Os acordos internacionais de comércio, e sua importância para a política de comércio exterior e industrial do Brasil
Eliane de Souza Fontes & Josefina Guedes
Desde a década de 1990, com a explosão da fragmentação internacional da produção, a economia mundial está cada vez mais influenciada por duas realidades estreitamente vinculadas, de um duplo processo de globalização e de regionalização.
Por um lado há uma crescente interdependência econômica, política e social, decorrente da rápida globalização dos circuitos produtivos, dos capitais, da tecnologia e dos serviços. Por outro, observa-se o nascimento e consolidação de espaços geoeconômicos regionais, oriundos de áreas econômicas preferenciais.
Até então a maior parte das economias, como a brasileira, adotava política do modelo de substituição de importações, com adensamento das cadeias produtivas domésticas. Com os avanços tecnológicos e a evolução nos meios de transportes (rodoviário, ferroviário, hidroviário, aeroviário e marítimo), as cadeias globais de valor mudaram esta concepção e os produtos passaram a agregar valor em várias partes do mundo.
Foram intensificados vários tipos de processos de integração econômica para facilitar as relações entre as economias de dois ou mais países e para incrementar o fluxo de mercadorias e serviços, principalmente por meio de acordos internacionais de comércio.
Estes acordos de comércio entre dois ou mais países são importantes, comercial e politicamente. De uma maneira geral, constituem um canal de diálogo diferenciado que propicia equilíbrio nas condições de competição, estabilidade de regras e previsibilidade, inserção nas cadeias globais de valor, ganhos dos produtores pela maior diversidade de fornecedores de insumos e matérias-primas, possibilitando a obtenção de melhores condições de comercialização (preço e qualidade) e formação de parcerias, ganhos dos consumidores por novos produtos e serviços e ganhos de logísticas nas operações de comércio exterior.
Segundo o grau de intensidade observa-se, de forma sucessiva e gradual, as seguintes possibilidades e etapas de desenvolvimento dos blocos econômicos e de organização do comércio:
– Zona de Preferência Tarifária = redução de tarifas de importação para os países membros para uma série reduzida de produtos, condicionadas ao cumprimento de regras de origem;
– Área de Livre Comércio = redução de tarifas de importação para o substancial de comércio e eliminação das barreiras tarifárias e não tarifárias;
– União Aduaneira = livre circulação de bens com adoção de uma tarifa externa comum a todos os membros, válida para importações de terceiros mercados;
– Mercado Comum = livre circulação de bens, serviços e fatores de produção com harmonização das políticas macroeconômicas de: comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial, de capitais, de serviços, alfandegária, de transporte, comunicações, entre outras;
– União Econômica e Monetária = adoção de moeda única e política monetária conduzida por Banco Central comunitário.
O Brasil está com reduzida inserção internacional, representando somente 1,3% do comércio global e com poucos acordos internacionais firmados, isoladamente ou em conjunto com o Mercado Comum do Sul (Mercosul), pela ausência de políticas estratégicas de comércio exterior e industrial nos últimos 30 anos.
Mesmo diante desse contexto, o Brasil conta com indústrias inovadoras, tecnológicas e sustentáveis. Mas o chamado “Custo Brasil” tira a competitividade final dos nossos produtos, em cerca de 30%. Entre as assimetrias competitivas enfrentadas pelos produtores nacionais pode-se elencar: carga tributária elevada sobre investimentos, alta complexidade tributária, exportação sem a total desoneração de impostos, guerra fiscal dos Estados cobrando impostos menores dos importados, energia elétrica e gás natural caros, elevados custos sociais e trabalhistas, juros elevados para investimentos e capital de giro, deficiência crônica de infraestrutura, logística complicada e burocratizada, elevados gastos em segurança patronal e das cargas, pesadas exigências burocráticas e mudanças constantes das regras do jogo gerando insegurança jurídica.
O acordo do Mercosul deu impulso simbólico à causa da integração regional no hemisfério ocidental. Suas motivações foram políticas, objetivando o fortalecimento dos processos democráticos emergentes nos quatro sócios iniciais, ainda que os argumentos sempre estejam expressos em termos de vantagens econômicas. Foi um processo de integração econômica iniciado entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, por meio da assinatura do Tratado de Assunção, em 26/03/1991. Em 2012 foi admitido o ingresso da Venezuela, que está suspenso no presente.
Além dos países do Mercosul, o Brasil conta com acordos de livre comércio no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) com Chile, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela e acordos de preferências tarifárias com México, Cuba, Suriname, Guiana e São Cristóvão e Névis, bem como do acordo da Preferência Tarifária Regional (PTR-04). Fora da ALADI, estão em vigor os acordos de livre comércio com a União Aduaneira da África Austral – SACU (que compreende Botswana, Lesoto, Namíbia e Suazilândia), Israel, Palestina e Egito e o acordo de preferências tarifárias com a Índia.
O Brasil também participa de outros acordos comerciais multilaterais, como o Sistema Global de Preferências Comerciais entre Países em Desenvolvimento (SGPC), firmado por membros do Grupo dos 77, e se beneficia das preferências outorgadas unilateralmente pelos Países Desenvolvidos pelo Sistema Geral de Preferências (SGP), ambos firmados no âmbito da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD).
Externamente, de 2000 a 2014, o Brasil e o Mercosul vinham apostando no multilateralismo da Organização Mundial do Comércio (OMC) que, de tempos em tempos, promove redução das tarifas de importação a cada rodada de negociação, mas um dos temas centrais para o Brasil era redução ou até eliminação dos subsídios agrícolas e das medidas de Apoio Interno, que nunca foi alvo de avanços profundos, principalmente por causa das pressões da União Europeia e dos Estados Unidos.
Porém, com a paralisação da atual Rodada Doha (iniciada em 2001), por desinteresse dos países desenvolvidos, esse caminho foi dificultado. Por essas dificuldades, os demais países intensificaram negociações entre si, sendo que, nos últimos anos, cerca de 300 acordos preferenciais foram notificados na OMC.
Recentemente, o Mercosul redirecionou sua estratégia objetivando ampliar a negociação de novos acordos preferenciais de comércio. Nessa linha, em 28/06/2019, o Mercosul concluiu as negociações de acordo de livre comércio com a União Europeia, que reúne um PIB de US$ 18 trilhões e um mercado de 750 milhões de pessoas, com US$ 101,6 bilhões de comércio bilateral, o qual ainda se encontra em análise nos Congressos Nacionais para entrada em vigor. Ocorre que parlamentares e governos europeus com maior tendência protecionista na área agrícola, como a França, se escudaram em questões ambientais, como o desmatamento da Amazônia, como meio de barrar o avanço do acordo.
Pela sua importância econômica e a abrangência de suas disciplinas, é o acordo mais amplo e de maior complexidade já negociado pelo Mercosul. Cobre temas tanto tarifários quanto de natureza regulatória, como serviços, compras governamentais, facilitação de comércio, barreiras técnicas, medidas sanitárias e fitossanitárias e propriedade intelectual. Promoverá o comércio eliminando as tarifas alfandegárias de 92% das exportações do Mercosul e outorga de tratamento preferencial para quase todos os 8% restantes. Impulsionará o aumento do PIB pela transformação da matriz produtiva, a integração das cadeias globais de valor, a geração de empregos e o desenvolvimento das economias regionais, além de conceder um peso político e estratégico para o Brasil e demais países do Mercosul.
Além deste, em 23/08/2019, foi firmado acordo de livre comércio entre Mercosul e Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), bloco formado por Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça que reúne um PIB de mais de US$ 1,1 trilhão e um mercado de 14,3 milhões de habitantes. Juntos, se posicionam em 5º lugar no ranking mundial de comércio de serviços e em 9º lugar no comércio de bens, sendo que Suíça, Noruega e Islândia estão entre os 5 países com maior poder aquisitivo. O acordo comercial está em fase de tradução jurídica dos textos e também terá de ser aprovado pelos parlamentos nacionais para entrar em vigor. Poderá entrar em vigor bilateralmente, uma vez que seja ratificado por um país da EFTA e um do Mercosul.
Recentemente, em 20/07/2022, o Mercosul assinou com Singapura um acordo de livre comércio, que é o 6º maior destino das exportações brasileiras, mas as bases deste acordo ainda não foram divulgadas. Segundo estimativas do Ministério da Economia, poderá incrementar o PIB brasileiro em R$ 28,1 bilhões, considerando os valores acumulados entre 2022 e 2041. Para o mesmo período, estima-se um aumento de R$ 11,1 bilhões nos investimentos, R$ 21,2 bilhões nas exportações brasileiras para aquele país e R$ 27,9 bilhões nas importações.
Em todos os acordos preferenciais um ponto muito importante são as negociações da Regras de Origem Preferenciais, para evitar triangulação indevida e tratamento tarifário preferencial para produtos de países que não integram os acordos. A origem de uma mercadoria está relacionada com o processo produtivo desta, ou seja, onde ela foi obtida ou onde foi fabricada.
Cabendo observar que, em uma transação comercial podem incorrer três tipos de países: (i) o país de origem que é o local da produção ou da fabricação dos bens, seguindo os critérios de origem estabelecidos em cada acordo; (ii) o país de procedência é aquele que desembaraçou as mercadorias ao país de importação e (iii) país de aquisição, que é aquele no qual foi realizada a transação comercial.
As regras de origem são critérios de transformação substancial eleitos por países ou comunidades convenentes, e são classificadas em duas categorias: Preferenciais e Não-preferenciais. As Regras de Origem Preferenciais são regulamentos negociados entre as partes signatárias de acordos preferenciais de comércio, cujo objetivo principal é assegurar que o tratamento tarifário preferencial se limite aos produtos extraídos, colhidos, produzidos ou fabricados nos países que assinaram os acordos. O Certificado de Origem é o documento que permite comprovar se os bens cumprem os requisitos de origem exigidos em cada acordo e as condições pactuadas.
Independentemente de negociações dos acordos preferenciais, outros acordos internacionais servem para estabelecer regras concretas para a parceria em áreas específicas, como por exemplo em Facilitação de Comércio ou em Convergência Regulatória, temas hoje muito importantes, devido ao fato de que as tarifas aduaneiras de grande parte dos países não representam mais a maior barreira ao fluxo de comércio, mas sim as normas sanitárias e fitossanitárias e os regulamentos técnicos.
Sobre estes, importa destacar que em 20/02/2017 entrou em vigor o Acordo de Facilitação de Comércio da OMC, que tinha sido assinado em 2013 e se constituiu no primeiro acordo multilateral da OMC, desde a sua criação em 1995. Objetiva simplificar e desburocratizar os procedimentos alfandegários, estimando-se que permitirá redução do tempo das operações e de cerca de 14% dos custos, que seria um ganho maior se todas as tarifas alfandegárias fossem zeradas por todos os países.
Este acordo prevê um conjunto de direitos e obrigações que irão resultar na reforma de procedimentos aduaneiros em todo o mundo, contemplando medidas para modernizar a administração aduaneira e simplificar e agilizar os procedimentos de comércio exterior, além de possibilitar a cooperação na prevenção e combate a delitos aduaneiros.
Contém regras sobre transparência na publicação de normas, tempo de despacho e trânsito de mercadorias, encargos e taxas incidentes no comércio exterior, janela única de comércio exterior, facilitação do credenciamento de Operadores Econômicos Autorizados (OEA), facilitação de pagamentos eletrônicos, coordenação entre órgãos de fronteira, entre outras.
De um total de 47 compromissos criados por este acordo, o Brasil notificou que adotou 42 imediatamente. Apenas 5 compromissos estão sendo implementados em curto prazo porque requerem o desenvolvimento de ferramentas específicas por parte do governo brasileiro, como para o processamento antecipado de documentos de importação.
O Programa OEA da Secretaria da Receita Federal do Brasil vem ampliando a certificação de empresas para se tornarem OEA, que passam a ser consideradas como parceiras estratégicas, com controle de gestão dos fluxos e grau de baixo risco, usufruindo de benefícios de maior agilidade nos trâmites aduaneiros. A implantação integral do Portal Único de Comércio Exterior, para aprimorar o SISCOMEX, auxiliará na total adesão brasileira, com redução estimada de 40% dos custos dos processos, integrando as operações de todos os intervenientes em uma janela única, eliminando o uso de papel, que já está vigorando plenamente nas exportações pela Declaração Única de Exportação (DUEXP) e em fase final na Declaração Única de importação (DUIMP).
Outro tema importante é a chamada Convergência Regulatória. O interesse por este tema surgiu principalmente a partir de 2016, após a assinatura do Acordo de Associação Transpacífico (TPP), que estabeleceu o livre-comércio entre 12 países banhados pelo Oceano Pacífico (com posterior retirada dos Estados unidos), que está sendo considerado como marco regulatório dos próximos acordos comerciais de última geração, em razão de sua magnitude econômica e pela série de medidas econômicas, sociais e ambientais que objetiva garantir.
Em realidade, as tarifas de importação já não são o principal instrumento de controle do comércio exterior, como já mencionado anteriormente. As economias mais relevantes controlam as importações e protegem suas produções e empregos pela aplicação de variadas barreiras não tarifárias, de regulamentos técnicos, medidas sanitárias, fitossanitárias e ambientais, requisitos trabalhistas e de comércio inclusivo, entre outras. Além da criação de padrões de sustentabilidade, os chamados “padrões privados”, hoje adotados exclusivamente pela União Europeia, com perigo de disseminação para outros países. É um mundo de regras de comércio não palpáveis, que não dá para medir nas fronteiras.
Para reduzir os custos e estas travas ao comércio, que exige, entre outros, a realização de testes, envio de amostras e custos de certificação das mercadorias pelas duas partes envolvidas no comércio, é interessante que os países realizem estudos comparativos das suas regulamentações técnicas e os “standards” adotados, objetivando harmonizar os procedimentos e eliminar entre si o máximo das barreiras regulatórias, em um processo de convergência regulatória.
Bom exemplo destas novas modalidades de negociação é o Protocolo ao Acordo de Comércio e Cooperação Econômica assinado entre o Brasil e os Estados Unidos (Agreement on Trade and Economic Cooperation, conhecido pela sigla ATEC), aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo no 34/2021, que visa expandir o comércio entre dos dois países, ao promover ambiente aberto e previsível e reduzir barreiras não tarifárias, um dos frutos do Diálogo Comercial Brasil-Estados Unidos (CEBEU) que se iniciou há 20 anos.
Este Protocolo contém 3 anexos especificando regras comerciais e de transparência. O Anexo 1, de Facilitação de Comércio e Administração Aduaneira, traz medidas para redução de entraves burocráticos, como a criação de centros de informação pelos dois países para responder a consultas realizadas por interessados sobre procedimentos de importação e exportação. O Anexo 2, de Boas Práticas Regulatórias, permite, entre outros pontos, a coordenação entre os órgãos reguladores das duas nações para facilitar o comércio. O Anexo 3, de Anticorrupção, trata da cooperação bilateral no combate à corrupção relacionada ao comércio internacional, por meio de ferramentas como a recuperação de ativos.
Mas o cenário internacional recomenda cautela. As tendências mundiais e os mercados mais relevantes estão numa guerra comercial, com medidas e contramedidas de exceção, em escalada tarifária que não dá sinais de arrefecimento, em efeito dominó. As regras da OMC não estão preparadas para enfrentar tais medidas e o tipo de participação do Estado na economia da China. O Organismo de Solução de Controvérsias da OMC está desativado e ameaçado.
No quadro atual, de aumento do protecionismo dos principais mercados, como reflexo dos efeitos econômicos da pandemia do Covid-19 e da guerra entre Rússia e Ucrânia, estima-se que haverá uma retração no comércio mundial e uma redução do PIB mundial. O Brasil pode se tornar um alvo prioritário para os produtos excedentes no mercado mundial, em condições nem sempre leais.
Devemos efetuar uma abertura comercial negociada, via assinatura de novos acordos de comércio, que devem ser equilibrados, atendam aos nossos interesses ofensivos e resguardem as nossas sensibilidades, para ter acesso privilegiado aos principais mercados, nos quais seriam também inseridas medidas de facilitação de comércio e de convergência regulatória das barreiras não tarifárias.
As regras devem ser transparentes e diferenciadas, com razoável gradualismo na sua implementação e concomitante eliminação de grande parte das assimetrias competitivas. Inclusive deve fortalecer a eficiência e o funcionamento institucional do sistema brasileiro de defesa comercial e de salvaguardas, pois neste momento de acirramento de disputas de mercado, não podemos abrir mão de nossos instrumentos de política comercial, direito legítimo, ratificado pelos membros da OMC, como forma de eliminar o comércio injusto.
Eliane de Souza Fontes – Economista, Ex- diretora do Departamento de Negociações Internacionais da Secretaria de Comércio Exterior do MDIC, Especialista em Negociações Internacionais, Conselheira de Conselho Empresarial de Política e Comércio Exterior da Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e do Conselho de Relações Internacionais da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN)
Josefina Guedes – Economista especializada em Comércio Internacional, Diretora da Associação de Comércio Exterior da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) e Conselheira do Conselho de Relações Internacionais da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN)