Defesa da concorrência

PIX e AIR: Quando a liberdade econômica desperta o ilusionismo e levanta cortina de fumaça[1]

Juliana Oliveira Domingues[*]

A fumaça natural é muito diferente da “cortina de fumaça”. A expressão cortina de fumaça costuma ser utilizada como uma alusão às estratégias militares e de mágicos (ilusionistas). Essas “cortinas” são produzidas, artificialmente, para “confundir”. Trata-se de tradicional manobra direcionada à desorientar. Agora, muito se engana quem imagina que essa tática só é utilizada por mágicos e ilusionistas.

No mês passado, por exemplo, houve evento muito interessante onde levantou-se uma cortina de fumaça sobre o PIX. A fala polêmica, por assim dizer, deu-se no evento da ABIPAG, com o apoio do IBRAC (Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional) e de diversas associações sobre “Concorrência no Mercado Financeiro: Desafios da Nova Economia Digital”. Organizado em cinco painéis temáticos compostos por painelistas e moderadores do mercado, autoridades públicas e membros da academia, o evento debateu os impactos das inovações tecnológicas no mercado financeiro e seus reflexos na defesa da concorrência.

Nesse sentido, foram focos dos debates open finance, open banking, novidades que envolvem os meios eletrônicos de pagamento e evoluções decorrentes de plataformas digitais, entre outros exemplos. Regra geral, aqueles que são naturalmente pró-concorrência partem da premissa que “competition drives innovation”, ou seja, concorrência e inovação caminham juntas.

Foi interessante observar, ao longo do evento, as posições quase uníssonas confirmando aspectos positivos ao bem-estar social, diante das recentes inovações tecnológicas. Inegavelmente, mercados secularmente fechados tornaram-se mais competitivos. No caso do PIX não foi diferente, especialmente quando falamos sobre os métodos de pagamento. Dados do Bacen indicam que 80% das transações com PIX substituíram as transações em dinheiro. O pagamento em “cash” (dinheiro) possui custo de logística para o Bacen, para as instituições financeiras, para as próprias empresas (tal como Ronald H. Coase e Oliver Williamson explicam) e tais custos acabam sendo repassados para a sociedade.

Com base em dados do Bacen e diversos estudos recentes, o PIX tem se destacado como exemplo exitoso para a transformação do mercado de pagamentos, trazendo inúmeros benefícios em razão da diminuição de custos, democratização de acesso e desburocratização. Desse modo, surpreendeu a fala de professor de direito e economia da FGV/SP ao afirmar que: i) o PIX não respeitou (ou não foi precedido) da AIR e que ii) haveria maior judicialização a partir de seu uso massificado.

Neste breve artigo, dedico-me a assoprar a fumaça levantada em cima do tema de AIR.

Afinal: AIR seria aplicável, ou não, para o PIX?

Pois bem, retomo esse tema, após dois anos da publicação com Miele e Silva do texto “Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas[1]. A força normativa à AIR está na LLE (lei da Liberdade Econômica – Lei nº 13.848/2019) vinculando a sua aplicação. A LLE foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente, entrando em vigor no dia 20 de setembro de 2019.

Contudo, tal como reiterada em diversas Notas Técnicas da Senacon[2] e em produções acadêmicas anteriores, a produção dos efeitos quanto à AIR ocorreu apenas em 15 de abril de 2021 para o Ministério da Economia, para as agências reguladoras (Lei nº 13.848/2019) e para o Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia) e, a partir de 14 de outubro de 2021, para os demais órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional (art. 24)[3].

E o que motivou o legislador a prever esse regime de transição?

Obviamente, quando há nova orientação passa a ser necessária adequação e capacitação das estruturas que farão a análise. Vimos a mesma situação na entrada em vigor da lei 12.529/2011, há 10 anos, quando a estrutura do CADE passou a ser adequada à análise prévia de atos de concentração empresarial, por exemplo.

No que diz respeito ao AIR, quem trabalhou com políticas públicas na transição da norma (i.e. no Ministério da Economia, nas agências reguladoras, Inmetro e nos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional), e/ ou segue acompanhando essa transição, testemunha muitos desafios durante a execução de referida análise.

Cabe dizer, ainda, que há dispensa da aplicação da AIR quando há ato normativo de “baixo impacto” ou seja, aquele que: “b  i. não enseja aumento excessivo tanto de custos para os usuários de determinados serviços e para os agentes econômicos quanto de despesa orçamentário ou financeira para o Estado; e ii. não impacta de forma substancial nas políticas públicas de saúde, de segurança, ambientais, econômicas ou sociais[4].

Em resumo, explicado o contexto acima, temos premissas que sopram a fumaça para longe: AIR não era necessária para o open banking visto que a previsão da LLE é superveniente a esse processo. E, ainda que por hipótese fosse exigida, há muito espaço para se discutir se não seria o caso de dispensa. Para além disso, vale lembrar que a concorrência entre as fintechs e as grandes instituições financeiras e de meios pagamento não deve ser considerada como “despesa financeira”.

Afinal, para quem o PIX causou “aumento excessivos de custos?” Bem, para os consumidores e cidadãos não houve custo, muito pelo contrário! O PIX notadamente promoveu maior inclusão social. Schumpeter estaria comemorando essa grande revolução dos meios de pagamento. Hoje, é possível observar vendedores ambulantes aceitando o PIX como forma de pagamento, em todos os cantos do Brasil. É um fenômeno raro, mas de fato o PIX foi bem recebido em todas as classes sociais e em pouco tempo se tornou importante ferramenta.

 De todo modo, tirando as imprecisões interpretativas[5] naturais de toda norma jurídica, há ao menos 03 premissas que assopram para muito longe a fumaça artificial levantada pelo colega professor em torno do PIX:

  1. O PIX foi previsto e entrou em vigor após o início da primeira etapa do open banking e sem obrigatoriedade, por lei, de AIR, mas foi construído com participação do setor privado por meio do Fórum PIX (com instituições financeiras e de pagamentos, além de empresas de tecnologia e muitos representantes do varejo).
  2. O PIX não enseja aumento excessivo de custos (i. e. perda eventual de lucro dos tradicionais métodos de pagamento não é despesa) e não impacta negativamente as políticas públicas. Aliás, o PIX é um mecanismo disruptivo e eficiente para maximizar a competitividade do setor financeiro, de forma a funcionalizar o alcance do bem-estar social (consumer welfare) previsto na análise econômica e nas políticas públicas regulatórias e de defesa da concorrência;
  3. O PIX permanece sob permanente monitoramento do Bacen, com base em suas competências. Isto significa que o regulador/ agente público poderá criar mecanismos de correções de eventuais percursos não esperados. Isso faz parte de toda inovação e não deve “matá-la”.

A Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) – interessante mecanismo de análise dos efeitos – segue prevista. O ARR permite o controle de efeitos dos atos já editados, confere o atingimento dos seus objetivos e avalia os outros impactos para mercado e para a sociedade (art. 2º, inc. III). Entretanto, as agências mais maduras neste tema (entre as quais ANVISA, ANEEL, ANCINE, ANATEL, ANAC) ainda encontram desafios para adequar a abrangência e a implementação tanto da AIR quanto da ARR.

Em resumo, o PIX é uma realidade que nos obriga a compreender os efeitos da liberdade econômica e da economia criativa digital. Isso tira muitos de suas zonas de conforto e será uma prova àqueles que sempre defenderam a bandeira liberal: não dá para defender a liberdade, a eliminação dos custos de transação e o empreendedorismo e, ao mesmo tempo, fomentar ruídos para garantir reservas de mercado.

É verdade que “[p]or muitas décadas, conformamo-nos a viver em um país avesso à liberdade econômica, ao empreendedorismo, […][6], como afirma a Professora Luciana Yeung (Insper) no capítulo “uma chama de esperança”, em livro organizado pela professora Ana Frazão com os Ministros Ricardo Villas Boas Cueva e Luis Felipe Salomão com comentários à LLE. Sim, após anos de entraves, muitos se conformaram com o ambiente pouco favorável à entrada de novos negócios, às novas tecnologias e com a ausência de concorrência. Não é de hoje que falhas de mercado são combatidas pelos reguladores. Assim, passa a ser mais importante a valorização das alternativas criadas no sistema financeiro (precisamente com o open banking) que o Bacen buscou corrigir.

Portanto, impossível compararmos os efeitos ocasionados em Pompeia após a erupção do Vesúvio com os efeitos do gelo seco em um palco de show de mágica. A fumaça artificial do ilusionista se dissipa facilmente, mas aquela decorrente de mudanças profundas – decorrentes de um “vulcão”, fazendo alusão à frase de Victor Hugo do início do artigo – tendem a seguir por muito tempo. Firmam-se os efeitos da revolução (neste caso, a digital) e da economia 4.0, com marcas perenes e permanentes das chamas de um grande vulcão da disrupção.


[1] DOMINGUES, Juliana O; MIELE, Aluísio de F.; SILVA, Pedro Aurélio de P. Q. da. Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas. 27/11/2020. Disponível em: < Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas – JOTA Acesso em: 22 de set. de 2022.

[2] Veja-se, Nota Técnica n.º 48/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ, elaborada pela Senacon em 2020, com o objetivo de esclarecer os objetivos do Open Banking. A nota técnica traz conclusões positivas e recomendações sobre o assunto. Mais sobre o tema, veja-se: DOMINGUES, Juliana O. PARAVELA, Tatyana C. Open banking: o futuro do sistema financeiro aberto no Brasil na perspectiva do Consumidor. v. 15 n. 2 (2021): Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central. Disponível em: < https://revistapgbc.bcb.gov.br/revista/article/view/1133 > Acesso em 22 de set. de 2022.

[3] CF. DOMINGUES, Juliana O; MIELE, Aluísio de F.; SILVA, Pedro Aurélio de P. Q. da. Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas. 27/11/2020. Disponível em: < Análise de Impacto Regulatório nas políticas públicas consumeristas – JOTA Acesso em: 22 de set. de 2022.

[4] Id.Ibid.

[5] A lei traz conceitos abertos como “aumento expressivo” e “forma substancial” (art. 2º., II, a, b e c).

[6] YEUNG, Luciana L. Friedrich Hayek, Liberdade Econômica, a MP e a Lei da Liberdade Econômica: Por Que É Necessária? In: Luis Felipe Salomão; Ricardo Villas Bôas Cueva; Ana Frazão. (Org.). Lei da Liberdade Econômica e seus Impactos no Direito Brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2020, v. 1, p. 88.


[*] Juliana Oliveira Domingues. Professora Doutora de Direito Econômico da USP e Ex-Secretária Nacional do Consumidor. As informações dispostas neste conteúdo refletem exclusivamente a opinião acadêmica da Professora Juliana Oliveira Domingues.


[1] Com especial agradecimento ao debates realizados com exímios profissionais que contribuíram para o amadurecimento do texto: Mariana Zilio (advogada e ex-assessora/ chefe de Gabinete da Senacon), Andrey Freitas (Ex-Coordenador Geral na Senacon e subsecretário da SEAE/ME, também colunista do Webadvocay), Conselheiro Gustavo A. Freitas de Lima (que acompanhou o tema na Casa Civil e esteve no debate sobre o PIX como representante do CADE), Aluísio de Freitas Miele (professor, pesquisador e coautor de artigos que envolvem o tema) e Ângelo Duarte (chefe de departamento de Competição e de Estrutura do Mercado Financeiro do Bacen).

Ainda sobre a especialização de juízes: argumentos favoráveis à especialização

Fernando de Magalhães Furlan

If the advocates must be specialists, can we wholly ignore

the need for some specialization in the judicial systems?[1]

Chief Justice Warren Burger, 1982

O sopesamento da relação custo-benefício na concepção e operação de juizados especializados é não somente natural, mas também indicada para se evitar o dispêndio de tempo e recursos, humanos e financeiros, de maneira desnecessária ou inconsistente.

As características de exclusividade e limitação dos juizados e tribunais especializados criam diversos benefícios e custos. Esses benefícios e custos podem ser classificados em quatro linhas principais de raciocínio: “(a) desenvolvimento do capital humano judicial; (b) criação de jurisprudência e doutrina uniformes e previsíveis; (c) impacto do sistema legal na economia política; e (d) ganhos na gestão eficiente dos tribunais”[1].

Como, afinal, podemos avaliar se a especialização influencia o resultado do caso ou a qualidade e utilidade da decisão? Como a especialização promove a proficiência e o quanto ela é útil para o julgador?

Alguns comentaristas[2] argumentam que “depois da nomeação de um juiz para uma corte especializada específica, a sua proficiência tende a aumentar”. A repetição de casos semelhantes solidifica a compreensão do julgador em relação a subáreas específicas, e a diversidade de casos dentro da jurisdição especializada pode preencher as lacunas no conhecimento do julgador sobre o conjunto das matérias sob a sua responsabilidade.

Os juízes especializados tendem a se tornar hábeis em questões substantivas e processuais que envolvem determinadas matérias, especialmente as altamente técnicas. Disso certamente devem resultar decisões mais precisas. Algumas dessas matérias poderão exigir treinamento extralegal como, por exemplo, fundamentos econômicos, finanças, engenharia e ciências aplicadas[3].

Além disso, juizados especializados podem estimular o surgimento de advogados especializados que incentivem o julgador a se manter atualizado e com uma formação contínua. Por sua vez, os julgadores têm um forte incentivo para investir o tempo necessário para aprender mais sobre áreas do conhecimento jurídico nas quais eles permanecerão engajados.

Advogados e servidores são também falíveis e juízes especializados podem reduzir a probabilidade de “inadvertência simples”[4], numa determinada decisão. Isto é, por sua experiência e conhecimento conseguem compensar descuidos de advogados e auxiliares. Também podem reduzir a chance de uma parte ganhar ou perder um caso similar apenas por causa de um desequilíbrio na qualidade da advocacia. Além disso, a presença de mais de um julgador na mesma área de especialização e até no mesmo local físico permite um intercâmbio mais produtivo entre os juízes.

A utilidade do conhecimento especializado depende, naturalmente, do estágio do processo. “Presumivelmente, a especialização do julgador é mais importante nas fases iniciais do processo”[5], quando os fatos, depoimentos, testemunhas, documentos e todo o acervo dos autos estiver sendo colhido e as primeiras decisões sendo tomadas.

Isso porque não há decisão prévia a considerar, o julgador terá que construir o caso por conta própria. “À medida que o caso avance para instâncias recursais, a necessidade de conhecimentos especializados tende a diminuir”[6], pelo menos se o julgador de primeira instância houver expressado bem o seu raciocínio e a sua conclusão, bem como tratado corretamente evidências e testemunhos.

Embora se admita que alguma familiaridade com uma determinada área específica do direito possa ser útil para um juiz desempenhando funções recursais, acredita-se que os benefícios de conhecimentos mais específicos e especializados seriam apenas marginais nesse caso, ao contrário do que ocorre com juízes de primeira instância.

Legomsky pondera que quanto maior o escopo da escolha do julgador, mais essencial é a compreensão profunda dos objetivos de políticas públicas relevantes, a redução da inadvertência, a coerência e a minimização da dependência das habilidades dos advogados envolvidos na controvérsia[7].

Em fases posteriores da adjudicação, o papel tipicamente limitado de um tribunal de revisão, apelação ou recursos, em questões de fato e ponderação de evidências, diminui o valor da especialização.

Em relação a questões fáticas e colheita de evidências, típicas das instâncias iniciais de um processo, a especialização pode ser favorável pois[8]:

a.       a familiaridade com matérias jurídicas interconectadas facilita a compreensão e a inquirição de especialistas e peritos;

b.      permite melhor avaliação de informações e dados técnicos de áreas como a economia;

c.       a repetição de temas correlatos melhora o entendimento de fontes recorrentes de evidência e permite ao julgador uma melhor avaliação da influência e legitimidade dessas fontes sobre a qualidade da evidência.

A especialização também promove a eficiência na medida em que permite a redução do tempo necessário para que os advogados esclareçam o julgador sobre aspectos básicos de uma determinada área de especialização[9]. Essa redução de tempo acaba tendo repercussões financeiras, tanto para o Erário quanto para as partes do litígio.

Para a juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos Sandra Day O’Connor, “não há dúvida de que quando um juiz tem uma especialização em uma área ou campo do direito, esse juiz pode se preparar para audiências com menos tempo e pode resolver problemas mais rapidamente e talvez melhor[10].

Nos Estados Unidos, atualmente 28 estados contam com cortes de negócios (business courts) ou cortes especializadas em litígios complexos[11]. As cortes de negócios têm sido principalmente “uma divisão de um tribunal maior, com jurisdição limitada a alguns tipos de disputas comerciais, presididas por apenas alguns juízes especializados, com ênfase na gestão agressiva de casos”[12].

Essas cortes de negócios foram criadas “sob a premissa da inovação, eficiência e flexibilidade, especificamente adaptadas às necessidades dessas jurisdições”[13]. Enquanto algumas cortes de negócios são fisicamente separadas, com o seu próprio e exclusivo magistrado, outras estão integradas a um registro geral baseado em critérios de distribuição pré-estabelecidos.

As variáveis mais comuns entre essas cortes de negócios dizem respeito a: (i) retenção de um montante mínimo de controvérsias sobre negócios para critérios jurisdicionais de inclusão e distribuição; (ii) aceitação de transferências de jurisdição em todo o estado, distrito ou região abrangida; ou (iii) se a inclusão deve se limitar a apenas uma região específica. Adicionalmente, as jurisdições que adotam cortes de negócios devem decidir se os casos serão automaticamente atribuídos a elas, com base apenas em critérios de especialização pré-estabelecidos, ou se uma transferência está subordinada a um pedido das partes ou a recomendação do magistrado responsável[14].

A maioria dos modelos de cortes de negócios incorpora um conjunto complexo de litígios econômico-empresariais a uma lista preexistente de controvérsias genéricas. Tal modelo tem sido preferido porque permite que juízes já estabelecidos possam se responsabilizar por essas demandas judiciais complexas, sem a necessidade de nomeação de juízes exclusivos para a corte de negócios, reduzindo custos[15].

Aspectos da eficiência comparativa podem parecer óbvios para qualquer advogado ou juiz sem a necessidade de verificação empírica. Entretanto, já é possível realizar análise comparativa de desempenho, com as introduções altamente bem-sucedidas de cortes de negócios em Nova York e em Chicago. Em Nova York, o julgamento de casos comerciais aumentou 35% em 1993 (ano em que os juízes especializados começaram a atuar) em relação a 1992, uma eficiência atribuída à introdução dos juízes especializados[16]. O resultado de tais eficiências é que, com os mesmos recursos, o trabalho de mais de quatro juízes generalistas pode ser realizado por três juízes especializados (uma redução inicial de 25%).

Em mercados regulados, por exemplo, em que se faz necessário um planejamento de longo prazo e, portanto, é demandado um grau elevado de segurança jurídica e previsibilidade, os benefícios da especialização na promoção da consistência das decisões judiciais se tornam ainda mais pronunciados[17].

O dinamismo e a constante evolução de certas áreas do conhecimento jurídico, inclusive aquelas relacionadas à economia e aos negócios, também advogam a favor da especialização.

De outra parte, o volume de litígios em determinadas áreas do conhecimento jurídico é altamente relevante para o estabelecimento de um órgão jurisdicional especializado.

O Grupo de Trabalho sobre a Implementação da Política de Concorrência da Rede Internacional da Concorrência (International Competition Network – ICN), por exemplo, publicou um documento de trabalho[18] durante a sua 6ª Conferência Anual em Moscou, Rússia, em maio de 2007. Nesse documento, a ICN reafirmou que “a falta de conhecimentos especializados sobre questões de concorrência pelo Poder Judiciário é uma questão crucial que afeta a implementação da política de concorrência, especialmente para os países em desenvolvimento”.

Quando um sistema de tribunais de jurisdição geral é premido pelo volume de casos, e todos os esforços razoáveis para reduzir o número total de casos já foram feitos, então três opções básicas se colocam[19]:

  • criar juizados de jurisdição genérica;
  • expandir o tamanho dos juizados de competência geral existentes; ou
  • grupos selecionados de casos para juizados especializados.

Em relatório[20] publicado em 2016, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) defende que a especialização do Judiciário é uma questão de grau e pode variar entre a especialização parcial e completa. A especialização judicial, de acordo com aquela organização plurilateral, pode implicar pelo menos três vantagens:

a)      maior eficiência decorrente da repetição e padronização das tarefas, das competências e da experiência dos juízes que analisam e compreendem as evidências e os argumentos econômicos. A eficiência pode ser medida por meio de indicador de duração da revisão judicial. Tempos de revisão menores gerarão maior certeza nos mercados, e o estabelecimento de prazos de conclusão da revisão judicial é uma prática positiva;

b)      a uniformidade das decisões é alcançada por meio da concentração de casos semelhantes e de áreas correlatas em cortes específicas. Uma maior especialização em assuntos determinados e uma redução do número de juízes responsáveis promoverão a uniformidade de forma natural. Quanto maior a uniformidade na interpretação em temas jurídico-econômicos, maior a certeza e a previsibilidade no mercado; e

c) a melhoria da qualidade das decisões é resultado do aumento da habilidade e da experiência na aplicação correta de ramos relacionados do direito às evidências de um caso. Além disso, quando os juízes discordam, ainda que parcialmente, ou invertem as decisões administrativas quando equivocadas, isso pode ter um efeito na qualidade das decisões emitidas pelas próprias autoridades administrativas.

Aquele relatório também enfatiza outros fatores que influenciam o desempenho das cortes judiciais, tanto de jurisdição geral quanto especializada, envolvidas com temas econômico-empresariais. Dentre eles destacamos:

a)      especialistas (economistas e demais profissionais) internos ou externos podem ajudar os juízes a interpretar evidências econômico-gerenciais e avaliar o seu valor probatório. Idealmente, os especialistas devem defender as suas próprias posições econômico-gerenciais, e tais posições devem estar firmemente fundamentadas em conceitos e modelos econômicos e na razoabilidade gerencial;

b)      as competências técnicas dos servidores do Judiciário são essenciais para o desenvolvimento de uma especialização em matérias econômico-comerciais. Essas competências podem ser desenvolvidas e apoiadas num robusto sistema de formação continuada nessas matérias. A perspectiva internacional também é essencial para se ter acesso às melhores práticas e experiências de outras jurisdições;

c)      devem ser adotados sistemas de gestão sólidos para uma administração confiável e transparente dos processos judiciais, bem como para a produção sistemática de bases de dados e estatísticas sobre os resultados obtidos; e

d)      o orçamento da corte é um meio eficaz para aumentar a performance e reduzir a duração dos litígios. A experiência internacional mostra que o investimento em infraestrutura e tecnologia da informação contribui para tanto.

A OCDE[21] pondera que quando as cortes e tribunais são de jurisdição geral e a concentração de casos da mesma natureza não for possível, os juízes podem usar outros meios para complementar os seus próprios conhecimentos e experiências, como, por exemplo, a realização de audiências de instrução e esclarecimentos com as partes, antes dos julgamentos, e a utilização de peritos econômicos ou profissionais especializados para ajudar a estruturar o processo de coleta de fatos e dados e o entendimento de questões complexas para facilitar a compreensão por juízes de jurisdição geral.

Afinal, mesmo que o volume de casos em áreas específicas do direito não seja muito grande, a carga de trabalho nas cortes e tribunais generalistas seria sensivelmente reduzida, desde que os casos transferidos fossem suficientemente complexos, o que disponibilizaria uma boa porção do tempo dos juízes generalistas.

Em estudo realizado com juízes generalistas e, em especial, juízes de falência (bankrupcy judges) nos EUA, que são certamente especialistas, Rachlinski, Guthrie e Wistrich descobriam que o nível de dependência do pensamento intuitivo dos juízes de falência era comparável ao do de juízes generalistas. Entretanto, os juízes de falência se saíram melhor em desconsiderar alegações que prejudicariam a qualidade da sua tomada de decisão. Tal resultado deixou aberta a possibilidade de que a especialização dos juízes de falência ajude a melhorar os processos pelos quais eles tomam decisões[22].

No contexto brasileiro, consoante levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[23] em 2009, as ações judiciais envolvendo agências reguladoras e CADE e que foram finalizadas, apresentaram tempo de processamento médio de 36 meses. Para as ações judiciais ainda pendentes de decisão há um prazo estimado de processamento de 50 meses.

Enquanto ainda em curso uma ação judicial, as decisões administrativas oscilam entre ter os seus efeitos suspensos (geralmente por meio de medidas liminares ou cautelares) e serem restabelecidas em diversos graus recursais. Em um cenário no qual o Judiciário dá margem à insegurança e à incerteza para depois confirmar decisões administrativas, o estudo do CNJ indaga se uma jurisdição específica para lidar com essas disputas, em um foro célere e especializado, não seria uma resposta.


[1] KESAN, Jay P.; BALL, Gwendolyn G. Judicial experience and the efficiency and accuracy of patent adjudication: an empirical analysis of the case for a Specialized Patent Trial Court. Harvard Journal of Law & Technology, Volume 24, Number, 2 Spring 2011 (24 Harv. J. L. & Tech. 393 2010-2011), p. 400.

[2] WOODWARD D. R.; LEVIN, R. M. In Defense of Deference: Judicial Review of Agency Action, 31 Administrative Law Review, 329, 332, 1979. Apud LEGOMSKY. Op. cit., p. 8.

[3] BRUFF, Harold H. Specialized Courts in Administrative Law. HeinOnline: 43 Admin. L. Rev. 329, 199. Available Through: Pence Law Library, Washington College of Law.

[4] LEGOMSKY, Stephen H. Specialized justice: courts, administrative tribunals, and a cross-national theory of specialization. New York: Oxford University Press, 1990, p. 9.

[5] Idem, p. 9.

[6] Ibidem, p. 9.

[7] Ibidem, p 22.

[8] Ver entrevista com o Juiz Jeffries da Alta Corte da Nova Zelândia (New Zealand High Court). Apud LEGOMSKY, Stephen H. Op. cit., p. 10.

[9] LUBBERS, Jeffrey S. A unified Corps of Administrative Law Judges (ALJs): A proposal to Test the Idea at the Federal Level, 65, Judicature 266, p. 274.

[10] MIDDLETON, Martha. Specialty courts: two more Justices speak out. American bar Association Journal (January), 69:23, 1983.

[11] BERGAL, Jenni. Business Courts Take on Complex Corporate Conflicts. The Pew Charitable Trusts, Oct. 28, 2015.

[12] PEEPLES, Ralph and NYHEIM, Hanne. Beyond the Border: An International Perspective on Business Courts. 17:4 Bus. L. Today, Mar/Apr 2008.

[13] PITTMAN, Spence C. Business Courts: Specialized Courts for Complex Business Litigation. 87 Okla. B.J. 805 2016, p. 806. Available through: Pence Law Library, Washington College of Law.

[14] DRAHOZAL, Christopher R. Business Courts and the Future of Arbitration. 10 Cardozo f. of Conflict Resol. 491, 496, 2008.

[15] PITTMAN, Spence C. Op. cit., p. 806.

[16]AMERICAN BAR ASSOCIATION. Business courts: towards a more efficient judiciary. Business Lawyer. 52.3 (May 1997): p. 947-963.

[17] CURRIE, David P.; GOODMAN, Frank I. Judicial Review of Federal Administrative Action: Quest for the Optimum Forum. Columbia Law Review, Vol. 75, Nº 1, January 1975,

[18] “Concorrência e Judiciário – Estudo de Casos” (Competition and the Judiciary. 2nd. Phase – Case Studies). International Competition Network. Competition Policy Implementation Working Group. 6th ICN Annual Conference Moscow, Russia. May-June 2007.

[19] CURRIE, David P.; GOODMAN, Frank I. Op. cit., p. 63.

[20] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). A Resolução de Casos de Concorrência por Cortes Especializadas e Generalistas (The Resolution of Competition Cases by Specialized and Generalist Courts), 2016.

[21] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). A Resolução de Casos de Concorrência por Cortes Especializadas e Generalistas (The Resolution of Competition Cases by Specialised and Generalist Courts), 2016.

[22] GUTHRIE, Chris; RACHLINSKI, Jeffrey J.; WISTRICH, Andrew J. The “Hidden Judiciary”: An Empirical Examination of Executive Branch Justice, 58 DUKE L.J. 1477, 1479 (2009).

[23] AZEVEDO, Paulo Furquim de; FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio; MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. As inter-relações entre o processo administrativo e o judicial, sob a perspectiva da segurança jurídica do plano da concorrência econômica e da eficácia da regulação pública. São Paulo: USP, 2011. Relatório da pesquisa. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relat_pesquisa_usp_edital1_2009.pdf>. Acesso em: 20.09.2022.


[1]Se os advogados precisam ser especialistas, podemos ignorar completamente a necessidade de alguma especialização nos sistemas judiciais?” (Juiz Warren Burger, presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, 1982 – tradução livre).

Concorrência desleal e links patrocinados no Google

Eduardo Molan Gaban

Em recente e inédita decisão proferida no julgamento do Recurso Especial n. 1.937.989/SP, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que configura concorrência desleal o fato de empresa anunciante utilizar a marca registrada de empresa concorrente como palavra-chave no sistema de links patrocinados da Google como meio de obter resultados privilegiados nas buscas e captar clientela[1].

Segundo a autora da ação, empresa de turismo cujo principal produto são viagens para a Disney, em que pese detentora do regular registro dos direitos relativos à sua marca junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), o resultado da pesquisa do nome completo de sua marca junto à Google mostrava como primeiro resultado empresa concorrente do ramo de turismo, prestadora do mesmo tipo de serviço, requerida na demanda.

Em primeira instância, o juiz monocrático reconheceu que a empresa requerida utilizou indevidamente a marca da autora como palavra-chave para fins dos mecanismos de busca remunerados da Google, condenando-a ao pagamento de indenização por dano moral no valor de R$ 15 mil. O valor da indenização foi reduzido para R$ 10 mil no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP).

No Recurso Especial, em que pese a empresa ré tenha argumentado que a prática se trata de exercício da livre demanda e prática comum de captação de clientela no ­e-commerce, o STJ manteve a decisão de segunda instância.

O Ministro Relator Luis Felipe Salomão pontuou que a utilização indevida de nome empresarial e marca alheia perpetrado pela empresa ré configura crime de concorrência desleal, conforme condutas coibidas pelo artigo 195, incisos III e V, da Lei de Propriedade Industrial e pelo artigo 10 bis da Convenção da União de Paris para Proteção da Propriedade Industrial.

O artigo 195 da Lei de Propriedade Industrial (Lei n. 9.297/1996) traz rol de condutas tipificadas como crime de concorrência desleal, dentre as quais o emprego de meio fraudulento para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem (inciso III); e usar expressão ou sinal de propaganda alheios, ou os imita, de modo a criar confusão entre os produtos ou estabelecimentos (inciso IV).

Para melhor entender o funcionamento do mecanismo dos sites de busca e como eles podem ser empregados para práticas de concorrência desleal a partir do uso indevido de marca como palavra-chave, destaca-se a definição dada pelo CADE, em Nota Técnica expedida no âmbito do Processo Administrativo n. 08700.005694/2013-19[2], em que é apontada a diferença entre a busca gratuita e a busca patrocinada:

[…] de um lado – os sites de busca permitem que internautas digitem palavras-chave e recebam – em troca e gratuitamente – uma lista de sites cujo conteúdo seja relacionado ao texto que o usuário digitou. Assim, a plataforma presta aos usuários da busca o serviço de coleta, ranqueamento e apresentação de resultados para uma determinada busca do internauta. Outro lado gratuito da plataforma é o lado que estabelece a relação entre os sites que são listados no Google e a própria plataforma, que presta e eles o serviço de exibi-los para potencial audiência, na página de busca do Google. Por sua vez, tais sites permitem que o seu conteúdo seja rastreado pelos crawlers do Google, que copiam o seu conteúdo, para então indexá-lo e ranqueá-lo, em seguida apresentando-o ao usuário do Google Busca. Esse lado é gratuito porque os sites listados no Google não pagam nem recebem quaisquer valores para serem listados no buscador. Por fim, há o lado pago da plataforma, conhecido como “busca patrocinada”, reservada à publicidade virtual. Os links pagos ou patrocinados são colocados em lugares estratégicos do site de busca, normalmente acima da busca orgânica, ou na sua lateral direita. Usualmente, os mecanismos de busca são remunerados quando os internautas clicam nos links patrocinados, forma de remuneração conhecida como CPC, ou custo por clique. Há também outras formas de remuneração pela publicidade e links patrocinados, utilizadas em menor escala. Por exemplo, os sites de busca podem receber uma “taxa de sucesso” (taxa de conversão) por vendas realizadas pelos anunciantes, se tais vendas forem decorrentes de tráfego do site de busca”.

Assim, utilizando o “lado pago” do mecanismo de busca da Google, a empresa requerida adquiriu palavra-chave equivalente à marca registrada / nome empresarial de sua concorrente, a fim de que os consumidores que buscassem por ela recebessem, em primeiro lugar da busca, o site da requerida.

No caso em tela, é possível observar que o ponto essencial para a configuração da conduta de concorrência desleal foi a existência de marca registrada / nome empresarial equivalente à palavra-chave cadastrada pelo concorrente no mecanismo de busca patrocinada. Tal parâmetro também foi adotado em decisões proferidas por outros tribunais, em casos semelhantes[3].

Diversas situações semelhantes à do Recurso Especial n. 1.937.989/SP vem sendo submetidas ao crivo do Poder Judiciário brasileiro. Ganhou destaque o caso de duas ações judiciais[4] envolvendo as empresas Magazine Luiza e Via Varejo (Casas Bahia e Ponto Frio) em que se discute suposto uso indevido do nome empresarial da concorrente como palavra-chave no Google Search.

Em primeiro momento, a Magazine Luiza ingressou com ação, apontando que a concorrente estava utilizando o nome exato de sua marca como palavra-chave remunerada no Google Search, às vésperas da Black Friday, o que lhe causaria sérios efeitos de desvio de clientela. Foi concedida liminar determinando à Via Varejo que se abstivesse de fazer uso dos termos “Magazine Luiza” ou “Magalu” no prazo de 2 horas após o recebimento da intimação, sob pena de multa fixada em R$ 5 milhões.

Já no caso da ação movida pela Via Varejo, ajuizado posteriormente, a autora alegou que a Magazine Luiz estaria utilizando termos semelhantes aos nomes empresariais do grupo, porém, com pequenas variações/erros de digitação: “pontu friu”, “casa baia”, “caza bahia”, entre outros.

Também foi concedida liminar determinando a abstenção do patrocínio de tais termos para fins de palavra-chave no Google Search, embora a Magazine Luiza tenha negado o emprego de tais práticas e a impossibilidade de controle, dada a incalculável probabilidade de variações diversas.

Ambos os casos ainda pendem de julgamento em primeira instância. Assim, ainda não há decisão que reconheça que a utilização de termos muito semelhantes à marca registrada / nome empresarial, ou com erro de digitação, configure crime de concorrência desleal previsto no rol do artigo 195 da Lei de Propriedade Intelectual.

Como pontuado pelo Ministro Luis Felipe Salomão no julgamento Recurso Especial n. 1.937.989/SP, “embora seja lícita a contratação do serviço de priorização de resultados de pesquisa, a inexistência de parâmetros ou proibições de palavras-chaves nas ações publicitárias pode resultar em conflitos relacionados à propriedade intelectual”[5].

No atual ambiente digital, cuja virtualização se intensificou a partir da pandemia, os mecanismos de busca online têm representado para as empresas importante meio de oferta, pois é a partir deles que o consumidor geralmente inicia a busca por produtos e serviços. Neste cenário, sistema de links patrocinados representa uma das mais importantes ferramentas do ­e-commerce que vem sendo cada vez mais utilizado pelas empresas como meio de propaganda e de competição.

É preciso considerar que, desde o ano de 2020, a Google ocupa o primeiro lugar na concorrência entre mecanismos de busca globais[6], sendo que, no ano de 2022, a empresa (Alphabet Inc.) está em 4º lugar mundial entre as companhias de maior valor[7], sendo, portanto, o mecanismo de busca online mais utilizado no Brasil e no mundo.

Logo, o uso de tais mecanismos, sobretudo o Google Search, por players com objetivo de prejudicar os concorrentes através do emprego de meios fraudulentos e/ou ilícitos é passível de acarretar efeitos negativos ao ambiente da livre concorrência.

Contudo, especificamente na questão do uso indevido de marca e/ou nome empresarial como palavra-chave nas buscas patrocinadas, há quem entenda pela impossibilidade de imputar responsabilidade civil à Google, na medida em que é apenas o prestador de serviço.

Neste sentido, recente decisão proferida pela 1ª Vara Empresarial do Foro Central Cível da Comarca de São Paulo/SP[8], foi julgada improcedente a ação movida pela empresa autora em face da Google, sob alegação de que, a partir da busca de sua marca registrada no mecanismo de busca da Google, estaria ocorrendo o direcionamento para anúncios de empresas concorrentes a partir do Google Ads.

Inicialmente, o juiz monocrático havia concedido medida liminar para que a Google se abstivesse de veicular os anúncios. Contudo, proferida sentença, o magistrado modificou seu entendimento, ao entender que, no caso, não haveria verdadeira violação da marca da autora. Para além disso, pontuou que, na contratação de palavra-chave com terceiro, “[…] não compete à Google exercer o controle prévio ou a fiscalização do conteúdo (lícito ou ilícito) do anúncio do produto”.

A fundamentação da decisão cita o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014), que determina:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.

Sob tal entendimento, a responsabilidade da plataforma Google não é direta e só se iniciaria após a comunicação da existência de irregularidade no anúncio veiculado.

Assim, a partir da primeira decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, não há dúvidas quanto à possibilidade de responsabilização civil e penal da empresa anunciante pelo uso indevido de marca registrada ou nome empresarial de concorrente em links patrocinados, nos termos do artigo 195 da Lei de Propriedade Intelectual. Já sobre a responsabilidade da Google, com a evolução das discussões sobre o tema, não tardará para que seja apreciada pelo Tribunal Superior.


[1] QUARTA TURMA vê concorrência desleal no uso de marca alheia em link patrocinado do Google. Superior Tribunal de Justiça, 2022. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/26082022-Quarta-Turma-ve-concorrencia-desleal-no-uso-de-marca-alheia-em-link-patrocinado-do-Google.aspx>. Acesso em: 16 set. 2022.

[2] CADE. Nota Técnica nº 16/2018/CGAA2/SGA1/SG/CADE. Processo Administrativo nº 08700.005694/2013-19. Disponível em: <https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?dz2uweayicburzefhbt-n3bfpllu9u7akqah8mpb9ypu6wevpqsd71wzh_uxehbwngimcevh_dwu20vj-yrkhn0rsauy_vzle-vw6lie0jkiptmdqrdz40fqukwedxd2>. Acesso em: 19 set. 2022.

[3] Por exemplo: Processo n. 0082836-06.2019.8.16.0014, julgado pela 9ª Câmara Cível do TJ/PR; Processo n. 1016104-20.2018.8.26.0196, julgado pela 1ª Câmara de Direito Empresarial do TJ/SP; Processo n. 0120484-07.2021.8.19.0001, julgado pela 3ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro/RJ; Processo n. 5630287-26.2020.8.09.0051, julgado pela 31ª Vara Cível de Goiânia/GO.

[4] Processo n. 1128548-85.2021.8.26.0100, movido por Magazine Luiza S/A contra Via Varejo S/A. e Processo n. 1130874-18.2021.8.26.0100, movido por Via Varejo S.A. em face de Magazine Luiza S/A, ambos em trâmite perante a 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do Foro Central Cível da Comarca de São Paulo.

[5] QUARTA TURMA vê concorrência desleal no uso de marca alheia em link patrocinado do Google. Superior Tribunal de Justiça, 2022. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/26082022-Quarta-Turma-ve-concorrencia-desleal-no-uso-de-marca-alheia-em-link-patrocinado-do-Google.aspx>. Acesso em: 16 set. 2022.

[6] THE 100 LARGEST companies in the world by market capitalization in 2020. Statista, maio 2020. Disponível em: https://bit.ly/32A1hV2. apud LEURQUIN, P.; ANJOS, L. Condenações da Google pela aplicação do Direito da Concorrência da União Europeia. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 9, n. 1, p. 104-124, 2021. DOI: 10.52896/rdc.v9i1.903. Disponível em: https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/view/903. Acesso em: 19 set. 2022, p. 104.

[7] THE 100 LARGEST companies in the world by market capitalization in 2022. Statista, abril 2022. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/263264/top-companies-in-the-world-by-market-capitalization/. Acesso em: 19 set. 2022.

[8] Processo n. 1105759-92.2021.8.26.0100, movido por CONSTRUCOLOR COMÉRCIO DE TINTAS LTDA. contra GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA., cuja sentença foi disponibilizada em 06 set. 2022. Disponível em: < https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital/abrirDocumentoEdt.do?nuProcesso=1105759-92.2021.8.26.0100&cdProcesso=2S001H4H80000&cdForo=100&baseIndice=INDDS&nmAlias=PG5JM&tpOrigem=2&flOrigem=P&cdServico=190101&acessibilidade=false&ticket=AWXAW1RVACSqXqfRnHC1XAnusAIbAwRw%2F457agFUiTreBxdKdyk%2FYfy%2FDhiHd%2BmJdZxOn4AsukCSGF6nhVRpc%2BOiCmnwD082Bhwt7VI69S2iUEcHmbHPc5dZDXQxN9dhSSa%2FaaSwdKVZgUo3VY5mVJXav8I0xIIxnkJKU8XBAhT1vZtkMsMoTCfZC2FQSIsdpu5I0oERzG8vZnF6zX%2B3tUL81nfhQe%2FCT7MZM4YD4xJAiwSG8E4VI2hXBpD4DGoZBRcr3B2VjNyFT8loyDcfiVzfeXyiKKtZpGxBKXxfzJFvYQir7tuyYEYht%2F6Io9SuWwjS%2BbRTrNm8dOPywDY4kdEPAfFUiTSXwv4%2BER5J8N%2Br5IjtULuOkeL3cBEjmB2HOdvVvwzaRjstzQwL9VAcNqCy2IHiQDY9l5Ghi7KYm5sRIIHBahPxevP9h%2BMI%2FW5XvJY7qfv79NFB%2BQUdoj6TXI7fayeeA%2FMPN0uCqS9y7fo7SCIb2SFCyHJLhS8PmEWB98h%2F0eP%2Bfr6VKCi4ANP3bA%3D%3D>. Acesso em: 16 set. 2022.

Avanços no estabelecimento de metodologia pelo Cade para a dosimetria da pena de pessoas físicas envolvidas em condutas anticompetitivas

Polyanna Vilanova[1] & Catharina Araújo Sá[2]

A dosimetria da pena sempre foi um dos temas que gerou discussões ricas no Tribunal Administrativo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Temas como estimação ou cálculo da vantagem auferida, metodologias adequadas para definir a multa, aplicação das atenuantes ou agravantes do art. 45 da Lei nº 12.529/2011, dentre outros, são temas recorrentes discutidos no Plenário. Recentemente, o Tribunal Administrativo, em caso envolvendo cartel em licitação da Infraero[1], tratou sobre metodologia para cálculo da multa a ser aplicada para pessoas físicas considerando a capacidade econômica do infrator e é especificamente sobre este tema que o presente artigo abordará.

Antes mesmo deste caso em específico, é importante relembrar discussões anteriores que envolveram a consideração da capacidade econômica do infrator pessoa física a ser computada na dosimetria da pena em casos de condutas anticompetitivas. No julgamento referente ao “Cartel de Distribuidoras e Revendedoras de Combustíveis em Joinville/SC”[2], o Conselheiro Sérgio Ravagnani requisitou informações sobre renda e patrimônio de pessoas físicas Representadas à Receita Federal[3], com o objetivo de observar a situação econômica do infrator (inc. VII, art. 45 da Lei nº 12. 529/2011) no estabelecimento da pena, em respeito ao caráter dissuasório e à proporcionalidade da multa, considerando o momento da condenação, não o momento dos fatos ocorridos.

À época, o Tribunal Administrativo homologou, por maioria, a requisição de informações apresentada pelo Conselheiro Sérgio Ravagnani na 170ª Sessão Ordinária de Julgamento. Na ocasião, o ex-presidente do Cade, Alexandre Barreto, questionou se esse seria um procedimento adotado em todos os processos do Cade, mesmo aqueles com elevado número de pessoas físicas representadas no polo passivo, ao que o Conselheiro Sérgio Ravagnani respondeu afirmativamente, sustentando que seria fundamental verificar a capacidade de pagamento da pessoa física para fazer a calibração da alíquota, de modo a conservar o caráter dissuasório da multa.

Posteriormente, no “Cartel de Filtros Automotivos”[4], da mesma forma, o Conselheiro Sérgio Ravagnani também requisitou os informes de rendimentos de pessoas físicas representadas à Receita Federal[5], dando seguimento à sua tese de dosimetria da multa a ser aplicada para pessoas físicas representadas.

Recentemente, na 200ª Sessão Ordinária de Julgamento, o Tribunal Administrativo de Defesa Econômica deu continuidade ao julgamento do caso envolvendo cartel em licitação da Infraero e voltou a discutir esta temática, que já vinha sido abordada em sessões anteriores contando com a atual composição do Conselho. No caso, o Tribunal Administrativo condenou as empresas e pessoas físicas por formação de cartel. No que se refere à dosimetria imposta às pessoas físicas, retomou-se a discussão sobre a capacidade econômica do infrator.

Na 196ª Sessão Ordinária de Julgamento, o Conselheiro Gustavo Augusto apresentou voto vista[6] destacando a necessidade da elaboração de uma metodologia para o cálculo da multa de pessoas físicas envolvidas em condutas anticompetitivas, não necessariamente como “uma fórmula matemática”, mas observando a necessidade de dar uma sinalização para os agentes de mercado, no sentido de garantir previsibilidade e segurança jurídica.

Em seu voto, o Conselheiro destacou que o Cade já vem buscando uma sistematização para a aplicação de multas de pessoas físicas em casos de condenação por cartel, por meio da jurisprudência. Nesse sentido, citou os votos do Conselheiro Sérgio Ravagnani nos casos já indicados e do Conselheiro Luiz Hoffmann no Processo Administrativo nº 08700.003390/2016-60, no qual o Conselheiro abordou os padrões de dosimetria considerados em outras jurisdições.

O Conselheiro Gustavo Augusto destacou, contudo, que o Cade ainda não tem uma metodologia específica para o cálculo da multa de pessoas físicas, especialmente considerando os dados obtidos a partir da Receita Federal para aferir a capacidade econômica dos representados a ser considerada na dosimetria da pena.

Tendo em vista este contexto, o Conselheiro Gustavo Augusto propôs uma metodologia de cálculo da multa composta de duas fases. Na “Primeira Fase”, constatou que devem ser observadas as circunstâncias da conduta, as quais devem ser consideradas para a fixação da alíquota aplicável. Tomando como base os padrões de dosimetria que são aplicados pelo Cade, propôs as seguintes faixas de alíquota a serem aplicadas: (i) cartel clássico ou cartel em licitação (12 a 20%) e (ii) cartel difuso, paralelismo plus, demais condutas colusivas e condutas individuais de menor gravidade (1 a 12%).

Após a determinação das faixas, sustentou que a determinação da alíquota exata no caso concreto, ainda na “Primeira Fase”, deve ser definida com base nas circunstâncias agravantes e atenuantes do art. 45 da Lei nº 12.529/2011, à exceção da “situação econômica do infrator” (inciso VII), pois esta deve ser considerada apenas na “Fase Dois”. Ainda na “Fase Um”, o Conselheiro destacou que eventual diferenciação entre a multa aplicada a administradores e não administradores deve ser ponderada de acordo com o caso concreto, pois a atuação de cada um depende do caso, de modo que não é possível afirmar que o administrador necessariamente atuará de forma mais gravosa em eventual conduta anticompetitiva.

Uma vez definida a multa na “Fase Um” (alíquota-base), com base nas circunstâncias da conduta, na “Fase Dois” (situação econômica), o valor da multa deverá ser adequado à situação econômica do infrator. Para tanto, o Conselheiro destacou que devem ser utilizadas preferencialmente as informações do Imposto de Renda da Pessoa Física com base em dados financeiros mais recentes, que deverão ser requisitadas à Receita Federal. Além disso, na visão do Conselheiro, também deve ser considerado o patrimônio do infrator.

Em seguida, estabeleceu que, em regra, a multa a ser aplicada não deve ser superior a 30% da renda bruta anual do infrator, tendo em vista ser este o percentual máximo que tem sido admitido no SuperiorTribunal de Justiça em face do superendividamento, somados a 6% do valor do patrimônio do infrator (valor que se refere aos juros legais da poupança). O Conselheiro ainda fez a ressalva de que se houver fontes de rendimentos ilícitos, considerando prova de lavagem de dinheiro ou participação em organização criminosa, o Tribunal Administrativo poderá deixar de aplicar os limites máximos da “Fase Dois”.

A proposta do Conselheiro Gustavo Augusto foi acatada pela maioria do Plenário e o caso ainda segue em discussão, tendo em vista a oposição de Embargos de Declaração.

O voto do Conselheiro Gustavo Augusto foi interessante para dar previsibilidade aos agentes que atuam em diferentes mercados, uma vez que criou uma metodologia com base na jurisprudência do Cade, tornando a aplicabilidade de eventuais multas às pessoas físicas representadas mais clara, no sentido de mostrar quais os critérios considerados e como estes critérios impactarão nas alíquotas.

Em 2020, o Cade havia submetido uma minuta de “Guia de Dosimetria de Multas de Cartel”[7] à Consulta Pública nº 02/2020, com o objetivo de apresentar uma metodologia geral para a aplicação de multas, tanto para empresas quanto para pessoas físicas representadas, com base na observância da jurisprudência do Conselho e com a sinalização de passos que devem ser seguidos. Apesar de não ter sido publicada uma versão final do Guia, o documento também demonstra um esforço da autoridade concorrencial para a consolidação de uma metodologia para a dosimetria da multa, com base em critérios mais claros que possam ser observados de forma mais objetiva por representados em processos administrativos.

Discussões no sentido de criar uma metodologia para a dosimetria da pena são relevantes para deixar claro quais as variáveis consideradas e como estão sendo aplicadas pelo Cade ao determinar a pena, além de revelarem uma preocupação do Conselho com o caráter dissuasório da multa, de modo a evitar que eventuais infrações concorrenciais voltem a ocorrer.


[1] Processo Administrativo nº 08700.007278/2015-17.

[2] Processo Administrativo nº 08700.009879/2015-64.

[3] CADE. Processo Administrativo 08700.009879/2015-64. Ofício nº 8732/2020/GAB5/CADE. 2020. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yM9ekr5pABrXDr-Tets2h4mia_kmQzI_NNPh3hRBx_Z4hQIyZE6R2fguxNqEJ9P-a6WQG-G_YW1vUFWZMB2su0u. Acesso em 08 set. 2022.

[4] Processo Administrativo nº 08700.003340/2017-63.

[5] CADE. Processo Administrativo 08700.003340/2017-63. Ofício nº 955/2021/GAB5/CADE. 2021. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yO0waFRhaHmauOKJu42n9EEegAScI7KJ-9sJvcbtdi9flfaIQ0Ygnii2CGp2QNyJ9lqAlBNEtuhvvAOBhXWchz6. Acesso em 08 set. 2022.

[6] CADE. Processo Administrativo n° 08700.007278/2015-17. Voto do Conselheiro Gustavo Augusto. 2022. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddYyad9C33RKmYladycJWo-r_O6NbCYIRlLsLUt3N2D0XWXbveNECtAUoxpvM8U2xSH6kTAo8FUwiyHTdCxw5hoy. Acesso em 08 set. 2022.

[7] CADE. Minuta do Guia de Dosimetria de Multas de Cartel. 2020. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/Not%C3%ADcias/2020/Cade%20estende%20prazo%20para%20contribuições%20à%20versão%20preliminar%20do%20Guia%20de%20Dosimetria%20de%20Multas%20de%20Cartel__Minuta_Guia_de_dosimetria.pdf. Acesso em 08 set. 2022.


[1] Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

[2] Catharina Araújo Sá é advogada no escritório Vilanova Advocacia.

Inovação, fretamento colaborativo e o fetiche regulatório Brasileiro

Marcelo Nunes de Oliveira

Quem nunca se deparou com a seguinte situação: empresa inovadora/startup lança novo produto conferindo nova roupagem a algum serviço tradicional, atraindo a atenção do público e, ato contínuo, especialistas, legisladores e empresas do setor comentam sobre a necessidade de regulamentar o novo serviço?

Lembremos do caso Uber e a batalha jurídica para (i) regulamentar o serviço; e (ii) decidir quem regulamenta o serviço, até que, enfim, a Lei 13.640/2018 (que alterou a Lei de Mobilidade Urbana – 12.587/2012) regulamentou transporte remunerado privado individual de passageiros e o STF pacificou o entendimento acerca da obrigatoriedade de sua adoção pelos municípios Brasileiros na decisão da ADPF 449.

Passando pela polêmica fugaz dos patinetes elétricos, que surgiram e sumiram na mesma velocidade – não sem antes despertar os defensores da regulamentação pública, a bola da vez são os serviços de fretamento compartilhado, representado de maneira mais notória pela empresa Buser, também conhecida como “Uber dos ônibus”.

Em resumo, o fretamento colaborativo nada mais é do que a oferta de assentos em ônibus de fretamento por meio de um aplicativo da empresa em que os custos são divididos pelos passageiros.

Importante, no caso, diferenciar as linhas regulares do transporte de fretamento. O transporte regular, nos termos do Decreto 2.521/1998, é aquele delegado para transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros entre dois pontos terminais, com tarifas e esquema operacional aprovados pela Agencia Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. Ou seja, é o ônibus que o usuário pega nas rodoviárias e possui uma oferta contínua e regular de horários. O fretamento, por sua vez, é o serviço prestado a um grupo de pessoas, em circuito fechado (ou seja, ida e volta), em que o transportador precisa enviar uma lista prévia à ANTT para que seja autorizado. Cabe ressaltar que os conceitos acima também se aplicam, analogamente, ao transporte intermunicipal de passageiros, de competência dos Estados.

As empresas de fretamento colaborativo atuam por meio de parceiros – empresas de ônibus de fretamento, autorizadas pelas agências nacional ou estaduais, disponibilizando veículos dessas empresas para determinados trajetos, mas se utilizando da tecnologia de marketplace para formar os grupos de fretamento.

As empresas atuantes no serviço regular alegam que o serviço de fretamento colaborativo seria um serviço público, assemelhando-se ao serviço regular e, portanto, sujeito às regras do serviço regular. Sob esse argumento, diversas agências reguladoras estaduais e a própria ANTT têm autuado ônibus de fretamento colaborativo, impedindo-os de seguir viagem.

O debate traz consigo um elemento bastante comum nas discussões envolvendo tecnologias disruptivas: a necessidade de alguns agentes, públicos e/ou privados, de tentar encaixar a inovação nas caixinhas da regulamentação disponível, normas elaboradas, necessariamente, quando a tal tecnologia sequer existia.

Voltando ao caso Uber, os defensores da regulamentação à época, em geral também defensores dos taxis, alegavam ser o Uber e seus assemelhados serviços não regulados e que, portanto, ofereciam riscos aos usuários.

Ora, primeiramente, defender a regulamentação de um serviço como elemento fundamental para sua legalidade é uma completa inversão do princípio constitucional da livre iniciativa, assentado no artigo 170 da Constituição Federal e que, em seu parágrafo único, dispõe que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Em segundo lugar, a ausência de regulamentação jamais pode ser utilizada como argumento de segurança, pois, se assim o fosse, todos os serviços não regulados estariam colocando em risco a população. A regulação é exceção, não regra.

O que deve mover o intento regulamentador do Estado é a existência de falhas de mercado, falhas essas suficientemente relevantes que justifiquem uma intervenção do Poder Público. No caso dos taxis, o que um dia justificou a intervenção do Estado para regular a entrada no serviço e as condições de sua oferta são as assimetrias informacionais entre prestador e usuário, relativas ao preço cobrado, qualidade e segurança do serviço (manutenção do veículo, habilitação do motorista,etc).

Contudo, a inovação tecnológica promovida pelas tecnologias de plataformas não apenas reduziu as assimetrias informacionais como também aprimorou o produto de forma que nem a regulação seria capaz. Com um simples toque no aplicativo de celular o usuário consegue obter informações do preço exato (e não apenas o valor da bandeira), da nota do motorista e de seu serviço, aspectos que garantem ao usuário segurança e qualidade em nível superior àquele garantido pela regulação estatal. Considerando esses elementos, em vez de defender a regulação do Uber, não seria o caso de se protestar pela desregulamentação dos taxis? infelizmente, a discussão sobre desregulamentar o serviço de taxis passou longe da agenda pública.

No caso do fretamento colaborativo, a analogia é válida. Não se trata de defender a desregulamentação do transporte rodoviário – embora a tecnologia atual permita avançar sobre diversos aspectos da regulação; mas de se questionar se há necessidade real de regulamentar o novo serviço. Lembrando que as empresas parceiras, proprietárias dos veículos, já são devidamente reguladas. O que se questiona é se a mera intermediação da oferta de assentos em veículos fretados deve ser objeto de regulação e, especialmente, proibição por parte do Poder Público.

A tecnologia de plataformas hoje permite que usuários e consumidores sejam agrupados remotamente, o que de outra maneira não aconteceria, e se conectem a ofertantes do serviço de maneira simples, otimizando a formação de grupos aptos a fretarem um veículo para o mesmo destino. Trata-se de uma nova forma de fazer algo antigo, só que muito mais eficiente.

Outros serviços regulados hoje também se valem desses marketplaces para otimizar a oferta de serviços aos clientes, com significativo impacto na concorrência, como as plataformas de investimentos e empréstimos pessoais, que estão revolucionando o mercado financeiro no Brasil. Por meio dessas plataformas, ofertantes antes sem acesso a uma rede de atendimento capilarizada alcançam milhões de consumidores e esses, por sua vez, deixam de depender apenas dos grandes bancos para ter acesso e comparar serviços de dezenas de ofertantes distintos em um só aplicativo.

O surgimento de novos produtos e serviços ou novas formas de se ofertar produtos e serviços tradicionais deve provocar discussões para além da mera cobrança por regulamentar o novo. Mais do que isso, é imperativo a reflexão acerca das razões pelas quais aquilo foi regulado no passado e se as condições ainda subsistem ou não. Nesse sentido, um grande avanço pode ser notado na Instrução Normativa SEAE/ME nº 60/2022, que regulamentou o papel da SEAE nos processos de Análise de Impacto Regulatório – AIR das agências reguladoras federais e entrou em vigor no último 1º de setembro. Em seu artigo 8º a referida IN dispõe que, nos processos de AIR as agências reguladoras devem considerar alternativas regulatórias em número não inferior a 3 (três), devendo estar disponíveis, dentre as alternativas, necessariamente (i) a não intervenção regulatória adicional, ou seja, manter como está; e (ii) a desregulamentação do tema, revogando o normativo existente.

Trata-se de um primeiro e enorme passo no sentido de se provocar a discussão e a reflexão sobre desregulamentação, colocando-a como opção mandatória nos processos decisórios das agências reguladoras federais e um contraponto ao fetiche regulatório que usualmente domina o debate no país. Mais uma vez, não se trata de uma crítica à regulação em si, mas à forma como se faz regulação no Brasil, que, muitas vezes, coloca interesses privados e de determinados grupos acima do interesse público, como já defendia George Stigler lá na década de 1970[1]. Que um dia possamos, diante de uma inovação, nos questionar: “o que podemos desregulamentar”?


[1] The Theory of Economic Regulation. George J. Stigler. Source: The Bell Journal of Economics and Management Science, Vol. 2, No. 1 (Spring, 1971), pp. 3-21

Cade aprova cessão de participação da Equinor em concessões na Bacia de Campos para Petrobras e ExxonMobil

Acréscimo na participação da Petrobras e da ExxonMobil decorrente da operação não causa impacto significativo no mercado concorrencial.

Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (SG/Cade) aprovou a cessão da participação detida pela Equinor Brasil Energia nas concessões dos blocos C-M-657 e C-M-709, localizados na Bacia de Campos, para a Petrobras e a ExxonMobil Exploração Brasil. As participações da Equinor, de 30% no Bloco C-M-657 e 20% no Bloco C-M-709, serão transferidas proporcionalmente às compradoras. O parecer que aprovou a operação, sem restrições, foi assinado nesta última quinta-feira (08/09).

Os blocos tratados na operação foram arrematados na 15ª Rodada de Licitação de Blocos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), ocorrida em 2018, e são detidos por três empresas, em proporções acionárias diferentes.

A Equinor é uma sociedade de responsabilidade limitada, controlada, em última instância, pela Equinor ASA, de origem norueguesa. No Brasil, o Grupo Equinor atua no mercado de exploração e produção de petróleo e gás natural por meio da participação detida em áreas nas Bacias de Santos, Campos e Espírito Santo.

A Exxon Mobil Corporation está presente nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Paulínia, Curitiba e desenvolve atividades relacionadas ao ramo de produtos químicos e petroquímicos. A corporação também atua nos setores referentes à indústria de petróleo e gás.

No formulário de notificação enviado ao Cade pelas organizações, a Petrobras e a ExxonMobil esperam dar continuidade à exploração dos blocos cedidos. Nos objetivos da Equinor, o negócio está alinhado com sua estratégia de direcionar recursos e investir em outros ativos de seu portfólio.

Em seu parecer, a SG/Cade teve acesso a precedentes analisados pelo órgão que reconhecem, de fato, que blocos ainda em fase exploratória não são capazes de produzir efeitos imediatos no mercado brasileiro de exploração e produção de petróleo e gás natural. De todo modo, o acréscimo na participação da Petrobras e da ExxonMobil decorrente da operação, não causaria impacto significativo no mercado e não acarretará prejuízos ao ambiente concorrencial.

Se o Tribunal do Cade não avocar os atos de concentração para análise ou não houver interposição de recurso de terceiros interessados, no prazo de 15 dias, as decisões da Superintendência-Geral terão caráter terminativo e as operações estarão aprovadas em definitivo pelo órgão antitruste.

Acesse o ato de concentração nº 08700.006264/2022-13.

Fonte: CADE

Cade aprova cessão de participação da Equinor em concessões na Bacia de Campos para Petrobras e ExxonMobil — Português (Brasil) (www.gov.br)

O que o adiamento do julgamento da alienação da refinaria Reman da Petrobras ensina a respeito do argumento de concorrência “descompromissada?

Elvino de Carvalho Mendonça

O adiamento pelo Cade do julgamento do ato de concentração n° 08700.006512/2021-37[1], em que a refinaria Isaac Sabbá (Reman) da Petrobras[2] está sendo alienada para o setor privado, reacendeu a discussão em torno das vendas das refinarias da empresa previstas no TCC do refino do CADE para ampliar a competição no mercado de derivados de petróleo. O base do argumento é o de que “é preciso competição para ampliar o bem-estar do consumidor”.

É verdade!! A teoria microeconômica neoclássica[3] já demonstrou que em mercados de produtos homogêneos, as estruturas de mercado mais próximas da concorrência perfeita são aquelas que geram a melhor quantidade de produto e menores preços para a sociedade.

Resultado muito conhecido dos economistas e que demonstra os benefícios da concorrência perfeita em relação ao monopólio é a fatídica comparação entre o preço de equilíbrio nestas duas estruturas de mercado:

            Segundo a teoria microeconômica, o preço de equilíbrio em qualquer estrutura de mercado é dado por:

            Tecnicamente, pode-se representar a margem pela seguinte equação:

Onde epsilon é a elasticidade-preço da demanda.

Para os menos familiarizados com o termo, a elasticidade-preço da demanda é uma medida de redução percentual da demanda quando o preço do produto aumenta em 1%: se a demanda pelo bem decresce mais do que 1%, então diz-se que a demanda é elástica por este bem; se a demanda decresce menos do que 1%, então diz-se que a demanda por este bem é inelástica; e se a demanda diminui exatamente 1%, então diz-se que a demanda por este bem é unitária.

            Também nos ensina a teoria microeconômica que em concorrência perfeita a demanda por bens é perfeitamente elástica, o que significa dizer que o aumento do preço por um concorrente desloca a demanda para outro concorrente, fato que não acontece com a estrutura de mercado do monopólio, em que a demanda pelos bens é perfeitamente inelástica.

Portanto, é válido dizer que:

Como, por hipótese, o custo marginal é idêntico em ambas as estruturas de mercado, a margem é o elemento que define o preço.

Eis um resultado clássico da teoria microeconômica neoclássica!!!!

            Conquanto não se discuta que concorrência é sempre melhor do que monopólio sob a ótica do bem-estar do consumidor, o que define a margem em cada um dos casos não é simplesmente a definição por decreto ou qualquer coisa que o valha.

É na margem que se separa o joio do trigo!!

Aqui, nós precisamos adentrar nas características que fazem com que um mercado seja ou não concorrencial. Entender que o mercado concorrencial é ideal não é difícil, no entanto, difícil é entender que a margem carrega elementos que não dependem de “boas intenções”, mas que são intrínsecos aos mercados, de maneira que não há soluções simples para algo que está na essência da estrutura.

            Não tem jeito!! Aqui temos que nos debruçar sobre a teoria da defesa da concorrência e explicar que as características da margem no mercado de derivados de petróleo não são a margem do “belo” modelo de concorrência perfeita, mas algo muito mais complexo. Devemos atentar para os perigos de uma venda das refinarias da Petrobras simplesmente tendo como base o modelo microeconômico apresentado nas equações anteriores.

            Para isso, devemos mergulhar no conceito mais básico da análise de defesa da concorrência que é o de mercado relevante e suas duas dimensões: produto e geográfico. Vale ressaltar que as refinarias transformam o óleo bruto, que extraímos dos campos, nos diversos produtos que todos nós utilizamos diariamente…(Refinarias | Petrobras).

Figura 1. Cadeia produtiva de combustíveis líquidos

Fonte: NOTA TÉCNICA Nº 22/2022/DEE/CADE[4]. Adaptado de EPE (2018, p. 18)

A cadeia produtiva do petróleo é formada por produção, refino, distribuição e revenda. As bacias de produção de petróleo estão à montante do elo de refino e as distribuidoras de combustíveis líquidos estão à jusante do elo mencionado. Importante mencionar que o petróleo marítimo produzido pelo Brasil se dá em 9 bacias, sendo as principais delas as bacias de Campos, de Santos, do Espírito Santo e do Recôncavo Baiano.

            Vale ressaltar que a cadeia produtiva dos derivados do petróleo envolve um grande número de agentes, que envolvem a utilização, entre outras coisas, de terminais e de dutos para o transporte dos combustíveis, o que, por si só, são importantes barreiras à entrada neste mercado.

            Observando-se a figura 1 e se apropriando da teoria da defesa da concorrência é que se pergunta quais são as condições que devem estar presentes nos mercados a montante (produção) e a jusante (distribuição) para que as características das margens sejam identificadas e a definição de concorrência trazida pelos livros texto de microeconomia seja revelada?

            Nos mercados à montante e à jusante do elo de refino é preciso saber:

  • Qual é o mercado relevante geográfico das bacias produtoras?
  • Qual é o mercado relevante geográfico de uma refinaria?
  • Como se dá o transporte do petróleo entre a bacia produtora e a refinaria (dutos etc)?
  • Como se dá o transporte dos derivados do petróleo entre a refinaria e os distribuidores (dutos etc)?
  • Quais são as empresas que possuem contratos de concessão nas bacias produtoras?
  • etc

Estas perguntas não são novidade para o CADE. A autoridade de defesa da concorrência brasileira já se debruçou sobre elos de forma profunda, sendo profunda também a dificuldade em definir, por exemplo, mercados geográficos de derivados de petróleo. A leitura do Parecer 6/2022/CGAA4/SGA1/SG/CADE[5]da Superintendência-Geral do CADE no ato de concentração n° 08700.006512/2021-37 e das manifestações das requerentes e dos terceiros interessados mostra a dificuldade desta definição. Deve-se tratar o mercado relevante geográfico de derivados de petróleo como regional? Ou como raio de influência? O que fica claro é que o caso a caso traz a resposta.

A retirada de julgamento do ato de concentração não foi por acaso, também não foi por acaso que o governo se manifestou a favor da alienação das refinarias da Petrobras.

A teoria microeconômica ora apresentada permite concluir que alienar refinarias de petróleo não é vender pão francês na padaria. O poder de mercado das Refinarias de petróleo está na complexidade da sua Margem, haja vista as essential facilities necessárias para o desenvolvimento do negócio.

Portanto, não nos enganemos!! Utilizando a teoria microeconômica e a teoria da defesa da concorrência fica fácil entender que a alienação das Refinarias da Petrobras está mais próxima do monopólio do que da concorrência perfeita.

Tenhamos compromisso com a concorrência!!!


[1] SEI – Pesquisa Processual :: (cade.gov.br)

[2] Atualmente, a Petrobras possui as refinarias 13 refinarias que são atendidas por bacias terrestres e marítimas de produção de petróleo. As refinarias Landulpho Alves (Rlam) na Bahia já foi alienada, a refinaria Isaac Sabbá (Reman) no Amazonas encontra-se em análise no CADE[2] e a clausula 2.1 do TCC do Refino[2] celebrado entre a Petrobras e o Cade ainda prevê a venda de mais seis refinarias: Refinaria Abreu e Lima (RNEST); Unidade de Industrialização de Xisto (SIX); Refinaria Gabriel Passos (REGAP); Refinaria Presidente Getúlio Vargas (REPAR); Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP); e Lubrificantes e Derivados de Petróleo do Nordeste (LUBNOR).

[3] Ver capítulo 24 do livro VARIAN, HALL. Microeconomia: Princípios Básicos. Editora Campus. 2000.

[4] NT_Versao_Publica.pdf

[5] SEI/CADE – 1060809 – Parecer

“I know it when I see it”: anotações sobre preços excessivos de medicamentos

Lucia Helena Salgado

A conhecida definição de pornografia – eu sei que é quando eu vejo (I know it when I see it, em tradução livre) – estreou no voto discordante do Juiz Potter Stewart na histórica decisão da Suprema Corte norte-americana de 1964, que confirmou condenação de proprietário de cinema por exibir filme de conteúdo dito obsceno. Desde então, tornou-se a referência mais repetida sobre o “problema da identificação” em pornografia[1].

Com preços abusivos[2] passa-se o mesmo. Você reconhece quando o vê. A proximidade com o evento pornográfico é ainda maior quando se tratam de preços de medicamentos prescritos, que impactam orçamentos de saúde pública, oneram sistemas privados de saúde e tornam-se inacessíveis aos indivíduos cujas vidas dependem deles.

Por décadas a população estadunidense conviveu com preços de medicamentos por prescrição crescentes e muito superiores aos encontrados em outros países, mesmo aqueles de alta renda[3]. Há poucos dias, após um ano de debates e negociações, foi aprovada a primeira norma naquele país capaz de dar inicio ao processo de contenção de preços de medicamentos.

A lei batizada de Inflation Reduction Act[4] ataca diferentes problemas a afligir os cidadãos de classe média e os mais vulneráveis naquele país, dentre eles a prática da indústria farmacêutica de atribuir preços estratosféricos a medicamentos novos desenvolvidos para tratar doenças graves, como diabetes, câncer, esclerose múltipla e esclerose lateral amiotrófica.

Durante as décadas de prevalência das ideias ultraliberais na condução da administração pública federal estadunidense, a ideia de intervenção na liberdade de preços soava como heresia. Quando tiveram oportunidade, os governos democratas – de Clinton e Obama – tentaram garantir acesso à saúde para milhões. Uma das medidas propostas em 1993 foi incluir medicamentos nos serviços prestados pelo Medicare, mas a ideia de que o poder de compra do Estado poderia levar a negociação garantindo preços de aquisição mais baixos foi explicitamente rejeitada pela indústria e seus representantes. Apenas no governo Bush a indústria convenceu-se que teria muito a ganhar com a inclusão de milhões de novos consumidores e a proibição expressa de negociação direta de preços entre Medicare e indústria afastou preocupações quanto à limitação de sua liberdade de precificar: a lei que incluiu a cobertura de alguns medicamentos prescritos na cobertura do Medicare, promulgada por um Congresso de maioria republicana, continha uma “cláusula de não-interferência”.

A teoria econômica convencional fundamenta-se na crença de que preços, por carregarem todas as informações necessárias para promover o equilíbrio entre oferta e demanda no mercado, tendem a se ajustar “naturalmente”[5] – desde que não sujeitos à interferência artificial pelo governo.

A ideia de que um grande comprador como o Medicare não possa negociar preços mais favoráveis com seus fornecedores, em prol do melhor uso dos recursos públicos, soa fora de propósito, mas passa a fazer sentido quando se considera a força doutrinária da teoria econômica tradicional, por um lado, e o inigualável poder de lobby da indústria farmacêutica nos Estados Unidos, por outro.

Quanto ao primeiro aspecto: na Nova Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, a tradição cristã ocidental de condenação moral ao desejo insaciável de ganho individual em desarmonia com o bem comum foi pouco a pouco substituída pela ética puritana de que acumulação de riqueza seria indicação de escolha divina. A conhecida tese weberiana de redenção moral do lucro[6]. Daí à consolidação do capitalismo industrial ao final do século XIX e à sistematização da teoria econômica como ciência, foi um pulo de pouco mais que um século.

Quanto ao segundo aspecto, a indústria farmacêutica é a “campeã do rent seeking,” despendendo milhões de dólares a cada ano com lobby – incluindo financiamento de campanhas de ambos os partidos – , conforme a organização OpenSecrets[7], organização do terceiro setor especializada em pesquisa e transparência governamental, que se dedica a “acompanhar o curso do dinheiro” na política e seus efeitos sobre eleições e políticas públicas.

Impressionante é que, já ao final da 2ª década do 3º milênio, autoridades estadunidenses continuassem a vocalizar as mesmas crenças sobre o funcionamento dos mercados – crenças sim, porque postulados carentes de verificação empírica – de séculos anteriores. Vejamos, como exemplo, o documento apresentado pelo FTC, que expõe a posição oficial daquele país em reunião do Comitê de Concorrência no debate sobre os preços excessivos de medicamentos, organizado pela OCDE[8] em 2018. Sinteticamente, os representantes estadunidenses explicam aos colegas de antitruste dos países mais ricos do mundo que: (i) nos Estados Unidos, a legislação antitruste não impede as firmas que adquiriram poder de mercado legalmente de cobrar preços que maximizam lucros; (ii) limitar a liberdade para precificar diminui incentivos à competição e à inovação; (iii) interferir nos mecanismos de precificação de mercado fatalmente distorce oferta e demanda e impede a alocação eficiente de recursos.[9]

Demonstrar as falácias embutidas nas afirmações (ii) e (iii) acima sobre o funcionamento dos mercados está além do objetivo dessa nota, de modo que podemos saltar no tempo para a promulgação da Inflation Reduction Act. A lei traz medidas que – a despeito da timidez do alcance, resultado do difícil processo de negociação que garantiu sua aprovação – representam verdadeiro rompimento de barreiras doutrinárias, vez que autoriza o poder público (Medicare) a negociar preços de medicamentos em suas aquisições, visando a obter preços menores, e na disponibilização de medicamentos prescritos em co-participação com beneficiários; estabelece um teto de gastos anuais em medicamentos por individuo, que não deve ultrapassar US$ 2,000[10]. Ademais, contrariando décadas de crença ultraliberal na inviolabilidade do direito da indústria de precificar sem limites, a lei prevê medidas para obrigar farmacêuticas a absorver parte dos custos de fabricação de medicamentos cujos preços têm subido acima da inflação.[11]

Contudo, por impactantes que se apresentem, as medidas acima representam apenas os primeiros passos em direção a um ambiente econômico em que possam conviver a eficiência e a equidade: o número de medicamentos cujos preços serão acompanhados mais de perto é restrito, havendo a previsão de que paulatinamente outros medicamentos serão acrescidos à lista; enquanto isso, novos medicamentos continuarão a ser precificados tão arbitrariamente como sempre.

Casos de preços estratosféricos de medicamentos de marca são frequentes também no outro lado do Atlântico, assim como no Brasil. Sob a justificativa de que são custosos e arriscados os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e sobre a garantia de uma elasticidade-preço que não reflete condições normais de mercado[12] e de uma particular opacidade na estrutura de custos de produção, preços de medicamentos novos têm sido estabelecidos a níveis arbitrariamente elevados. Na Europa, contudo, preços excessivos são tratados tecnicamente como abuso de posição dominante, sendo copiosa a lista de casos investigados e condenados, ou encerrados mediante acordo, tanto em jurisdições nacionais quanto europeia.

O caso clássico, que deu origem ao teste de preços excessivos e que até o presente é o parâmetro básico de análise nas investigações tanto da Comissão Europeia como de outras autoridades de concorrência da Europa é o caso United Brand[13]. O teste é dividido em duas partes: em 1o lugar se verifica se a diferença entre os custos realmente incorridos e o preço cobrado é excessiva; em 2o lugar se a resposta for positiva, verifica-se se o preço é injusto por si ou em relação a outros produtos concorrentes. Outro caso de grande relevo (concluído com acordo) foi a investigação da autoridade britânica (Competition and Market Authority) entre 2002 e 2007 contra a prática de discriminação de preços e preços excessivos adotada pela Napp na comercialização de morfina de liberação controlada, para pacientes terminais de câncer, sendo preços excessivamente baixos nos hospitais e excessivamente altos para as cooperativas de home care.

É inegável que atividades de P&D são complexas, que o risco e incertezas associadas a trajetórias tecnológicas – que podem ser ou não bem-sucedidas – implicam custos elevados. É inegável também que grandes avanços científicos na cura e prevenção de doenças tem se dado por força da parceria entre governos, universidades e a indústria[14]. Inegável também é a extrema opacidade envolvendo o processo de formação de preços de produtos farmacêuticos antes e depois da obtenção de patentes. Trata-se aqui de uma assimetria radical de informação, uma falha do mercado a demandar solução.

A nova lei estadunidense foi viabilizada em um ambiente em que a reordenação de forças políticas e um contexto de agravamento de dilemas econômicos demandavam a ousadia de buscar novas soluções.  Deu-se assim ensejo à ruptura do dogma da inviolabilidade do direito de firmas monopolistas precificarem medicamentos sob prescrição.

São em momentos assim, de superação de ideias arraigadas, que se pode tornar a sopesar a busca de lucro e a proteção do bem comum. Que os mesmos ventos logo soprem por aqui, abaixo do Equador. Afinal, o preço abusivo “você reconhece quando o vê”.


[1] Jacobellis v. Ohio

[2] Ou excessivos, da expressão comum nas jurisdições europeias.

[3] Relatório de 2021 da Rand Corporation mostra que os preços de medicamentos nos Estados Unidos são 256% mais caros que em 32 outros países: International Prescription Drug Price Comparisons www.rand.org/t/RR2956 citado no relatorio da Investigação da Câmara dos Deputados sobre preços de medicamentos publicado em dezembro de 2021: https://oversight.house.gov/sites/democrats.oversight.house.gov/files/DRUG%20PRICING%20REPORT%20WITH%20APPENDIX%20v3.pdf

[4] https://www.congress.gov/bill/117th-congress/house-bill/5376/text

[5] Não por outro motivo, é conhecida como “Teoria dos Preços”.

[6] Max Weber, Ética Protestante e O Espírito do Capitalismo (edição comemorativa de 100 anos de publicação) Companhia das Letras, 2004.

[7] https://www.opensecrets.org A organização do terceiro setor é especializada em pesquisa e transparência governamental e dedica-se a “acompanhar o dinheiro” na política e seus efeitos sobre eleições e políticas públicas.

[8] Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

[9] FTC, “Excessive Pricing in Pharmaceutical Markets – Note by the United States” in Competition Committee, DAF/COMP/WD(2018)11, OECD, November, 2018.28 (This document reproduces written contribution from the United States submitted for Item 9 of the 130th OECD Competition Committee meeting on 27-28 November 2018).

[10] É comum ouvir-se depoimentos de pacientes que dispendem anualmente – à força de superendividamento – quantias da ordem de 4 a 5 dígitos por apenas um medicamento, dos vários prescritos para doenças crônicas e graves.

[11] Entre 2009 e 2018, o preço médio de medicamentos de marca prescritos mais do que dobrou, enquanto entre 2019 e 2020, metade de todos os medicamentos cobertos pelo Medicare tiveram seus precos majorados acima da inflação (relatório da Kaiser Family Foundation, 2021 cif. The New York Times, 5 de agosto de 2022 https://www.nytimes.com/2022/08/05/us/politics/medicare-drug-costs.html

[12] A decisão de escolha de um medicamento costuma ser feita pelo médico responsável pelo tratamento, o “consumidor substituto”, que não percebe sua decisão sujeita à restrição orçamentária do paciente, usuario final do medicamento.

[13] (U Brands e U. Brands Continental v Commission, 27/6- 1978

[14] Azoulay et al “Funding breakthrough research: promises and challenges of the “ARPA Model” in Innovation policy and the Economy 19 (1), 69-96, 2019.  2018; Jeffrey Furman Academic “collaboration and organizational innovation: The development of research capabilities in the US pharmaceutical industry, 1927-1946” disponivel em Research Gate www.researchgate.net consultado em 1/1/2021.