Elvino de Carvalho Mendonça

Já falamos neste espaço que o Novo Arcabouço Fiscal é uma regra fiscal de teto gastos, assim como o era o indicador criado pela Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016[1], popularmente conhecido por Teto de Gastos.

Também já apresentamos que a nova regra fiscal (Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto de 2023[2]) adiciona à correção das despesas do ano anterior pela inflação (IPCA) o componente de renda real, que acrescenta 70% da variação da receita do ano anterior as despesas se a meta de resultado primário acrescida de uma banda (0,25% do PIB para cima e para baixo) for cumprida e 50% de variação da receita do ano anterior se a meta de resultado primário não for cumprida.

Só não nos debruçamos sobre o que significa cumprir a meta dentro da banda em torno da meta que configura o componente de renda real do Novo Arcabouço Fiscal e o que significa não cumprir a meta.

Comecemos pelo começo!!

A meta de resultado primário como observamos hoje foi instituída pela Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar nº 101/2001) e é apurada a partir da diferença entre as receitas primárias e as despesas primárias da União, Distrito Federal, Estados e Municípios, sendo as primeiras estimadas nos termos do Capítulo III da LRF e as segundas fixadas em conformidade com Capítulo IV da mesma lei.

A experiência de 21 anos de vigência da meta permitiu constatar a existência de dois gatilhos para o seu cumprimento: (i) limitação de empenho e de movimentação financeira ao longo do exercício; e (ii) alteração da própria meta via proposição legislativa de autoria do Poder Executivo.

A limitação de empenho e de movimentação financeira é implementada por meio de Decreto Presidencial[3] sempre que a programação orçamentária e financeira identificar, em relatório consubstanciado (RARDP[4]), que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais[5], conforme previsto no caput do Art. 9º da LRF[6]. Neste caso, em resposta ao realizado das receitas primárias, ajusta-se a despesas primárias de maneira a cumprir a meta estabelecida (frustação na receita implica contingenciamento de despesas e vice-versa).

A alteração da meta de resultado primário, por seu turno, é realizada por meio da publicação de proposição legislativa encaminhada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional.

Bem, a meta de resultado primário foi cumprida em todos os 22 anos. Em 21 desses 22 anos, aponta Barbosa (2022)[7] que a meta foi alterada por proposição legislativa em 8 deles[8], o que perfaz uma probabilidade 55% de se alterar a meta (12/22) para o período completo e uma probabilidade de 50% se considerarmos apenas o período em que o Teto de Gastos vigeu[9].

Não se está aqui a questionar a metodologia de cumprimento da meta e nem as razões pelas quais as metas foram alteradas[10][11], o que se está a mostrar é que o processo orçamentário financeiro envolve uma série de contingências e a fixação de uma meta de resultado primário um ano antes do exercício possui uma elevada probabilidade de não se verificar conforme o planejado.

Bem, planejado ou não o fato é que a meta sempre foi cumprida, e a justificativa estava no fato de que as LDOs e a LRF impunham, até a entrada em vigor do Novo Arcabouço Fiscal, o ajuste das despesas primárias por meio de mecanismo de contingenciamento sempre que houvesse frustração de receita e, em último caso, a formalização de alteração da meta pelo Poder Executivo via proposição legislativa.

Ué!! Isso mudou? Como fica esse processo orçamentário na vigência do Novo Arcabouço Fiscal, uma vez que a Lei que a deu origem prevê que, sob certas condições[12], o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário não resulta em infração à LRF?

Acalmemos os nossos corações!!! O processo orçamentário-financeiro previsto na LRF continua o mesmo. Nada mudou no acompanhamento bimestral das receitas e despesas primárias e o contingenciamento e a solicitação de alteração de meta do resultado primário pelo Poder Executivo continuou como dantes.

O que muda, então?

Duas são as coisas que mudam em relação ao Teto de Gastos: (i) o cumprimento da meta ocorre dentro do intervalo de tolerância; e (ii) há a possibilidade de não cumprimento da meta.

Entender o cumprimento da meta dentro de um intervalo de tolerância é simples, basta imaginar que a meta de resultado primário virou o centro da meta e o intervalo de tolerância virou a banda em que esta meta pode oscilar. Difícil é fazer uma interpretação única se cumprir a meta é atingir o centro da meta ou qualquer ponto dentro do intervalo de tolerância. Mas isso é assunto para outro editorial!!!

Entender o que significa o não cumprimento da meta na nova regra é um pouco mais confuso, pois o não cumprir também tem que ser cumprido, ou seja, segundo a Lei o não cumprimento somente pode acontecer até o limite de 25% das despesas discricionárias. Estando dentro desta condição e da condição de que o agente responsável lançou mão dos instrumentos do processo orçamentário-financeiro apresentados anteriormente, o descumprimento da meta de resultado primário não descumpre a LRF.

Sem esquecer que cumprir o não cumprimento implica restrições para a administração, pode-se afirmar que a criação da banda em torno da meta e a engenharia em torno do cumprimento do não cumprimento da meta, abriu uma margem de manobra considerável para a administração.

Elaboração do autor

No Teto de Gastos (figura 1), a meta sempre tinha que ser cumprida, quer fosse por meio do processo orçamentário-financeiro previsto na LRF quer fosse por alteração da meta via proposição legislativa do Poder Executivo.

No Novo Arcabouço Fiscal (figura 2), no entanto, além de haver a possibilidade do cumprimento da meta dentro de um intervalo de tolerância, abre-se a possibilidade de não cumprimento desta regra fiscal de resultado até um limite para o cumprimento do descumprimento.

Portanto, enquanto no Teto de Gastos não havia possibilidade fora do cumprimento da meta, no Novo Arcabouço Fiscal as despesas primárias serão obtidas tanto cumprindo quanto não cumprindo a meta e ficarão acrescidas de 70% da variação da receita no primeiro caso ou de 50% da variação da receita no segundo caso.

Mas o que isso significa em termos de efeito pró-cíclico da meta de resultado primário?

Vale lembrar que a maior crítica da literatura à medida de resultado primário é que ela é uma medida pró-cíclica, que diz que em tempos de bonança econômica as despesas aumentam e em tempos de recessão elas ficam comprometidas, tendo em vista que há uma queda forte na receita primária.

Com o Novo Arcabouço Fiscal, os períodos de bonança econômica gerarão uma despesa primária superior àquela obtido com o Teto de Gastos, pois sobre a correção da despesa do ano anterior será colocado 70% da variação da receita primária líquida, ao passo que em períodos de recessão a despesa primária corrigida do ano anterior será acrescida de 50% da variação da receita, o que garante uma despesa primária pelo Novo Arcabouço Fiscal superior àquela obtida com o Teto de Gastos.

Há dois pontos importantes: (i) a despesa mais elevada na bonança econômica gera despesa intertemporal; e (ii) o corte nas despesas primárias em períodos de recessão é superior àqueles que seriam realizados se não houvesse o intervalo de tolerância e menos qualificado.

A geração de gastos intertemporais na bonança econômica torna as despesas primárias do ano mais apertadas em períodos de recessão, pois as despesas feitas em anos de bonança ocupam o local das despesas que precisam ser feitas nos períodos de recessão, o que faz com que o efeito pró-cíclico seja potencializado sobre as despesas anuais.

Lembrem-se que incentivos bons e ruins são como paixão e ódio, o que os separa não é nada mais do que uma tênue linha.


[1] Emenda Constitucional nº 95 (planalto.gov.br)

[2] Lcp 200 (planalto.gov.br)

[3] Esses Decretos Presidenciais dispõem sobre a programação orçamentária e financeira do exercício.

[4] Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias – Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (RARDP) – 2022 – 2° Bimestre — Tesouro Transparente

[5] Mensagem nº (planalto.gov.br)

[6] Art. 9oSe verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.

[7] 21 anos de meta de resultado primário | Blog do IBRE (fgv.br)

[8] De acordo com Barbosa (2022), no ano 2001 a meta foi alterada por medida provisória (MP); nos anos de 2007, 2009, 2010 e 2013 a 2017 a meta foi alterada por meio da publicação de Projetos de Lei Complementar (PLC); e nos anos de 2020 a 2021 a meta foi alterada por Projetos de Emenda à Constituição (PEC)

[9] Dos 6 anos de existência do Teto de Gastos, em 3 deles a meta teve que ser alterada por encaminhamento de proposições legislativas pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional

[10]  Borges e Pires (2020) apresentam a evolução histórica do cumprimento da meta de resultado primário no Brasil.

BORGES, Bráulio; PIRES, Manoel. Meta de resultado primário: descanse em paz. Blog do Ibre. FGV. 17 de abril de 2020. Disponível em: Meta de resultado primário: descanse em paz | Blog do IBRE (fgv.br). Acesso em: 01 de outubro de 2023.

[11] É preciso olhar com lupa os anos 2020 a 2022. A pandemia da Covid-19 exigiu decretação de estado de calamidade pública e, com ele, o cumprimento das metas fiscais excepcionadas.

[12] A LCP prevê no art. 7º que o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário não resulta em infração à LRF desde que o agente responsável tenha adotado as medidas de limitação de empenho e pagamento, preservado o nível mínimo de 75% (setenta e cinco por cento) das despesas discricionárias do valor autorizado na lei orçamentária anual, necessárias ao funcionamento regular da administração pública.

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