Artigos de opinião

Os acordos internacionais de comércio, e sua importância para a política de comércio exterior e industrial do Brasil

Eliane de Souza Fontes & Josefina Guedes

Desde a década de 1990, com a explosão da fragmentação internacional da produção, a economia mundial está cada vez mais influenciada por duas realidades estreitamente vinculadas, de um duplo processo de globalização e de regionalização.

Por um lado há uma crescente interdependência econômica, política e social, decorrente da rápida globalização dos circuitos produtivos, dos capitais, da tecnologia e dos serviços. Por outro, observa-se o nascimento e consolidação de espaços geoeconômicos regionais, oriundos de áreas econômicas preferenciais.

Até então a maior parte das economias, como a brasileira, adotava política do modelo de substituição de importações, com adensamento das cadeias produtivas domésticas. Com os avanços tecnológicos e a evolução nos meios de transportes (rodoviário, ferroviário, hidroviário, aeroviário e marítimo), as cadeias globais de valor mudaram esta concepção e os produtos passaram a agregar valor em várias partes do mundo.

Foram intensificados vários tipos de processos de integração econômica para facilitar as relações entre as economias de dois ou mais países e para incrementar o fluxo de mercadorias e serviços, principalmente por meio de acordos internacionais de comércio

Estes acordos de comércio entre dois ou mais países são importantes, comercial e politicamente. De uma maneira geral, constituem um canal de diálogo diferenciado que propicia equilíbrio nas condições de competição, estabilidade de regras e previsibilidade, inserção nas cadeias globais de valor, ganhos dos produtores pela maior diversidade de fornecedores de insumos e matérias-primas, possibilitando a obtenção de melhores condições de comercialização (preço e qualidade) e formação de parcerias, ganhos dos consumidores por novos produtos e serviços e ganhos de logísticas nas operações de comércio exterior.

Segundo o grau de intensidade observa-se, de forma sucessiva e gradual, as seguintes possibilidades e etapas de desenvolvimento dos blocos econômicos e de organização do comércio:

– Zona de Preferência Tarifária = redução de tarifas de importação para os países membros para uma série reduzida de produtos, condicionadas ao cumprimento de regras de origem;

– Área de Livre Comércio = redução de tarifas de importação para o substancial de comércio e eliminação das barreiras tarifárias e não tarifárias;

– União Aduaneira = livre circulação de bens com adoção de uma tarifa externa comum a todos os membros, válida para importações de terceiros mercados;

– Mercado Comum = livre circulação de bens, serviços e fatores de produção com harmonização das políticas macroeconômicas de: comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial, de capitais, de serviços, alfandegária, de transporte, comunicações, entre outras;

– União Econômica e Monetária = adoção de moeda única e política monetária conduzida por Banco Central comunitário.

O Brasil está com reduzida inserção internacional, representando somente 1,3% do comércio global e com poucos acordos internacionais firmados, isoladamente ou em conjunto com o Mercado Comum do Sul (Mercosul), pela ausência de políticas estratégicas de comércio exterior e industrial nos últimos 30 anos. 

Mesmo diante desse contexto, o Brasil conta com indústrias inovadoras, tecnológicas e sustentáveis. Mas o chamado “Custo Brasil” tira a competitividade final dos nossos produtos, em cerca de 30%. Entre as assimetrias competitivas enfrentadas pelos produtores nacionais pode-se elencar: carga tributária elevada sobre investimentos, alta complexidade tributária, exportação sem a total desoneração de impostos, guerra fiscal dos Estados cobrando impostos menores dos importados, energia elétrica e gás natural caros, elevados custos sociais e trabalhistas, juros elevados para investimentos e capital de giro, deficiência crônica de infraestrutura, logística complicada e burocratizada, elevados gastos em segurança patronal e das cargas, pesadas exigências burocráticas e mudanças constantes das regras do jogo gerando insegurança jurídica.

O acordo do Mercosul deu impulso simbólico à causa da integração regional no hemisfério ocidental.  Suas motivações foram políticas, objetivando o fortalecimento dos processos democráticos emergentes nos quatro sócios iniciais, ainda que os argumentos sempre estejam expressos em termos de vantagens econômicas. Foi um processo de integração econômica iniciado entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, por meio da assinatura do Tratado de Assunção, em 26/03/1991. Em 2012 foi admitido o ingresso da Venezuela, que está suspenso no presente.

Além dos países do Mercosul, o Brasil conta com acordos de livre comércio no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) com Chile, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela e acordos de preferências tarifárias com México, Cuba, Suriname, Guiana e São Cristóvão e Névis, bem como do acordo da Preferência Tarifária Regional (PTR-04). Fora da ALADI, estão em vigor os acordos de livre comércio com a União Aduaneira da África Austral – SACU (que compreende Botswana, Lesoto, Namíbia e Suazilândia), Israel, Palestina e Egito e o acordo de preferências tarifárias com a Índia.

O Brasil também participa de outros acordos comerciais multilaterais, como o Sistema Global de Preferências Comerciais entre Países em Desenvolvimento (SGPC), firmado por membros do Grupo dos 77, e se beneficia das preferências outorgadas unilateralmente pelos Países Desenvolvidos pelo Sistema Geral de Preferências (SGP), ambos firmados no âmbito da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD).

Externamente, de 2000 a 2014, o Brasil e o Mercosul vinham apostando no multilateralismo da Organização Mundial do Comércio (OMC) que, de tempos em tempos, promove redução das tarifas de importação a cada rodada de negociação, mas um dos temas centrais para o Brasil era redução ou até eliminação dos subsídios agrícolas e das medidas de Apoio Interno, que nunca foi alvo de avanços profundos, principalmente por causa das pressões da União Europeia e dos Estados Unidos.

Porém, com a paralisação da atual Rodada Doha (iniciada em 2001), por desinteresse dos países desenvolvidos, esse caminho foi dificultado. Por essas dificuldades, os demais países intensificaram negociações entre si, sendo que, nos últimos anos, cerca de 300 acordos preferenciais foram notificados na OMC.

Recentemente, o Mercosul redirecionou sua estratégia objetivando ampliar a negociação de novos acordos preferenciais de comércio. Nessa linha, em 28/06/2019, o Mercosul concluiu as negociações de acordo de livre comércio com a União Europeia, que reúne um PIB de US$ 18 trilhões e um mercado de 750 milhões de pessoas, com US$ 101,6 bilhões de comércio bilateral, o qual ainda se encontra em análise nos Congressos Nacionais para entrada em vigor. Ocorre que parlamentares e governos europeus com maior tendência protecionista na área agrícola, como a França, se escudaram em questões ambientais, como o desmatamento da Amazônia, como meio de barrar o avanço do acordo.

Pela sua importância econômica e a abrangência de suas disciplinas, é o acordo mais amplo e de maior complexidade já negociado pelo Mercosul. Cobre temas tanto tarifários quanto de natureza regulatória, como serviços, compras governamentais, facilitação de comércio, barreiras técnicas, medidas sanitárias e fitossanitárias e propriedade intelectual. Promoverá o comércio eliminando as tarifas alfandegárias de 92% das exportações do Mercosul e outorga de tratamento preferencial para quase todos os 8% restantes. Impulsionará o aumento do PIB pela transformação da matriz produtiva, a integração das cadeias globais de valor, a geração de empregos e o desenvolvimento das economias regionais, além de conceder um peso político e estratégico para o Brasil e demais países do Mercosul.

Além deste, em 23/08/2019, foi firmado acordo de livre comércio entre Mercosul e Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), bloco formado por Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça que reúne um PIB de mais de US$ 1,1 trilhão e um mercado de 14,3 milhões de habitantes. Juntos, se posicionam em 5º lugar no ranking mundial de comércio de serviços e em 9º lugar no comércio de bens, sendo que Suíça, Noruega e Islândia estão entre os 5 países com maior poder aquisitivo. O acordo comercial está em fase de tradução jurídica dos textos e também terá de ser aprovado pelos parlamentos nacionais para entrar em vigor. Poderá entrar em vigor bilateralmente, uma vez que seja ratificado por um país da EFTA e um do Mercosul.

Recentemente, em 20/07/2022, o Mercosul assinou com Singapura um acordo de livre comércio, que é o 6º maior destino das exportações brasileiras, mas as bases deste acordo ainda não foram divulgadas. Segundo estimativas do Ministério da Economia, poderá incrementar o PIB brasileiro em R$ 28,1 bilhões, considerando os valores acumulados entre 2022 e 2041. Para o mesmo período, estima-se um aumento de R$ 11,1 bilhões nos investimentos, R$ 21,2 bilhões nas exportações brasileiras para aquele país e R$ 27,9 bilhões nas importações.

Em todos os acordos preferenciais um ponto muito importante são as negociações da Regras de Origem Preferenciais, para evitar triangulação indevida e tratamento tarifário preferencial para produtos de países que não integram os acordos. A origem de uma mercadoria está relacionada com o processo produtivo desta, ou seja, onde ela foi obtida ou onde foi fabricada.

Cabendo observar que, em uma transação comercial podem incorrer três tipos de países: (i) o país de  origem que é o local da produção ou da fabricação dos bens, seguindo os critérios de origem estabelecidos em cada acordo; (ii) o país de procedência é aquele que desembaraçou as mercadorias ao país de importação e (iii) país de aquisição, que é aquele no qual foi realizada a transação comercial.

As regras de origem são critérios de transformação substancial eleitos por países ou comunidades convenentes, e são classificadas em duas categorias: Preferenciais e Não-preferenciais. As Regras de Origem Preferenciais são regulamentos negociados entre as partes signatárias de acordos preferenciais de comércio, cujo objetivo principal é assegurar que o tratamento tarifário preferencial se limite aos produtos extraídos, colhidos, produzidos ou fabricados nos países que assinaram os acordos.  O Certificado de Origem é o documento que permite comprovar se os bens cumprem os requisitos de origem exigidos em cada acordo e as condições pactuadas. 

Independentemente de negociações dos acordos preferenciais, outros acordos internacionais servem para estabelecer regras concretas para a parceria em áreas específicas, como por exemplo em Facilitação de Comércio ou em Convergência Regulatória, temas hoje muito importantes, devido ao fato de que as tarifas aduaneiras de grande parte dos países não representam mais a maior barreira ao fluxo de comércio, mas sim as normas sanitárias e fitossanitárias e os regulamentos técnicos.

Sobre estes, importa destacar que em 20/02/2017 entrou em vigor o Acordo de Facilitação de Comércio da OMC, que tinha sido assinado em 2013 e se constituiu no primeiro acordo multilateral da OMC, desde a sua criação em 1995. Objetiva simplificar e desburocratizar os procedimentos alfandegários, estimando-se que permitirá redução do tempo das operações e de cerca de 14% dos custos, que seria um ganho maior se todas as tarifas alfandegárias fossem zeradas por todos os países.

Este acordo prevê um conjunto de direitos e obrigações que irão resultar na reforma de procedimentos aduaneiros em todo o mundo, contemplando medidas para modernizar a administração aduaneira e simplificar e agilizar os procedimentos de comércio exterior, além de possibilitar a cooperação na prevenção e combate a delitos aduaneiros.

Contém regras sobre transparência na publicação de normas, tempo de despacho e trânsito de mercadorias, encargos e taxas incidentes no comércio exterior, janela única de comércio exterior, facilitação do credenciamento de Operadores Econômicos Autorizados (OEA), facilitação de pagamentos eletrônicos, coordenação entre órgãos de fronteira, entre outras.

De um total de 47 compromissos criados por este acordo, o Brasil notificou que adotou 42 imediatamente. Apenas 5 compromissos estão sendo implementados em curto prazo porque requerem o desenvolvimento de ferramentas específicas por parte do governo brasileiro, como para o processamento antecipado de documentos de importação.

O Programa OEA da Secretaria da Receita Federal do Brasil vem ampliando a certificação de empresas para se tornarem OEA, que passam a ser consideradas como parceiras estratégicas, com controle de gestão dos fluxos e grau de baixo risco, usufruindo de benefícios de maior agilidade nos trâmites aduaneiros. A implantação integral do Portal Único de Comércio Exterior, para aprimorar o SISCOMEX, auxiliará na total adesão brasileira, com redução estimada de 40% dos custos dos processos, integrando as operações de todos os intervenientes em uma janela única, eliminando o uso de papel, que já está vigorando plenamente nas exportações pela Declaração Única de Exportação (DUEXP) e em fase final na Declaração Única de importação (DUIMP).

Outro tema importante é a chamada Convergência Regulatória. O interesse por este tema surgiu principalmente a partir de 2016, após a assinatura do Acordo de Associação Transpacífico (TPP), que estabeleceu o livre-comércio entre 12 países banhados pelo Oceano Pacífico (com posterior retirada dos Estados unidos), que está sendo considerado como marco regulatório dos próximos acordos comerciais de última geração, em razão de sua magnitude econômica e pela série de medidas econômicas, sociais e ambientais que objetiva garantir.

Em realidade, as tarifas de importação já não são o principal instrumento de controle do comércio exterior, como já mencionado anteriormente. As economias mais relevantes controlam as importações e protegem suas produções e empregos pela aplicação de variadas barreiras não tarifárias, de regulamentos técnicos, medidas sanitárias, fitossanitárias e ambientais, requisitos trabalhistas e de comércio inclusivo, entre outras. Além da criação de padrões de sustentabilidade, os chamados “padrões privados”, hoje adotados exclusivamente pela União Europeia, com perigo de disseminação para outros países. É um mundo de regras de comércio não palpáveis, que não dá para medir nas fronteiras.

Para reduzir os custos e estas travas ao comércio, que exige, entre outros, a realização de testes, envio de amostras e custos de certificação das mercadorias pelas duas partes envolvidas no comércio, é interessante que os países realizem estudos comparativos das suas regulamentações técnicas e os “standards” adotados, objetivando harmonizar os procedimentos e eliminar entre si o máximo das barreiras regulatórias, em um processo de convergência regulatória.

Bom exemplo destas novas modalidades de negociação é o Protocolo ao Acordo de Comércio e Cooperação Econômica assinado entre o Brasil e os Estados Unidos (Agreement on Trade and Economic Cooperation, conhecido pela sigla ATEC), aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo no 34/2021, que visa expandir o comércio entre dos dois países, ao promover ambiente aberto e previsível e reduzir barreiras não tarifárias, um dos frutos do Diálogo Comercial Brasil-Estados Unidos (CEBEU) que se iniciou há 20 anos.

Este Protocolo contém 3 anexos especificando regras comerciais e de transparência. O Anexo 1, de Facilitação de Comércio e Administração Aduaneira, traz medidas para redução de entraves burocráticos, como a criação de centros de informação pelos dois países para responder a consultas realizadas por interessados sobre procedimentos de importação e exportação. O Anexo 2, de Boas Práticas Regulatórias, permite, entre outros pontos, a coordenação entre os órgãos reguladores das duas nações para facilitar o comércio. O Anexo 3, de Anticorrupção, trata da cooperação bilateral no combate à corrupção relacionada ao comércio internacional, por meio de ferramentas como a recuperação de ativos.

Mas o cenário internacional recomenda cautela. As tendências mundiais e os mercados mais relevantes estão numa guerra comercial, com medidas e contramedidas de exceção, em escalada tarifária que não dá sinais de arrefecimento, em efeito dominó. As regras da OMC não estão preparadas para enfrentar tais medidas e o tipo de participação do Estado na economia da China. O Organismo de Solução de Controvérsias da OMC está desativado e ameaçado.

No quadro atual, de aumento do protecionismo dos principais mercados, como reflexo dos efeitos econômicos da pandemia do Covid-19 e da guerra entre Rússia e Ucrânia, estima-se que haverá uma retração no comércio mundial e uma redução do PIB mundial. O Brasil pode se tornar um alvo prioritário para os produtos excedentes no mercado mundial, em condições nem sempre leais.

Devemos efetuar uma abertura comercial negociada, via assinatura de novos acordos de comércio, que devem ser equilibrados, atendam aos nossos interesses ofensivos e resguardem as nossas sensibilidades, para ter acesso privilegiado aos principais mercados, nos quais seriam também inseridas medidas de facilitação de comércio e de convergência regulatória das barreiras não tarifárias.

As regras devem ser transparentes e diferenciadas, com razoável gradualismo na sua implementação e concomitante eliminação de grande parte das assimetrias competitivas. Inclusive deve fortalecer a eficiência e o funcionamento institucional do sistema brasileiro de defesa comercial e de salvaguardas, pois neste momento de acirramento de disputas de mercado, não podemos abrir mão de nossos instrumentos de política comercial, direito legítimo, ratificado pelos membros da OMC, como forma de eliminar o comércio injusto.

Eliane de Souza Fontes – Economista, Ex- diretora do Departamento de Negociações Internacionais da Secretaria de Comércio Exterior do MDIC, Especialista em Negociações Internacionais, Conselheira de Conselho Empresarial de Política e Comércio Exterior da Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e do Conselho de Relações Internacionais da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN)

Josefina Guedes – Economista especializada em Comércio Internacional, Diretora da Associação de Comércio Exterior da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) e Conselheira do Conselho de Relações Internacionais da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN)

Encerrando uma empresa insolvente: uma proposta de simplificação

André Santa Cruz & Filipe Aguiar de Barros

Introdução

No recente Informativo 735, de 9 de maio de 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) noticiou, a título de destaque do julgamento do Recurso Especial 1.876.549-RS pela sua 2ª Turma, que “no caso de micro e pequenas empresas é possível a responsabilização dos sócios pelo inadimplemento do tributo, com base no art. 134, VII, do CTN, cabendo-lhes demonstrar a insuficiência do patrimônio quando da liquidação para exoneração da responsabilidade pelos débitos”.

No caso em questão, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) havia mantido sentença de extinção da execução fiscal ao fundamento de que a demanda fora ajuizada após a “baixa” da sociedade empresária executada.

Interposto recurso especial pela União (Fazenda Nacional), o STJ autorizou o prosseguimento da execução fiscal em face dos sócios-gerentes[1], concedendo-lhes, todavia, a oportunidade para exoneração da responsabilidade tributária se comprovarem a insuficiência do patrimônio da sociedade empresária por ocasião da sua liquidação.

Dissolução regular de sociedade e seus efeitos

Conforme dispõe o Código Civil, a extinção de uma pessoa jurídica deve ser precedida de sua dissolução e da fase de liquidação (as regras gerais estão descritas nos arts. 51, 1.030 e ss. e 1.102 e ss.).

Na fase de liquidação, caso seja constatada insolvência da sociedade e não se opte por alguma alternativa porventura disponível (a exemplo da recuperação judicial), o liquidante tem o dever de confessar falência (art. 1.103, inciso VII do CC) ou, quando inaplicável esta, o instituto a ela correspondente, de acordo com a legislação específica. O art. 105 da Lei 11.101/2005 reforça isso ao prever que “o devedor em crise econômico-financeira que julgue não atender aos requisitos para pleitear sua recuperação judicial deverá requerer ao juízo sua falência (…)” (sem grifos no original).

A mera dissolução, liquidação e/ou falência, notadamente se realizadas de forma regular, não autorizam, por si sós (a menos, por exemplo, que se trate de sócio de responsabilidade ilimitada ou de terceiro que tenha prestado garantia fidejussória, ou, em relação ao bem gravado, garantia real), a responsabilização de terceiros por dívidas fiscais constituídas exclusivamente em face da pessoa jurídica. Em regra, aplica-se o mesmo raciocínio para dívidas de outras naturezas.[2]

A “dissolução irregular” e suas consequências

No julgamento do Tema Repetitivo 630, o STJ definiu que, “em execução fiscal de dívida ativa tributária ou não-tributária, dissolvida irregularmente a empresa, está legitimado o redirecionamento ao sócio-gerente”, o que ocorre, por exemplo, na situação descrita na Súmula 435/STJ: “presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes” (sem grifos no original).[3]

Em suma: o STJ tem jurisprudência consolidada no sentido de que somente é possível responsabilizar o(s) administrador(es) de sociedades por dívidas objeto de execução fiscal, por meio do redirecionamento dela a ele(s), quando há dissolução irregular da pessoa jurídica executada (Tema Repetitivo 630) ou presunção de sua ocorrência (Súmula 435).[4]

A “baixa” simplificada e suas repercussões jurídicas

No Brasil, por razões histórico-culturais, não é comum ver uma sociedade ser extinta após um regular procedimento dissolutório (ato de dissolução – como um distrato – seguido da respectiva liquidação e da posterior extinção da pessoa jurídica). Mais raro ainda é ver, na prática, uma sociedade empresária formular pedido de autofalência.

Como alternativa à realização de tais procedimentos, e com a intenção de estimular a dissolução regular de sociedades, o art. 9º da Lei Complementar 123/2006 e o art. 7º-A da Lei 11.598/2007 admitem a extinção (ou “baixa”) da pessoa jurídica mesmo diante da existência de dívidas e da possibilidade de surgimento de dívidas futuras[5]. Para tanto, contudo, impõem aos empresários/titulares/sócios/administradores no período da ocorrência dos respectivos fatos geradores[6] uma responsabilidade solidária pelos respectivos débitos, ou seja, nessa hipótese, a tal “baixa” simplificada implica, por si só, a responsabilização de terceiros por dívidas da pessoa jurídica[7], na contramão dos entendimentos do STJ já mencionados.

Ocorre que tais regras não foram suficientes para mudar a realidade. Por razões óbvias, ninguém quer assumir, em nome próprio, as dívidas de uma pessoa jurídica insolvente. Disso resulta que continuamos tendo muitos casos de “dissolução irregular”, gerando um verdadeiro ciclo vicioso e sem escapatória. Um perde-perde.

Os problemas do julgamento do REsp 1.876.549-RS

É provável que essa constatação do parágrafo anterior tenha estimulado o STJ a, no julgamento do REsp 1.876.549-RS, mediante hermenêutica jurídica bastante questionável, misturar o art. 9º da LC 123/2006[8] com o art. art. 134, inciso VII do CTN, para criar, por via transversa, uma saída honrosa para as pessoas jurídicas insolventes (ao menos as microempresas e as empresas de pequeno porte).

O que nos parece, porém, é que o STJ pode ter acertado no diagnóstico, mas errou no remédio e, a bem da verdade, sequer seria competente para fabricá-lo, haja vista a necessidade de alteração legislativa.

O acórdão do REsp 1.876.549-RS não esclareceu exatamente como se daria essa comprovação da “insuficiência do patrimônio”, indicando, por exemplo, se caberia a produção de provas na execução fiscal (na via dos respectivos embargos[9]) ou se somente seria admissível a apresentação de documentos produzidos durante eventual liquidação formal[10]. Tampouco se explicou, no referido julgamento, como evitar o risco de decisões judiciais conflitantes, na hipótese de existirem diversas execuções fiscais. E mais:  parece-nos que os julgadores não atentaram para o fato de que, enquanto o art. 134, inciso VII do CTN é restrito aos créditos tributários, o art. 9º da LC 123/2006 também abrange créditos de outras naturezas, a exemplo dos trabalhistas.

No entanto, longe de pretender se restringir ao exame do (des)acerto da decisão proferida pelo STJ quanto ao caso concreto e das consequências da sinalização conferida aos demais casos similares, o objetivo deste artigo é o de trazer à tona o problema existente (e que parece ser incontroverso) e instigar o leitor a refletir sobre possíveis soluções.

Uma proposta de solução para o problema exposto

Como, então, viabilizar, com eficiência, sem burocracia e sem gerar riscos sistêmicos para a economia, o encerramento de pessoas jurídicas insolventes, quando não for hipótese ou não houver interesse no uso de mecanismos voltados ao seu soerguimento?

O PLP 33/2020, aprovado pelo Senado Federal, busca endereçar uma solução para o tema, através da criação da Liquidação Especial Sumária. No entanto, tal proposição não é restrita ao tema e adentra em vários pontos polêmicos, revelando-se extensa e complexa, o que parece vir atraindo resistências e dificultando a sua discussão, tramitação e eventual aprovação.

No intuito de não incorrer no mesmo problema, ponderamos se não seria mais eficiente e factível a apresentação de um projeto de lei complementar específico, disciplinando exclusivamente um encerramento (“baixa”) especial ou uma espécie de falência extrajudicial de microempresas e empresas de pequeno porte cujo passivo não exceda determinado montante (ou mesmo pessoas jurídicas em geral que atendam a determinados critérios).

O pedido poderia ser direcionado à Junta Comercial (ou, quando fosse o caso, ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas)[11] e, quando admitido, poderia implicar imediatamente a extinção das obrigações, conferindo-se a devida publicidade. Nas hipóteses e no prazo do art. 159-A da Lei 11.101/05, seria cabível ação anulatória desse ato ou ação de cobrança em face do responsável pela sonegação do ativo e, eventualmente, daqueles que tenham se beneficiado do ato.

Para evitar a necessidade de criação de uma fase de liquidação nesse procedimento (com a escolha de liquidante, remuneração e possível litigiosidade), ele poderia ser, ao menos inicialmente, restrito às pessoas jurídicas que não possuam ativos ou, no máximo, àquelas cujos ativos sejam insuficientes para atender as despesas inerentes a um processo de falência/insolvência, o que provavelmente já contemplaria a maior parte dos interessados na medida. Nessa última hipótese, seria possível exigir que o responsável assuma o compromisso de realizar o ativo e pagar aos credores na ordem prevista na Lei 11.101/05, sob pena de ser responsabilizado pelas dívidas.

Não nos parece haver nenhum motivo para resistências a uma proposta nos moldes acima. Afinal, o art. 114-A da Lei 11.101/05 já admite o encerramento sumário da falência (o que implica extinção das obrigações do falido, nos termos do art. 158, inciso VI da mesma lei) “se não forem encontrados bens para serem arrecadados, ou se os arrecadados forem insuficientes para as despesas do processo”.

O assunto é instigante e traz sérias repercussões práticas no ambiente econômico, notadamente em relação ao reempreendedorismo. Há aspectos relevantes (sobretudo que exorbitam a seara tributária) que não foram aqui abordados, a exemplo das garantias fidejussórias prestadas por pessoas físicas. Mas julgamos ser o suficiente para iniciar e fomentar um imprescindível debate.


[1] A expressão, comumente utilizada, inclusive pela nossa Corte Superior, pode levar a conclusões equivocadas. Uma sociedade possui sócio(s) e administrador(es), e este(s) pode(m) ser sócio(s) ou não, a depender do tipo societário. O uso da expressão sócio-gerente (ou sócio-administrador) parece indicar a existência de uma categoria autônoma, com direitos e deveres próprios, algo que não existe. Nesses casos, portanto, entendemos que o correto seria usar a expressão administrador (que pode, repita-se, ser sócio ou não, a depender do tipo societário).

[2] Nesse sentido, merece menção a Súmula 430/STJ: “O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”.

[3] Vale destacar que as Turmas que integram a Primeira Seção do STJ entendem que o “distrato social, ainda que registrado na Junta Comercial, não garante, por si só, o afastamento da dissolução irregular da sociedade empresarial e a consequente viabilidade do redirecionamento da execução fiscal aos sócios gerentes” (v.g. REsp 1877340/RS e AgInt no AREsp 1561461/RS). Não é, portanto, suficiente o ato de dissolução, sendo necessária, também, a regular liquidação e a posterior extinção, que completam o chamado procedimento dissolutório.

[4] Sobre que administrador (sócio ou terceiro) pode sofrer o redirecionamento da execução fiscal, ver Temas Repetitivos 962 e 981 do STJ, nos quais a Corte Superior decidiu que o importa é quem exercia a administração no período da ocorrência da dissolução irregular, e não da ocorrência do fato gerador.

[5] Em relação às dívidas tributárias, observados, obviamente, os prazos dos arts. 150, § 4º, 173 e 174 do CTN.

[6] Trata-se de um grave falha da legislação. Somente aqueles que optaram pela baixa simplificada (que não necessariamente são os mesmos administradores da época do fato gerador das dívidas) poderiam ser responsabilizados por tal fundamento. 

[7] No linguajar comum, “as dívidas do CNPJ passam para o CPF”.

[8] É importante lembrar que há similar previsão para as pessoas jurídicas em geral no art. 7º-A da Lei nº 11.598/2007  (acrescentado pela LC Nº 147/2014).

[9] A jurisprudência somente admite exceção de pré-executividade para matérias cognoscíveis de ofício que não demandem dilação probatória

[10] Além de ser bastante incomum, em casos concretos como o analisado pelo STJ, a efetiva ocorrência de fase de liquidação, é no mínimo duvidoso que dela possa resultar algum documento indicativo da insolvência, na medida em que isso obrigaria o liquidante a requerer a autofalência, dever este que, não cumprido, representaria uma irregularidade da liquidação.

[11] A menção aos cartórios se dá porque é neles que se registra a sociedade simples (art. 1.150 do Código Civil), a qual pode ser enquadrada como ME ou EPP, conforme previsão do caput do art. 3º da LC 123/2006.


André Santa Cruz. Advogado. Doutor em Direito Comercial pela PUC-SP. Professor de Direito Econômico e Empresarial do Centro Universitário IESB. Ex-Diretor do DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração.


Filipe Aguiar de Barros. Procurador da Fazenda Nacional, Chefe da Defesa na 5ª Região. Mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP. Ex-Coordenador-Geral de Representação Judicial da PGFN e assessor da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia.

Monopólio Público ou privado: qual o pior?

Adriano Paranaíba

Introdução

A economia austríaca, assim como a economia mainstream (neoclássicos), vem discutindo monopólio há várias décadas, e muito tem sido feito sobre o assunto, principalmente se considerarmos a contribuição que Rothbard (1962) deu ao que Mises (1949) pensava sobre a percepção desta estrutura de mercado. É seguro dizer que, após alguma evolução nos estudos a esse respeito, na perspectiva austríaca, o monopólio é considerado ruim apenas quando concedido pelo governo. Ao mesmo tempo, na economia mainstream, muito se tem discutido sobre barreiras e poder de mercado, com a criação do termo Monopólio Natural como justificativa para o uso de ações de intervenção governamental em alguns mercados.

Monopólio à luz da Escola Austríaca de Economia

Conforme Block (1997) existem duas visões sobre monopólios na discussão acadêmica dentro do corpo de pesquisadores da Escola Austríaca: a visão Mises-Kirzner e a visão de Rothbard.

O expoente do pensamento da Escola Austríaca, Ludwig von Mises apontou que, a discussão sobre a existência de monopólios deveria ser entendida com uma existência temporal, não podendo ser interpretados como uma estrutura de mercado que se antagonizava à um mercado competitivo. Na verdade, o monopólio seria um estado relativo de um processo de mercado.

“The temporary coexistence of a plurality of prices for the same commodity is the outcome of the fact that the forces making for change are still operating and that a state of equilibrium has not yet been attained.” (MISES, 1998, p.3)

Para Mises (1949) o monopólio depende de três fatores: monopólio da oferta; inelasticidade de demanda do mercado, e; o monopolista conseguir descobrir os preços de monopólio. Partindo dessas premissas, seria equivocada a percepção da manutenção de um monopólio, pois não existe como os empresários serem oniscientes para praticar os preços que seriam superiores aos preços hipotéticos daquele mercado em estado de concorrência perfeita. Para sua existência efetiva, os preços praticados em monopólios devem ser vantajosos para aumentar sua receita líquida total, até o limite que o mercado permita (MISES, 1963), conceito esse sustentado por Kirzner (1973, p.110),

“The owner of the monopolized resource has withheld the use of some of his stock from the market, forcing up the price the market must pay for the smaller remaining quantity.”

Nessa perspectiva o proprietário único de recursos poderia ser capaz de promover os preços de monopólio, utilizando-se da escassez daquele produto – retirando parte do fornecimento deste bem do mercado, ou restringindo a produção (COSTEA, 2003). Contudo essa restrição de produção de determinados bens significa que capital e trabalho foram alocados para a produção de outros bens (MISES, 1936). Assim, a perspectiva de Mises e Kirzner apontam a possibilidade da existência de monopólios em um mercado competitivo (BLOCK, 1997). A competitividade de um mercado não depende do número de empresas, e Bastos (2016, p.381) aponta “para a possibilidade de um mercado com uma firma, mas ainda assim competitivo – pois sempre estaria à mercê de entrada de novos competidores”.

Armentano (1978) irá sinalizar que a obra de Rothbard (1964) irá refinar e corrigir a definição de monopólio dentro do contexto austríaco, definido que “monopoly is a grant of special privilegie by the State, serving a certain área of production too ne particular individual or group” (Rothbard, 1964, p.669). Neste sentido, a forma de manutenção dos monopólios se dá pelo poder de coerção estatal o que representa forte intervencionismo, concessão de privilégios, caracterizando assim, um cenário incompatível com o livre mercado (BLOCK, 1997). Com uma proteção estatal, o monopolista fica livre para praticar preços acima dos preços de mercado. Sem a proteção estatal, apenas se o monopolista produzisse em economia de escala, minimizando custos e consequentemente praticando preços de mercado, esse conseguiria se estabelecer.

Para Costea (2003, p.60) “Mises’s attempts to incorporate the neoclassical concept of monopoly price into the framework of the market process.” Embora Rothbard tenha formulado uma teoria bem aceita sobre o monopólio, existem campos que ainda não foram bem explorados. Um dos problemas que as pessoas encontram na perspectiva austríaca de monopólio é devido ao seguinte: alguns monopólios são ruins e resistem a longo prazo, mas não são concedidos pelo governo, pelo menos não diretamente.

Importante sinalizar que o monopólio, é recorrentemente tratado na literatura como uma falha de mercado, sendo necessária a intervenção estatal para corrigi-la. Contudo, é exatamente o oposto e “é absurdo que ele (o Estado) aplique políticas antimonopolísticas; na realidade, o que ele deve fazer é, simplesmente, abolir as leis – ou melhor, as legislações (Thesis) – que estabeleceram os monopólios” (IORIO, 2013, p. 421). Os erros cometidos na tentativa de regular mercados ‘monopolísticos’ transformam ‘falhas de mercado’ em ‘falhas de governo’ que podem ser definidas como: “Quando a tomada de decisão para aplicabilidade de soluções

normativas encontra limitações que incorrem à externalidades maiores que a falha de mercado

que se justificou a regulação econômica.” (BRASIL, 2020, p. 7)

A regulação ajuda ou piora?

Tanto para a economia mainstream (neoclássicos) quanto para economistas austríacos, a discussão sobre monopólios está estabelecida sobre o debate sobre o poder de monopólio, como um ‘tipo’ de falha de mercado. Também tratam o monopólio a partir de uma análise de pré-existência do monopólio como ponto de partida analítico.

Especificamente para os austríacos a existência de monopólios repousa na intervenção estatal que realiza concessões para o monopolista operar no mercado de forma deliberada, por meio de proibições e autorizações. Para Méra (2010) não existe uma preocupação entre os economistas austríacos sobre as despesas monetárias para os vendedores, especificamente sobre Rothbard e aponta que,

“Rothbard is not very explicit regarding factor pricing under monopolistic conditions. True, he stresses that monopoly price must be understood as a catallactic phenomenon and, as such, a phenomenon which is not independent from the general pricing and resource allocation process.” (MÉRA, 2010, p.54)

Desta forma, mais do que uma constatação de Rothbard, apontando o monopólio como uma concessão estatal, é possível construir uma hipótese de que, mais regras legais e infralegais, ou seja, regulatórias, possam impedir a entrada de novos concorrentes neste mercado, elevando os custos regulatórios para a participação neste mercado, contribuindo para o surgimento de monopólios ex-ante.

Partindo do princípio que toda regulamentação incorre em custos para os regulados, é possível uma leitura de que os custos regulatórios impactam os custos marginas e médios de longo prazo das empresas. O impacto destes custos pode ser observado nas mudanças dos custos de insumos de um mercado típico, sem ainda a existência do monopólio, observado na figura 1.

Figura 1 – Produção de equilíbrio de longo prazo com aumento de preço de insumos

Fonte: Adaptado de Nicholson, 2018, p. 290

A Figura 1 ilustra que o aumento de preços de insumos desloca tanto a curva de custo médio quanto a de custo marginal para cima. A magnitude deste deslocamento irá determinar se ocorrerá aumento ou não no nível ótimo de produção de uma empresa típica q*. Para NICHOLSON (2018, p.291) “se q*1 ≥ q*0 a diminuição na quantidade acarretada pelo aumento de preço do mercado diminuirá com certeza a quantidade de empresas.” Caso ocorra o contrário, ou seja  q*1≤ q*0 será indeterminado afirmar a redução da quantidade de empresas, pois dependemos da magnitude do deslocamento das curvas de custo marginal e custo médio de logo prazo podendo apenas afirmar que ocorrerá uma redução do tamanho ótimo da empresa. Porém, “provavelmente resultará na diminuição na quantidade de empresas quando um aumento no preço de insumo diminui a produção da indústria” (NICHOLSON, 2018, p.291).

Este fenômeno de redução do número de empresas causado pelo aumento de custos é também compartilhado por Bylund (2016) quando afirma que:

“Each investment, even those with anticipated very high profits, becomes riskier due to the added cost. As a consequence, the economy will develop at a much slower pace, and with less value creation there is a greater risk for distortive effects: the number of opportunities that will never be realized—the unrealized—increases with the artificial burdens on economic action.” (Bylund, 2016, p.155)

Caso ocorra de apenas uma empresa conseguir subsistir com o novo custo marginal exigido pelas regulações (Cmg1), esta se sentirá confortável para elevar seu preço de Pr para Pm, visto que a ação do órgão regulador eliminou a concorrência pré-existente.

“Mesmo aqueles mercados brasileiros em que não existem monopólios estatais, ou regulação direta das agências reguladoras que criam oligopólios, são alvos de intervenção pela tributação, burocracia e benefício fiscal, tornando-os obstaculizados para acessar e permanecer, e ineficientes no processo econômico.” (SCHOENHERR, 2021, p. 29)

Assim, podemos apontar que a proposição de Rothbard sobre a existência de monopólios está correta, mas pode ser complementada com uma análise de uma criação indireta e não intencional de monopólios por parte do Estado. 

Conclusão

Entre monopólios privados e estatais, muito ainda há para se discutir, mas o que fica evidente é que, monopólios privados são tão ruins quanto os estatais quando estes adquirem o poder de monopólio via concessão estatal, que lhe dá poder de manutenção sem a preocupação em atendimento os consumidores.

Mesmo que ocorreram avanços no arcabouço legal brasileiro na identificação de abusos do poder regulatório, entendemos que toda regulação propicia a elevação de custos das empresas convergindo para que o surgimento de monopólios possa ocorrer com a liberdade de prática de poder de monopólio, elevando preços e causando perda de bem-estar-social para os consumidores.

Referencias

ARMENTANO, D. T. A critique of neoclassical and Austrian monopoly theory. New Directions in Austrian Economics. Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, p. 94-110, 1978.

BARBIERI, F. A Economia do Intervencionismo. São Paulo. Instituto Ludwig von Mises Brasil. 2013.

BASTOS, J. P. Competição e Monopólio: o mainstream e a Escola Austríaca. MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, [S. l.], v. 4, n. 2, p. 377–390, 2016. DOI: 10.30800/mises.2016.v4.137.

BLOCK, W. Austrian monopoly theory – A critique. The Journal of Libertarian Studies vol. I. n.4, pp. 271-279. Pergamon Press.1977

BRASIL. Guida de Desregulamentação. Ministério da Economia. Brasília, DF. Dezembro. 2020.

BRASIL. Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado; altera as Leis nos 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 6.404, de 15 de dezembro de 1976, 11.598, de 3 de dezembro de 2007, 12.682, de 9 de julho de 2012, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 10.522, de 19 de julho de 2002, 8.934, de 18 de novembro 1994, o Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946 e a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; revoga a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962, a Lei nº 11.887, de 24 de dezembro de 2008, e dispositivos do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966; e dá outras providências.

BYLUND, P. L. The seen, the unseen, and the unrealized: how regulations affect our everyday lives. London. Lexington Books. 2016.

CAVALCANTI, M. O. M. Comentários ao art.4º, caput. IN: CRUZ, A. S. Lei da Liberdade Econômica- Lei 1874/2019 Comentada Artigo por Artigo. Salvador. Editora JusPodivm, 2020.

COSTAE, D. A Critique of Mises’s Theory of Monopoly Prices. The Quarterly Journal of Austrian Economics Vol. 6, No. 3. Fall 2003.

FETTER, Frank A. Economic Principles. New York: The Century Co, 1915.

GABAN, E. M.; Domingues, J. O. Comentários ao Capítulo III: Das garantias de livre iniciativa. IN: CRUZ, A. S. Lei da Liberdade Econômica- Lei 1874/2019 Comentada Artigo por Artigo. Salvador. Editora JusPodivm, 2020.

IORIO, U. J. A Grande Ficção das Falhas de Mercado. MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 401–424, 2013. DOI: 10.30800/mises.2013.v1.493.

KIRZNER, I. M. Competition and Entrepreneurship. Chicago: University of Chicago Press, 1973.

MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Guia para Elaboração de Análise de Impacto Regulatório (AIR). Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade. Brasília. 2021.

MISES, Lv. Human Action. New Haven: Yale University Press, 1963

MISES, Lv. Monopoly Prices. Quarterly Journal of Austrian Economics. Vol. 1, No. 2, Summer 1998

MISES, Lv. Socialism. Indianapolis: Liberty Classics. [1936] 1981

NICHOLSON, W. Teoria Microeconômica: princípios básicos e aplicações. São Paulo. Cengage. 2018.

PINDYCK, R. S. Microeconomia. 7ª Ed. São Paulo. Pearson Education do Brasil 2010.

ROTHBARD, M. N. Man, economy, and state with power and market. Auburn: Mises Institute. 1962 [2009].

SCHOENHERR, M. H. A intervenção econômica como gênese do desequilíbrio dos mercados brasileiros: e o novo paradigma proposto pelas recentes mudanças legislativas. MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, [S. l.], v. 9, 2021. DOI: 10.30800/mises.2021.v9.1313.

Em busca de melhores salários: uma oportunidade para atuação do Sistema Nacional de Emprego (Sine)

Túlio Antônio Cravo

O mercado de trabalho no Brasil apresentou melhoras no último ano e houve uma redução do nível de desemprego de 14,2% para o período de abril a junho de 2021 para 9,3% para o mesmo período em 2022. Contudo, o rendimento médio dos trabalhadores continua em queda e passou de R$ 2.794 para R$ 2.652, embora tenha havido uma pequena melhora nos últimos meses.

A retomada do nível de emprego é muito positiva, mas segue o desafio de que esta retomada seja acompanhada de melhores salários. De certa forma, o desafio de encontrar empregos com melhores salários é também um desafio do Sistema Nacional de Empregos (Sine) no contexto brasileiro em que apenas 5% dos trabalhadores que buscam empregos o fazem por meio do Sine.  

O Sine é um instrumento importante para intermediar a conexão entre empresas e trabalhadores e aumenta a probabilidade de o trabalhador encontrar emprego e em menor tempo de acordo com um estudo recente.[1] Contudo, o desafio de encontrar um novo emprego com bons salários também é um desafio para o Sine uma vez que ser encaminhado pelo Sine pode reduzir o salário quando comparado com o último emprego do trabalhador.

Em um momento de aparente melhora no mercado de trabalho, o Sine que já é efetivo em ajudar o trabalhador a retornar para o mercado de trabalho mais rapidamente, deve também explorar mais alternativas para contribuir na difícil tarefa de reconectar os trabalhadores com as empresas com melhores salários.

Uma estratégia para tentar fazer com que a conexão entre trabalhadores e empresas gere vínculos com maiores salários é por meio do maior engajamento das empresas no processo. Uma avaliação de impacto feita recentemente para o serviço público de intermediação laboral francês mostra que uma maior aproximação com as empresas aumenta o número de vagas postadas e o número de contratações por parte das empresas que participam desta iniciativa. Contudo, o mais interessante é que os resultados mostram que existe uma melhoria da qualidade do novo vínculo empregatício formado na forma de mais contratos permanentes e menos contratos temporários.[2] Uma maior aproximação entre o serviço público e as empresas pode fazer com que as empresas tenham mais segurança sobre o trabalhador contratado e melhore as condições de trabalho oferecidas. Nesta lógica, uma maior aproximação do Sine com as empresas pode gerar uma maior confiança das empresas no processo e fazer com que elas ofereçam um salário de reentrada no mercado de trabalho melhor. Um vínculo empregatício de melhor qualidade pode também ter implicações na rotatividade e produtividade da mão de obra.

Outra estratégia para procurar melhorar a qualidade do vínculo laboral e convencer o empregador a fornecer melhores salários é aperfeiçoar a tecnologia utilizada nos encaminhamentos das plataformas do Sine via web ou aplicativo Sine Fácil. Se as empresas de igual forma tiverem a percepção de que um processo com melhor tecnologia melhora a qualidade dos trabalhados indicados para contratação, podem decidir melhorar as condições de contratação dos trabalhadores. 

Portanto, a retomada do nível de emprego, mas com redução no salário médio representa também uma oportunidade para o Sine aperfeiçoar alguns aspectos do processo de intermediação e reforçar o engajamento com as empresas. Uma maior aproximação do Sine com as empresas pode melhorar a qualidade do vínculo empregatício e por consequência influenciar o salário de reentrada do trabalhador no mercado de trabalho com possíveis ganhos de bem-estar para os trabalhadores e de produtividade para as empresas.

Referências 

Algan, Y., B. Crepon, and D. Glover (2022). Are active labor market policies directed at firms effective? Evidence from a randomized evaluation with local employment agencies. J-PAL working paper.

Cravo, T; Ribeiro E.P; Quintana, R; Sierra, A (2018) O impacto do Sine no mercado de trabalho, Boletim IPEA do Mercado de Trabalho, Brasília, Brasil.

Cravo, T; O’Leary, C; Quintana, R; Sierra, A; Veloso, L. (Effect of job referrals on labor market outcomes in Brazil. Economía – Journal of the Latin American and Caribbean Economic Association, forthcoming.

O’Leary, C; Cravo, T; Sierra, A; Veloso, L. Effect of job referrals on labor market outcomes in Brazil. Economía – Journal of the Latin American and Caribbean Economic Association, forthcoming.

Tulio A. Cravo. Economista-país do Banco Africano de Desenvolvimento em Angola. Anteriormente foi especialista sênior de mercado de trabalho e previdência do Banco Interamericano de Desenvolvimento, pesquisador sênior da UNU-WIDER e Professor Adjunto da PUC-RS. Doutor em economia pela Loughborough University, mestre em economia pela Universidade de Coimbra e economista pela UFMG.


[1] O livro “Employment dynamics and labor market policies in Brazil” publicado recentemente pela Web Advocacy apresenta estas evidências. Para mais detalhes ver Cravo et al., (2018) e O’Leary et al., no prelo.

[2] Algan et al., (2022).

O que o adiamento do julgamento da alienação da refinaria Reman da Petrobras ensina a respeito do argumento de concorrência “descompromissada?

Elvino de Carvalho Mendonça

O adiamento pelo Cade do julgamento do ato de concentração n° 08700.006512/2021-37[1], em que a refinaria Isaac Sabbá (Reman) da Petrobras[2] está sendo alienada para o setor privado, reacendeu a discussão em torno das vendas das refinarias da empresa previstas no TCC do refino do CADE para ampliar a competição no mercado de derivados de petróleo. O base do argumento é o de que “é preciso competição para ampliar o bem-estar do consumidor”.

É verdade!! A teoria microeconômica neoclássica[3] já demonstrou que em mercados de produtos homogêneos, as estruturas de mercado mais próximas da concorrência perfeita são aquelas que geram a melhor quantidade de produto e menores preços para a sociedade.

Resultado muito conhecido dos economistas e que demonstra os benefícios da concorrência perfeita em relação ao monopólio é a fatídica comparação entre o preço de equilíbrio nestas duas estruturas de mercado:

            Segundo a teoria microeconômica, o preço de equilíbrio em qualquer estrutura de mercado é dado por:

            Tecnicamente, pode-se representar a margem pela seguinte equação:

Onde epsilon é a elasticidade-preço da demanda.

Para os menos familiarizados com o termo, a elasticidade-preço da demanda é uma medida de redução percentual da demanda quando o preço do produto aumenta em 1%: se a demanda pelo bem decresce mais do que 1%, então diz-se que a demanda é elástica por este bem; se a demanda decresce menos do que 1%, então diz-se que a demanda por este bem é inelástica; e se a demanda diminui exatamente 1%, então diz-se que a demanda por este bem é unitária.

            Também nos ensina a teoria microeconômica que em concorrência perfeita a demanda por bens é perfeitamente elástica, o que significa dizer que o aumento do preço por um concorrente desloca a demanda para outro concorrente, fato que não acontece com a estrutura de mercado do monopólio, em que a demanda pelos bens é perfeitamente inelástica.

Portanto, é válido dizer que:

Como, por hipótese, o custo marginal é idêntico em ambas as estruturas de mercado, a margem é o elemento que define o preço.

Eis um resultado clássico da teoria microeconômica neoclássica!!!!

            Conquanto não se discuta que concorrência é sempre melhor do que monopólio sob a ótica do bem-estar do consumidor, o que define a margem em cada um dos casos não é simplesmente a definição por decreto ou qualquer coisa que o valha.

É na margem que se separa o joio do trigo!!

Aqui, nós precisamos adentrar nas características que fazem com que um mercado seja ou não concorrencial. Entender que o mercado concorrencial é ideal não é difícil, no entanto, difícil é entender que a margem carrega elementos que não dependem de “boas intenções”, mas que são intrínsecos aos mercados, de maneira que não há soluções simples para algo que está na essência da estrutura.

            Não tem jeito!! Aqui temos que nos debruçar sobre a teoria da defesa da concorrência e explicar que as características da margem no mercado de derivados de petróleo não são a margem do “belo” modelo de concorrência perfeita, mas algo muito mais complexo. Devemos atentar para os perigos de uma venda das refinarias da Petrobras simplesmente tendo como base o modelo microeconômico apresentado nas equações anteriores.

            Para isso, devemos mergulhar no conceito mais básico da análise de defesa da concorrência que é o de mercado relevante e suas duas dimensões: produto e geográfico. Vale ressaltar que as refinarias transformam o óleo bruto, que extraímos dos campos, nos diversos produtos que todos nós utilizamos diariamente…(Refinarias | Petrobras).

Figura 1. Cadeia produtiva de combustíveis líquidos

Fonte: NOTA TÉCNICA Nº 22/2022/DEE/CADE[4]. Adaptado de EPE (2018, p. 18)

A cadeia produtiva do petróleo é formada por produção, refino, distribuição e revenda. As bacias de produção de petróleo estão à montante do elo de refino e as distribuidoras de combustíveis líquidos estão à jusante do elo mencionado. Importante mencionar que o petróleo marítimo produzido pelo Brasil se dá em 9 bacias, sendo as principais delas as bacias de Campos, de Santos, do Espírito Santo e do Recôncavo Baiano.

            Vale ressaltar que a cadeia produtiva dos derivados do petróleo envolve um grande número de agentes, que envolvem a utilização, entre outras coisas, de terminais e de dutos para o transporte dos combustíveis, o que, por si só, são importantes barreiras à entrada neste mercado.

            Observando-se a figura 1 e se apropriando da teoria da defesa da concorrência é que se pergunta quais são as condições que devem estar presentes nos mercados a montante (produção) e a jusante (distribuição) para que as características das margens sejam identificadas e a definição de concorrência trazida pelos livros texto de microeconomia seja revelada?

            Nos mercados à montante e à jusante do elo de refino é preciso saber:

  • Qual é o mercado relevante geográfico das bacias produtoras?
  • Qual é o mercado relevante geográfico de uma refinaria?
  • Como se dá o transporte do petróleo entre a bacia produtora e a refinaria (dutos etc)?
  • Como se dá o transporte dos derivados do petróleo entre a refinaria e os distribuidores (dutos etc)?
  • Quais são as empresas que possuem contratos de concessão nas bacias produtoras?
  • etc

Estas perguntas não são novidade para o CADE. A autoridade de defesa da concorrência brasileira já se debruçou sobre elos de forma profunda, sendo profunda também a dificuldade em definir, por exemplo, mercados geográficos de derivados de petróleo. A leitura do Parecer 6/2022/CGAA4/SGA1/SG/CADE[5]da Superintendência-Geral do CADE no ato de concentração n° 08700.006512/2021-37 e das manifestações das requerentes e dos terceiros interessados mostra a dificuldade desta definição. Deve-se tratar o mercado relevante geográfico de derivados de petróleo como regional? Ou como raio de influência? O que fica claro é que o caso a caso traz a resposta.

A retirada de julgamento do ato de concentração não foi por acaso, também não foi por acaso que o governo se manifestou a favor da alienação das refinarias da Petrobras.

A teoria microeconômica ora apresentada permite concluir que alienar refinarias de petróleo não é vender pão francês na padaria. O poder de mercado das Refinarias de petróleo está na complexidade da sua Margem, haja vista as essential facilities necessárias para o desenvolvimento do negócio.

Portanto, não nos enganemos!! Utilizando a teoria microeconômica e a teoria da defesa da concorrência fica fácil entender que a alienação das Refinarias da Petrobras está mais próxima do monopólio do que da concorrência perfeita.

Tenhamos compromisso com a concorrência!!!


[1] SEI – Pesquisa Processual :: (cade.gov.br)

[2] Atualmente, a Petrobras possui as refinarias 13 refinarias que são atendidas por bacias terrestres e marítimas de produção de petróleo. As refinarias Landulpho Alves (Rlam) na Bahia já foi alienada, a refinaria Isaac Sabbá (Reman) no Amazonas encontra-se em análise no CADE[2] e a clausula 2.1 do TCC do Refino[2] celebrado entre a Petrobras e o Cade ainda prevê a venda de mais seis refinarias: Refinaria Abreu e Lima (RNEST); Unidade de Industrialização de Xisto (SIX); Refinaria Gabriel Passos (REGAP); Refinaria Presidente Getúlio Vargas (REPAR); Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP); e Lubrificantes e Derivados de Petróleo do Nordeste (LUBNOR).

[3] Ver capítulo 24 do livro VARIAN, HALL. Microeconomia: Princípios Básicos. Editora Campus. 2000.

[4] NT_Versao_Publica.pdf

[5] SEI/CADE – 1060809 – Parecer

“I know it when I see it”: anotações sobre preços excessivos de medicamentos

Lucia Helena Salgado

A conhecida definição de pornografia – eu sei que é quando eu vejo (I know it when I see it, em tradução livre) – estreou no voto discordante do Juiz Potter Stewart na histórica decisão da Suprema Corte norte-americana de 1964, que confirmou condenação de proprietário de cinema por exibir filme de conteúdo dito obsceno. Desde então, tornou-se a referência mais repetida sobre o “problema da identificação” em pornografia[1].

Com preços abusivos[2] passa-se o mesmo. Você reconhece quando o vê. A proximidade com o evento pornográfico é ainda maior quando se tratam de preços de medicamentos prescritos, que impactam orçamentos de saúde pública, oneram sistemas privados de saúde e tornam-se inacessíveis aos indivíduos cujas vidas dependem deles.

Por décadas a população estadunidense conviveu com preços de medicamentos por prescrição crescentes e muito superiores aos encontrados em outros países, mesmo aqueles de alta renda[3]. Há poucos dias, após um ano de debates e negociações, foi aprovada a primeira norma naquele país capaz de dar inicio ao processo de contenção de preços de medicamentos.

A lei batizada de Inflation Reduction Act[4] ataca diferentes problemas a afligir os cidadãos de classe média e os mais vulneráveis naquele país, dentre eles a prática da indústria farmacêutica de atribuir preços estratosféricos a medicamentos novos desenvolvidos para tratar doenças graves, como diabetes, câncer, esclerose múltipla e esclerose lateral amiotrófica.

Durante as décadas de prevalência das ideias ultraliberais na condução da administração pública federal estadunidense, a ideia de intervenção na liberdade de preços soava como heresia. Quando tiveram oportunidade, os governos democratas – de Clinton e Obama – tentaram garantir acesso à saúde para milhões. Uma das medidas propostas em 1993 foi incluir medicamentos nos serviços prestados pelo Medicare, mas a ideia de que o poder de compra do Estado poderia levar a negociação garantindo preços de aquisição mais baixos foi explicitamente rejeitada pela indústria e seus representantes. Apenas no governo Bush a indústria convenceu-se que teria muito a ganhar com a inclusão de milhões de novos consumidores e a proibição expressa de negociação direta de preços entre Medicare e indústria afastou preocupações quanto à limitação de sua liberdade de precificar: a lei que incluiu a cobertura de alguns medicamentos prescritos na cobertura do Medicare, promulgada por um Congresso de maioria republicana, continha uma “cláusula de não-interferência”.

A teoria econômica convencional fundamenta-se na crença de que preços, por carregarem todas as informações necessárias para promover o equilíbrio entre oferta e demanda no mercado, tendem a se ajustar “naturalmente”[5] – desde que não sujeitos à interferência artificial pelo governo.

A ideia de que um grande comprador como o Medicare não possa negociar preços mais favoráveis com seus fornecedores, em prol do melhor uso dos recursos públicos, soa fora de propósito, mas passa a fazer sentido quando se considera a força doutrinária da teoria econômica tradicional, por um lado, e o inigualável poder de lobby da indústria farmacêutica nos Estados Unidos, por outro.

Quanto ao primeiro aspecto: na Nova Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, a tradição cristã ocidental de condenação moral ao desejo insaciável de ganho individual em desarmonia com o bem comum foi pouco a pouco substituída pela ética puritana de que acumulação de riqueza seria indicação de escolha divina. A conhecida tese weberiana de redenção moral do lucro[6]. Daí à consolidação do capitalismo industrial ao final do século XIX e à sistematização da teoria econômica como ciência, foi um pulo de pouco mais que um século.

Quanto ao segundo aspecto, a indústria farmacêutica é a “campeã do rent seeking,” despendendo milhões de dólares a cada ano com lobby – incluindo financiamento de campanhas de ambos os partidos – , conforme a organização OpenSecrets[7], organização do terceiro setor especializada em pesquisa e transparência governamental, que se dedica a “acompanhar o curso do dinheiro” na política e seus efeitos sobre eleições e políticas públicas.

Impressionante é que, já ao final da 2ª década do 3º milênio, autoridades estadunidenses continuassem a vocalizar as mesmas crenças sobre o funcionamento dos mercados – crenças sim, porque postulados carentes de verificação empírica – de séculos anteriores. Vejamos, como exemplo, o documento apresentado pelo FTC, que expõe a posição oficial daquele país em reunião do Comitê de Concorrência no debate sobre os preços excessivos de medicamentos, organizado pela OCDE[8] em 2018. Sinteticamente, os representantes estadunidenses explicam aos colegas de antitruste dos países mais ricos do mundo que: (i) nos Estados Unidos, a legislação antitruste não impede as firmas que adquiriram poder de mercado legalmente de cobrar preços que maximizam lucros; (ii) limitar a liberdade para precificar diminui incentivos à competição e à inovação; (iii) interferir nos mecanismos de precificação de mercado fatalmente distorce oferta e demanda e impede a alocação eficiente de recursos.[9]

Demonstrar as falácias embutidas nas afirmações (ii) e (iii) acima sobre o funcionamento dos mercados está além do objetivo dessa nota, de modo que podemos saltar no tempo para a promulgação da Inflation Reduction Act. A lei traz medidas que – a despeito da timidez do alcance, resultado do difícil processo de negociação que garantiu sua aprovação – representam verdadeiro rompimento de barreiras doutrinárias, vez que autoriza o poder público (Medicare) a negociar preços de medicamentos em suas aquisições, visando a obter preços menores, e na disponibilização de medicamentos prescritos em co-participação com beneficiários; estabelece um teto de gastos anuais em medicamentos por individuo, que não deve ultrapassar US$ 2,000[10]. Ademais, contrariando décadas de crença ultraliberal na inviolabilidade do direito da indústria de precificar sem limites, a lei prevê medidas para obrigar farmacêuticas a absorver parte dos custos de fabricação de medicamentos cujos preços têm subido acima da inflação.[11]

Contudo, por impactantes que se apresentem, as medidas acima representam apenas os primeiros passos em direção a um ambiente econômico em que possam conviver a eficiência e a equidade: o número de medicamentos cujos preços serão acompanhados mais de perto é restrito, havendo a previsão de que paulatinamente outros medicamentos serão acrescidos à lista; enquanto isso, novos medicamentos continuarão a ser precificados tão arbitrariamente como sempre.

Casos de preços estratosféricos de medicamentos de marca são frequentes também no outro lado do Atlântico, assim como no Brasil. Sob a justificativa de que são custosos e arriscados os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e sobre a garantia de uma elasticidade-preço que não reflete condições normais de mercado[12] e de uma particular opacidade na estrutura de custos de produção, preços de medicamentos novos têm sido estabelecidos a níveis arbitrariamente elevados. Na Europa, contudo, preços excessivos são tratados tecnicamente como abuso de posição dominante, sendo copiosa a lista de casos investigados e condenados, ou encerrados mediante acordo, tanto em jurisdições nacionais quanto europeia.

O caso clássico, que deu origem ao teste de preços excessivos e que até o presente é o parâmetro básico de análise nas investigações tanto da Comissão Europeia como de outras autoridades de concorrência da Europa é o caso United Brand[13]. O teste é dividido em duas partes: em 1o lugar se verifica se a diferença entre os custos realmente incorridos e o preço cobrado é excessiva; em 2o lugar se a resposta for positiva, verifica-se se o preço é injusto por si ou em relação a outros produtos concorrentes. Outro caso de grande relevo (concluído com acordo) foi a investigação da autoridade britânica (Competition and Market Authority) entre 2002 e 2007 contra a prática de discriminação de preços e preços excessivos adotada pela Napp na comercialização de morfina de liberação controlada, para pacientes terminais de câncer, sendo preços excessivamente baixos nos hospitais e excessivamente altos para as cooperativas de home care.

É inegável que atividades de P&D são complexas, que o risco e incertezas associadas a trajetórias tecnológicas – que podem ser ou não bem-sucedidas – implicam custos elevados. É inegável também que grandes avanços científicos na cura e prevenção de doenças tem se dado por força da parceria entre governos, universidades e a indústria[14]. Inegável também é a extrema opacidade envolvendo o processo de formação de preços de produtos farmacêuticos antes e depois da obtenção de patentes. Trata-se aqui de uma assimetria radical de informação, uma falha do mercado a demandar solução.

A nova lei estadunidense foi viabilizada em um ambiente em que a reordenação de forças políticas e um contexto de agravamento de dilemas econômicos demandavam a ousadia de buscar novas soluções.  Deu-se assim ensejo à ruptura do dogma da inviolabilidade do direito de firmas monopolistas precificarem medicamentos sob prescrição.

São em momentos assim, de superação de ideias arraigadas, que se pode tornar a sopesar a busca de lucro e a proteção do bem comum. Que os mesmos ventos logo soprem por aqui, abaixo do Equador. Afinal, o preço abusivo “você reconhece quando o vê”.


[1] Jacobellis v. Ohio

[2] Ou excessivos, da expressão comum nas jurisdições europeias.

[3] Relatório de 2021 da Rand Corporation mostra que os preços de medicamentos nos Estados Unidos são 256% mais caros que em 32 outros países: International Prescription Drug Price Comparisons www.rand.org/t/RR2956 citado no relatorio da Investigação da Câmara dos Deputados sobre preços de medicamentos publicado em dezembro de 2021: https://oversight.house.gov/sites/democrats.oversight.house.gov/files/DRUG%20PRICING%20REPORT%20WITH%20APPENDIX%20v3.pdf

[4] https://www.congress.gov/bill/117th-congress/house-bill/5376/text

[5] Não por outro motivo, é conhecida como “Teoria dos Preços”.

[6] Max Weber, Ética Protestante e O Espírito do Capitalismo (edição comemorativa de 100 anos de publicação) Companhia das Letras, 2004.

[7] https://www.opensecrets.org A organização do terceiro setor é especializada em pesquisa e transparência governamental e dedica-se a “acompanhar o dinheiro” na política e seus efeitos sobre eleições e políticas públicas.

[8] Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

[9] FTC, “Excessive Pricing in Pharmaceutical Markets – Note by the United States” in Competition Committee, DAF/COMP/WD(2018)11, OECD, November, 2018.28 (This document reproduces written contribution from the United States submitted for Item 9 of the 130th OECD Competition Committee meeting on 27-28 November 2018).

[10] É comum ouvir-se depoimentos de pacientes que dispendem anualmente – à força de superendividamento – quantias da ordem de 4 a 5 dígitos por apenas um medicamento, dos vários prescritos para doenças crônicas e graves.

[11] Entre 2009 e 2018, o preço médio de medicamentos de marca prescritos mais do que dobrou, enquanto entre 2019 e 2020, metade de todos os medicamentos cobertos pelo Medicare tiveram seus precos majorados acima da inflação (relatório da Kaiser Family Foundation, 2021 cif. The New York Times, 5 de agosto de 2022 https://www.nytimes.com/2022/08/05/us/politics/medicare-drug-costs.html

[12] A decisão de escolha de um medicamento costuma ser feita pelo médico responsável pelo tratamento, o “consumidor substituto”, que não percebe sua decisão sujeita à restrição orçamentária do paciente, usuario final do medicamento.

[13] (U Brands e U. Brands Continental v Commission, 27/6- 1978

[14] Azoulay et al “Funding breakthrough research: promises and challenges of the “ARPA Model” in Innovation policy and the Economy 19 (1), 69-96, 2019.  2018; Jeffrey Furman Academic “collaboration and organizational innovation: The development of research capabilities in the US pharmaceutical industry, 1927-1946” disponivel em Research Gate www.researchgate.net consultado em 1/1/2021.

A água escolhe o seu percurso de acordo com o terreno que atravessa: desconsideração da personalidade jurídica na lei antitruste

Eduardo Molan Gaban

A Lei Antitruste Brasileira (Lei n. 12.529/2011), em seu artigo 36, tipifica as infrações à ordem econômica e, embora as condutas ali previstas também caracterizem infrações a outras leis[1], é esta que em regra contém as sanções pecuniárias mais significativas[2], conforme artigos 37 e seguintes.

O artigo 33 da Lei Antitruste garante, ainda, uma ampla legitimação passiva na responsabilização dos agentes econômicos por condutas anticoncorrenciais e ilícitos concorrenciais de modo geral[3], ao prever que “[s]erão solidariamente responsáveis as empresas ou entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, quando pelo menos uma delas praticar infração à ordem econômica”.

Assim, o texto atual admite a solidariedade entre integrantes do grupo econômico quando ao menos uma das empresas pratica infração. Caracterizada a existência de grupo econômico, no âmbito do qual determinada entidade praticou infração, seria aplicável a regra da responsabilidade solidária aos demais integrantes[4].

Para além da solidariedade do grupo econômico, a lei permite ainda que a responsabilidade pelo ilícito concorrencial seja estendida à pessoa do sócio, conforme redação do artigo 34, caput e parágrafo único:

Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

A redação do parágrafo único é expressa ao estabelecer que a falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica autorizam a “desconsideração”, ou seja, a retirada do véu da personalidade jurídica para cobrança da sanção administrativa imposta pelo CADE diretamente dos sócios.

A partir desta previsão, denota-se que a mera insolvência da pessoa jurídica autoriza que se atinja o patrimônio do sócio, independentemente da necessidade de demonstração do abuso de poder ou desvio da finalidade, como originalmente preveem as teorias clássicas subjacentes ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, como, por exemplo, a teoria ultra vires societatis.

Tal norma assemelha-se às hipóteses previstas no Código de Defesa do Consumidor, no Direito do Trabalho e no Direito Ambiental, às quais se aplicaria a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica[5].

E, de fato, a redação do artigo – em seu parágrafo único – contém apenas o termo “desconsideração”, sem remeter ao instituto previsto no artigo 50 do Código Civil, atualmente alterado com a edição da Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/2019), que adota a teoria maior, em que a responsabilização do sócio pelos débitos da pessoa jurídica somente pode ocorrer “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”.

Contudo, o emprego do termo “desconsideração” pode causar certa confusão no intérprete da lei. Tanto é verdade que parcela da doutrina[6] defende que, no âmbito da Lei Antitruste, aplica-se a teoria maior da desconsideração, prevista no Código Civil, inclusive com a necessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no Código de Processo Civil (artigos 133 a 137), sob pena de violação dos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa.

No entanto, no caso da Lei Antitruste, em especial o parágrafo único do artigo 34, denota-se que a real intenção do legislador é garantir uma verdadeira responsabilidade subsidiária do sócio, com o redirecionamento da execução, à semelhança do Código Tributário Nacional, em seus artigos 134 e 135.

Sobretudo porque o artigo 94[7] da Lei Antitruste prevê expressamente a aplicação da Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal) para cobrança da multa pecuniária aplicada pelo CADE.

Nesse sentido, ante a adoção pela Lei Antitruste de legislação específica para reger o procedimento de execução da sanção pecuniária (Lei de Execução Fiscal), resta afastada a incidência das normas do Código de Processo Civil – e, via de consequência, a necessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para a responsabilização da pessoa do sócio.

Trata-se de uma questão de direito positivo: a moldura normativa existente é da aplicação da norma específica em relação à norma geral nos casos de conflito (lex specialis derogat lex generali). E, uma vez que a Lei de Execução Fiscal permite a adoção de um caminho mais simplificado para o redirecionamento da execução, o Estado e o Contribuinte não estão obrigados a seguir o caminho mais tortuoso (incidente de desconsideração da personalidade jurídica) previsto no Código Civil.

No âmbito das execuções fiscais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já fixou o entendimento de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é incompatível com o procedimento da Lei n. 6.830/1980, visto que, pelo princípio da especialidade, a aplicação do Código de Processo Civil é subsidiária nos casos em que a demanda é regida por lei específica[8].

Com isso, independe de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica a pretensão da Fazenda Pública de redirecionar a execução fiscal para alcançar pessoa distinta daquela contra a qual a execução fiscal foi originariamente ajuizada, já que o artigo 4º, incisos V e VI, da Lei de Execução Fiscal explicita a possibilidade de ajuizamento da execução fiscal contra o responsável legal por dívidas, tributárias ou não, das pessoas jurídicas de direito privado e contra os sucessores a qualquer título[9].

Este entendimento se estende às execuções fiscais das sanções pecuniárias aplicadas pelo CADE, à medida que a Lei Antitruste prevê diretamente as hipóteses de redirecionamento do débito à pessoa do sócio (artigo 34, parágrafo único).

Nesta lógica, em caso de falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, é desnecessária a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para execução da multa por ilícito concorrencial em face do sócio, que poderá ser diretamente responsabilizado, sem a necessidade de demonstração do abuso de poder ou desvio de finalidade, havendo verdadeiro caráter de responsabilidade subsidiária.

Ao fim e ao cabo, verificar-se algo semelhante ao que se passa com a natureza: a água escolhe o seu percurso de acordo com o terreno que atravessa. Isto é, embora seja defensável a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica para o caput do artigo 34, da Lei Antitruste, a previsão de seu parágrafo único torna o “terreno” mais propício à aplicação pura e simples da responsabilização subsidiária dos sócios, dispensando-se quaisquer das teorias de desconsideração da personalidade jurídica e seus conhecidos custos de transação processuais de implementação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). Recurso Especial n. 1.786.311/PR.  Min. Rel. Francisco Falcão. Brasília/DF. Data do julgamento: 15/10/2019. Data da publicação: 18/10/2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.775.269/PR. Min. Rel. Gurgel de Faria. Data do julgamento: 07/04/2020. Data da publicação: 14/04/2020

CARVALHOSA, Modesto et. al (org.). Tratado de Direito Empresarial: Direito Concorrencial. Vol. VII. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999.

FARACO, Alexandre Ditzel. Responsabilidade solidária no grupo econômico por infrações da ordem econômica. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 10, n. 2, p. 126-139, 2022.

GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016.

TOMAZETTE, Marlon. Arts. 49-A e 50 do Código Civil com a redação dada pela Lei da Liberdade Econômica. In: GABAN, Eduardo Molan et. al. (org.). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica: Comentários à Lei 13.874/2019. São Paulo: Juspodivim, 2020, pp. 391-416.


[1] Por exemplo, a Lei n. 8.137/1990, que previne os crimes contra a ordem econômica; o Código de Defesa do consumidor (Lei n. 8.070/1990) e a Lei de Licitações (Lei n. 14.133/2021).

[2] GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 170.

[3] Ibidem, p. 175.

[4] FARACO, Alexandre Ditzel. Responsabilidade solidária no grupo econômico por infrações da ordem econômica. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 10, n. 2, p. 126-139, 2022.

[5] Há quem aponte três teorias para a aplicação da desconsideração no direito brasileiro: teoria maior subjetiva (fundada na fraude e no abuso do direito), teoria maior objetiva (fundada na confusão patrimonial) e teoria menor (fundada no mero inadimplemento da obrigação). Nesse sentido: COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 44.

[6] Neste sentido: CARVALHOSA, Modesto. Tratado de Direito Empresarial. Volume VII – Direito Concorrencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 94-95; e TOMAZETTE, Marlon. Arts. 49-A e 50 do Código Civil com a redação dada pela Lei da Liberdade Econômica. In: GABAN, Eduardo Molan et. al. (org.). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica: Comentários à Lei 13.874/2019. São Paulo: Juspodivim, 2020, pp. 391-416.

[7] Art. 94, Lei n. 12.529/2011. A execução que tenha por objeto exclusivamente a cobrança de multa pecuniária será feita de acordo com o disposto na Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980.

[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). Recurso Especial n. 1.786.311/PR.  Min. Rel. Francisco Falcão. Brasília/DF. Data do julgamento: 15/10/2019. Data da publicação: 18/10/2019.

[9] O entendimento da 1ª Turma do STJ é que a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica será necessária apenas nas hipóteses em que não haja previsão legal autorizando o redirecionamento para pessoa diversa da qual a execução foi originariamente ajuizada. (STJ, EREsp n. 1.775.269/PR, Min. Rel. Gurgel de Faria. Data do julgamento: 07/04/2020. Data da publicação: 14/04/2020).

A lei e os números: o que temos para contar

Uinie Caminha

É célebre a fala de Ariano Suassuna na qual narra que fez Direito porque não sabia “fazer conta de somar”. O genial escritor paraibano fala de maneira jocosa da recorrente falta de habilidade com os números daqueles que optam pela Direito. Tradicionalmente, diz-se que, em matéria de número, advogado só sabe o número do artigo. Todavia, hoje não é mais possível as profissões jurídicas ignorarem outras disciplinas que envolvem a matemática. Em algumas áreas, como Direito Societário e Tributário, conhecer contabilidade e finanças não é apenas um diferencial, é uma necessidade.

Mais recentemente, também a estatística vem se tornando uma grande aliada do Direito, tanto na elaboração de leis quanto na formulação de políticas de organização judiciária, e ainda na definição de estratégias para defesa dos interesses de clientes.

A Jurimetria, como ficou conhecida a aplicação da estatística na medição de indicadores jurídicos, tem, cada vez mais, sido utilizada nas decisões envolvendo formulação e aplicação de leis, e ainda estratégias contratuais e processuais.

Por vezes, nós, que estudamos o Direito de maneira dogmática, não percebemos que o que muitos chamam de ciência do Direito é, na verdade, um amontoado de opiniões que são misturadas e escalonadas de maneira que, ao final, haja alguma possibilidade de conclusão compatível como nossa própria opinião. É muito comum nós, acadêmicos na área jurídica, criarmos teses e hipóteses que não se sustentam diante de uma análise superficial dos fatos, da realidade em que o Direito é aplicado.

Já na década de 1960, Lee Loevinger[1] diferenciava de maneira muito didática as atividades desempenhadas por aplicadores do Direito, Juristas e Cientistas:

“Lawyers and judges generally are engaged in seeking to apply the principles or analogies of cases, statutes, and regulations to new situations. Scientists generally are engaged in collecting experimental and statistical data and in analyzing them mathematically. Writers on jurisprudence are engaged in the philosophical analysis of legal concepts and ideas.”

Precursor das análises jurimétricas no Brasil, o Professor da PUC de São Paulo Marcelo Nunes Guedes[2] costuma afirmar em suas aulas e palestras que os fatos não têm a menor educação… afrontam uma ideia que nos parece boa e dão-lhe uma sova… isso é comum quando se trata de produção legislativa. Se forem a analisadas corretamente, grande parte das reformas legislativas parecem mais soluções a procura de um problema que nem existe. Em suas palavras

“O jurista estuda as leis sem se preocupar com seus resultados práticos. Os bacharéis em Direito (futuros advogados, juízes, consultores legislativos, promotores e diretores jurídicos de empresas) são treinados para discutir ad nauseum todos os sentidos hipotéticos atribuíveis uma lei, mas pela falta de conhecimentos básicos em estatística e pesquisa empírica, não possuem qualquer preparo para verificar as consequências práticas que esses sentidos produzem”

A Jurimetria se propõe a analisar os cenários existentes para efetivamente identificar os problemas e permitir traçar a melhor estratégia para resolvê-lo… deixa-se o campo da opinião, para o da probabilidade. Note-se que não se fazem necessárias grandes ferramentas tecnológicas (apesar de ajudarem muito) ou uma mente matemática tão aguçada, como ensina a Professora Luciana Yeung[3]

“O primeiro mito a ser destruído no exercício da aplicação da Jurimetria é que ela exige emprego de métodos sofisticadíssimos, com matemática e/ou recursos computacionais de última geração, manejáveis apenas por doutores das ciências exatas. Qualquer estudo cujo objeto faz parte das ciências jurídicas (…) que se valha de dados coletados empiricamente, e cuja análise se baseie de alguma forma em conceitos estatísticos (…) é um trabalho jurimétrico”

Para a advocacia, conhecer os cenários e gargalos do Judiciário é extremamente importante para a avaliação da conveniência de medidas judiciais, cláusulas contratuais e eventuais acordos, especialmente no cenário de insegurança jurídica do Brasil. Para isso, não precisamos de fórmulas tão complexas, mas talvez, apenas ceder um pouco do espaço de nossos pensamentos e análises aos números.

Atualmente, existem muitos serviços de mapeamento de decisões de grandes litigantes, e conhecer e saber interpretar esses resultados é, e cada vez mais será, importante para uma advocacia de qualidade.

Muito se fala de uma suposta obsolescência de profissões jurídicas, e que em breve não mais serão necessários advogados, pois “máquinas” poderão substituir seus serviços. Alguns serviços, não só de advogados, mas de juízes e outros agentes do Direito deveriam, mesmo, ser executados por programas.  Porém, os números, assim como as palavras, também podem ser “torturados” até que nos digam o que queremos… Assim, os advogados (e todos os outros que vivem de fazer, aplicar e interpretar a Lei) precisamos conviver com os números e aprender a interpretá-los para nos mantermos indispensáveis como diz a Constituição. Isso é certo como dois e dois são quatro.


[1] Lee Loevinger, Jurimetrics: The Methodology of Legal Inquiry, 28 Law and Contemporary Problems 5-35 (Winter 1963)
Available at: https://scholarship.law.duke.edu/lcp/vol28/iss1/2

[2] Jurimetria: como a estatística pode reinventar o Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p.

[3]  Jurimetria ou análise quantitativa de decisões judiciais. In: Machado, Maíra Rocha (Org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017, p. 249-274.

Licença Menstrual Remunerada: uma medida urgente de saúde das trabalhadoras brasileiras

Vanessa Vilela Berbel

Os direitos reprodutivos da mulher são pauta recorrente do Poder Judiciário e da política nacional e internacional. Em 2022, enquanto a Suprema Corte Americana, em contraposição ao entendimento consolidado desde 1973 a partir do caso Roe vs. Wade, declarou a inexistência de um direito constitucional ao aborto pautado na Décima Quarta Emenda e o chefe do Poder Executivo brasileiro vetava dispositivos da lei de criação do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual (Lei 14.214/21), que autorizava a distribuição gratuita de absorventes pela rede pública de saúde, o governo espanhol, em caminhos opostos, propunha a criação de licença menstrual remunerada às trabalhadoras.

Por trás da proposta da criação da licença menstrual remunerada às trabalhadoras na Espanha há a organização político-partidária das mulheres do Unidas Podemos, associada a uma representatividade feminina do atual governo espanhol, composto por 14 (quatorze) mulheres e 08 (oito) homens em cargos ministeriais; o fato reforça a importância de temas que já abordamos em colunas anteriores, como o combate à violência política eleitoral e a importância da participação política das mulheres.

Em relação à licença menstrual remunerada, há também, por detrás desta decisão, um governo socialista, que alinhou, à sua pauta social-democrática, as bandeiras ecologistas e feminista, como afirmado durante o 40⁰ Congresso do Partido Socialista Operário Espanhol, ocorrido em Valência, no ano de 2021. Nenhum partido é obrigado a levar o socialismo em seu nome, mas, se o faz, precisa se alinhar a pautas protetivas do operariado e aceitar que compete ao Estado a missão de gerenciar as desigualdades sociais. O governo espanhol está, portanto, coerente com seu projeto.

Mas nada impede que pautas como a licença menstrual remunerada também caibam em governo não socialistas, ou seja, liberais. Como lembraram Amanda Flávio e Adriano Paranaíba na coluna “Liberalismo, esse desconhecido”, o liberalismo está longe de ser a ameaça do bem -estar social; trata-se de uma doutrina política em que se encontram diferentes escolas de pensamento, cujo ponto fulcral entre elas está “no enaltecimento da pessoa humana e a sua proteção contra os arroubos do Estado”. Neste conjunto, há diferentes matizes de pensamento sobre o quanto de Estado se é necessário aceitar.

Portanto, tudo é uma questão sobre quem deverá pagar a conta. O governo espanhol entendeu que as dores menstruais que, mensalmente, incapacitam para o trabalho diversas mulheres, devem ser repartidas pela sociedade. Segundo o Projeto de Lei Espanhol, caberia, à Previdência Social, remunerar o afastamento, em regra por três dias, às mulheres que precisam se ausentar durante o período menstrual. Poderia ser feita outra opção, obrigar o empregador a internalização este ônus, mas, a Espanha preferiu reparti-lo de outra maneira.

Hoje, no Brasil, os efeitos econômicos e sociais das dores menstruais são, via de regra, suportados exclusivamente pela trabalhadora, visto que a falta ao trabalho é apenas justificada por doença ou acidente e precisa ser sempre acompanhada de atestado médico. Menstruação não é uma doença e conseguir um atestado todo mês, além de certamente não ser bem compreendido pelo empregador acarretando sua demissão futura, será uma tarefa hercúlea em um sistema único de saúde congestionado. Repartir socialmente esse ônus parece ser uma boa medida para as mulheres e para toda a sociedade.

A Taxa de participação das mulheres no mercado laboral é baixa se considerarmos que somos nós a maioria da população brasileira. A parcela da população em idade de trabalhar (PIT) que está na força de trabalho, ou seja, trabalhando ou procurando trabalho e disponível para trabalhar, aponta a maior dificuldade de inserção das mulheres no mercado de trabalho. Em 2019, a taxa de participação das mulheres com 15 anos ou mais de idade foi de 54,5%, enquanto entre os homens esta medida chegou a 73,7%.

São diversas as razões para a baixa incorporação da mulher ao mercado de trabalho: maternidade na adolescência ou pré-adolescência, carência de vagas em creches e pré-escolas, desigualdade na distribuição das tarefas domésticas entre os casais, dentre outras. Claramente, há que se pensar em medidas para integrá-las. Mas não só, essa internalização também deve ser acolhedora, proporcionando um ambiente de trabalho saudável e compatível com suas necessidades biológicas. E quem já teve o dissabor de ter que trocar de roupa após o vazamento de um absorvente ou sentir um quase desmaio durante o trabalho pelo cansaço absurdo dos sangramentos ou a contração da cólica, sabe bem o que precisa: ficar em casa.

É preciso avançar em uma incorporação e promoção menos segregada e estereotipada nos empregos e implantar medidas transversais voltadas para elevar a taxa de emprego feminino, incluindo condições mais favoráveis ao exercício e permanência no labor remunerado, dentre elas a licença menstrual remunerada.

MP do Ticket Alimentação: benefício para quem?

Marcelo Nunes de Oliveira

Na semana que passou o Congresso Nacional aprovou o texto da MP 1108/2022, que, dentre outras medidas, altera algumas regras do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT, mais conhecido como ticket refeição ou alimentação.

A discussão do texto final foi cercada de polêmicas, em especial, quanto a três pontos: (i) possibilidade do trabalhador receber o valor em espécie; (ii) a proibição da chamada taxa negativa na negociação entre empregadores e empresas de meios de pagamentos eletrônicos; e (iii) a possibilidade do trabalhador efetuar a portabilidade do saldo do seu benefício para outra administradora.

O Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT foi instituído pela Lei 6.321/76 e regulado posteriormente pelo Decreto 05/1991, com o objetivo de melhorar as condições nutricionais e de qualidade de vida dos trabalhadores, a redução de acidentes e o aumento da produtividade, tendo como unidade gestora a Secretaria de Inspeção do Trabalho/Departamento da Saúde e Segurança no Trabalho.

Por meio do programa, os empregadores tributados com base no Lucro  Real podem deduzir do Imposto de Renda devido, a título de incentivo fiscal, entre outros, o valor correspondente à aplicação da alíquota do imposto sobre a soma das despesas de custeio realizadas no período em Programas de Alimentação do Trabalhador (PAT).

O Programa pode ser ofertado de diferentes formas: (i) manutenção de serviço próprio de refeições; (ii) distribuição de alimentos in natura; e (iii) convênios com entidades que fornecem ou prestam serviços de alimentação coletiva, desde que essas entidades sejam credenciadas pelo Programa e se obriguem a cumprir o disposto na legislação do PAT e na Portaria MPT 672/2021, condição que deverá constar expressamente do texto do convênio entre as partes interessadas. Nesta última categoria se enquadram as empresas emissoras de vales refeição e alimentação, geralmente ofertados por meio de cartões eletrônicos passíves de utilização nas redes credenciadas pelos respectivos arranjos de pagamento.

Contudo, a disponibilização do benefício por meios eletrônicos, formato prevalente no mercado, decorre de uma negociação entre empregadores e as empresas emissoras. Não raro – muito pelo contrário, nessas negociações as empresas emissoras dos cartões oferecem aos empregadores uma taxa negativa ou deságio sobre o valor do benefício contratado. Por exemplo, se um empregador possui um montante mensal de benefícios alimentação a pagar aos seus colaboradores de R$ 100.000 (cem mil reais), a administradora de cartões de benefícios pode oferecer esses benefícios por talvez R$ 95.000 (noventa e cinco mil reais), ou seja, com 5% de desconto sobre o valor nominal dos benefícios. Ora, como isso seria possível, considerando que a emissora ainda tem todos os custos administrativos e comerciais para emissão dos cartões, cadastramento da rede de estabelecimentos parceiros, dentre outros?

Simples: o custo de deságio, somado aos demais custos da operação e a margem dos emissores é repassada para a taxa de desconto cobrada dos estabelecimentos comerciais que aceitam esses cartões. Não por outro motivo as taxas de desconto para cartões de benefícios são consideravelmente mais elevadas do que as taxas de desconto de cartões de débito/crédito comuns. Segundo a nota Técnica nº 20/2019/DEE/CADE, que analisou aspectos concorrenciais em uma operação entre o Itaú e a Ticket Serviços S.A., enquanto a taxa média de débito e crédito girava em torno de 2,5%, nos vales alimentação/refeição esse desconto seria de aproximadamente 4,7%. Naturalmente, o custo da operação acaba sendo repassado para o preço dos alimentos adquiridos pelo trabalhador, ou seja, o desconto obtido pelo empregador na negociação com o emissor dos cartões de benefícios é compensado na forma de preços mais elevados aos trabalhadores, uma política “Robin Hood” às avessas.

 Essa é a falha de mercado que a MP 1108 busca endereçar, ao propor a proibição de “qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos sobre o valor contratado” (art. 3º, I, da MP 1108/2022). O Texto aprovado pelo Congresso ainda acrescentou dois pontos adicionais: i) a possibilidade de saque do benefício em espécie após 60 dias do recebimento do benefício; e ii) a possibilidade de portabilidade do benefício para outra empresa administradora.

Sem dúvidas a proposta de proibição do deságio na contratação dos benefícios por parte dos empregadores tem potencial de reduzir o custo das taxas de desconto praticadas pelos arranjos de pagamento que atuam no mercado de benefícios alimentação/refeição. Contudo, são as mudanças inseridas pela Câmara dos Deputados – e também as que mais provocaram reações contrárias, aquelas que podem, de fato alcançar o objetivo de redução de custos via aumento da competição.

A primeira, que permite o saque integral dos recursos após 60 dias do crédito do benefício, viabiliza, ainda que via uma escolha intertemporal, uma competição entre o meio eletrônico e o dinheiro em espécie: usar o benefício imediatamente, com os custos embutidos; ou, aguardar um período de tempo para sacar o benefício em espécie e, com isso, ter maior barganha no momento da aquisição dos produtos de seu interesse.

A segunda medida, aquela que potencialmente mais interfere positivamente a competição no mercado, permite ao trabalhador fazer a portabilidade do benefício para outro cartão, como se fosse uma conta-salário. A portabilidade torna quase desnecessária a proibição da prática do deságio, já que a empresa emissora não tem a garantia de retenção do consumidor na sua rede – único meio de recuperar o deságio ofertado ao empregador. Além de inibir o deságio, a portabilidade fomenta a competição entre as administradoras dos benefícios por custo e também por qualidade, aspecto que abrange desde o atendimento ao usuário até a qualidade/diversidade da rede credenciada. Em sendo um mercado de dois lados, quanto maior a rede credenciada – fator que depende significativamente das taxas de desconto cobradas, mais atrativo é determinado emissor.

Contudo, ambas as medidas já são alvo de ataques, inclusive com menção a possibilidade de veto às duas alterações promovidas pelo Congresso.

A possibilidade de saque do valor em espécie após 60 dias é criticada pelo setor de comércio e serviços alimentícios, que teme a perda de até R$ 30 bilhões de recursos cativos para o setor. A portabilidade dos valores é atacada, de maneira genérica, como uma perda de direitos dos trabalhadores.

É importante se ter em mente que se trata de um direito e um benefício destinado aos trabalhadores, ainda que sujeito a críticas quanto à sua necessidade, já que poderia constituir parte do salário, embora não seja este o objetivo deste texto. Os interesses desse grupo de indivíduos deve nortear as discussões em detrimento de interesses de setores porventura “prejudicados” com a perda de demanda cativa ou com o aumento da competição, seja entre estabelecimentos comerciais, seja entre administradoras de benefícios.

Vale ressaltar, ainda, que os servidores públicos federais recebem o benefício, há muito anos, de maneira pecuniária. Ampliar as possiblidades de recebimento e administração dos benefícios alimentícios por parte dos trabalhadores é, antes de tudo, conferir maior liberdade para que possam utilizar um recurso que lhes é de direito, e com menor custo. O que for dito em sentido contrário tende a ser tão somente defesa de interesse corporativo travestido de virtude.