A Tragédia dos Concorrentes Comuns
Maxwell de Alencar Meneses
Shlomo ben Dovid, no século X a.C. apregoou algo que ao contrário de algumas teorias e modelos vem sempre sendo testado e provado ao passar dos milênios: “O que foi voltará a ser, o que aconteceu, ocorrerá de novo, o que foi feito se fará outra vez; não existe nada de novo debaixo do sol. Será que há algo do qual se possa dizer: ‘Vê! De fato, isto é absolutamente inédito?’ Não! Já existiu em épocas anteriores à nossa”.
Essa afirmação, como pressuposto, nos permite entender como o ensaio publicado pelo ecologista Hardin em 1968 a respeito da exploração não regulamentada de recursos naturais[i], que se baseou, por sua vez, em escrito do matemático William Forster Lloyd de 1883[ii] com referências a vilarejos medievais, pode ser recorrentemente aplicado e avaliado em contextos atuais. Se bem que Moshe ben Aharon, ainda no século XIII a.C., já havia recomendado a propriedade privada e o descanso da terra a cada 7 anos, o que hoje podemos perceber claramente sob a roupagem da rotação de culturas defendida pela Embrapa ou do pagamento pelo não cultivo feito nos EUA, como um antídoto para algumas condições abordadas por Hardin na Tragédia dos Comuns.
O interessante dessas condições é que são fruto da observação, ainda que indireta, de cenários práticos, a exemplo de outros grandes pensadores, como Arquimedes, que teria descoberto a Lei da Flutuação e gritado ‘Eureka’ nu durante o banho, e a história da maçã que teria inspirado Newton à descoberta da Lei da Gravidade.
De forma análoga, pode-se dizer que Brasília, o Brasil, o brasileiro e a dinâmica da concorrência entre as empresas proporcionam histórias e dimensões a serem observadas, a fim de extrair ou confirmar leis ou princípios subjacentes, semelhantes a algoritmos que ditam como o mundo funciona. Neste contexto, estas dimensões são percorridas aqui de modo exploratório para provocar uma melhor reflexão acerca do seu funcionamento e sua influência conjunta para somatização de seus efeitos.
A iniciar por Brasília, que em geral é considerada uma cidade não comum, embora Palmas tenha se utilizado de conceitos e formatos de Brasília, a capital do Brasil é, no entanto, um palco do comum. Os criadores da cidade, simpáticos a ideias comunistas (do latim ‘communis’, que significa comum ou compartilhado), implementaram esses conceitos de forma evidente na cidade. Os blocos de apartamentos parecidos entre si, que se assemelham a prédios moscovitas de períodos próximos e contam com algo impensável em outras capitais: não há cercas, ao contrário, livre trânsito por baixo dos prédios, garantido pelos pilotis. Já se discutiu o cercamento por questões de segurança, mas a ideia não evoluiu para não descaracterizar o tombamento da cidade.
A Área Octogonal Sul, também idealizada por Lúcio Costa, se difere por ser o primeiro local em formato de condomínios fechados de prédios em Brasília, e ainda hoje é a única área com as características urbanísticas similares ao plano piloto que tem esse privilégio. Aí que a tragédia se manifesta, como se fosse por um refrator de greens, aquele aparelho usado pelo oftalmologista mudando lentes e perguntando: ‘Está melhor ou está pior?’ Dentro dos alambrados da quadra, o ‘está melhor’ – jardins perfeitamente cuidados, limpeza e beleza – mas entre as quadras há a área dos comuns, o ‘está bem pior’, que é de responsabilidade pública e também de todos – uma sujeira e morosidade para manter as coisas em ordem – a terra de ninguém aludida pela ‘Tragédia dos Comuns’.
O que é curioso é que o problema parece que não reside no uso incorreto ou excessivo de recursos, que em tese seria evitado se disciplinado pelo Estado. Os moradores são ocasionalmente vistos cuidando das áreas comuns, plantando e cuidando de árvores, além de financiarem melhorias identificadas como custeadas pela comunidade em tais áreas. A verdadeira tragédia ocorre quando o Estado assume a responsabilidade pelo cuidado de algo, que foi tornado comum.
No Brasil, mais especificamente na extremidade sul, Porto Alegre, há um parque chamado Parque Moinhos de Vento (ou ‘Parcão’) que abriga a Escola Estadual Uruguai, formadora de especialistas em vários campos. Um cenário bonito, com semelhanças ao europeu, com patos e outras aves aquáticas, algo que seria impensável em certo período em Belém do Pará, no lado oposto do Brasil, cidade que tem em sua culinária o apreciado Pato no Tucupi. Belenenses de mudança para Porto Alegre ficavam admirados de como os patos ficavam ali e ninguém os pegava, até que o fizeram: a própria Prefeitura de Porto Alegre e uma ONG. Mas foi para a proteção dos patos, que sempre estiveram lá de acordo com moradores. Agora o parque está mais parecido com outros parques, mais comum, sem algo que o caracterizava.
Sequindo com essas reflexões e testes de cenários, sem a intenção de representar quaisquer opiniões institucionais ou pessoais, observa-se agora a história dos brasileiros, que, por esse termo, se diferenciam de outros gentílicos[iii]. Esse gentílico específico, caracterizado pelo uso do sufixo ‘-eiro’, explicita que poderiam ser ‘brasilenses’ como os canadenses, ‘brasilianos’ como os italianos, ou ‘brasileses’ como os portugueses.
No entanto, são chamados de ‘brasileiros’, assim como engenheiros, padeiros, açougueiros e assim por diante. Esse nome historicamente evoca a ideia de trabalhar na exploração de uma terra comum, em vez de indicar propriedade sobre ela. O que conferiria um maior teor de cuidado e zelo, para além da extração ou distribuição de riquezas sem pensar no amanhã, algo que poderia ser chamado de patriotismo, representando um senso de proteção e cuidado.
Trata-se de uma dimensão importante porque, como diz o bom senso comum: ‘Se você dominar as palavras, dominará o pensamento e tudo mais que daí é proveniente’. Há um fluxo bidirecional entre palavras e comportamentos que também é vivenciado no Brasil, como exemplificado pelo mote: ‘Sou brasileiro, não desisto nunca! ”, que foi personificado pela população em geral.
Antes de prosseguir, relembra-se que foram tocadas as dimensões Brasília, Brasil e brasileiro, no sentido de estabelecer um breve pano de fundo a partir de histórias que ilustram efeitos observados ao tornar algo comum. O que aqui inclui tanto o sentido de igualar e deixar de ser original, quanto o sentido de partilhar e ceder a uma administração coletivista, ou seja, englobando ambos os aspectos resultantes dessas considerações, investigando sua inter-relação.
Quanto às empresas, estas também podem ser tornadas comuns. No livro “A Estratégia do Oceano Azul”, escrito por W. Chan Kim e Renée Mauborgne, são explorados conceitos e desafios do ponto de vista dos empreendedores. O “oceano azul” representa um espaço de mercado com pouca concorrência; a metáfora evoca a imagem de um oceano sereno, claro e tranquilo, como aqueles retratados em filmes de mergulho turístico. Em contrapartida, o “oceano vermelho” é uma metáfora para um espaço onde a competição é feroz e acirrada, semelhante a tubarões em frenesi, cada um lutando agressivamente para obter uma fatia da caça, e o resultado é a água cristalina do oceano azul se tornando turva de vermelho. O que caracteriza o oceano vermelho. Pode-se notar uma certa analogia com o uso de recursos limitados de mercados saturados por concorrentes comuns.
Como história de exemplo, a LATAM, anteriormente conhecida como TAM (acrônimo de Transportes Aéreos Marília), empregou uma estratégia inteligente que foi fundamental para seu sucesso no mercado de aviação. A empresa, fundada pelo Comandante Rolim Amaro, diferenciou-se de forma inusitada ao optar por adquirir aeronaves Fokker 100. Essas aeronaves se destacaram não apenas pelo número de passageiros que podiam acomodar, mas também por sua capacidade de operar em aeroportos regionais que não estavam na mira das principais companhias aéreas (tubarões) da época.
Essa estratégia pode ser comparada à tática militar de “cabeça de praia” ou “cabeça de ponte” utilizada na Segunda Guerra Mundial, na qual uma pequena porção do território inimigo é conquistada como ponto de partida para uma expansão posterior. A LATAM aplicou essa abordagem de forma eficaz para aumentar sua penetração e participação no mercado.
Vale mencionar que, na época, não havia um regulador limitando artificialmente alguns aeroportos do mesmo modo como pode se observar hoje, o que pode ser um fator que permitiu à LATAM uma maior flexibilidade em suas operações e na escolha de aeroportos regionais estratégicos.
Essa estratégia de diferenciação, assim como outras, foi fundamental para o sucesso da LATAM. Afinal, quantas outras empresas tinham o próprio dono envolvido na tarefa de destacar o ticket de embarque e dar atenção aos passageiros durante o embarque em Congonhas? O jeito TAM de voar. Essa expansão inteligente contribuiu significativamente para a LATAM se tornar uma das principais companhias aéreas da América Latina.
Em mais uma história, constata-se que quando Bezos fundou a Amazon, sua ideia inicial era estabelecer uma livraria. No entanto, a diferença estava no fato de que essa livraria seria online, o que já era um passo à frente em relação ao convencional. Mas não parou por aí. Seu objetivo era oferecer o maior catálogo de livros disponíveis, e, na verdade, já nos anos 90, havia livros que só podiam ser encontrados na Livraria Cultura da Avenida Paulista e, em último caso, se você não conseguisse encontrá-los lá, poderia verificar na Amazon, onde quase certamente o encontraria. Desde então, a empresa vem ampliando suas diferenças, fugindo do comum e sendo criticada pelos frutos de ousar sair do comum, ao qual muitos acreditam que deveria aderir.
Em comparação, a Xerox foi uma empresa que veio produzir uma grande quantidade de patentes de inovação. A Ethernet desenvolvida pelo Xerox PARC (Palo Alto Research Center) é a tecnologia utilizada para comunicação de dados em redes locais de computadores, assim como o mouse, a GUI (interface gráfica de usuário), um dos primeiros PC´s, NLP (Natural Language Processing) base para a Inteligência Artificial e muitas outras inovações em uso hoje[iv]. Mesmo assim não teve capacidade de se diferenciar por isso, a antes vantagem da marca Xerox, sinônimo de cópia, que era sinal de poder de mercado, torna-se sinal do comum, afinal todos tiram Xerox ou cópia.
No Brasil, a Xerox buscou se diferenciar da concorrência ao oferecer serviços que incluíam o fornecimento de material de consumo. No entanto, a empresa foi condenada pelo Cade e posteriormente pelo TRF devido à litigância de má-fé contra o Cade. Sem entrar em discussões sobre a correção dessas decisões, interessa abordar um outro aspecto.
Em mercados altamente competitivos, como o setor de cópias, onde a competição frequentemente se transforma em uma batalha de preços – o mencionado “Oceano Vermelho” – é comum que os concorrentes tradicionais sacrifiquem critérios que podem ser considerados dispensáveis, como a qualidade dos insumos, a fim de oferecer preços mais baixos. Em sentido análogo, percebe-se que até mesmo companhias aéreas premiam pilotos por redução de custos com combustíveis. Quando se constata casos de queda de avião por falta de combustível, chega-se ao ponto de inferir o quanto a luta por margens de lucro em meio a concorrência entre comuns pode ser uma tragédia e refletir o quanto a ação antitruste, assim como outras ações do Estado podem limitar movimentos de negócios que levem empresas a Oceanos Azuis.
Uma lógica semelhante pode ser observada na decisão de multar a Uber em um valor bilionário e obrigá-la a contratar todos os motoristas. Essa abordagem faz sentido do ponto de vista de buscar a uniformidade (comum), afinal, se todas as empresas teoricamente seguem as leis trabalhistas (CLT), por que permitir que a Uber escape desse padrão e busque diferenciação? Deve-se buscar a igualdade, caso contrário, a substitubilidade pode ser prejudicada e margens de lucro excessivamente elevadas podem ser alcançadas, o que não seria desejável dentro dessa linha de raciocínio.
Ataviando os fios das histórias aqui percorridas, depreende-se, como mencionado anteriormente, que essas histórias seguem um ciclo que se repete através das eras, hoje chamado algoritmo. Sendo que é perceptível o potencial dano que pode ser causado quando dimensões fundamentais como as apresentadas são tornadas comuns nesse sentido ambivalente e diferente aqui aventado, seja em relação à terra, cidades, empresas ou indivíduos. Esse dano que enseja a tragédia dos concorrentes comuns é ainda mais acentuado quando percebemos como essas dimensões podem eventualmente ser interconectadas.
Um povo que não compreende que o que é público realmente lhe pertence atribui um valor insignificante a essa propriedade e tem por como se fosse sua obrigação explorá-la. O que resulta em um inconsciente coletivo permeado de um olhar genérico de permissividade, mesmo quando se trata de empresas. Muitos indivíduos acabam enxergando essas entidades como algo que, no fundo, também não pertencem a ninguém em particular, mas sim como algo de valor social comum a todos. Por conseguinte, suscitando a legitimidade para regular, em outras palavras, as padronizar, tornando-as tão uniformes quanto o vasto conjunto habitacional que Brasília aparenta ser quando observada de cima de sua Torre de TV.
Em conclusão, essa homogeneização e a perda de identidade podem acarretar “buracos negros” de ações predatórias no ambiente em que ocorrem, tanto para o patrimônio público quanto para o empreendedorismo. A ausência de um senso de propriedade e responsabilidade pode resultar na degradação de elementos fundamentais que compõem a sociedade, como a capacidade de pensar diferente, primeira baixa quando a igualdade forçada suprime a identidade e a propriedade, além da perda do senso de pertencimento e individualidade que são fundamentais para a preservação e prosperidade do povo brasiliano.
[i] Hardin, G. (1968). The Tragedy of the Commons. Fonte: The Garrett Hardin Society: https://www.garretthardinsociety.org/articles/art_tragedy_of_the_commons.html
[ii] W. F. Lloyd, Two Lectures on the Checks to Population (Oxford Univ. Press, Oxford, England, 1833), reprinted (in part) in Population, Evolution, and Birth Control, G. Hardin. Ed. (Freeman, San Francisco, 1964), p. 37.
[iii] Rodrigues, S. (2020). ‘Brasileiro’, a palavra, já nasceu pegando no pesado . Fonte: Sobre palavras: https://veja.abril.com.br/coluna/sobre-palavras/brasileiro-a-palavra-ja-nasceu-pegando-no-pesado/
[iv] parc. (s.d.). Fonte: PARC History: https://www.parc.com/about-parc/parc-history/