Elvino de Carvalho Mendonça

A quantidade de investigações antitruste das big techs reflete a deficiência do controle de estruturas para a economia digital

Elvino de Carvalho Mendonça

Na semana passada as big techs Apple e Google voltaram a cena nos EUA e na França.

O Departamento de Justiça dos EUA (USDOJ) condenou a gigante Apple por prática de monopolização no mercado de smartphones[1] e a Autoridade Francesa da Concorrência (Autorité de la Concurrence) impôs uma multa de 250 milhões de Euros ao Google em razão do descumprimento de compromissos previstos na decisão 22-D-13, de 21 junho 2022[2].

O combate das principais jurisdições concorrenciais contra condutas anticompetitivas de empresas com as características das conhecidas big techs é algo corriqueiro no mundo da defesa da concorrência.

Por que isso acontece?

Em primeiro lugar, deve-se pontuar que as empresas mencionadas e as demais big techs são detentoras de elevadas participações de mercado nos mercados onde atuam, condição necessária para que o poder se transforme em abuso.

Em segundo lugar, o crescimento destas empresas não se deu somente pela aquisição de empresas concorrentes, mas também pelo crescimento orgânico advindo da natureza dos negócios em que atuam[3].

O crescimento por meio de fusões e aquisições é controlado por grande parte das autoridades de defesa da concorrência no mundo via controle de estruturas. Neste caso, o controle do poder de mercado se dá pela imposição de filtros para a submissão obrigatória de operações às autoridades de defesa da concorrência.

Entretanto, quando o crescimento do market share é obtido de forma orgânica[4] não há nada que as autoridades de defesa da concorrência possam fazer em sede de estrutura e toda a intervenção em que podem atuar se dá no âmbito de investigação de condutas anticompetitivas.

No entanto, ainda que as principais autoridades de defesa da concorrência atuassem para identificar o nexo de causalidade entre a operação e o abuso de poder de mercado, a natureza de preço zero presente nos produtos das big techs tornaram ineficazes os métodos para identificação das fusões e aquisições sobre os preços e sobre o bem-estar do consumidor.

Associado a dificuldade de medir os efeitos da operação está o crescimento orgânico das big techs, cujo acompanhamento, conforme já afirmado, foge ao controle das autoridades de defesa da concorrência. Neste caso, todos os esforços de controle de estruturas neste mercado complexo não foram suficientes para evitar que estas empresas detivessem poderes de mercado próximos do monopólio.

Notícias de imposição de sanções a empresas com características das big techs por parte das autoridades de defesa da concorrência do mundo é e continuará a ser um expediente comum por um bom tempo, pois, muito embora a teoria antitruste já tenha evoluído bastante em matéria de análise de fusões e aquisições na economia digital[5] e possa evitar acréscimos de participação de mercado e exclusão de startups do mercado: (i) as operações de fusão e aquisição que deram origem a posição dominante das big techs já ocorreram; e (ii) a natureza do mercado digital gera por si só crescimento orgânico.


[1] Office of Public Affairs | Justice Department Sues Apple for Monopolizing Smartphone Markets | United States Department of Justice

[2] A decisão 22-D-13, de 21 junho 2022 trata de direitos conexos existentes entre o Google e os Google e os editores ou agências de notícias.

[3] É importante ressaltar que estas empresas, ao captarem volumes gigantescos de dados, são capazes de predizer os comportamentos de seus clientes e de determinar o seu consumo, o que tem uma relação direta com a conquista de participação de mercado.

[4] No Brasil, por exemplo, a legislação exige notificação obrigatória para operações em que pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 750 milhões e pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 75 milhões.

[5] Federal Trade Commission Withdraws Vertical Merger Guidelines and Commentary | Federal Trade Commission (ftc.gov)

A posição dominante da UBER é o “fio solto” na engrenagem no projeto de remuneração dos motoristas de aplicativo

Elvino de Carvalho Mendonça

O PLP 12/2024[1] é uma tentativa do Governo Federal de garantir que os motoristas de aplicativos percebam uma remuneração mínima e que contribuam com o Regime Geral de Previdência Social. Nada mais em linha com um governo que tem o discurso voltado para as questões sociais!!

No entanto, não basta ter “boa vontade”, é preciso lembrar que as relações econômicas não são feitas de benevolência, mas de incentivos corretos e em razão disso, trazemos destaques importantes para a redação do Projeto de Lei Complementar (PLP 12/2024), referente a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas, como passaremos a tratar.

A remuneração a ser paga pela empresa de aplicativo ao motorista está prevista no art. 9º do PLP 12/2024. O valor da remuneração é de R$ 32,0 por hora e está dividida em duas remunerações: remuneração pelo serviço prestado (R$ 8,03) e remuneração pelos custos incorridos na prestação do serviço[2] (R$ 24,07).

A inserção do motorista de aplicativo no Regimes Geral de Previdência Social (RGPS) está disposta no art. 10 que, em apertada síntese, dispõe que o motorista recolherá 7,5% do valor da remuneração horária e a empresa de aplicativo recolherá 20% do valor total da remuneração horária (art. 11, III[3] e Art. 26-A[4]).

O PLP 12/2024 também assegura a inexistência de qualquer relação de exclusividade entre o trabalhador e a empresa operadora de aplicativo, assegurado o direito de prestar serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de mais de uma empresa operadora de aplicativo no mesmo período (art. 3º, I) e a inexistência de quaisquer exigências relativas a tempo mínimo à disposição e de habitualidade na prestação do serviço (art. 3º, II).

Como forma de eliminar a hipossuficiência dos motoristas de aplicativo o art 3º, § 3º impõe que este serão representados por sindicato com as seguintes atribuições:  I – negociação coletiva; II – celebração de acordo ou convenção coletiva; e III – representação coletiva dos trabalhadores ou das empresas nas demandas judiciais e extrajudiciais de interesse da categoria.

Por fim, para evitar qualquer tipo de discriminação, o projeto de lei complementar assegura, no art. 6º, que o motorista de aplicativo não poderá ser excluído de forma unilateral pela empresa de aplicativos, a menos que estejam presentes as hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma[5].

Como se pode ver, dos quatro dispositivos citados no parágrafo anterior, dois alteram diretamente a estrutura de custos das empresas de intermediação (remuneração e recolhimento ao RGPS) e dois tratam das condições oferta dos motoristas de aplicativos (exclusividade e discriminação).

Não há mistério!! A elevação dos custos com remuneração e RGPS trará um choque de oferta no mercado de prestação de serviços de intermediação e isso terá consequências sobre tanto sobre o consumidor final quanto sobre o motorista de aplicativo, pois não se pode olvidar que o mercado de prestação de serviços de intermediação é extremamente concentrado no Brasil tanto no mercado a montante quanto no mercado a jusante.

No mercado a montante, não é difícil perceber que os motoristas de aplicativos são hipossuficientes e, como tal, pouco ou nada conseguem fazer de forma individual. As empresas de intermediação possuem poder de oligopsônio sobre os motoristas e, portanto, têm o poder para extrair ao máximo o excedente destes trabalhadores.

Não por outro motivo o PLP cria a figura da entidade sindical[6] a fim de fazer frente ao poder de mercado das empresas de intermediação. Nesse ponto, a teoria econômica também é clara: a presença de sindicatos amplia a rigidez salarial e a consequência é a inserção de uma quantidade menor de motoristas de aplicativo que se teria na ausência do sindicato[7].

No mercado a jusante, o efeito do poder de mercado das empresas de aplicativo sobre o passageiro não é diferente. A ausência de concorrência existente neste mercado associada com o conjunto informações pessoais que as empresas detêm a respeito dos passageiros, permite que elas extraiam o excedente do consumidor de uma forma muito eficiente em prejuízo, inevitavelmente, dos consumidores e dos motoristas de aplicativos.

A iniciativa de remunerar os motoristas por aplicativo e de os inserir no RGPS é uma preocupação mundial. O PLP 12/2024 tem mérito e está em consonância com as melhores práticas internacionais de respeito a dignidade do trabalhador, pois rodos os trabalhadores devem ter condições de trabalho digno[8], remuneração compatível e proteção previdenciária.

Apesar da boa vontade que o PLP incarna, há um fio solto nessa engrenagem e ele se chama poder excessivo de mercado da empresa de intermediação entre motoristas e passageiros chamada Uber.

O que fazer?

Esperar a benevolência de uma empresa monopolista é desafiar a teoria econômica. Fazer regulação de tarifas ou coisa que o valha é desafiar a teoria da regulação econômica, pois, afinal, em que lugar estão as falhas de mercado para serem tratadas?

O fio está solto e há risco de curto!!!


[1] prop_mostrarintegra (camara.leg.br)

[2] Art. 9º, §3º, in verbis:

 § 3º O valor da remuneração a que se refere o § 2º é composto de R$ 8,03 (oito reais e três centavos), a título de retribuição pelos serviços prestados, e de R$ 24,07 (vinte e quatro reais e sete centavos), a título de ressarcimento dos custos incorridos pelo trabalhador na prestação do serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros.

[3] III – 7,5% (sete inteiros e cinco décimos por cento), no caso de trabalhador que preste serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de empresa operadora de aplicativo ou outra plataforma de comunicação em rede.

[4] Art. 26-A. Constitui receita da Seguridade Social a contribuição da empresa que opere aplicativo ou outra plataforma de comunicação em rede para oferecer serviços de intermediação a trabalhadores que prestem o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros e a usuários previamente cadastrados, incidente, à alíquota de 20%.

[5] Art. 6º A exclusão do trabalhador do aplicativo de transporte remunerado privado individual de passageiros somente poderá ocorrer de forma unilateral pela empresa operadora de aplicativo nas hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma, garantido o direito de defesa, conforme regras estabelecidas nos termos de uso e nos contratos de adesão à plataforma.

[6] A sindicalização do motorista por aplicativo está descrita no caput do art. 4º, in verbis:

Art. 4º Sem prejuízo do disposto no art. 3º, outros direitos não previstos nesta Lei Complementar serão objeto de negociação coletiva entre o sindicato da categoria profissional que representa os trabalhadores que prestam o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e as empresas operadoras de aplicativo, observados os limites estabelecidos na Constituição.

[7] Os modelos de Labor Union demonstram que a presença de sindicatos conduz a solução do emprego para o second best.

[8] O Organização Internacional do Trabalho – OIT entende que [o] conceito de trabalho digno resume as aspirações de homens e mulheres no domínio profissional e abrange vários elementos: oportunidades para realizar um trabalho produtivo com uma remuneração justa; segurança no local de trabalho e proteção social para as famílias; melhores perspetivas de desenvolvimento pessoal e integração social; liberdade para expressar as suas preocupações; organização e participação nas decisões que afetam as suas vidas; e igualdade de oportunidades e de tratamento. [Trabalho Digno (ilo.org)]


Elvino de Carvalho Mendonça. Editor-Chefe da WebAdvocacy. Doutor em economia pela UNB e Ex-conselheiro do CADE.

Requisitar dados não é suficiente para a proteção da privacidade. É preciso tratar a assimetria de informação.

Elvino de Carvalho Mendonça & Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

A disruptura digital pelo qual passa o mundo não tem sido sem dor. As “maravilhas” da tecnologia materializadas nos smartphones cobram o seu preço e esse preço é o ataque frontal a privacidade e a liberdade do ser humano.

Estas pequenas “maravilhas” transferem dados pessoais a cada acesso ou transação para as Big techs, que, a partir de infinitos acessos e/ou transações realizadas por cada detentor de smartphone, são capazes de construir bases de dados gigantescas com informações pessoais as mais variadas possíveis e em um nível de detalhe tão pequeno quanto se possa imaginar.

O passo seguinte é a utilização destas informações pela empresa para fazer negócios sem o consentimento do ser humano, na medida em que captam, armazenam, classificam, precificam e alienam os comportamentos, pensamentos e sentimentos de cada ser humano sob o manto de um “capitalismo de vigilância”, cujos reais interessados nesse grande mercado de predição de comportamentos futuros são as empresas de marketing e publicidade e o real valor desse modelo de negócios não são mais os usuários e sim os seus comportamentos, pensamentos e sentimentos.

Segundo Shoshana Zuboff:

“o capitalismo de vigilância reivindica de maneira unilateral a experiência humana como matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais. Embora alguns desses dados sejam aplicados para o aprimoramento de produtos e serviços, o restante é declarado como superávit comportamental do proprietário, alimentando avançados processos de fabricação conhecidos como “inteligência de máquina” e manufaturado em produtos de predição que antecipam o que um determinado indivíduo faria agora, daqui a pouco e mais tarde. Por fim, esses produtos de predições são comercializados num novo tipo de mercado para predições comportamentais que chamo de mercados de comportamentos futuros. Os capitalistas de vigilância têm acumulado uma riqueza enorme a partir dessas operações comerciais, uma vez que muitas companhias estão ávidas para apostar no nosso comportamento futuro.” [1]

Prossegue a Autora Shoshana Zuboff aduzindo que,

“[p]or enquanto, digamos que os usuários não são produtos, e sim que são  as fontes de suprimento de matéria-prima.” [2]

 No entanto, o que é ainda mais grave é a utilização destas informações para atuar em um nível abaixo da consciência humana, fazendo com que o ser humano seja induzido/manipulado digitalmente a consumir não o que deseja, mas sim aquilo que a empresa deseja. Neste ponto, vale citar Byung-Chul Han que, parafraseando Walter Benjamin, aduz ao inconsciente óptico a seguinte estrutura:

“Os pensamentos de Benjamin sobre o inconsciente óptico podem ser transpostos ao regime da informação. Big Data e inteligência artificial constituem uma lupa digital que explora o inconsciente, oculto ao próprio agente, atrás do espaço da ação consciente. Em analogia ao consciente óptico, podemos chamá-lo de inconsciente digital. O Big Data e a Inteligência Artificial levam o regime de informação a um lugar em que é capaz de influenciar nosso comportamento em um nível que fica embaixo do liminar da consciência.”[3]

A proteção de dados no Brasil se encontra tratada na Lei Geral de Propriedade de Dados (LGPD)[4], diploma legal que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural (art. 1º) e que cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), autarquia de natureza especial, dotada de autonomia técnica e decisória, com patrimônio próprio e com sede e foro no Distrito Federal (art. 55-A).

E um dos requisitos para o tratamento dos dados previstos na LGPD para fazer a proteção de dados individuais está previsto no caput do art. 9º, que pugna que [o] titular tem direito ao acesso facilitado às informações sobre o tratamento de seus dados, que deverão ser disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva acerca de, entre outras características previstas em regulamentação para o atendimento do princípio do livre acesso.

A garantia de acesso aos dados pelo usuário é uma condição necessária, mas não suficiente para que o tratamento de dados individuais atinja o objetivo da privacidade, principalmente porque há uma abissal assimetria de informação[5] entre a big tech e o usuário, assimetria que é potencializada pelo fato de que transparência dos dados para o usuário não pode ultrapassar a proteção dos segredos de empresa e industriais, conforme postula o art 6º, inciso VI[6], da mesma lei.

Acertadamente, a LGPD atribui à ANPD a competência para articular-se com as autoridades reguladoras públicas para exercer suas competências em setores específicos de atividades econômicas e governamentais sujeitas à regulação (art. 55-J, inciso XXIII) e a competência para que [a] ANPD e os órgãos e entidades públicos responsáveis pela regulação de setores específicos da atividade econômica e governamental coordenem as suas atividades, nas correspondentes esferas de atuação, com vistas a assegurar o cumprimento de suas atribuições com a maior eficiência e promover o adequado funcionamento dos setores regulados, conforme legislação específica, e o tratamento de dados pessoais, na forma desta Lei (art. 55-J, § 3º).        

A atuação conjunta da ANPD e das agências reguladoras permite chamar à atenção para o real problema que envolve a proteção de dados, que é a assimetria de informação existente entre as empresas (Big techs) que captam os dados, os usuários, as agências reguladoras setoriais e a ANPD, conforme mostra a figura 1.

Figura 1. O problema do agente-principal na proteção de dados

No modelo exposto na figura 1, verifica-se que embora o usuário detenha a propriedade do dado, quem o utiliza e desenvolve políticas comerciais sem que o usuário tenha como identificá-las é a empresa. Da mesma forma, ainda que a agência reguladora, em parceria com a ANPD, detenha alguns instrumentos para a obtenção dos dados e dos sistemas de mineração de dados, o core da informação obtida é o segredo do negócio da empresa e ela tem incentivos econômicos para não revelar a nenhum agente, sobretudo ao Estado.

Conforme expresso anteriormente, a LGPD garante ao usuário o acesso a todas as suas informações, bastando, apenas, que o usuário as solicite à empresa. No entanto, o dado é só o insumo e tem pouca serventia se não vier acompanhado das informações geradas por ele e, sobretudo, de como a empresa utilização essa informação no mercado de predição de comportamentos futuros, com altíssimo lucro.

Portanto, é exatamente o que e como as Big techs utilizam os dados dos usuários que é o “X” da questão da proteção de dados. Solicitar dados, algoritmos e outras coisas que o valham não soluciona o problema da privacidade dos usuários, pois o abuso do direito de privacidade por parte das empresas não está no dado, mas na informação gerada por este dado, e se essas empresas não estão dispostas a informá-las, a razão é que ela detém muito mais informações a respeito do seu negócio que o regulador.

O caminho para fazer com que as Big techs respeitem o direito de privacidade do usuário passa por fazer com que o retorno financeiro da empresa em respeitar o direito seja superior ao retorno financeiro de não respeitá-lo. Um caminho possível é gerar incentivos sobre o gerador do benefício para a empresa[7], que é o usuário.

A obrigação de apresentar dados não é suficiente para fazer com que a empresa pare de avançar sobre a privacidade dos usuários, pois repassar os dados para o usuário não altera o retorno esperado da empresa.

No entanto, é preciso que o usuário seja beneficiado pela agência reguladora (Estado) através de um mecanismo em que a big tech seja obrigada a revelar informações que não desejaria para o regulador. Esse é o árduo trabalho que deverá ser enfrentado pela regulação econômica envolvendo as agências reguladoras e a ANPD.


[1] ZUBOFF, Shoshana.  A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução George Schlesingerr. Rio de Janeiro: Intrínseca, p. 23.

[2] [2] ZUBOFF, Shoshana.  A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder. Tradução George Schlesingerr. Rio de Janeiro: Intrínseca.

[3] HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Editora Vozes. 2022, p.23.

[4] L13709 (planalto.gov.br)

[5] VARIAN, HALL. Intermediate Microeconomics: A Modern Approach. Fifth Edition. W. W. Norton. 1999.

[6] Art. 6º As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios:

VI – transparência: garantia, aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial;

[7] Um exemplo importante a se considerar diz respeito a nota legal. Neste caso, ao colocar o CPF nas suas compras o consumidor fica automaticamente habilitado a participar de sorteio realizado pela Secretaria de Estado de Fazenda, onde são oferecidos descontos no pagamento de impostos (ex. IPVA), entre outras coisas. Ao solicitar que o consumidor solicite a inserção do seu cpf na nota fiscal, o estabelecimento comercial fica automaticamente obrigado a emitir a nota fiscal e, com isso, fica obrigado a recolher os impostos devidos. A obrigação de emitir nota fiscal por si só não é suficiente para fazer com que o comerciante de fato a emita, mas a oferta de benefício para o consumidor obriga a emissão da nota fiscal por parte do comerciante.

Os efeitos do Novo Arcabouço Fiscal sobre os componentes do Resultado Primário

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayer – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutoranda em direito pelo IDP/DF e mestre em direito pela UNB

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em direito

Ficha catalográfica:

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


Sumário

Introdução

1.      Regras fiscais no Brasil

2.      Evolução temporal do resultado primário e de seus componentes

3.      Os efeitos dos parâmetros do novo arcabouço fiscal sobre os componentes do resultado primário

3.1. O problema da União

3.2. O efeito da probabilidade de cumprir a meta de resultado primário

3.3. O efeito do nível de atividade

3.4. Os efeitos dos percentuais de acréscimo sobre a variação da receita

3.5. Os efeitos das elasticidades-PIB da despesa primária e da receita primária

Conclusão

Referências bibliográficas

Apêndice A. Derivação do problema da União com restrição do novo arcabouço fiscal

Apêndice B. Derivação do nível de atividade sobre os componentes do resultado primário

Apêndice C. Problemas da União com a restrição do Teto de Gastos na despesa primária

Apêndice D. Derivação do problema da União sem restrição na despesa primária

Apêndice E. Derivação do problema da União com a restrição do Teto de Gastos na despesa primária 

Apêndice F. Os efeitos dos percentuais sobre os componentes do resultado primário

Apêndice G. Os efeitos das elasticidades-PIB da despesa e da receita sobre os componentes do resultado primário

Introdução            

Regras fiscais de limitação da despesa têm sido adotadas em vários países como forma de ajustar os gastos dos governos a sustentabilidade da dívida pública. Existe uma diversidade de regras para atender o objetivo, sendo a regra de teto de gastos uma delas.

O Brasil adota a regra de teto de gastos desde 2016 com a promulgação da Emenda Constitucional nº 95, também chamada de Teto de Gastos, que foi revogada pela nova regra de teto de gastos chamada de Novo Regime Fiscal Sustentável, também conhecido por Novo Arcabouço Fiscal. Esse novo regime foi instituído pela Lei Complementar nº 200, de 23 de agosto de 2023.

No Teto de Gastos a despesa primária estava limitada pela correção pelo IPCA da despesa primária do anterior, enquanto o Novo Arcabouço Fiscal incorpora à correção das despesas o componente de renda real, que acrescenta 70% da variação da receita primária à despesa se a meta de resultado primário for cumprida e 50% da variação da receita primária à despesa se a meta de resultado primário não for cumprida.

O componente de renda real traz consigo a possibilidade da meta de resultado primário não ser cumprida até o limite de 25% das despesas discricionárias, sendo impostas restrições para cumprimento nos anos posteriores. Esse fato não descumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2001).

Portanto, ao contrário do que acontecia desde a entrada em vigor da LRF em 2001, em que a meta de resultado primário tinha que ser cumprida, ainda que fosse por alteração da meta via proposição legislativa encaminhada pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo, o Novo Arcabouço Fiscal inovou ao possibilitar o não cumprimento da meta de resultado primário. 

A principal crítica que a literatura econômica faz ao mecanismo de resultado primário é a de que esta medida é pró-cíclica, no sentido de que amplia as despesas nos períodos de crescimento econômico e as contrai nos períodos de recessão, penalizando os programas de apoio governamental mais necessários nestes períodos.

Por definição, o resultado primário sem qualquer restrição na despesa primária sofre desta desvantagem e o resultado primário com a restrição do Teto de Gastos não tem o condão de alterar a desvantagem da natureza pró-cíclica, uma vez que a imposição do Teto de Gastos com base na despesa passada não gera qualquer mecanismo para ampliar as despesas primárias em períodos de recessão.

Ao incorporar o componente real, o Novo Arcabouço Fiscal visa minimizar o problema pró-cíclico do resultado primário e faz isso ao acrescentar à despesa primária percentuais da variação de receita primária, permitindo um acréscimo de 50% da variação da receita em caso de não cumprimento da meta, situação em que são impostas restrições temporais para reestabelecimento do equilíbrio fiscal.

Motivado pelo desenho da nova regra de teto de gastos, o artigo tem por objetivo apresentar as variáveis que compõe e que são geradas pelo modelo e identificar os efeitos destas variáveis sobre os componentes do resultado primário: despesas primárias e receitas primárias.

São dois os resultados relevantes do artigo.

O primeiro é o de que o modelo do Novo Arcabouço Fiscal gera incentivos para que a meta de resultado primário seja cumprida. Esse é um resultado positivo e importante para a sustentabilidade da dívida pública.

O segundo resultado se refere ao fato de que o desenho do Novo Arcabouço Fiscal não soluciona o efeito pró-cíclico do resultado primário. Esse é um resultado inesperado, tendo em vista que o modelo foi estruturado para dar maior flexibilidade e ampliar as despesas primárias em períodos de recessão.

O artigo se encontra dividido em três partes: (i) regras ficais no Brasil; (ii) evolução temporal do resultado primário e dos seus componentes; e (iii) os efeitos dos parâmetros do novo arcabouço fiscal sobre a despesa e a receita primárias.

1.    Regras fiscais no Brasil

As regras fiscais são instrumentos utilizados pelos governos para fazer o controle fiscal das economias. Conforme define o Fundo Monetário Internacional, as regras fiscais são aquelas que impõe uma restrição duradoura à política fiscal através de limites numéricos sobre agregados orçamentários.

A literatura econômica aponta vários tipos de regras fiscais: regra de resultado, regra de despesa, regra de receita, regra de resultado orçamentário e regra de dívida pública.

De acordo com Brocado et al (2019), (i) as regras de resultado são aquelas que consideram uma métrica para as receitas e as despesas; (ii) as regras de despesa são aquelas que impõe um teto de gastos para as despesas públicas; (iii) as regras de resultado orçamentário são aquelas que estabelecem limites máximos à carga tributária ou definem o tratamento a ser observado quando houver arrecadação de receitas extraordinárias; e (iv) as regras de dívida pública são aquelas que visam a colocar a dívida pública em um determinado patamar.

Na economia brasileira estão presentes várias regras, sendo o resultado primário uma regra de resultado e o teto de gastos e o novo arcabouço fiscal as regras de despesa.

O resultado primário foi instituído, nos moldes como se encontra hoje, pela Lei de Responsabilidade Fiscal -LRF) (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000), o Teto de Gastos foi instituído pela Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016 e o novo regime fiscal, também conhecido como Novo Arcabouço Fiscal, foi instituído pela Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto de 2023.

O resultado primário, que é medido a partir da diferença entre as receitas primárias e as despesas primárias, é uma regra que tem por objetivo principal garantir uma trajetória sustentável da dívida pública, tendo em vista que os seus recursos são utilizados para pagamento do principal da dívida.

O Teto de Gastos é o nome dado a métrica para o cálculo da despesa primária limite no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, onde ficavam estabelecidos, para cada exercício, limites individualizados para as despesas primárias: I – do Poder Executivo; II – do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Conselho Nacional de Justiça, da Justiça do Trabalho, da Justiça Federal, da Justiça Militar da União, da Justiça Eleitoral e da Justiça do Distrito Federal e Territórios, no âmbito do Poder Judiciário; III – do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Tribunal de Contas da União, no âmbito do Poder Legislativo; IV – do Ministério Público da União e do Conselho Nacional do Ministério Público; e V – da Defensoria Pública da União.

 O cálculo da despesa primária individualizada para os exercícios posteriores ao ano da implantação era calculado a partir do valor da despesa primária referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou de outro índice que vier a substituí-lo, para o período de doze meses encerrado em junho do exercício anterior a que se refere a lei orçamentária [art. 2º, art. 107, II, art. 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988]:

Onde Desp t é a despesa primária no período t, Desp t-1 é a despesa primária no período imediatamente anterior e t-1 é a inflação do período imediatamente anterior.

O Teto de Gastos foi revogado pela Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto 2023, que deu origem ao regime fiscal sustentável (doravante denominado Novo Arcabouço Fiscal).

O Novo Arcabouço Fiscal estabelece, para cada exercício a partir de 2024, os limites individualizados para o montante global das dotações orçamentárias relativas a despesas primárias: I – do Poder Executivo federal; II – do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Conselho Nacional de Justiça, da Justiça do Trabalho, da Justiça Federal, da Justiça Militar da União, da Justiça Eleitoral e da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, no âmbito do Poder Judiciário; III – do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Tribunal de Contas da União, no âmbito do Poder Legislativo; IV – do Ministério Público da União e do Conselho Nacional do Ministério Público; e V – da Defensoria Pública da União.

O valor da despesa primária individualizada está prevista nos artigos 4º e 5º da Lei Complementar nº 200 e será obtido a partir da correção dos limites individualizados a cada exercício pela variação acumulada do IPCA, ou de outro índice que vier a substituí-lo, considerados os valores apurados no período de 12 (doze) meses encerrado em junho do exercício anterior ao que se refere a lei orçamentária anual, acrescidos da variação real da despesa, em relação à variação real da receita primária às seguintes proporções:

            Art. 5º

            …

I – 70% (setenta por cento), caso a meta de resultado primário apurada no exercício anterior ao da elaboração da lei orçamentária anual tenha sido cumprida, observados os intervalos de tolerância de que trata o inciso IV do § 5º do art. 4º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal); ou

II – 50% (cinquenta por cento), caso a meta de resultado primário apurada no exercício anterior ao da elaboração da lei orçamentária anual não tenha sido cumprida, observados os intervalos de tolerância de que trata o inciso IV do § 5º do art. 4º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

§ 1º O crescimento real dos limites da despesa primária, nos casos previstos nos incisos I e II do caput deste artigo, não será inferior a 0,6% a.a. (seis décimos por cento ao ano) nem superior a 2,5% a.a. (dois inteiros e cinco décimos por cento ao ano).

Portanto, o valor individualizado da despesa primária será obtido a partir da seguinte equação:

Onde VRRP é a variação real da receita primária, que respeita os seguintes limites:

O Novo Arcabouço Fiscal inova em relação a regra anterior, pois prevê no art. 6º a possibilidade de não cumprimento da meta de resultado primário[1], não configurando infração a LRF o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário se, entre outras coisas[2], o nível mínimo de despesas discricionárias necessárias ao funcionamento regular da administração pública for igual ou superior 75% (setenta e cinco por cento) do valor autorizado na respectiva lei orçamentária anual, dispositivo descrito no Art. 7º, §2º da Lei Complementar nº 200, 2023.

A explicitação do resultado primário no cálculo da despesa primária e a alteração expressa pela LCP 200 representa é uma segunda inovação da Lei que deu origem ao Novo Arcabouço Fiscal em relação a Emenda Constitucional que deu origem ao Teto de Gastos, pois, enquanto no Teto de Gastos a despesa primária limite era apenas uma variável exógena, no Novo Arcabouço Fiscal o cumprimento ou não da meta de resultado fiscal em dois períodos anteriores passou a determinar o limite para a despesa primária do ano vigente.

Essa inovação visa minimizar o principal problema do resultado primário apontado pela literatura econômica, que é o fato desta regra fiscal apresentar um comportamento pró-cíclico, ou seja, ampliar a despesa em momentos de crescimento econômico e de deprimi-la em momentos de recessão econômica.

2.    Evolução temporal do resultado primário e de seus componentes

A figura 1 apresenta a evolução do resultado primário e dos componentes despesa primária e receita primária desde a entrada em vigor da LRF em 2000.

Figura 1. Evolução do resultado primário e de seus componentes (acumulado em 12 meses)

Fonte: STN

Elaboração: autor

Como se pode verificar pela figura 1, o valor do resultado primário acima da linha se manteve superior ou igual a zero entre dezembro de 2001 e dezembro de 2014, ficando negativo até maio de 2022.

O período de 2016 a 2022 coincide com a entrada em vigor do Teto de Gastos em 2016 e com a entrada em vigor do Decreto Legislativo nº 6, de 2020, que reconheceu, para os fins do art. 65 da LRF, a ocorrência do estado de calamidade pública, determinando que fossem dispensadas o atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. 

Desde a entrada em vigor da LRF em 2000 até o ano de 2022 o valor do resultado primário oscilou entre valores positivos e valores negativos, sendo cumprida a meta em todos eles, quer seja por meio da limitação de empenho e de movimentação financeira ao longo do exercício, em cumprimento ao processo orçamentário definido no art. 9º da LRF[3], quer seja por intermédio de alteração da própria meta via proposição legislativa de autoria do Poder Executivo[4][5].

A figura 2 apresenta a evolução do PIB e das despesas e receitas primárias divididas em três períodos: (i) período até a entrada em vigor do Teto de Gastos; (ii) período de vigência do Teto de Gastos antes da entrada em vigor do Decreto Legislativo nº 6, de 2020; e (iii) período de vigência do Decreto Legislativo nº 6, de 2020.

Figura 2. Evolução do PIB e das receitas e despesas primárias por período

Fonte: STN

Elaboração: autor

A partir da análise da figura 2 é possível verificar que as despesas primárias cresceram de forma vigorosa entre 2001 e final de 2015 e se mantiverem relativamente constantes entre 2016 e início de 2020, período de vigência do Teto de Gastos antes da entrada em vigor do Decreto Legislativo nº 6, de 2020.

As receitas primárias tiveram trajetória semelhante àquela observada para as despesas primárias até a entrada em vigor do Decreto nº 6, crescimento robusto até a entrada em vigor do Teto de Gastos e relativa estabilidade até a vigência do Decreto de calamidade pública.

Neste período as despesas sofreram forte crescimento até o quarto bimestre de 2020 seguido de forte queda até o início de 2022 e as receitas foram fortemente frustradas até o final de 2020 e apresentaram forte recuperação até o início de 2022.

Por fim, vale destacar a existência de forte correlação positiva entre o PIB e as variáveis receita e despesa primárias. O coeficiente de correlação de Pearson calculado foi de 0,97 e 0,93 entre o PIB e a despesa primária e entre o PIB e a receita primária, respectivamente.

3.    Os efeitos dos parâmetros do novo arcabouço fiscal sobre os componentes do resultado primário

3.1. O problema da União

No novo arcabouço fiscal, o teto de gastos passou a considerar o primário como critério para a quantificação da despesa.

Com o novo regime, o problema do gestor é dado por:

Onde:

Neste caso, a condição necessária de primeira ordem é dada por:

de onde se constata que a despesa primária em t depende do cumprimento ou não da meta de resultado primário αt, do percentual da variação da receita primária a ser incorporado na despesa no período t (δ,ρ), da elasticidade-PIB da despesa no período t-1 (εt-1) e da elasticidade-PIB da receita em t e t-1 (ϴt,ϴt-1) do efeito do PIB.

Como

tem-se que:

Onde εt-1 é a elasticidade-PIB da despesa no período t-1, ϴt-1 é a elasticidade-PIB da receita em t-1 e ϴt é a elasticidade-PIB da receita em t.

3.2. O efeito da probabilidade de cumprir a meta de resultado primário

Até a entrada em vigor da Lei Complementar nº 200, de 23 de agosto de 2023, a LRF determinava que a meta de resultado primário tinha que ser cumprida, quer fosse por meio da limitação de empenho e pagamento, quer fosse pela alteração da meta via proposição legislativa encaminhada pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo.

A opção de não cumprir a meta foi uma inovação trazida na Lei que instituiu o novo arcabouço fiscal, conforme expresso no artigo 7º, caput, I, II, in verbis:

Art. 7º Não configura infração à Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário, relativamente ao agente responsável, desde que:

I – tenha adotado, no âmbito de sua competência, as medidas de limitação de empenho e pagamento, preservado o nível mínimo de despesas discricionárias necessárias ao funcionamento regular da administração pública; e

II – não tenha ordenado ou autorizado medida em desacordo com as vedações previstas nos arts. 6º e 8º desta Lei Complementar.

A análise do cumprimento da meta de resultado primário no novo arcabouço fiscal sobre a despesa primária permite identificar em que situação a despesa é superior (cumprir/não cumprir) e como se dá o efeito marginal da probabilidade de cumprimento sobre a mesma despesa.

O cumprimento da meta implica em α_t-2=1 e o seu não cumprimento implica em α_t-2=0.

O resultado sobre as despesas e a receitas primárias quando a meta é cumprida e quando não é cumprida são:

Portanto, a estratégia de cumprir a meta de resultado primário gera despesas e receitas primárias superiores a estratégia de não cumprir a meta para um resultado primário fixo σAF.

3.3. O efeito do nível de atividade

No modelo o nível de atividade é representado pelo parâmetro Φ e este é igual a razão entre os PIBs (Φ_t=yt/y_t-1) .

O efeito do nível de atividade sobre a despesa primária[6] e sobre a receita primária é dada pela equação:

As derivadas apresentadas na equação (9) demonstram que existe uma relação direta entre a atividade econômica medida por Φt e a despesa primária e a receita primária, o que significa dizer que aumentos na atividade econômica tem um efeito marginal positivo na despesa primária e na receita primária.

3.4. Os efeitos dos percentuais de acréscimo sobre a variação da receita

Os percentuais de acréscimo sobre a variação da receita primária têm um papel importante sobre a despesa primária e a receita primária.

O efeito dos percentuais sobre a despesa primária[7] e sobre a receita primária é dada pela equação:

Como se pode verificar, aumentos nos percentuais δ e ρ elevam a despesa primária e a receita primária.

3.5. Os efeitos das elasticidades-PIB da despesa primária e da receita primária

Por fim, os últimos parâmetros que afetam os componentes do resultado primário são as elasticidades-PIB da despesa primária e da receita primária.

Como se pode verificar, o efeito da elasticidade-PIB da despesa do período t-1 afeta negativamente os componentes do resultado primário, o que demonstra que quanto maior for a despesa no período anterior menor é o efeito destes gastos sobre a despesa primária do período atual.

Já a elasticidade-PIB da receita primária pode afetar tanto negativamente quanto positivamente os componentes do resultado primário, a depender do nível de atividade econômica:

Em períodos de crescimento econômico, aumentos na elasticidade-PIB da receita ampliam a receita primária e a despesa primária, já em nos períodos de recessão aumentos na elasticidade-PIB da receita diminuem tanto a receita primária quanto a despesa primária.

Esses resultados permitem concluir que o Novo Arcabouço Fiscal não resolve o problema pró-cíclico do resultado primário conforme propagado pela equipe econômica do governo, pois em períodos expansionistas da atividade produtiva despesas e receitas primárias aumentam e em período recessivos essas se reduzem.

Portanto, embora não se possa dizer com exatidão se o Novo Arcabouço Fiscal potencializa o efeito-pró-cíclico, pode-se pelo menos dizer, com base no modelo, que o mencionado problema persiste e que os objetivos de expansão das despesas em períodos de recessão não é um resultado natural do modelo.

Conclusão

As finanças públicas brasileiras contam com várias regras fiscais, dentre as quais pode-se citar o resultado primário, que é uma regra fiscal de resultado, e o regime fiscal sustentável, que é uma regra fiscal de despesa, comumente chamado de Novo Arcabouço Fiscal.

A experiência brasileira com regra fiscal de despesa se iniciou em 2016 com a promulgação da EC 95, de 2016, em que foi instituído o Teto de Gastos, regra fiscal que previa que a despesa primária do ano vigente deveria ser a despesa primária do ano anterior corrigida pela inflação oficial do Brasil (IPCA).

Essa regra fiscal deveria prevalecer por 20 anos a partir de 2016. No entanto, a publicação da Lei Complementar nº 200, de 23 de agosto de 2023, revogou o Teto de Gastos e instituiu o Novo Arcabouço Fiscal e, apesar de ser um regra de teto de gastos, o novo regime inovou em alguns aspectos, sendo os principais deles a possibilidade da meta de resultado primário não ser cumprida e a existência de um componente renda real.

A Lei Complementar nº 200 permite que a meta de resultado primário não seja cumprida desde que o gestor tenha envidado todos os esforços na execução do processo orçamentário-financeiro previsto na LRF e as despesas não ultrapassem o limite de 25% das despesas discricionárias.

A nova legislação também adicionou o componente de renda real ao já conhecida correção da despesa do ano anterior pelo IPCA, que, em apertada síntese, estipula um limite de tolerância em torno da meta de resultado primário e adiciona a despesa primária 70% da variação da receita primária em caso de cumprimento da meta de resultado primário e 50% da variação da receita primária em caso de não cumprimento da receita primária.

O componente de renda real é uma tentativa de minimizar o efeito pró-cíclico do resultado primário, pois, permitir que o cumprimento da meta de resultado primário se dê dentro de limites de tolerância é permitir que as despesas primárias oscilem também dentro destes limites de tolerância.

Tendo por base a motivação acima expressa, o artigo teve como objetivo apresentar as variáveis que afetam os componentes do resultado primário (despesas e receitas primárias) e identificar os efeitos de cada uma delas sobre estes componentes.  

Quatro foram os resultados obtidos: (i) cumprir a meta de resultado primário gera despesa primária e receita primária superiores a não cumprir a meta; (ii) a atividade econômica se relaciona de forma direta com a despesa primária e com a receita primária; (iii) os percentuais sobre a variação da receita primária ampliam a despesa primária e a receita primária; e (iv) a  elasticidade-PIB da despesa no período anterior afeta negativamente a receita primária e a despesa primária e a elasticidade-PIB da receita pode tanto afetar positivamente quanto negativamente a receita e a despesa primária, a depender se a economia esta em crescimento econômico ou em recessão.

Dois resultados chamam a atenção: um positivo e outro negativo.

O resultado positivo fica por conta dos incentivos gerados pelo modelo que garante que cumprir a meta gera maiores receitas e maiores despesas primárias do que não cumprir. Esse é um resultado mais que esperado de uma regra fiscal de despesa, pois o cumprimento de metas fiscais como o resultado primário é fundamental para a sustentabilidade da dívida.

O resultado negativo, por seu turno, fica por conta dos efeitos da elasticidade-PIB da receita sobre os componentes do resultado primário, uma vez que afeta a despesa e a receita primária quando a economia está crescendo e afeta negativamente os mesmos componentes quando a economia está em recessão.

Embora não se possa dizer com exatidão se o Novo Arcabouço Fiscal potencializa o efeito-pró-cíclico, pode-se pelo menos dizer, com base no modelo, que o mencionado problema persiste e que os objetivos de expansão das despesas em períodos de recessão não é um resultado natural do modelo.

Referências bibliográficas

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Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Diário Oficial da União. DOU de 20.3.2020 – Edição extra C.

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BRASIL. Lei Complementar nº 200, de 30 agosto de 2023. Institui regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico, com fundamento no art. 6º da Emenda Constitucional nº 126, de 21 de dezembro de 2022, e no inciso VIII do caput e no parágrafo único do art. 163 da Constituição Federal; e altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal). Diário Oficial da União. DOU de 31.8.2023.

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[1] Art. 6º Caso o resultado primário do Governo Central apurado, relativo ao exercício anterior, seja menor que o limite inferior do intervalo de tolerância da meta, de que trata o inciso IV do § 5º do art. 4º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), sem prejuízo da aplicação da redução do limite nos termos do inciso II do caput do art. 5º desta Lei Complementar e de outras medidas, aplicam-se imediatamente, até a próxima apuração anual, com fundamento no parágrafo único do art. 163 da Constituição Federal, as vedações previstas nos incisos IIIII e VI a X do art. 167-A da Constituição Federal.

§ 1º Caso o resultado de que trata o caput deste artigo seja, pelo segundo ano consecutivo, menor que o limite inferior do intervalo de tolerância da meta, aplicam-se, imediatamente, enquanto perdurar o descumprimento, as vedações previstas nos incisos I a X do art. 167-A da Constituição Federal

[2] O art. 7º prevê que, além do limite máximo 25% das despesas discricionárias, o gestor deve implementar as medidas de limitação de empenho e pagamento, conforme previsto na LRF.

[3] Art. 9oSe verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.

§ 1o No caso de restabelecimento da receita prevista, ainda que parcial, a recomposição das dotações cujos empenhos foram limitados dar-se-á de forma proporcional às reduções efetivadas.

§ 2º Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, as relativas à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico custeadas por fundo criado para tal finalidade e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.   (Redação dada pela Lei Complementar nº 177, de 2021)

§ 3o No caso de os Poderes Legislativo e Judiciário e o Ministério Público não promoverem a limitação no prazo estabelecido no caput, é o Poder Executivo autorizado a limitar os valores financeiros segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.              (Vide ADI 2238)

§ 4o Até o final dos meses de maio, setembro e fevereiro, o Poder Executivo demonstrará e avaliará o cumprimento das metas fiscais de cada quadrimestre, em audiência pública na comissão referida no § 1o do art. 166 da Constituição ou equivalente nas Casas Legislativas estaduais e municipais.

§ 5o No prazo de noventa dias após o encerramento de cada semestre, o Banco Central do Brasil apresentará, em reunião conjunta das comissões temáticas pertinentes do Congresso Nacional, avaliação do cumprimento dos objetivos e metas das políticas monetária, creditícia e cambial, evidenciando o impacto e o custo fiscal de suas operações e os resultados demonstrados nos balanços.

[4] Conforme aponta Barbosa (2022), a meta de resultado primário foi alterada por proposição legislativa do Poder Executivo em 12 vezes de 21 anos de 2001 a 2021.

[5] Borges e Pires (2023) apresentam a evolução temporal do cumprimento da meta de resultado primário desde 2001 a 2022..

[6] A derivação desta equação está no Apêndice B.

[7] A derivação desta equação está no Apêndice B.


Apêndice A. Derivação do problema da União com restrição do novo arcabouço fiscal


Apêndice B. Derivação do nível de atividade sobre os componentes do resultado primário



Apêndice D. Derivação do problema da União sem restrição na despesa primária


Apêndice E. Derivação do problema da União com a restrição do Teto de Gastos na despesa primária


Apêndice F. Os efeitos dos percentuais sobre os componentes do resultado primário


Apêndice G. Os efeitos das elasticidades-PIB da despesa e da receita sobre os componentes do resultado primário


O Novo Arcabouço Fiscal e o efeito pró-cíclico do Resultado Primário

Elvino de Carvalho Mendonça

Já falamos neste espaço que o Novo Arcabouço Fiscal é uma regra fiscal de teto gastos, assim como o era o indicador criado pela Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016[1], popularmente conhecido por Teto de Gastos.

Também já apresentamos que a nova regra fiscal (Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto de 2023[2]) adiciona à correção das despesas do ano anterior pela inflação (IPCA) o componente de renda real, que acrescenta 70% da variação da receita do ano anterior as despesas se a meta de resultado primário acrescida de uma banda (0,25% do PIB para cima e para baixo) for cumprida e 50% de variação da receita do ano anterior se a meta de resultado primário não for cumprida.

Só não nos debruçamos sobre o que significa cumprir a meta dentro da banda em torno da meta que configura o componente de renda real do Novo Arcabouço Fiscal e o que significa não cumprir a meta.

Comecemos pelo começo!!

A meta de resultado primário como observamos hoje foi instituída pela Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar nº 101/2001) e é apurada a partir da diferença entre as receitas primárias e as despesas primárias da União, Distrito Federal, Estados e Municípios, sendo as primeiras estimadas nos termos do Capítulo III da LRF e as segundas fixadas em conformidade com Capítulo IV da mesma lei.

A experiência de 21 anos de vigência da meta permitiu constatar a existência de dois gatilhos para o seu cumprimento: (i) limitação de empenho e de movimentação financeira ao longo do exercício; e (ii) alteração da própria meta via proposição legislativa de autoria do Poder Executivo.

A limitação de empenho e de movimentação financeira é implementada por meio de Decreto Presidencial[3] sempre que a programação orçamentária e financeira identificar, em relatório consubstanciado (RARDP[4]), que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais[5], conforme previsto no caput do Art. 9º da LRF[6]. Neste caso, em resposta ao realizado das receitas primárias, ajusta-se a despesas primárias de maneira a cumprir a meta estabelecida (frustação na receita implica contingenciamento de despesas e vice-versa).

A alteração da meta de resultado primário, por seu turno, é realizada por meio da publicação de proposição legislativa encaminhada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional.

Bem, a meta de resultado primário foi cumprida em todos os 22 anos. Em 21 desses 22 anos, aponta Barbosa (2022)[7] que a meta foi alterada por proposição legislativa em 8 deles[8], o que perfaz uma probabilidade 55% de se alterar a meta (12/22) para o período completo e uma probabilidade de 50% se considerarmos apenas o período em que o Teto de Gastos vigeu[9].

Não se está aqui a questionar a metodologia de cumprimento da meta e nem as razões pelas quais as metas foram alteradas[10][11], o que se está a mostrar é que o processo orçamentário financeiro envolve uma série de contingências e a fixação de uma meta de resultado primário um ano antes do exercício possui uma elevada probabilidade de não se verificar conforme o planejado.

Bem, planejado ou não o fato é que a meta sempre foi cumprida, e a justificativa estava no fato de que as LDOs e a LRF impunham, até a entrada em vigor do Novo Arcabouço Fiscal, o ajuste das despesas primárias por meio de mecanismo de contingenciamento sempre que houvesse frustração de receita e, em último caso, a formalização de alteração da meta pelo Poder Executivo via proposição legislativa.

Ué!! Isso mudou? Como fica esse processo orçamentário na vigência do Novo Arcabouço Fiscal, uma vez que a Lei que a deu origem prevê que, sob certas condições[12], o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário não resulta em infração à LRF?

Acalmemos os nossos corações!!! O processo orçamentário-financeiro previsto na LRF continua o mesmo. Nada mudou no acompanhamento bimestral das receitas e despesas primárias e o contingenciamento e a solicitação de alteração de meta do resultado primário pelo Poder Executivo continuou como dantes.

O que muda, então?

Duas são as coisas que mudam em relação ao Teto de Gastos: (i) o cumprimento da meta ocorre dentro do intervalo de tolerância; e (ii) há a possibilidade de não cumprimento da meta.

Entender o cumprimento da meta dentro de um intervalo de tolerância é simples, basta imaginar que a meta de resultado primário virou o centro da meta e o intervalo de tolerância virou a banda em que esta meta pode oscilar. Difícil é fazer uma interpretação única se cumprir a meta é atingir o centro da meta ou qualquer ponto dentro do intervalo de tolerância. Mas isso é assunto para outro editorial!!!

Entender o que significa o não cumprimento da meta na nova regra é um pouco mais confuso, pois o não cumprir também tem que ser cumprido, ou seja, segundo a Lei o não cumprimento somente pode acontecer até o limite de 25% das despesas discricionárias. Estando dentro desta condição e da condição de que o agente responsável lançou mão dos instrumentos do processo orçamentário-financeiro apresentados anteriormente, o descumprimento da meta de resultado primário não descumpre a LRF.

Sem esquecer que cumprir o não cumprimento implica restrições para a administração, pode-se afirmar que a criação da banda em torno da meta e a engenharia em torno do cumprimento do não cumprimento da meta, abriu uma margem de manobra considerável para a administração.

Elaboração do autor

No Teto de Gastos (figura 1), a meta sempre tinha que ser cumprida, quer fosse por meio do processo orçamentário-financeiro previsto na LRF quer fosse por alteração da meta via proposição legislativa do Poder Executivo.

No Novo Arcabouço Fiscal (figura 2), no entanto, além de haver a possibilidade do cumprimento da meta dentro de um intervalo de tolerância, abre-se a possibilidade de não cumprimento desta regra fiscal de resultado até um limite para o cumprimento do descumprimento.

Portanto, enquanto no Teto de Gastos não havia possibilidade fora do cumprimento da meta, no Novo Arcabouço Fiscal as despesas primárias serão obtidas tanto cumprindo quanto não cumprindo a meta e ficarão acrescidas de 70% da variação da receita no primeiro caso ou de 50% da variação da receita no segundo caso.

Mas o que isso significa em termos de efeito pró-cíclico da meta de resultado primário?

Vale lembrar que a maior crítica da literatura à medida de resultado primário é que ela é uma medida pró-cíclica, que diz que em tempos de bonança econômica as despesas aumentam e em tempos de recessão elas ficam comprometidas, tendo em vista que há uma queda forte na receita primária.

Com o Novo Arcabouço Fiscal, os períodos de bonança econômica gerarão uma despesa primária superior àquela obtido com o Teto de Gastos, pois sobre a correção da despesa do ano anterior será colocado 70% da variação da receita primária líquida, ao passo que em períodos de recessão a despesa primária corrigida do ano anterior será acrescida de 50% da variação da receita, o que garante uma despesa primária pelo Novo Arcabouço Fiscal superior àquela obtida com o Teto de Gastos.

Há dois pontos importantes: (i) a despesa mais elevada na bonança econômica gera despesa intertemporal; e (ii) o corte nas despesas primárias em períodos de recessão é superior àqueles que seriam realizados se não houvesse o intervalo de tolerância e menos qualificado.

A geração de gastos intertemporais na bonança econômica torna as despesas primárias do ano mais apertadas em períodos de recessão, pois as despesas feitas em anos de bonança ocupam o local das despesas que precisam ser feitas nos períodos de recessão, o que faz com que o efeito pró-cíclico seja potencializado sobre as despesas anuais.

Lembrem-se que incentivos bons e ruins são como paixão e ódio, o que os separa não é nada mais do que uma tênue linha.


[1] Emenda Constitucional nº 95 (planalto.gov.br)

[2] Lcp 200 (planalto.gov.br)

[3] Esses Decretos Presidenciais dispõem sobre a programação orçamentária e financeira do exercício.

[4] Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias – Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (RARDP) – 2022 – 2° Bimestre — Tesouro Transparente

[5] Mensagem nº (planalto.gov.br)

[6] Art. 9oSe verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.

[7] 21 anos de meta de resultado primário | Blog do IBRE (fgv.br)

[8] De acordo com Barbosa (2022), no ano 2001 a meta foi alterada por medida provisória (MP); nos anos de 2007, 2009, 2010 e 2013 a 2017 a meta foi alterada por meio da publicação de Projetos de Lei Complementar (PLC); e nos anos de 2020 a 2021 a meta foi alterada por Projetos de Emenda à Constituição (PEC)

[9] Dos 6 anos de existência do Teto de Gastos, em 3 deles a meta teve que ser alterada por encaminhamento de proposições legislativas pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional

[10]  Borges e Pires (2020) apresentam a evolução histórica do cumprimento da meta de resultado primário no Brasil.

BORGES, Bráulio; PIRES, Manoel. Meta de resultado primário: descanse em paz. Blog do Ibre. FGV. 17 de abril de 2020. Disponível em: Meta de resultado primário: descanse em paz | Blog do IBRE (fgv.br). Acesso em: 01 de outubro de 2023.

[11] É preciso olhar com lupa os anos 2020 a 2022. A pandemia da Covid-19 exigiu decretação de estado de calamidade pública e, com ele, o cumprimento das metas fiscais excepcionadas.

[12] A LCP prevê no art. 7º que o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário não resulta em infração à LRF desde que o agente responsável tenha adotado as medidas de limitação de empenho e pagamento, preservado o nível mínimo de 75% (setenta e cinco por cento) das despesas discricionárias do valor autorizado na lei orçamentária anual, necessárias ao funcionamento regular da administração pública.

Autorregulação regulada: o trade-off entre o custo regulatório e a liberdade econômica

Elvino de Carvalho Mendonça & Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

A regulação econômica normativa desenvolvida pelas nações, inclusive o Brasil, se basearam na utilização, por parte das agências reguladoras, de métodos para fazer com que o setor que fosse caracterizado por falhas de mercado intransponíveis se comportasse em “concorrência perfeita”.

Em um mundo onde não houvesse assimetria de informação e a falha de mercado fosse o monopólio natural, a literatura aponta que o regulador deveria ou exigir preços iguais ao custo marginal ou exigir preços iguais ao custo médio. No primeiro modelo, o regulador subsidiaria o regulado, pois na condição de p=cmg em monopólio natural os lucros do monopolista seriam negativos, e, no segundo modelo, não haveria subsídio, mas os preços praticados não seriam os de concorrência perfeita.

Conquanto estes modelos sejam boas estruturas para demonstrar como a intervenção estatal via regulação tende a funcionar em mercados em monopólios naturais, a existência da falha de mercado denominada assimetria de informação na economia em geral impossibilita que o regulador não seja capaz de identificar a estrutura de custos dos regulados e decidir por fixar o preço igual ao custo marginal ou ao custo médio.

Este fato acontece porque o regulado conhece muito melhor o seu negócio detém informações estratégicas que o regulador não possui (estrutura de custos), o que impede que a política regulatória a ser alcançada seja a solução definida na teoria econômica como equilíbrio de primeiro melhor (first-best).

Portanto, imaginava-se que bastava ter poder de enforcement para que as empresas reguladas revelassem as informações necessárias para que o equilíbrio de primeiro melhor fosse obtido. No entanto, muito rapidamente os aplicadores da regulação econômica perceberam que a exigência de informações dos regulados não seria uma estratégia possível para se obter os melhores resultados regulatórios, vez que os regulados não revelariam as suas informações privadas se não houvesse incentivos para isso.

Foi através desta percepção que a regulação econômica desenvolveu outros modelos de regulação, dentre os quais pode-se citar o modelo de regulação por incentivos. A ideia básica era fazer com que o regulado revelasse as suas informações sem que estas necessitassem ser exigidas pela autoridade, assim como faz o empregador quando remunera o seu empregado em duas partes, uma fixa e outra variável. A remuneração variável possibilita que o empregador identifique o esforço do empregado, não necessitando exigir esforço de antemão.

No mundo da regulação econômica normativa, o exemplo de mecanismo de incentivos mais utilizado é o do preço teto (price-cap), instrumento muito utilizado na regulação do setor elétrico, por exemplo. Com esse método, o regulador contrata com os regulados tarifas de serviços públicos cada vez mais baixas à medida que o contrato avança no tempo. Neste caso, mesmo que o regulador não saiba a estrutura de custos, a redução paulatina da tarifa ao longo do tempo vai exigir aumentos de produtividade por parte do regulado, além de gerar tarifas cada vez menores para os usuários.

Em que pese não sejam perfeitos os regimes regulatórios por incentivos e outros que surgiram ao longo do tempo, o que ficou claro da experiência com a regulação econômica normativa é que nenhum regulado revelará as suas informações privadas se não for estimulado a fazer isso e este estímulo está diretamente ligado com as condições mercadológicas com as quais estes se defrontam.

Na esteira das inovações regulatórias e com o intuito de minimizar a intervenção estatal é que surgiram os modelos de co-regulação e de autorregulação regulada. Em ambos os casos, as empresas privadas elaboram regras regulatórias e as controlam privadamente, sendo que na autorregulação regulada as regras, embora feitas pelo mercado, mas têm que ser chanceladas pelo Estado.

Na prática, estas duas formas de regulação trabalham com a cooperação das empresas privadas para informarem todas as características dos seus mercados, a fim de que o Estado tenha condições de apresentar os melhores resultados para a sociedade (ex. preço igual a custo marginal).

O fundamento básico destas novas teorias de regulação é a de que o Estado deve se limitar a fazer cumprir a legislação existente, de maneira a punir as empresas que avançarem sobre todas as infrações que já estão amplamente tipificadas nas leis administrativas e penais, e não dizer como as empresas devem se comportar nos mercados. O Estado não deve guiar o mercado, mas sim garantir o equilíbrio desse mercado por meio dos instrumentos legais existentes.

Esta reflexão faz lembrar a forma como a defesa da concorrência é aplicada no Brasil. Atualmente, na égide da Lei nº 12.529/2011, o mandato da autoridade brasileira de defesa da concorrência (CADE) cobre uma função preventiva (controle de estruturas) e uma função coercitiva (análise de condutas). A função preventiva permite o controle do aumento da concentração de mercado a fim de evitar condutas anticompetitivas e a função coercitiva permite a ação coibidora das infrações à ordem econômica já “praticadas”.

Obviamente que a existência do controle de estruturas não é um consenso entre todas as linhas teóricas jurídicas e econômicas dedicadas a defesa da concorrência. Em apertada síntese, os teóricos do paradigma estrutura conduta desempenho (ECD) entendem que o controle de estruturas evita condutas de forma eficiente, ao passo que a escola de Chicago entende que a concentração de mercado gera eficiências e, em grande parte dos casos, não deve ser desestimulada.

Assim também parece ser a discussão entre os adeptos da regulação econômica normativa e os adeptos da corregulação e da autorregulação regulada. De um lado, acredita-se na intervenção estatal para evitar efeitos indesejáveis do ponto de vista regulatório e concorrencial, de outro acredita-se que estes efeitos indesejáveis, se existirem, devem ser combatidos pelo Estado fora da natureza empresarial.

Na verdade, a escolha entre a regulação econômica normativa e a autorregulação envolve um trade off nada trivial para o Estado e a ausência de trivialidade está associada com a falha de mercado exposta no início deste artigo, qual seja: a assimetria de informações.

Por um lado, o Estado abre mão do custo regulatório e dá a liberdade desejada para o setor privado, mas por outro abre mão dos mecanismos de incentivos para obter informações a respeito do mercado. É importante repisar que as empresas privadas não revelam as suas informações estratégicas, a menos que vejam oportunidades de negócios ou que sejam induzidas as revelar.

Neste sentido, ao abrir mão da utilização de mecanismos regulatórios para obter informações relevantes das empresas, atuando de forma preventiva, o Estado abre mão de instrumentos para o combate coercitivo, sobretudo em caso de existência de práticas anticompetitivas.