilidade em utilizar essas ferramentas de forma ética e eficaz são competências essenciais para o Judiciário do futuro.

Outra preocupação emergente é a privacidade e segurança dos dados. Com o aumento da digitalização dos processos judiciais e a implementação de ferramentas de IA, é imperativo garantir que os dados dos cidadãos estejam seguros e protegidos contra possíveis ameaças. O Tribunal de Justiça deve estar à frente em adotar as melhores práticas de segurança cibernética, garantindo a integridade dos dados e a confiança do público no sistema.

Apesar da rápida evolução das máquinas e sistemas, o Poder Legislativo tem se esforçado para garantir que qualquer modificação no sistema jurídico brasileiro seja realizada de forma meticulosa e precisa. Mesmo diante da complexidade e abrangência dos sistemas inteligentes, as máquinas ainda não conseguem substituir a capacidade de avaliação e julgamento humanos. Portanto, a principal preocupação é assegurar a transparência necessária para a implementação e evolução que estejam alinhadas com as expectativas da população do país.

A natureza evolutiva da tecnologia também sugere que o sistema de inteligência artificial, precisará ser atualizado e adaptado regularmente para refletir as mudanças na legislação, na jurisprudência e nas expectativas da sociedade. Esse compromisso contínuo com a inovação e adaptação é essencial para garantir que o sistema permaneça relevante e eficaz ao longo do tempo.

Em conclusão, a integração da inteligência artificial no judiciário, exemplificada, representa uma etapa promissora e desafiadora na jornada de modernização do sistema judicial brasileiro. Com os cuidados adequados, responsabilidade, e a participação ativa dos profissionais do setor, o futuro promete um sistema judiciário mais eficiente, justo e alinhado com as necessidades do século XXI.

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[1] ChatGPT (Chat Generative Pre-Trained Transformer) é um chatbot online de inteligência artificial (IA), desenvolvido pela OpenAI e lançado em novembro de 2022. O Transformador Generativo Pré-treinado é um tipo de modelo de linguagem grande (Large Language Model, LLM). O ChatGPT é construído com base nos modelos GPT fundamentais da OpenAI, especificamente GPT-3.5 e GPT-4, e foi ajustado para aplicações conversacionais usando uma combinação de técnicas de aprendizado supervisionado e de reforço.

[2] Disponível em: https://www.criminal-lawyers.com.au/criminal-law-ai-chatbot. Acesso em 01.12.2023.

[3] Disponível em: https://www.smartsettle.com/. Acesso em: 13.11.2023.

[4] O Teste de Turing testa a capacidade de um computador de exibir comportamento inteligente equivalente ao de um ser humano, ou indistinguível deste. 

[5] Processamento de língua natural (PLN) é uma subárea da ciência da computação, inteligência artificial e da linguística que estuda os problemas da geração e compreensão automática de línguas humanas naturais.

[6] Disponível em: https://kirasystems.com/. Acesso em: 13.11.2023.

[7] Bot, diminutivo de robot (robô), também conhecido como Internet bot ou web robot, é uma aplicação de software para simular ações humanas repetidas e padronizadas. Como programa de software, pode ser um utilitário que desempenha tarefas rotineiras, com recurso à inteligência artificial.

[8] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429. Acesso em 01.12.2023.

[9] Disponível em: https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0449. Acesso em: 01.12.2023.


Pedro Gabriel dos Santos Aquino. Graduando do curso de Direito do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos – Uniceplac. E-mail: pedro.aquino@direito.uniceplac.edu.br.

Fernando de Magalhães Furlan. Antigo Secretario-Executivo do Ministerio do Desenvolvimento, Industria e Comercio Exterior (MDIC) e assessor especial da CAMEX. Foi presidente do Conselho de Administracao do BNDES e da BNDESPAR. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE. Foi também diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. Atualmente e membro do grupo de especialistas do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL e consultor ad hoc de projetos de defesa da concorrência das Nações Unidas (UNCTAD). É professor de direito em Brasília e atua, como professor ou pesquisador, em universidades e institutos no Brasil e no exterior. É consultor externo ou membro não-governamental de organizações e institutos brasileiros e estrangeiros e consultorias. Graduado em Administração pela UDESC/ESAG e em Direito pela UnB, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela Universidade de Macau, China.