O Mercado Financeiro: Uma Visão Abrangente 

Leandro Oliveira Leite

O ano de 2023 testemunhou uma série de transformações notáveis no cenário financeiro brasileiro, impulsionadas pela evolução tecnológica do próprio mercado e pelas ações regulatórias. Além disso, diversos eventos e estudos apresentados por entidades de destaque, como o Banco Central (BC), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e associações de classe, oferecem uma visão abrangente das mudanças e desafios que moldaram o setor.  

Desde 1º de dezembro de 2023, em uma oportunidade de o país colocar em pauta assuntos que considera prioritários, o Brasil passou a presidir o G20, fórum de cooperação econômica internacional que reúne dezenove das principais economias do mundo, além da União Europeia e alguns convidados eventuais. A presidência do G20 representa uma plataforma única para o Brasil influenciar e contribuir para decisões econômicas globais, refletindo o comprometimento com a sustentabilidade socioambiental e a estabilidade financeira. Nesse ínterim, o BC tem destacado o seu compromisso em sempre estar inovando e manter a inflação controlada para impulsionar o crescimento econômico sustentável e melhorar a qualidade de vida do cidadão. 

O Papel do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) na Evolução Financeira 

Primeiramente, no âmago dessa evolução está o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), uma criação do BC. Esta infraestrutura vital possibilita uma variedade de operações financeiras, desde transações cotidianas, como o Pix, até operações mais complexas, como investimentos e comércio exterior. A reestruturação do SPB, realizada duas décadas atrás, foi revolucionária para o sistema financeiro brasileiro, introduzindo segurança e eficiência às operações, reduzindo riscos sistêmicos e tornando-se um modelo referencial internacional. 

A transferência eletrônica instantânea, notadamente através do Pix, trouxe mudanças perceptíveis para os usuários. Além disso, a reestruturação impulsionou a competitividade no mercado financeiro, reduzindo concentrações no Sistema Financeiro Nacional (SFN) e ampliando a concorrência. Inovações como o Open Finance e Drex refletem a busca contínua por segurança, eficiência e novas possibilidades no mercado financeiro brasileiro. 

Maior número de pessoas bancarizadas 

Durante a pandemia do Covid-19, ampliou-se o número de cidadãos com relacionamento com o SFN, tanto pela concessão de auxílio emergencial quanto pela expansão das instituições financeiras ditas digitais.  

Segundo o BC, após o fim do pagamento do Auxílio, o Brasil viu crescer o número de tomadores de crédito e o percentual de endividados de risco desde o segundo semestre de 2021, principalmente em decorrência do maior comprometimento de renda com dívidas e da maior inadimplência por parte dos brasileiros.  

O BC atualizou os números sobre o endividamento de risco no Brasil, conforme divulgado na nova edição da “Série Cidadania Financeira”. Em março de 2023, o número de tomadores de crédito atingiu 105 milhões de pessoas, um aumento de 20 milhões desde março de 2021.  

Bancarização Aumentada e Desafios Pós-Covid-19 

O período da pandemia de Covid-19 trouxe uma maior bancarização, com mais cidadãos se envolvendo com o SFN, impulsionados tanto pelo Auxílio Emergencial quanto pela ascensão das instituições financeiras digitais. No entanto, após o término do Auxílio, observou-se um aumento no número de tomadores de crédito e no percentual de endividados de risco desde o segundo semestre de 2021, atribuído ao maior comprometimento de renda e à inadimplência. 

De acordo com o BC, em março de 2023, o número de tomadores de crédito atingiu 105 milhões de pessoas, um aumento notável de 20 milhões desde março de 2021. O endividamento de risco, caracterizado por critérios como inadimplência e comprometimento mensal de renda acima de 50%, cresceu, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, entre a população feminina, idosos e pessoas de menor renda. 

A “Série Cidadania Financeira” do BC, iniciada em 2020, é uma parte crucial dos esforços para promover o gerenciamento adequado de recursos financeiros pelos cidadãos, abordando temas como inclusão financeira, educação financeira e proteção do consumidor de serviços financeiros. 

Inovações do Banco Central e Empoderamento Financeiro 

O Banco Central introduziu mudanças significativas, incluindo uma versão unificada do Relatório de Empréstimos e Financiamentos (SCR). Essa atualização simplifica a apresentação de informações, tornando-as mais acessíveis para os cidadãos, e está disponível gratuitamente no site do BC. 

Outra contribuição notável à sociedade é o Sistema de Valores a Receber, permitindo que cidadãos e empresas verifiquem se têm dinheiro esquecido em bancos e instituições fiscalizadas pelo BC. Além disso, o Registrato, parte integrante desse movimento, agora requer acesso exclusivamente por meio da conta gov.br, fortalecendo a segurança das informações pessoais. 

Cade e a Análise Profunda do Mercado Bancário e de Seguros 

No âmbito da concorrência, o Cade lançou a vigésima edição da série “Cadernos do Cade”1, focando no estudo dos mercados de serviços bancários e seguros. Esse estudo, dividido em quatro seções, analisa detalhadamente diversos segmentos, incluindo concessão de crédito, gestão de recursos, câmbio, distribuição de títulos, seguros, entre outros. Reconhecendo a importância econômica desses mercados, o estudo destaca o papel crucial dos bancos e seguradoras para a economia do país, fornecendo condições para investimentos, consumo e poupança. O avanço da economia digital, com o surgimento de fintechs e insurtechs, tem gerado desafios que exigem uma abordagem conjunta das autoridades regulatórias e de defesa da concorrência. 

O ambiente de inovação desafia as autoridades regulatórias e de defesa da concorrência, evidenciando a necessidade de cooperação entre entidades como Banco Central do Brasil e Cade. A série “Cadernos do Cade” tem o objetivo de consolidar, sistematizar e divulgar a jurisprudência do Cade em mercados específicos, contribuindo para o conhecimento técnico e acadêmico em temas relacionados à defesa da concorrência. O estudo também destaca a importância dos seguros e a variedade de serviços prestados por bancos e seguradoras, com foco na concentração nesses setores e nas análises de atos de concentração e condutas anticompetitivas. 

Competição e Inovação na Economia Digital 

A Associação Brasileira de Instituições de Pagamentos (ABIPAG) desempenha um papel ativo na promoção da competição e inovação. O evento “Concorrência no Mercado Financeiro: Desafios da Nova Economia Digital” destaca os esforços do setor para abordar tanto os aspectos regulatórios quanto os concorrenciais. Medidas governamentais, notadamente do BCB e Cade, ao encerrar relações de exclusividade, abriu espaço para a entrada de novos participantes, fomentando a competição, incentivaram o setor de meios eletrônicos de pagamento, proporcionando maior diversidade de modelos de negócios e atendendo às necessidades dos usuários finais. 

Presidência do G20 e Compromissos Globais 

Por fim, é importante destaca que o Brasil organizará mais de cem reuniões e conferências que culminarão na 19ª Cúpula em novembro de 2024. A Trilha de Finanças, liderada pelo BC, desempenhará um papel crucial, abordando temas macroeconômicos estratégicos em colaboração com o Ministério da Fazenda. O G20 está organizado em duas trilhas, a de financeira2 e a de Sherpas3, cada uma com grupos técnicos temáticos. 

Durante as reuniões do G20, o BC abordará também questões de inovação e avanços nos sistemas de pagamentos rápidos, mas o principal papel do Brasil no G20, desde sua participação em 2008 e, nos planos do Banco Central para 2024, estará focando na luta contra a pobreza e desigualdade como centrais para a estabilidade financeira.  

Assim, a parceria entre o Ministério da Fazenda e o BC no G20 visa melhorar a coordenação entre as trilhas financeira e de Sherpas. O compromisso com a sustentabilidade socioambiental é destacado, com o BC sendo reconhecido por implementar medidas alinhadas à agenda global de sustentabilidade. 

A agenda do BC no G20 terá oportunidade de abordar os impactos das inovações digitais no sistema financeiro, priorizando discussões sobre a tokenização de ativos, solução de finanças descentralizada (DeFi) e Inteligência Artificial (IA). Segundo o BC, será destacada a importância de compreender tanto os benefícios quanto os riscos das inovações digitais. 

Perspectivas e Desafios Futuros 

A evolução notável do mercado financeiro brasileiro em 2023 reflete não apenas avanços tecnológicos, mas também uma adaptação a um ambiente dinâmico e competitivo. A convergência contínua de tecnologias, como Pix, Drex e Open Finance, continuará a moldar o setor, posicionando o Brasil na vanguarda dos sistemas de pagamento. No entanto, desafios persistem, especialmente na gestão das complexidades da economia digital e na garantia de uma concorrência saudável para o benefício dos consumidores. 

O diálogo contínuo entre entidades reguladoras, instituições financeiras e outros stakeholders será crucial para enfrentar esses desafios e promover uma evolução positiva e sustentável no mercado financeiro brasileiro. A cooperação entre o Banco Central do Brasil, Cade e outros órgãos demonstra a importância da abordagem conjunta para garantir a estabilidade e a inovação nesse setor vital para a economia nacional. 

Os desafios da precificação de terapias avançadas no Brasil

Andrey Vilas Boas de Freitas

A indústria farmacêutica enfrenta um desafio complexo ao precificar terapias avançadas. A busca pela inovação e o desenvolvimento de tratamentos de ponta demandam altos investimentos em pesquisa, ensaios clínicos e produção, custos muito significativos que são considerados ao determinar o preço final do produto.

Além disso, a indústria busca refletir o valor terapêutico inovador das terapias avançadas ao estabelecer preços. Isso inclui considerações sobre as evidências de eficácia e os benefícios clínicos dessas terapias, bem como a segurança e o impacto que a terapia tem na qualidade de vida do paciente.

Nas estratégias de precificação, a indústria ainda leva em conta as políticas de reembolso e as barreiras de acesso ao mercado. Preços excessivamente altos podem limitar o acesso dos pacientes, enquanto preços muito baixos podem afetar a sustentabilidade financeira da empresa. Nesse sentido, o desenvolvimento de modelos alternativos de pagamento, como acordos de pagamento por desempenho ou modelos de pagamento baseados em resultados, além de parcerias com sistemas de saúde, tem sido uma estratégia para garantir o acesso e a viabilidade financeira.

Vale dizer que é preciso ainda considerar, nesse cálculo, questões éticas e sociais, especialmente porque o desenvolvimento de terapias avançadas tem estado associado a condições graves ou raras. Nesse aspecto, a forma como a terapia é comercializada e comunicada ao público, aos médicos e aos pagadores de saúde desempenha um papel na percepção do valor do produto, o que pode impactar as estratégias de precificação.

Por fim, à medida que a disseminação de terapias avançadas torna esse tipo de produto o “novo normal”, é fundamental considerar a concorrência nesse mercado como um fator decisivo na precificação. Quanto maior a quantidade de alternativas para tratamento de questões diversas por meio de terapias avançadas, maior a pressão para redução de preços desses produtos.

Por outro lado, as operadoras de planos de saúde se deparam com a necessidade de equilibrar a acessibilidade aos tratamentos com a sustentabilidade financeira do plano. Em um ambiente no qual as terapias avançadas frequentemente apresentam preços elevados, as operadoras buscam negociar valores mais baixos para garantir que esses tratamentos sejam acessíveis aos beneficiários do plano. O debate se foca não apenas na eficácia clínica, mas também na relação custo-benefício dessas terapias para a saúde financeira de longo prazo do plano.

Essa perspectiva decorre do fato de que as operadoras de planos de saúde estão preocupadas com a sustentabilidade financeira a longo prazo. Elas buscam controlar os custos médicos para garantir que os prêmios sejam acessíveis e não se tornem proibitivos para os participantes dos planos. Nesse sentido, para cobrir determinada terapia, as operadoras de planos de saúde buscam evidências robustas de eficácia e custo-efetividade. Elas avaliam se os benefícios clínicos justificam os custos associados à terapia.

Com base nessa análise, as operadoras consideram como a terapia trará valor tangível para os participantes dos planos. Isso inclui avaliar se a terapia resolverá condições significativas, reduzirá a necessidade de tratamentos futuros e melhorará a qualidade de vida. Elas também avaliam o impacto financeiro da inclusão de uma terapia no pool de riscos do plano de saúde. Uma terapia muito cara pode afetar a distribuição dos custos entre os membros do plano.[1]

Nessa perspectiva, os altos valores atribuídos às terapias avançadas já autorizadas a serem comercializadas no Brasil serviram como incentivo ao debate sobre a necessidade de buscar acordos de compartilhamento de riscos entre as operadoras de planos de saúde e as empresas farmacêuticas, nos quais o custo da terapia está vinculado ao desempenho e aos resultados dos pacientes.

Os conflitos entre as perspectivas da indústria farmacêutica e das operadoras de planos de saúde surgem de suas prioridades e objetivos distintos. Enquanto a indústria enfatiza a inovação, os custos de pesquisa e a justificativa do valor com base em benefícios clínicos, as operadoras focam na acessibilidade, na eficácia comprovada e no controle de custos.

Esses pontos de conflito incluem a divergência entre custos elevados e acessibilidade, o debate sobre evidências de eficácia versus critérios de cobertura, além da negociação de preços. Enquanto a indústria busca lucratividade e aceitação no mercado, as operadoras buscam limitar custos médicos e proteger seus beneficiários contra encargos financeiros excessivos. A busca por um terreno comum entre essas perspectivas muitas vezes representa um desafio, requerendo um equilíbrio delicado entre inovação, acessibilidade e sustentabilidade financeira.

Esse embate precisa ser mediado pelos reguladores. O regramento atual de precificação de medicamentos no Brasil grita por atualização. Esse debate precisa avançar rapidamente, não apenas para estabelecer parâmetros efetivos de precificação de terapias avançadas, mas também para permitir nova racionalidade para todo o mercado de medicamentos.

Aliado a essas mudanças, é urgente rever critérios para que a incorporação das terapias avançadas no sistema de saúde suplementar no Brasil ocorra dentro de condições que viabilizem o acesso, preservem a estabilidade econômico-financeira das operadoras e garantam a segurança dos beneficiários. Parece ser o catalisador ideal para um debate de aprimoramento das interfaces entre os sistemas público e privado, seja para a coleta de informações sobre desfechos (essencial para assegurar a eficácia dos tratamentos), seja para a negociação das condições de pagamento pelos tratamentos, que podem ser mais benéficas para os dois sistemas se forem consideradas conjuntamente as populações por eles atendidas.

Do lado da indústria farmacêutica, a regulação deve ser incentivadora de inovação, protetora de direitos de patente, promotora da concorrência e fiscalizadora de boas práticas. É preciso eliminar, definitivamente, o viés que faz a regulação nacional tratar com desconfiança o setor produtivo.


[1] Vale dizer que no Brasil, diferentemente do que ocorre em outros países, as operadoras estão submetidas a uma regulamentação que as obriga a oferecer cobertura a tratamentos incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde, conforme normatizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o que diminui consideravelmente seu poder de negociação frente à indústria farmacêutica. Também é preciso considerar, no caso brasileiro, os parâmetros de precificação definidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), colegiado responsável pelo estabelecimento dos preços-teto de comercialização de medicamentos no Brasil, o que inclui a precificação de terapias avançadas.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996.


A gradativa consolidação de uma Corte Digital no STJ – Parte II

Gabriela Pimenta R. Lima

No artigo anterior tratei brevemente sobre a evolução do Plenário Virtual (PV) do STF, que desde a sua criação, em 2007, passou por dois momentos marcantes de crescimento, o primeiro com a Emenda Regimental 51/2016, que incluiu os agravos internos e os embargos de declaração nas competências do PV, e o segundo com a Emenda Regimental 53/2020, que na época da pandemia causada pelo Covid-19, ampliou ainda mais a competência do PV, permitindo que todos os processos de competência da Corte fossem submetidos a julgamento em listas, no ambiente presencial ou no eletrônico, equiparando o plenário virtual ao físico.

Também falei sobre a importância que o PV adquiriu no modelo decisório do STF nos últimos 16 anos, mostrando-se como mecanismo importante e necessário para a redução do acervo de processos, que hoje ultrapassa 24 mil processos, contra 129.623, em 2007, segundo dados do programa “Corte Aberta”[1] do STF.

Em que pese os avançado do PV, abordei algumas críticas feitas a nova sistemática, principalmente, no tocante às violações ao devido processo legal, ao contraditório e ao direito de defesa, bem como do art. 7º, X, XI e XII, do Estatuto da OAB, que prevê garantias quanto ao uso da palavra, indispensável ao exercício do direito de defesa.

No artigo de hoje, vamos tratar dos julgamentos virtuais no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, previsto pela ER 27/2016 que incluiu dispositivos no Regimento Interno para disciplinar o julgamento virtual de embargos de declaração, agravos internos e agravos regimentais.

À época, o STJ não possuía amparo tecnológico para julgar em ambiente virtual os processos com sustentação oral, razão pela qual o então presidente, ministro Humberto Martins, resolveu que, transitoriamente, os pedidos de sustentação em agravos implicariam a retirada da pauta virtual dos respectivos processos.

Posteriormente, em 2020, com a decretação da pandemia, o STJ editou a Resolução STJ/GP n. 9/2020 para disciplinar a realização das sessões presenciais da Corte Especial, das Seções e das Turmas, ordinárias e extraordinárias por videoconferência. E com a ER 41/2022, o STJ, dessa vez com amparo tecnológico, permitiu que as sustentações orais fossem encaminhadas por meio eletrônico, após a publicação da pauta e em até 48 horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual.

Decretado o fim da pandemia, em maio de 2023, o STJ, assim como todos os tribunais do país, continuou realizando alguns julgamentos de forma virtual, principalmente, em razão da celeridade que essa modalidade de julgamento possibilita.

Entre 1º de janeiro e 28 de junho de 2023, foram julgados 221.185 processos (306.213 se considerar o julgamento dos agravos internos, agravos regimentais e embargos de declaração) e no âmbito da Presidência do STJ foram proferidas 109.228 decisões e despachos entre os meses de janeiro e junho de 2023[2].

Em 30 de junho de 2023, durante a sessão da Corte Especial que marcou o encerramento do semestre forense, a atual Presidente da Corte Superior, ministra Maria Thereza de Assis Moura, mostra-se preocupada com a crescente demanda processual. Ela comentou que o STJ, nos últimos anos, vem investindo na ampliação de sua capacidade produtiva, “por meio de iniciativas que visaram adequar recursos humanos e financeiros, modernizar estruturas e incrementar sobremaneira o uso da tecnologia para racionalizar e agilizar diversas etapas do processo de julgamento”[3] [3].

A tecnologia aplicada aos julgamentos virtuais se mostra como uma forma eficaz de ajudar o Tribunal a diminuir seu acervo, no entanto, alguns pontos precisam ser revistos.

Os relatórios e votos não são disponibilizados no início do julgamento às partes, nem a seus advogados, o que obviamente afeta o exercício do direito da ampla defesa e do contraditório, ante a impossibilidade de esclarecimentos de fatos ou do levantamento de questões de ordem, que são prerrogativas legais de todo e qualquer julgamento presencial/videoconferência ou virtual. Diferentemente do que ocorre no STF, que disponibiliza o relatório e o voto assim que o julgamento virtual é iniciado, na aba “sessão virtual” do andamento do processo. Extraoficialmente, ministros do STJ comentaram que futuramente o sistema vai permitir o acompanhamento em tempo real de todos os julgamentos.

É imprescindível que a sistemática seja aperfeiçoada para que se cumpra a exigência de que as partes tenham conhecimento de forma clara e expressa do posicionamento de cada membro do colegiado, sob pena de violação ao art. 93, IX, da CF, que estabelece a obrigatoriedade da publicidade e fundamentação de todas as decisões, sob pena de nulidade, ressaltando-se que a limitação da presença dos advogados nas sessões de julgamento deve ser feita mediante lei, e não por meio de regimento interno.

Essa situação viola o princípio da colegialidade e o princípio da transparência, pois nos julgamentos virtuais do STJ, não é possível saber se houve debate entre os Ministros e nem como cada Ministro votou. Concluído o julgamento, o resultado é lançado no andamento processual e as partes e advogados apenas têm acesso à decisão quando da publicação do acórdão. Nesse ponto, o STF adota uma sistemática mais transparente, pois além de disponibilizar o relatório e o voto do relator quando iniciado o julgamento virtual, os votos dos demais Ministros também são disponibilizados na aba “sessão virtual” do andamento do processo.

Também há o problema das sustentações orais gravadas. Apesar de a Corte possibilitar o envio da gravação para ser juntada ao sistema, não é possível apresentar eventuais esclarecimentos fático-jurídicos, que podem ser essenciais ao deslinde do caso, e as partes não sabem se o vídeo de fato foi assistido pelos julgadores. No STF ocorre o mesmo problema, não é possível confirmar se os Ministros assistiram a sustentação, mas, ao menos os vídeos das sustentações também são disponibilizados na aba “sessão virtual” do andamento do processo. Então, a simples previsão do art. 184-B, §1º, do RISTJ, que permite o envio da gravação da sustentação, não garante o mais importante, que os julgadores assistam e que haja um diálogo entre julgadores e advogados.

O uso da palavra constitui a principal prerrogativa da advocacia desde a sua origem, tornando-se o advogado indispensável à administração da justiça, conforme previsão do art. 133 da CF. As garantias de (i) “usar da palavra, pela ordem, em qualquer tribunal, judicial ou administrativo, órgão de deliberação coletiva da administração pública ou comissão parlamentar de inquérito, mediante intervenção pontual e sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam na decisão”; (ii) “reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento”; e (iii) “falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder Legislativo”, expressamente estabelecidas pelo Estatuto da OAB (artigo 7º, X, XI e XII), significam não apenas prerrogativas profissionais, mas são indispensáveis ao exercício do direito de defesa, como bem pontua Aury Lopes Jr.[4].

Vale ressaltar que o próprio RISTJ, em seu art. 184-D, II, garantia de oposição ao julgamento virtual, prevendo que “as partes, por meio de advogado devidamente constituído, bem como o Ministério Público e os defensores públicos poderão apresentar memoriais e, de forma fundamentada, manifestar oposição ao julgamento virtual ou solicitar sustentação oral, observado o disposto no art. 159″, no entanto, tal dispositivo foi revogado pela ER 41/2022, que regulamentou as sustentações orais em agravo interno/regimental.

A sistemática do julgamento virtual está em sintonia com os tempos atuais, e deve sim ser utilizada, o problema, porém, é a forma como o julgamento virtual vem sendo realizado pelo STJ. A advocacia espera que em breve o Tribunal da Cidadania possa aprimorar o formato de seus julgamentos virtuais para que o STJ também se desenvolva como uma “Corte Digital”.


[1] O programa Corte Aberta, instituído pela Resolução 774/2022, foi idealizado para tornar o STF cada vez mais transparente e próximo da sociedade. O objetivo da iniciativa é garantir que os dados da Corte sejam disponibilizados a todos os cidadãos de maneira mais acessível, precisa, confiável e íntegra – observando-se os pilares da proteção de dados pessoais e da segurança cibernética. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Corte Aberta [recurso eletrônico] / Supremo Tribunal Federal. Brasília: STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/hotsites/corteaberta/. Acesso em: 01 nov. 2023.

[2] STJ encerra primeiro semestre de 2023 com mais de 306 mil julgamentos. Superior Tribunal de Justiça, 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas /Comunicacao/Noticias/2023/30062023-STJ-encerra-primeiro-semestre-de-2023-com-mais-de-306-mil-julgamentos.aspx. Acesso em: 05 nov. 2023.

[3] STJ encerra primeiro semestre de 2023 com mais de 306 mil julgamentos. Superior Tribunal de Justiça, 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas /Comunicacao/Noticias/2023/30062023-STJ-encerra-primeiro-semestre-de-2023-com-mais-de-306-mil-julgamentos.aspx. Acesso em: 05 nov. 2023.

[4] LOPES Jr, Aury. RITTER, Ruiz. O silêncio da advocacia nos tribunais só aumenta a injustiça. CONJUR, 2023. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2023-fev-24/limite-penal-silencio-advocacia-tribunais-aumenta-injustica/. Acesso em: 05 nov. 2023. Acesso em: 05 nov. 2023.


Gabriela Pimenta R. Lima. Advogada desde 2012, graduada pelo UniCEUB. Especialista em Direito Tributário pelo IBET (2014) e Pós graduada em Direito Tributário pelo IDP (2014), matéria na qual se especializou e atuou por quase 10 anos. Desde sua formação também atua no STF e no STJ. Em 2021, concluiu o Mestrado em Direito Constitucional pelo IDP, e na mesma época passou a se dedicar exclusivamente a processos em trâmite perante as Cortes Superiores. Está concluindo LLM de recursos nos Tribunais Superiores pelo IDP. É membro da Associação Brasiliense de Processo Civil (ABPC) e da Comissão de Tribunais Superiores da OAB/DF.


Deveríamos repensar na definição de humano?

Pedro Zanotta & Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Em nossa sociedade as pessoas e objetos são conhecidos por seus nomes, características e adjetivos a eles relacionados. Cada coisa, expressão ou palavra tem o seu ou os seus significados, e tendemos a conviver com muitos deles sem, ao menos, refletir sobre eles ou questioná-los.

Dentro deste contexto, após algumas pesquisas corriqueiras, chamou-nos a atenção um dos significados dado à palavra “humano”. De acordo com o Dicionário Online de Português[1], “humano” significa “[Q] que é piedoso, indulgente, compreensivo; bondoso, caridoso: mostrou-se humano diante das dificuldades alheias”. Como sinônimo de “humano”, o dicionário traz, ainda, as palavras generoso, benevolente e benigno e como antônimos as palavras desumano, bárbaro, cruel, desalmado, desapiedado, inumano, atroz, duro e brutal. Já o conhecido Dicionário Michaelis traz como um dos significados de “humano” “[Q] que denota compaixão (…)”[2].

Ler as definições descritas acima, assim como outras semelhantes trazidas por dicionários importantes[3], nos fez refletir não apenas sobre os episódios recorrentes, que ocupam as páginas dos jornais e meios de comunicação do mundo inteiro, mas também sobre aqueles que tanto se falou e que nada mais se tem a dizer, ou porque normalizados ou porque desgastadas estão todas as tentativas de solucioná-los. Ressalte-se que não se está aqui a questionar qualquer religião, gênero, raça, orientação sexual, nada disso, mas, sim, a convidar os leitores a uma reflexão sobre os conceitos aceitos pela sociedade sem qualquer questionamento.

Os jornais e os meios de comunicação reportam, repostam, comentam, reiteradamente, notícias retratando violência e guerras. A violência reiterada e desmedida contra pessoas idosas, pretos, mulheres, crianças, comunidade LGBTQIAPN+, violência esta que não tem classe social. Veicula-se, também, a violência decorrente da corrupção, que tira da criança e dos menos privilegiados o prato de comida ou o acesso à educação. Fala-se, sem trégua, das atrocidades trazidas pelas guerras, que destroem famílias e mutilam pessoas.

Não é novidade de que nestas guerras, tem-se o abuso de crianças e mulheres, o desrespeito pela vida e pelos direitos humanos, o uso de força brutal, com invasões e bombardeios de cidades e vilarejos inteiros, tirando da população, vítima de governos desumanos, o mínimo necessário à sobrevivência e à dignidade que lhe sobrou. Há quem aplauda todas essas condutas, há quem apoie cegamente a postura desses governantes, em nome de um território, de dinheiro, de poder, ou, ainda, pelas mais impensáveis razões. É o humano matando o humano, apoiando a matança, a corrupção, os preconceitos, a violência.

Em uma sociedade marcada pela presença de pessoas ávidas por dinheiro e poder, e pelo machismo estrutural, pelo racismo e outros preconceitos, que são conceitos e problemas frutos de condutas humanas, sem que tenhamos uma resposta social suficientemente rápida para os devidos enfrentamentos, temos a ideia de que a impunidade, ao final, é o que prevalece.

O “humano”, então, que é definido como um ser do qual se denota compaixão, piedade, indulgência, compreensão, bondade, caridade, reveste-se justamente dos antônimos desta definição, pois veste facilmente a roupagem do bárbaro, do cruel, do desalmado, do desapiedado, do inumano, do atrozdurobrutal, porque já não se importa mais com aquele que, ao seu ver, não teria o direito de pensar ou agir diferente. Porque, ao seu ver, a partir do momento em que o seu semelhante não pensa como ele, não possui a mesma opinião ou não segue a mesma religião ou, ainda, por não ter a mesma cor da pele ou orientação sexual, sua vida e existência deixam de ter valor, dando, então, margem aos mais absurdos e cruéis abusos, baseados em justificativas absolutamente infundadas e descabidas.

Levando-se em consideração este cenário, visto e vivenciado reiteradamente por todo o mundo, cumpre-nos questionar se, de fato, estariam corretas essas definições de “humano”, absorvidas culturalmente. É certo que todo humano pode ser bom, benigno, benevolente, mas que nem todo humano, de fato, o é, e o mesmo pode ser afirmado com relação a todos os outros sinônimos acima destacados. Neste caso, não seria, então, mais prudente afirmarmos serem, essas definições e sinônimos, adjetivos que podem ser atribuídos aos humanos, e não características a eles inerentes?

A vida muda, é dinâmica, assim como a sociedade, e as leis acompanham essas mudanças, de modo a suprir as necessidades sociais. Talvez fosse o caso de revisarmos esses antigos conceitos, aceitos como verdadeiros, mas que, atualmente, não mais refletem a realidade na qual vivemos. Infelizmente!


[1] https://www.dicio.com.br/humano/ Acesso em 07.12.2023.

[2] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/humano/ Acesso em 07.12.2023.

[3] Dicionário Oxford: human – kind behaviour, considered to be natural to humans (humano – comportamento gentil, considerado natural para os humanos – tradução livre. (https://www.oxfordlearnersdictionaries.com/us/definition/english/human_1?q=human Acesso em 07.12.2023).

Dicionário Real Academia Española: humano – comprensivo, sensible a los infortunios ajenos (humano – compreensivo, sensível aos infortúnios alheios – tradução livre). Sinônimos: humanitario, solidário, caritativo, compassivo, bienhechor, filantrópico, altruista (humanitário, solidário, caridoso, compassivo, benfeitor, filantrópico, altruísta – tradução livre). Antônimo: cruel. (https://dle.rae.es/humano?m=form&m=form&wq=humano Acesso em 07.12.2023).


Pedro S. C. Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Don’t Cry For Me, Argentina!

Adriana da Costa Fernandes

Frase icônica de uma das mulheres mais fantásticas da história mundial, María Eva Duarte de Perón ou, simplesmente, Evita Perón (Los Toldos, 7 de Maio de 1919 — Buenos Aires, 26 de Julho de 1952). Política, ativista, atriz, filantropa Argentina e Primeira-dama desde junho de 1946 até sua morte, em julho de 1952, enquanto esposa do, então, Presidente Juan Domingo Perón.

Amada, querida por sua gente, inesquecível e nobre, Evita deixou um forte legado, apesar do momento nada fácil nacional, de um governo marcado por sua política tida como populista e autoritária.

Atualmente, em tempos em que se discute mundialmente a participação feminina, após décadas de ostracismo, silêncio proposital, maus tratos e, para ser singela, absurdas grosserias patriarcais, foi que têm sido erguidas importantes ideais Constitucionalistas Feministas, enraizados, em primeiro plano, por mulheres altamente potentes proeminentes do Canadá. E lançados ao vento com o sabor suave, mas marcante do Maple, por meio de suas folhas aos demais Continentes,  fazendo ecoar seus sons e vozes em Tribunais Superiores, Universidades, ONGs e no Academicismo, e elevando a urgência do surgimento do legado desta atual geração que pensa e muito realiza.

Abordando um de meus temas favoritos no Direito, a Hermenêutica Constitucional, uma destas lideranças especiais feministas, a Professora Doutora Daphne Barak-Erez, Professora de Direito da Universidade de Tel-Aviv e laureada com diversos prêmios de excelência, inclusive, na área de Direitos Humanos, inicia seu artigo “Her-meneutics – Feminism and Interpretation[i] de forma brilhante, abordando os estereótipos e abordagens discriminatórias que, ao longo do tempo, deixaram marcas legais e constitucionais no sistema. Ela ressalta a importância da interpretação feminista como ferramenta efetiva interpretativa a ser ambiciosamente apresentada e oferecida de forma a atingir uma nova perspectiva de conhecimento humano, até mesmo, ao certo, na esfera legal.

No artigo, a Professora cita, ainda, casos emblemáticos da história da Suprema Corte Americana, abordando a questão da proteção igualitária, ao mencionar o caso de Mira Bradwell, cujo acesso foi negado à Illinois Bar[ii] e sobre a contribuição da interpretação igualitária da transformação das normas jurídicas existentes, ao citar o caso das Irmãs Tzlofhad no The Biblical Book Numbers sobre direitos de herança negados porque o pai não possuía um herdeiro masculino. O caso, então, foi acatado e as regras Bíblicas foram alteradas.[iii]

Do ponto alto do texto, e do relevante ao debate, é o esclarecimento acerca das muitas faces do próprio feminismo, afinal, assim é relativamente às muitas faces da vida. Assim, portanto, das muitas teorias e direções, a Professora menciona 4 (quatro): (i) Feminismo e Interpretação Liberal; (ii) Feminismo e Interpretação Cultural; (iii) Feminismo e Interpretação Radical; (iv) Feminismo e Interpretação proveniente da Diversidade.

E ainda que não se pretenda aqui especificar e debater cada uma das teorias referidas, o essencial é, inconteste, a demonstração quanto a singularidade de visões e sobre a diversidade de pensamentos a serem atingidos, bem como do quanto uma gama de Pensadoras, muito bem formadas e preparadas, pode contribuir firme e abertamente para a contemporaneidade jurídica e social.

A questão central posta, de fato, é a dita “THE WOMAN QUESTION” e a interpretação feminina, um método legal de Katherine Bartlett[iv], baseado em jurisprudência feminista geral e que avalia os impactos de regras e princípios sobre a mulher. Do que se fala, portanto, é do que defendo, de efetividade decisional e de uma das formas de atingi-la.

A Professora conclui o artigo mencionando o quanto, apenas acerca de critérios hermenêuticos, a interpretação deve ser uma base importante do sistema legal, isto sob a ótica feminista igualitária e, ao certo, em esfera constitucional. Note-se, quiçá tendo sido mencionados aspectos negociais, políticos e estratégicos no escrito.

Isto por entender que resta demostrado o potencial interpretativo das diferentes perspectivas e orientações, bem como evitado o tratamento desproporcional sobre a mulher, o que, ainda se verifica fortemente, mesmo em Países ditos democráticos.

Prova disto, indo além dos recentes movimentos nacionais conhecidos, e em contramão a toda esta conscientização e movimento que cresce e toma corpo de forma global, contando, inclusive, com a participação de relevantes e respeitáveis vozes masculinas dotada de sensibilidade para compreender o quanto a presença feminina é fundamental para o equilíbrio do mundo contemporâneo, seja por nossas qualidades, capacidades inquestionáveis, habilitação multitarefas natural, seja por diversos pontos que os estudiosos das ciências cognitivas e comportamentais, como a psicologia, a antropologia e a sociologia já estudaram, com preocupação e alguma tristeza, o mundo assiste, um tanto atônito, a Argentina seguir noutra direção, em vários pontos e propósitos.

Evita se estivesse viva e lúcida, velhinha (com 104 anos), provavelmente estaria corroída e entristecida com a Nação que tanto acalentou seguindo rumo a uma experiência desastrosa recentemente vivenciada e já conhecida por outros Países.

A começar por uma Primeira-dama alijada e que em verdade não será ou nada será, posta de lado em prol da irmã. Quando no momento da posse, um posto de referência e zelo virou instantaneamente Cargo Político e sinal de dependência emocional. Bem como, onde a ética e a razão foram esquecidas propositalmente, em negacionismo claro ao princípio do não nepotismo.

O que mais virá?

Esoterismo, misticismo, falar com cachorros, jogos de palco para agradar ao eleitorado. Cenários, roteiros, palavrões, choques e scripts populistas similares ao que o Brasil já viu, vivenciou e conhece exatamente o resultado.

Dados econômicos insuficientes alardeados e atores de histórico pregresso questionável.

Um cenário econômico regional que aparentemente ia bem, sob uma liderança Brasileira aparentemente forte internacionalmente e que agora tende a enfrentar dois complexos antagonistas, os quais sabe se lá que cenas e galhofas empreenderão juntos em cenário negocial continental.

Ainda bem que são Países que não dividem fronteira. Um alento ao menos.

Aguardemos cenas dos próximos capítulos relativamente à diplomacia regional e internacional.

A saber como os mais distantes reagirão.

Disto tudo, a única questão a ressaltar é que mesmo que a Argentina tenha seguido, a priori, numa suposta contramaré feminista acerca de sua Primeira-dama, o simulacro provavelmente significa uma jogada de forças interna muito pensada, pois a figura-irmã que seguirá firme ao lado da Presidência, já demonstrou, na história pregressa, uma forte influência.

Questionar vale a pena: o que pensa, como, de que forma se posiciona esta persona?

Ponderar é preciso: em momento de mulheres fortes em diversos espaços de Poder internacionalmente, existe outra mulher nas Nações  Latinas apta a contrapor seus pensamentos e forma de diálogo?

Ela estará presente nas reuniões. E as demais? Fazem figura à sua presença?

Ode à nossa Primeira-dama, mas o fato é que a estratégia sobre nossa Intelectual será intensiva. Portanto, qual será a contraposição brasileira adotada face este movimento no tabuleiro regional?

Pensar é essencial: o mundo B.A.N.I., altamente frágil, ansioso, não linear e incompreensível aparentemente vem se mostrando cada vez mais firmado sob placas tectônicas, portanto, nenhum movimento é mais isolado, mas, de fato, exigindo profunda análise técnica, econômica, política, tática, social, em limites locais, regionais e continentais.

Trata-se da rede matricial, multinível das ciências e das relações contemporâneas interfaceadas e contrapostas constantemente.

Assim, nos cumpre acompanhar de perto o que se passa logo ali perto na vizinha Hermanita e torcer para, ao contrário do que se passou por aqui em terras canarinhas, avaliar e auxiliar para que os alfajores não estraguem tanto quanto aconteceu com os brigadeiros daqui.

E rezar, para que o Deus de lá seja diferente, mais sábio, mais sensato, mais lúcido do que o de cá.

Saludos.


[i] BARAK-EREZ, Daphne; Her-meneutics  Feminism and Interpretation; Feminist Constitutionalism, Global Perspectives; Cambridge University Press; 2012; Página 85; tradução de texto livre pela autora do presente artigo;

[ii] Bradwell v. Illinois, 83 U.S. 130 (1873);

[iii] Book of Numbers 27:1-11;

[iv] Katherine T. Bartlett, Feminist Legal Methods, 103, Harv. L. Rev. 829, 837-49 (1990), inspirada em Jurisprudência Feminista e baseada em Berkeley, Womem’s L. J. 64 (1985) e Simone de Beauvoir, o Segundo Sexo (1949).


Adriana da Costa Fernandes. Advogada com atuação em 3 eixos: Direito Público; Infraestrutura e Tecnologia (em especial Telecom, TI, Digital, Energia Elétrica e Ferrovias) e Cível Estratégico (foco em Consumidor e Contratos). Mestranda em Direito Constitucional pela UNINTER PR sob a tutela da Profa. Dra. Estefânia Barboza e com tese sobre PRAGMATISMO CONSTISTUCIONAL HUMANISTA na Era Digital, unindo Direito Constitucional, Digital, Filosofia e Ciência Política. Pesquisadora vinculada ao NEC CEUB DF sob a mentoria da Profa. Dra. Christine Peter da Silva e ao IDP – Observatório Constitucional do Professor André Rufino do Vale. Aluna da Escola de Magistratura do Distrito Federal – ESMA DF. Pós-graduada (MBA) em Marketing pela FGV RJ, especializada em Relações Governamentais e Institucionais (RELGOV) pela CNI / Instituto Euvaldo Lodi (IEL), com Extensão em Energia Elétrica pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e detentora de diversas titulações em instituições de renome Nacional e Internacional. Consultora e Parecerista. Com experiência em empresas renomadas, de portes expressivos e atuação em mercados relevantes e agências governamentais. Atualmente com escritório próprio e atuação voltada para Tribunais Superiores, Tribunal de Contas da União e CARF.


Inteligência Regulatória: Adaptação, Evolução e Eficiência na Regulação

Andrey Vilas Boas de Freitas

Em um mundo dinâmico e complexo, a regulação eficaz não pode mais se basear apenas em estruturas estáticas. A evolução constante da sociedade, das tecnologias e das relações econômicas exige uma abordagem mais flexível e adaptativa. Surge, então, o conceito de Inteligência Regulatória, que representa a capacidade dos órgãos reguladores de se transformar e evoluir, utilizando informações diversas para se ajustar às necessidades emergentes da realidade.

A base desse conceito está na compreensão de que os sistemas regulatórios não devem tentar impor um modelo pré-concebido à realidade, mas sim se adaptar e responder às demandas e mudanças observadas. Isso significa uma mudança de paradigma: em vez de moldar a realidade a formatos regulatórios fixos, a inteligência regulatória busca entender e se integrar à realidade em constante mutação.

Um dos pilares da inteligência regulatória é a coleta e processamento contínuo de informações provenientes de diversas fontes. Os órgãos reguladores, ao terem acesso a uma ampla gama de dados – desde indicadores econômicos e sociais até avanços tecnológicos e descobertas científicas -, podem adquirir uma visão abrangente e precisa do panorama em constante mudança no ambiente regulado. Essa inteligência é essencial para a tomada de decisões informadas e eficazes.

Os dados econômicos oferecem uma visão detalhada das dinâmicas do mercado, permitindo aos reguladores entenderem melhor os fluxos financeiros, as tendências de investimento e as pressões econômicas que impactam os diferentes setores. Com essas informações, é possível antecipar possíveis impactos de políticas regulatórias e ajustar estratégias para promover um ambiente econômico mais estável e competitivo.

Da mesma forma, dados sociais fornecem insights vitais sobre as necessidades e demandas da sociedade. Compreender questões demográficas, padrões de consumo, desigualdades e preocupações públicas é essencial para a construção de políticas regulatórias mais alinhadas com os interesses e bem-estar dos cidadãos.

Já os dados tecnológicos permitem acompanhar o ritmo acelerado das inovações. Ao estarem cientes das novas tecnologias emergentes e das mudanças nos modelos de negócios, os reguladores podem adaptar suas diretrizes para estimular a inovação responsável e garantir a segurança e eficácia dessas novas tecnologias.

Por fim, os dados científicos representam um pilar crucial para a tomada de decisões informadas. Informações provenientes de estudos e pesquisas científicas ajudam a avaliar riscos, identificar melhores práticas, compreender os impactos ambientais e de saúde, bem como a promover regulamentações baseadas em evidências.

Essa abordagem baseada em dados permite que os órgãos reguladores avaliem mais precisamente as tendências e os desafios emergentes, antecipem possíveis impactos das políticas regulatórias e, assim, tomem decisões mais informadas e eficazes. A inteligência regulatória, sustentada por análises precisas e atualizadas, não apenas promove a eficiência, mas também reforça a confiança dos cidadãos e dos agentes econômicos no sistema regulatório. É um passo crucial em direção a um ambiente regulatório mais responsivo, inovador e orientado para o bem comum.

Outro aspecto fundamental é a flexibilidade e adaptabilidade das políticas e normas regulatórias. Reconhecer que as condições e as necessidades do ambiente regulado estão em constante evolução é o cerne dessa abordagem. A inteligência regulatória compreende que políticas estáticas podem se tornar rapidamente obsoletas diante de mudanças repentinas e, portanto, defende uma abordagem dinâmica e receptiva.

A capacidade de ajustar e revisar as políticas conforme novas informações surgem é um dos pontos fundamentais. Isso implica não apenas receber dados, mas também utilizá-los de forma ágil na revisão das normas, permitindo que sejam atualizadas de acordo com as necessidades emergentes. Seja diante de avanços tecnológicos, mudanças de comportamento do mercado, descobertas científicas ou eventos inesperados, a agilidade na resposta regulatória é essencial.

Essa flexibilidade não significa apenas adaptar-se às mudanças, mas também antecipar-se a elas. Ao prever possíveis cenários futuros e analisar tendências emergentes, os órgãos reguladores podem tomar medidas proativas. Isso não apenas previne a desatualização das políticas regulatórias, mas também possibilita a criação de um ambiente mais propício à inovação e ao desenvolvimento.

Ao invés de sufocar a inovação, essa abordagem dinâmica e adaptativa promove um ambiente regulatório que estimula o surgimento de novas ideias e soluções. Ao fornecer um arcabouço normativo mais flexível e responsivo, a inteligência regulatória permite que as empresas e indivíduos experimentem e implementem novas abordagens de forma segura, criando um ciclo virtuoso de desenvolvimento e avanço.

Uma ferramenta importante nessa abordagem mais flexível é o sandbox regulatório: um ambiente controlado e seguro no qual empresas, startups, e até mesmo indivíduos, podem testar e implementar novas ideias, produtos e serviços inovadores, sem o ônus das restrições regulatórias convencionais. A principal vantagem do sandbox é a flexibilidade oferecida dentro de um ambiente regulamentado: em vez de impor regras rígidas e estáticas desde o início, o sandbox permite uma abordagem mais interativa e colaborativa. Ele possibilita que os reguladores e as entidades reguladas trabalhem juntos na criação de regras adaptadas às especificidades do projeto inovador em questão.

Dentro desse ambiente controlado, as empresas e empreendedores podem testar suas soluções em um ambiente real, mas delimitado, com uma supervisão regulatória que busca entender os riscos envolvidos e oferecer orientação conforme o processo avança. Isso permite que os participantes experimentem e implementem novas abordagens com mais segurança, minimizando possíveis impactos negativos para o mercado ou para os consumidores.

Ao facilitar essa experimentação controlada, o sandbox promove um ciclo virtuoso de desenvolvimento. As empresas podem testar e ajustar suas inovações de forma mais ágil, respondendo rapidamente às necessidades do mercado. Isso não apenas acelera o processo de inovação, mas também permite que novas ideias sejam refinadas e aprimoradas antes de serem lançadas em escala comercial.

Além disso, o sandbox pode gerar benefícios mais amplos, uma vez que os insights obtidos durante esses testes podem ser compartilhados com os reguladores para aprimorar a compreensão das necessidades do mercado e dos desafios regulatórios.

Por fim, a transparência e o diálogo são peças-chave na construção da inteligência regulatória. A participação ativa dos diversos atores envolvidos no processo regulatório – da sociedade civil ao setor privado e acadêmico – enriquece o processo decisório, fornecendo uma variedade de perspectivas e conhecimentos. Uma colaboração frutífera começa com o estabelecimento de canais abertos e transparentes de comunicação entre os órgãos reguladores, empresas do setor privado e instituições acadêmicas. O diálogo constante permite a troca de conhecimentos, experiências e informações cruciais para o desenvolvimento de políticas regulatórias mais eficazes.

O ambiente concorrencial deve ser um tema transversal nessa estratégia colaborativa. O objetivo é promover uma concorrência justa que estimule a inovação, melhore a qualidade dos produtos e serviços oferecidos e beneficie os consumidores. A busca por políticas regulatórias equilibradas e flexíveis é essencial para criar um ambiente que impulsione a competição saudável.

A aplicação bem-sucedida da inteligência regulatória não é apenas uma questão de eficiência; é uma questão de garantir um ambiente regulatório que responda adequadamente aos desafios e necessidades contemporâneos. Essa abordagem adaptativa é fundamental para promover a inovação, proteger os interesses públicos e, ao mesmo tempo, fomentar o desenvolvimento econômico e social.

Em um mundo em constante transformação, a inteligência regulatória se torna uma ferramenta vital para a construção de um ambiente regulatório mais dinâmico, responsivo e capaz de promover um desenvolvimento sustentável e inclusivo. É a capacidade de evoluir e se adaptar que define a eficácia da regulação nos tempos modernos.

Qualidade Regulatória e Crescimento – Os Riscos das Emendas sobre Prorrogação de Subsídios no PL das Eólicas Offshores

Katia Rocha 

Estamos observando, já faz algum tempo, diversas iniciativas na contramão de uma agenda positiva que deveria estimular segurança no atendimento à demanda, modicidade tarifária, competição e governança no setor elétrico.

Recentemente, o tema sobre prorrogação de subsídios para fontes incentivadas “ressuscitou” através de Emendas propostas pela Câmara de Deputados no PL das Eólicas Offshores. A questão trata do fim dos descontos na tarifa de uso para essas fontes, além de outras pautas. As emendas desconfiguram o projeto de iniciativa do Senado e incluem os já usuais “jabutis” que em nada dialogam com a “agenda verde” perseguida pelo Estado.

Segundo a ferramenta Subsidiômetro disponível na Aneel, apenas em 2023, os subsídios para fontes incentivadas corresponderam a R$ 9 Bilhões na conta do consumidor, praticamente um terço da Conta de Desenvolvimento Energético – CDE. Esse montante equivale a mais que o dobro do subsídio direcionado à tarifa social de energia elétrica (R$ 4 Bilhões). 

A nova estimativa – caso o PL seja aprovado com essas emendas no Senado – eleva as tarifas de energia elétrica em R$ 39 bilhões por ano. Um valor expressivo sobre a já elevada tarifa de energia elétrica dos consumidores residenciais no Brasil, superior, inclusive, à média mundial. Uma contradição em vista da competitividade de nossa matriz elétrica renovável a baixo custo.

Oportuno lembrar que a Lei 14.120 / 2021 já havia disposto, faz dois anos, sobre o fim desses mesmos subsídios às fontes incentivadas. A iniciativa foi precedida de inúmeros debates que reuniram uma gama representativa de agentes – formulador de políticas públicas, entes privados, academia e sociedade como preconiza as melhores práticas institucionais. Cabe relembrar que a racionalização dos encargos e subsídios, e a avaliação criteriosa das políticas de subsídios, observando suas necessidades e por tempo determinado (Acordão TCU 2877/2019), faz parte da agenda de modernização do setor elétrico, objeto de amplo debate desde 2017, cujo objetivo consiste no fornecimento de energia ao menor custo, considerando a abertura de mercado (PL 414 / 2021), sustentabilidade da expansão e eficiência na alocação de custos e riscos.

Observamos, portanto, seis anos de esforços que compreendem consultas públicas, análises de impacto, debates envolvendo academia, em vão, uma vez que se modificam políticas setoriais, recentemente aprovadas, sem razoável coerência ou embasamento técnico. No sentido amplo de formulação de política pública, que vai além do regulador, o fato evidencia a baixa governança institucional e qualidade regulatória do país.

A Economia, no entanto, não perdoa e a Figura 1 ilustra bem esse ponto. Os dados corroboram a relação positiva entre qualidade regulatória[1] e a respectiva renda per capta para um conjunto de 160 países de baixa, média e alta renda em 2022.

Figura 1. Desenvolvimento Econômico e Social x Qualidade Regulatória

Fonte: WDI – Banco Mundial (2022)

Essa dinâmica não é nova. Diversos estudos[2], há tempos, demonstram a relação positiva entre características institucionais dos países e seu nível de crescimento e renda. Melhores níveis de governança (qualidade regulatória, aparato legal, efetividade do governo, controle de corrupção, entre outros) está associada a maior desenvolvimento econômico e social.

Em seu relatório Economic Surveys: Brazil 2020, a OCDE estima (via modelos de crescimento de longo prazo) que um choque positivo que aproxime os indicadores institucionais do Brasil à média dos países membros, teria potencial de aumentar em 5,9% seu PIB per capta. Juntamente com outras medidas, seria possível elevar a taxa de crescimento potencial em 0,9% ao ano em termos reais. Um aumento considerável.

Observando a evolução dos indicadores de qualidade regulatória da Figura 2, percebe-se que a posição atual do Brasil é baixa, inclusive na comparação com os pares latinos (Colômbia, México, Peru e Uruguai), se descolando destes a partir de 2012.

Figura 2. Evolução da Qualidade Regulatória: Brasil x LAC x OCDE

Fonte: WDI – Banco Mundial (2022)

Importante destacar que a estabilidade e consistência da qualidade regulatória em direção a um melhor arcabouço institucional é um forte condicionante para atração do capital privado para investimentos, especialmente no setor de infraestrutura, com benefícios que envolvem desenvolvimento, produtividade, acesso à saúde e educação, criação de empregos e redução da pobreza e desigualdade.

Estimativas apontam que uma melhora no ranking de qualidade regulatória para o mesmo nível ocupado pelos pares emergentes latinos (posição 60) teria potencial de aumentar o fluxo de investimento privado em 0,8% do PIB ao ano[3].

Não à toa, na perspectiva da OCDE, a qualidade regulatória, no sentido amplo, é um pilar complementar às política macroeconômica e fiscal, para realização de objetivos institucionais, relacionados às boas práticas, e ao desenvolvimento econômico e social. Depreende-se que tão importante quanto o cumprimento da regra fiscal ou aprovação da reforma tributária, estão a estabilidade, consistência e memória regulatória em direção a um melhor arcabouço institucional. Ter claro essa relação é de fundamental importância para o formulador de políticas públicas.


[1] Utilizou-se, no exemplo, o indicador de qualidade regulatória do WGI – Banco Mundial como proxy das características institucionais.

[2]Ver Acemoglu et al. (2004), Acemoglu et al. (2010).

[3] Ver Rocha (2020), Rocha (2021)


Katia Rocha. Pesquisadora do Ipea. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto institucional do Ipea.


Katia Rocha é Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 1997.

Doutora em Engenharia Industrial/Finanças, Mestre e Graduada em Engenharia Industrial e Elétrica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora no Departamento de Engenharia Industrial (2002-2013).

Autora e revisora em diversos periódicos acadêmicos – Energy Policy, Journal of Fixed Income, Emerging Markets Review, Forest Policy and Economics, Pesquisa e Planejamento Econômico, Revista Brasileira de Finanças, Revista Brasileira de Economia, Economia Aplicada e Estudos Econômicos.

Atua no Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação de Políticas públicas nas áreas de Investimentos em Infraestrutura , Economia da Regulação, Financiamento da Infraestrutura (Investidores Institucionais e Mercado de Capitais), Finanças Internacionais, Determinantes de Risco Soberano, IED e Fluxos de Capital para Economias Emergentes.


Sorria você está sendo regulado!

“Reacts” ao Seminário, à Regulação e à Concorrência

Maxwell de Alencar Meneses

Em meados de novembro, realizou-se o Seminário Internacional de Regulação e Concorrência com o propósito de discutir o modelo vigente no Brasil. Há que se louvar a iniciativa, visto o fato da autoavaliação realizada tratar-se de algo necessário à manutenção das ações nesse sentido dentro de um contexto crítico, não acomodado ao fazer por costume, sem a compreensão dos motivos e o teste da atual necessidade, como ilustrado no artigo anterior com a história “A burocracia/3”.

Assim, a partir das manifestações de palestrantes consideradas mais relevantes para o contexto deste artigo, pretende-se tecer reações decorrentes. Ressalta-se que essas informações podem conter imprecisões e alguma falta de contexto, não representando a opinião de nenhuma instituição em particular, tampouco a do autor. Este realiza aqui um exercício de hipóteses, limitado e com determinado viés.

De início, o Presidente do Cade, Alexandre Cordeiro, abrilhantou a abertura do evento com declarações precisas, fruto do seu conhecimento e sabedoria. Ele é um excelente exemplo da sabedoria definida no artigo sobre o conhecimento do Cade. Afinal, antes de tornar-se chefe da autoridade antitruste brasileira, Cordeiro não foi apenas um acadêmico teórico e autor de um artigo, mas ex-conselheiro e ex-superintende-geral da autarquia por dois mandatos. Dessa fala, destaca-se aqui o termo ‘eleição’, no sentido de que determinados setores foram escolhidos no Brasil para serem regulados, algumas vezes por questões políticas.

Na sequência, o procurador-geral do Ministério Público de Contas da Paraíba e também cientista de dados, Bradson Camelo, aborda a “arte da regulação” como sendo um trabalho comparável ao artístico, que busca encontrar o ponto ótimo da regulação. Ele lembra das falhas de governo como motivo para não regular tudo. Abstrai-se da fala do procurador a necessidade de regular o regulador. Utilizando de histórias para compor seu raciocínio, como o Mito de Gyges para ilustrar a importância da transparência e a história de Ulisses e as sereias para falar da contenção do regulador.

Bruno Drago, Presidente do Ibrac, equipara a concorrência a um tipo de regulação, que seria ex post, ao contrário da ex ante setorial. Ele menciona o manual de boas práticas regulatórias da AGU, que indica que o excesso de regras e a falta de atualização produzem um ambiente deletério em vários aspectos, ou seja, um “custo Brasil”. Drago apresenta dados do relatório Doing Business do Banco Mundial, que coloca o Brasil na 124ª posição entre 190 países no ranking de facilidade para fazer negócios. Além disso, segundo o Relatório de Competitividade Global de 2017-18, o Brasil é um dos piores países do mundo com relação a carga regulatória, ocupando a 137ª posição.

Kaliane de Lira, procuradora federal com atuação na ANTT, define regulação em poucas palavras como a intervenção do Estado na sociedade. Explica que a mudança do Estado empreendedor para um Estado regulador, nos anos 90, se deu pela crise econômica instalada e recomenda artigo disponibilizado aqui na WebAdvocacy, ‘25 anos de regulação no Brasil’, da Professora e colunista Amanda Flávio de Oliveira. Pontua a respeito da necessidade de um Estado forte, não no sentido da imposição do comando e controle, mas forte para criação de um ambiente saudável. Celebra a lei de liberdade econômica, ponderando que ela diz o óbvio, mas que o óbvio muitas vezes precisa ser dito.

Na discussão a partir da perspectiva Law and Economics, destacam-se alguns trechos de falas curtas capazes de delinear bem o cenário atual. O subprocurador-geral do Trabalho, Manoel Jorge e Silva Neto, lembra que dominar é um atavismo humano. André Bueno da Silveira, procurador da república, fala a respeito de adaptações do direito concorrencial para inserir labor antitruste e green antitruste, discutindo a tolerância quanto a acordos entre empresas para custear questões ambientais e a possibilidade de atritos com Justiça do Trabalho em casos antitrustes. Márcio de Oliveira Junior, ex-conselheiro do Cade, considera que, no Brasil, a área de defesa da concorrência é uma das poucas em que o Estado brasileiro pune com eficiência, ao fazê-lo por meio de evidências empíricas. Nesse sentido, apresenta o caso Innova Videolar e aduz a respeito de erros e acertos.

Oksandro Osdival Gonçalves, advogado e professor da PUC-PR, assevera que o poder regulador, de modo geral, não leva em conta a concorrência. A perspectiva da análise econômica do direto é o realismo. Um livro, jurídico apenas, aborda situações desconectadas da realidade. A utilidade, a felicidade, a eficiência são outros aspectos observados. Regras claras fazem você feliz, mas no direito tributário é impossível ser feliz. O palestrante menciona os custos de transação, o tempo jurídico e tempo econômico, e relata ter tratado casos no judiciário devido ao tempo do Cade, exemplificando com o caso Nestle Garoto.

Lilian Marques, Economista-chefe do Cade, afirma que a autarquia não tem o papel de regular. Existe uma certa confusão nesse sentido, uma vez que o princípio por trás da ação do Cade não é o da regulação. As agências reguladoras, responsáveis setoriais, têm a competência para atuar nesse sentido. No entanto, o Cade tem uma abordagem abrangente, olhando para todos os mercados.

A Economista considera que, para o Cade, o foco principal é se ater aos efeitos concorrenciais. Expandir sua atuação para questões ambientais e outras áreas poderia gerar dúvidas sobre prioridades. Adições contínuas podem fazer o órgão se afastar do cerne, que é o ambiente concorrencial. Lilian Marques lembrou da atuação do Cade em questões regulatórias que afetavam a concorrência no setor da aviação, assim como nas propostas de controle de preços durante a pandemia, entre outras situações.

Sob o tema dos objetivos da defesa da concorrência versus objetivos da regulação, o conselheiro do Cade, Victor Fernandes, pondera que, partindo de alguns teóricos, quando a regulação é exauriente do comportamento dos agentes econômicos, quando ela não dá nenhuma outra margem a esse agente, aí, nesse sentido, falece a competência do direito da concorrência. Dario Oliveira, Diretor do Global Antitrust Institute, destaca que o antitruste pode ser compreendido como um subconjunto da regulação, encarregado de lidar com o poder de mercado. Este representa um domínio especializado dentro da regulação, caracterizando-se pela intervenção do Estado na solução de falhas de mercado relacionadas ao exercício excessivo do Poder de Mercado.

A Professora de Direito da UnB, Dra. Amanda Flavio, traz a fala mais disruptiva e interessante de todo o evento. Segundo a professora, se configurado o pensamento em modo “economês”, regulação existe para correção de falhas de mercado. Se mudado para modo “juridiquês”, a regulação é para assegurar a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social, de acordo com a Constituição de 1988, que versa sobre o objetivo da ordem econômica.

Já a respeito dos objetivos da concorrência, nos mesmos dois “modos” anteriores, não se sabe, pois trata-se de uma discussão recorrente desde sua concepção, que agudamente ainda está posta no direito e na economia. A regulação e a concorrência têm uma premissa comum, que é a crença na capacidade do Estado de promover desenvolvimento, e outras subjacentes, como a neutralidade e infalibilidade do agente público.

Outra premissa é a existência de uma técnica soberana e definitiva. Há também uma fixação que existe no Brasil na ideia da solução de desigualdade e não no combate à pobreza, o que traz consequências que podem não estar sendo compreendidas. Existe também uma prevalência subjacente de que há um dever do agente de agir, que está na mente da população, fazendo com que todos anseiem por regulação. Na realidade, o agente público é falível, condenável é a pobreza, e em atividade econômica não há espaço constitucional para dever de agir apriorístico, e as técnicas são várias e estão sempre em evolução.

Em nosso sistema constitucional, só há um objetivo para regulação e política concorrencial: assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social. Se nossas premissas regulatórias e concorrenciais não se confirmam na realidade, a cautela e a autocontenção devem prevalecer. De vez em quando, precisamos parar de mergulhar em teorias e doutrinas e olhar as coisas como elas são, parar para pensar por que elas existem.

Fechando o primeiro dia, Guilherme Ribas, Diretor do Ibrac, trouxe um dado interessante: de outubro de 2022 a outubro de 2023, foram revisados pelo Cade 599 ACs. Dessas revisões, 192 casos, ou seja, aproximadamente um terço, estavam relacionadas a mercados regulados.

No segundo dia, abordando a análise de impacto regulatório e a avaliação de impacto legislativo, Fernando Meneguin, consultor legislativo do Senado Federal, discute o abuso regulatório e as falhas governamentais, destacando sua importância. De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), a Avaliação de Impacto Regulatório (AIR) não está sendo devidamente implementada, uma vez que o governo não a está exigindo e os técnicos não estão familiarizados com o processo, correndo o risco de tornar-se letra morta. Não existem sanções para quem não a cumpre, e há várias exceções, como na área tributária, nos decretos presidenciais e nas proposições encaminhadas ao Congresso Nacional. Vale ressaltar que o relatório da AIR não é vinculante.

Fernando também menciona que conforme o RegBR da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) em 2021, na área de transporte e armazenamento, foram estabelecidas 149 normas, enquanto na área de saúde e serviços sociais foram 109, a maioria sem AIR. Além de buscar aprimorar a qualidade das normas, é essencial reduzir o número delas, pois no Brasil há uma cultura que sugere que todos os problemas podem ser resolvidos por meio de normas. Segundo o palestrante, é importante reconhecer que existem diversas outras maneiras de alcançar objetivos sociais sem necessariamente recorrer à criação de normas.

César Mattos, consultor da Câmara dos Deputados e colunista da WebAdvocacy, discute sobre as Iniciativas de Análise de Impacto Legislativo (AIL) na Câmara, que são iniciativas de pequeno porte cujo progresso é incerto. Ele destaca a importância do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) como entidade autônoma e apresenta o checklist de concorrência desenvolvido na Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) como um instrumento para avaliação de problemas concorrenciais.

O conselheiro do Cade, Gustavo Augusto de Lima, remonta à origem da Análise de Impacto Regulatório (AIR), que teve início no governo Reagan nos anos 80 e, na realidade, buscava evitar a criação de novas normas. Além disso, ele exemplifica como, no caso dos planos de saúde individuais, a regulação prejudicou esse produto. Ele também reforça a necessidade de utilizar estudos empíricos, simulações e análises baseadas em evidências.

Diogo Andrade, Superintendente-adjunto do Cade, enfatiza que, no campo do direito econômico, o excesso de normas não apenas pode, mas é, de fato, um entrave à livre iniciativa e à livre concorrência. Ele argumenta que esse excesso dificulta a intervenção estatal. No Cade, muitas vezes, surge a necessidade de intervir para corrigir um problema anticompetitivo específico em um caso concreto. No entanto, as regulamentações do setor, a maneira como algo está regulado ou outras normas tornam-se obstáculos e fronteiras, que às vezes são até insuperáveis.

Tratando-se da AIR nas agências reguladoras, autoridades de diversas agências reguladoras brasileiras expuseram sua estrutura, processos, metodologias, padrões e reconhecimentos que vêm obtendo devido à qualidade regulatória alcançada. Além disso, sugeriram que todos os poderes da República passem a adotar esse tipo de ferramenta relacionada à qualidade regulatória. Foi apresentado um dado do fórum econômico mundial indicando que de 1988 a 2019 mais de 6 milhões de normas foram editadas.

Sobre o tema de cartéis e regulação, Ana Patrícia Lira, subsecretária de Regulação e Concorrência do Ministério da Fazenda, destaca o papel da Secretaria de Reformas Econômicas na construção de regulamentações que inibam a formação de cartéis e outras práticas anticompetitivas. Além disso, apresenta ações em curso, como o estudo da necessidade de regulamentação de plataformas digitais. Adicionalmente, a subsecretaria atuou contra uma emenda que propunha a criação de um conselho de supervisão externa das agências. A SREG também esteve envolvida na proposta de alteração do Decreto n° 10.411/2020 para estabelecer a avaliação obrigatória do impacto concorrencial pelas resoluções das agências reguladoras e demais reguladores.

Fernanda Garcia Machado, superintendente-adjunta do Cade, informa que um terço das investigações em andamento ocorre em mercados regulados, tais como combustíveis, transportes, medicamentos, fretes e seguros. A teoria econômica reconhece que alguns fatores estruturais facilitam a formação de cartéis, como a homogeneidade de produtos e serviços, barreiras à entrada, entre outros. Muitos desses fatores são observáveis em mercados regulados. Desenvolver ações voltadas para aumentar a competitividade seria uma maneira eficaz de prevenir a formação de cartéis.

Valdir Alves, membro titular do MPF junto ao Cade, destaca que a regulação alcança todos os setores, seja de forma direta ou indireta. Ele fornece exemplos de excessos e abusos, como reservas de mercado e barreiras artificiais. Além disso, enfatiza a importância de considerar o destinatário da norma para determinar se deve ou não realizar uma análise de impacto.

No que diz respeito às regras concorrenciais, Alves acredita que o Brasil acertou ao ter uma lei específica de concorrência, que serve como um instrumento vigoroso para o tribunal. Ele destaca que a legislação abrange um tipo aberto de ilícito concorrencial, com um rol exemplificativo, permitindo ao tribunal atualizar constantemente as condutas, mesmo sem a menção explícita de termos como “cartel” na lei.

Alves reforça a importância da transparência no combate a cartéis em licitações públicas e aborda questões relacionadas à alteração da lei de licitações, destacando a permissão, como regra, para a realização de consórcios.

Luiz Hoffman, ex-conselheiro do Cade, lembra que a administração pública para o jurisdicionado é uma só, no sentido da necessidade de harmonização de regras. Além disso, aborda detalhes de casos concretos relativos a consórcio em licitações.

A respeito de regulação e concorrência no Brasil e nos Estados Unidos, o superintende-geral do Cade, Alexandre Barreto, exalta a importância da coordenação e troca de informações entre regulação e concorrência, mediante exemplos em casos concretos. Informa que nos últimos 4 anos, foram 626 atos de concentração sumários e 88 ordinários, totalizando 714 casos. No setor de energia 306 casos, telecomunicações 74 casos e tantos outros. Na investigação de condutas algo em torno de 25 casos em 2023 e 23 casos em 2022 em setores regulados.

Segundo Krisztian Katona, ex-membro da Federal Trade Commission (FTC), o ponto central de intensos debates globais sobre o equilíbrio adequado de regulação está nos mercados digitais. Os debates se encontram em diferentes estágios. Entre as várias regulações em andamento, a mais discutida é a europeia, DMA, que estará totalmente implantada em 2024. É crucial acompanhar os resultados. Até o momento, a Alemanha é o único país que implementou uma regulação ex-ante nos mercados digitais, mas é cedo para compreender completamente os efeitos desse regulamento.

Nos Estados Unidos, há uma proposta que despertou muita atenção: o American Innovation and Choice Online Act Bill. Muitas preocupações foram levantadas sobre diversos aspectos, resultando na perda da oportunidade de prosseguir. A regulação da concorrência não existe no vácuo; as características do mercado mudam rapidamente ao longo do tempo. As regulamentações de hoje mostram respostas diferentes ao longo de 3 a 5 anos. Por exemplo, nos EUA, no setor de transportes, houve lições aprendidas sobre como não regular, a partir do resultado observado com problemas para a concorrência e para os consumidores ao longo do tempo.

Por fim, processando tudo o que foi pronunciado nesse rico evento e, em parte, reproduzido aqui como objeto de estudo, as preocupações tornam-se pungentes em relação ao futuro do Brasil. Isso não se deve exatamente à quantidade exacerbada de normas, mas sim ao fato de que o povo brasileiro aparentemente gosta que seja assim e anseia por receber cada vez mais proteção do Estado por meio de regulamentações. Acrescente a isso o fato de que, já desde a antiguidade, filósofos como Platão, por meio de sua teoria das ideias ou formas, consideravam que o mundo, de fato, é mental. Portanto, no mundinho tupiniquim, a realidade deve continuar a ser essa enquanto uma outra perspectiva não for experimentada consistentemente desde a tenra idade.

Tanto é assim que, em cursos ou oficinas de inovação, é comum dedicar horas buscando reverter, nos adultos, os efeitos tolhedores de criatividade sedimentados ao longo dos anos quando crianças, no ensino de regras de conduta que talham em pedra como comportar-se, no sentido duplo de se moldar a algo. Então, essa criança passa por um sistema de ensino rígido e restrito, desembocando, quando possível, em uma formação universitária dominada por determinado viés, tornando-se servidor público e retroalimentando esse processo.

A frase comumente atribuída a Einstein, de que uma mente exposta a uma nova ideia nunca volta ao seu tamanho original, consiste em uma esperança. Ao conhecer inovações como o Uber e tantas outras disrupções rápidas o bastante para não dar tempo de o Estado pôr a mão, o brasiliano pode perceber que existe um outro mundo, mais leve, ágil e próspero. Nesse mundo, a tragédia dos concorrentes comuns ainda não foi instalada, e os gigantes podem ceder a pequenos pastores de ovelhas.


Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


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O Conceito de Concorrência sob Condições de Incerteza na Sociedade de Informação.

Cristina Ribas Vargas

A teoria econômica neoclássica, e particularmente a teoria microeconômica, forneceram importante instrumental analítico para o desenvolvimento da teoria da concorrência. Contudo, a partir da microeconomia subjacente aos fundamentos da Teoria Geral de Keynes, a conclusão sobre a necessidade de intervenção e regulação nos mercados foi em direção oposta ao recomendado pela teoria convencional.

A teoria econômica neoclássica parte do pressuposto de que os ofertantes, ou concorrentes em determinando mercado, assumem comportamentos que podem ser classificados como homogêneos, de tal modo que suas ações estratégicas não apresentariam diferenças significativas entre si em termos dos resultados alcançados. Nos mercados em que a estrutura pressuposta é a concorrência perfeita, as firmas, além de apresentarem comportamento homogêneo, são consideradas atomizadas, de tal forma que sua participação no mercado pode ser considerada desprezível.  A hipótese de atomismo tem o objetivo de garantir que as decisões individuais sejam incapazes de afetar significativamente as condições de mercado, particularmente os preços e as quantidades comercializadas. Essa hipótese exclui, portanto, a possibilidade de exercício de poder de mercado.

No entanto, a prática da concorrência é indissociável de dois conceitos econômicos fundamentais: assimetria e cumulatividade. O comportamento e a estrutura assimétrica dos concorrentes, vinculado ao acúmulo de conquistas sucessivas de parcelas de mercado, podem resultar em maior concentração e poder de mercado em médio e longo prazo.

Em sua Teoria Geral Keynes argumentava que existe imensa dificuldade por parte dos agentes econômicos em estimar uma distribuição de probabilidades para resultados a serem alcançados sob condições de incerteza. As informações compradas ou acumuladas com base na experiência dos agentes podem apresentar custos elevados e ser de difícil acesso, reduzindo as possibilidades de calcular o risco para a tomada de decisão.

Passaram-se noventa e um anos desde que Hayek e Keynes enfrentaram-se no debate pela primeira vez. Hayek argumentava que, dado que ninguém podia saber o que estava na mente de cada membro da sociedade, e que o melhor indicador de suas necessidades eram os preços de mercado, as tentativas do Estado em conduzir a economia seriam infrutíferas.

Se fizermos o exercício de supor que toda informação hoje disponível nas redes sociais e internet, que já estão disponíveis ao acesso de algumas grandes empresas de informação, estivessem amplamente acessíveis ao público, seria a incerteza eliminada do mercado e do Estado? O que os fatos da atualidade nos mostram indicam uma resposta negativa. No estágio atual de democratização da informação dois resultados no mínimo possíveis já são observáveis: aumento de assimetria produzido por grandes bigtechs, e a necessidade de uma profunda discussão social acerca das regras do jogo sobre a conveniência e oportunidade de universalização do acesso à informação. Neste caso, a teoria keynesiana sairia vitoriosa do debate, pois ainda seria necessária a presença do Estado mediador para assegurar o cumprimento das regras do jogo. Jogo este que estaria não só sujeito ao malogro das fake news, mas também de decisões estratégicas variadas diante de informações idênticas.

Supondo empresas atomizas com informações perfeitas em um mundo totalmente conectado em rede mundial, como as firmas buscariam continuar acumulando poder de mercado? Mesmo com sistemas que vasculham as preferências dos indivíduos, e diariamente oferecem bens e serviços com base em resultados de pesquisa dos consumidores em rede, ainda assim, na maioria das vezes a demanda não é efetivada.

Arrow (1962) já apontava as dificuldades de se criar um mercado de informação. Três características são inerentes a informação enquanto mercadoria: consumo não-rival, natureza indivisível e impossibilidade de verificação de seu valor antes mesmo de possuir a infomação.  Daí a importância de distinguir entre informação e conhecimento.  Enquanto a informação pode ser tratada como um algoritmo ou um dado qualquer, o conhecimento vai muito além disso, exigindo que o receptor possa interpretá-la e utilizá-la.

É cada vez mais perceptível que as mudanças velozes da nova sociedade de informação impactarão a formação de expectativas dos agentes econômicos. Freeman e Soete (2008) ao identificarem a importância dos sistemas nacionais de inovação para o desenvolvimento econômico, dedicaram atenção aos impactos da sociedade de informação na geração de empregos, produção e produtividade. Ainda, nesse sentido, destacaram a visão de Kuznets (1955) acerca da necessidade da economia em dialogar com as demais ciências sociais para aprimorar a mensuração dos impactos das atividades governamentais sobre as forças de mercado e redução de desigualdades:

“ Se fôssemos tratar adequadamente os processos de crescimento econômico, os processos de mudança a longo prazo, nos quais as próprias estruturas tecnológica, demográfica, e social também estão mudando – e de maneira que decididamente afeta a atuação das próprias forças econômicas -, torna-se imperativo que nos arrisquemos em áreas além da própria economia (…) É imperativo que nos tornemos mais familiares com as constatações daquelas disciplinas  sociais correlatas  que podem ajudar-nos a entender os padrões de crescimento da população, a natureza e a força na mudança tecnológica e os fatores que determinam as características e tendências das instituições políticas. (…) Um trabalho efetivo nesse campo requer necessariamente uma reorientação da economia de mercado para a economia política e social.” (Kuznets, 1955).

No último capítulo de sua teoria geral Keynes (1936) aponta três funções do Estado a fim de assegurar o pleno emprego: direcionamento da liquidez do Estado para práticas produtivas, tributação progressiva para financiar um orçamento que possa fazer frente a oscilações abruptas de demanda, e cooperação internacional para a redução de instabilidades que inviabilizem a busca pelo pleno emprego. A esse último ponto poderia ser acrescida a necessidade de regramentos sobre acesso a informação assimétrica por parte de grandes empresas de informação e do próprio Estado.

Referências

ARROW, K. Economicwelfareandtheallocationofresources for invention. The rate anddirectionofinventiveactivity. Princeton: Princeton University Press: 1962.

FREEMAN, C.; SOETE, L. A economia da inovação industrial. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

KEYNES, John M. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Saraiva, 2012 [1936].

MACEDO E SILVA, Antonio Carlos. Macroeocnomia sem equilíbrio, Campinas/Rio de Janeiro: Ed. Vozes/Fecamp: 1999.

POSSAS, MARIA SILVIA Concorrência e elementos subjetivos Competitivenessandsubjectiveelements Revista de Economia Política, vol. 18, nº 4 (72), pp. 595-611, outubro-dezembro/1998.

WAPSHOTT, Nicholas. Keynes x Hayek. As origens e a herança do maior duelo econômico da história. Rio de Janeiro, Record:2017.

Acordo Mercosul-UE: o que deu errado no maior acordo comercial da história?

Fernanda Manzano Sayeg

O acordo comercial negociado entre Mercosul e União Europeia desde 1999 e concluído 20 anos depois, em junho de 2019, passa por uma crise que dificilmente será superada.

O maior acordo comercial da história abrange um mercado de 780 milhões de pessoas e engloba 25% do PIB mundial. Se implementado, o Acordo eliminará 93% das tarifas aplicáveis às exportações do Mercosul para a UE, oferecendo tratamento preferencial para os 7% restantes. Da mesma forma, o acordo eliminaria o imposto de importação ou criaria cotas tarifárias para as principais exportações agrícolas da UE para o Mercosul.

Desde sua assinatura, o texto do Acordo passou por revisão legal e foi traduzido para todos os idiomas oficiais da UE. No entanto, o encaminhamento do documento para votação no Conselho da União Europeia e no Parlamento Europeu, contudo, depende não apenas de questões técnicas, mas também de alinhamentos políticos.  

Não é novidade que o Acordo sempre enfrentou a oposição de políticos europeus, que desconfiam de potenciais impactos ambientais com aumento do comércio com o Mercosul. Além de constantes declarações negativas do presidente francês, Emmanuel Macron, o Parlamento Europeu chegou a aprovar, em 2020, uma menção simbólica contra o tratado, sinalizando que o texto não seria ratificado sem alterações. Os parlamentares alegaram que o capítulo de sustentabilidade deveria ser revisto, pois careceria de mecanismos de sanção, caso uma das partes não cumpra os compromissos assumidos no Acordo de Paris.

Uma possibilidade aventada foi a reabertura do texto negociado durante 20 anos, que logo foi descartada. Para solucionar o impasse, a Comissão Europeia tem debatido sobre a implementação de algum mecanismo adicional ao acordo, que incremente as garantias ambientais, sem alterar o texto já negociado. Do lado do Mercosul, autoridades do bloco já se declararam favoráveis ao aprofundamento dos compromissos de sustentabilidade, desde que as medidas adicionais sejam aplicáveis a ambas as partes.

Além dos esforços para avanço do acordo dentro da Comissão Europeia, um grupo de nove países autointitulados “novos amigos do comércio” reforçou o apoio à parceria com o Mercosul. No final de 2020, representantes de Dinamarca, Estônia, Espanha, Finlândia, Itália, Letônia, Portugal, República Tcheca e Suécia defenderam a ratificação do tratado, ressaltando sua importância para a consolidação da autonomia estratégica do bloco, uma vez que fortaleceria a posição europeia na América do Sul, à frente de concorrentes como EUA e China, que ainda não possuem acordo com os países do bloco sul americano.

Outros países também se mostraram contrários ao acordo, por receio de perderem mercado no continente europeu. Para os parceiros tradicionais da região, a maior presença comercial da União Europeia no Mercosul e vice versa pode ter consequências nos fluxos de exportação existentes. Nesse sentido, cumpre mencionar o estudo publicado pelo Departamento de Agricultura dos EUA (USDA)[1], em janeiro de 2021, que alerta que as exportações dos EUA para a UE poderiam ser “potencialmente ameaçadas” pelo acordo do Mercosul, pois poderiam ser substituídas por produtos sul-americanos, com impacto de até US$ 4 bilhões. O USDA também alertou que o acordo estenderia o alcance dos padrões da UE para a América do Sul, criando uma vantagem para os produtos europeus em relação às exportações dos EUA no continente.

Se o ambiente político já não era favorável ao acordo, ficou ainda mais preocupante após a adoção de dois importantes regulamentos sobre mudanças climáticas que impactarão as exportações do Mercosul para o bloco europeu, a saber: o Regulamento que cria o mecanismo de ajuste de carbono na fronteira (CBAM) e o Regulamento Anti-desmatamento. Para os sul americanos, os novos regulamentos, aprovados em 2023, nada mais são do que medidas unilaterais protecionistas, impostas sob o pretexto da sustentabilidade, que prejudicariam ainda mais o equilíbrio das obrigações das partes no acordo aprovado em 2019 em questões ambientais.

Recentemente houve esforços mútuos para que o acordo fosse, de fato, concluído. Do lado do Mercosul, o presidente Lula se mostrou favorável ao acordo desde que houvesse um maior equilíbrio em questões ambientais. Foi proposta a criação de um fundo de 12 bilhões de euros (cerca de R$ 65 mil) para ajudar países do bloco a implementarem políticas ambientais e de redução do desmatamento. Já do lado europeu, foram apresentadas demandas em questões como compras governamentais, as quais teriam sido atendidas.

Não obstante os avanços obtidos nos últimos meses, as reuniões marcadas para o final de novembro e início de dezembro, que eram decisivas para o futuro do acordo, mostraram que o consenso é bastante improvável.

Um dos problemas enfrentados é a posse do novo presidente da Argentina, Javier Milei, que assume o país em 10 de dezembro. Os delegados argentinos que participavam das negociações foram mais duros nas conversas realizadas em novembro, alegando que o acordo estava desequilibrado e, se fosse fechado, os europeus teriam mais vantagens que o Mercosul. Trata-se de um recado de que o presidente derrotado Alberto Fernandez, que se recusou a dar esse acordo de presente para Milei, que é favorável à liberalização econômica. 

A declaração de Macron na COP28 ajudou a sepultar o acordo. O presidente francês que notoriamente é contrário ao tratado, reiterou sua posição na COP28 ao dizer “Sou contra o acordo Mercosul-UE, porque acho que é um acordo completamente contraditório com o que ele está fazendo no Brasil e com o que nós estamos fazendo, porque é um acordo que foi negociado há 20 anos, e que tentamos remendar e está mal remendado”. O presidente Lula, por sua vez, mostrou sua habilidade política em assumir crises e transformá-las em oportunidades para seu próprio governo, responsabilizando os europeus por um eventual fracasso das negociações.

Se o ano de 2023 for encerrado sem um acordo, perde-se a janela de oportunidade e, possivelmente, o tratado comercial entre UE e Mercosul será finalmente enterrado.

A pergunta que surge é: o que deu errado nesse acordo? Que lições podemos aprender para as futuras negociações comerciais?

Entendo que três fatores levaram ao fracasso dessa negociação: a falta de vontade política, a estrutura ambiciosa do acordo e o elevado número de partes.

O Acordo Mercosul-UE é mais abrangente que os demais acordos celebrados pelo bloco sul americano. Há compromissos em temas como defesa da concorrência, comércio e desenvolvimento sustentável e compras governamentais, que são sensíveis para diversos países, como o Brasil. Excluir os temas sensíveis da pauta certamente facilitaria um acordo entre os blocos. No entanto, resta saber se esse acordo ainda seria interessante para ambas as partes, o que não me parece ser o caso.

As negociações com os europeus denotam a dificuldade de se negociar um acordo desse porte com mais de 30 países, cada qual com a sua história, perspectiva e prioridades. Os interesses dentro do mesmo bloco são distintos. Basta comparar Brasil e Paraguai. Ambos são membros do Mercosul, mas Brasil é um país com forte agronegócio, indústrias, que ao mesmo tempo de vê oportunidades no acordo com os europeus, também teme pela concorrência. Paraguai, por sua vez, é um país muito mais dependente de importações, que está interessado em abrir seu mercado para os europeus.

Um acordo que exige unanimidade entre partes acaba sendo extremamente difícil quando estas são tão numerosas. Pelo mesmo motivo, a Organização Mundial do Comércio (OMC) está há 10 anos sem um novo acordo multilateral. O primeiro e único acordo multilateral celebrado no âmbito da OMC desde sua criação, em 1999, foi o Acordo sobre Facilitação de Comércio, que entrou em vigor em 22 fevereiro de 2017, com a assinatura de 112 dos então 164 membros da OMC.

Por fim, não observamos a vontade política de celebrar o acordo por parte de todos os atores envolvidos. Pelo contrário, parece que muitos países ficam aliviados sempre que a concretização do acordo é adiada. Transição de governo e processos eleitorais, sobretudo para presidência da república, costumam ser utilizados como desculpas para não assumir compromissos. É o que vemos neste momento com a Argentina.

O resultado final dessa longa negociação entre Mercosul e União Europeia certamente será decisivo para modular o modelo e o nível de ambição dos futuros acordos de livre comércio a serem celebrados pelo Mercosul.


[1] https://www.fas.usda.gov/data/eu-mercosur-trade-agreement-preliminary-analysis.