Andrey Vilas Boas de Freitas

Inovação na Precificação de Medicamentos no Brasil: Aplicando a Teoria do Design de Mecanismos

Andrey Vilas Boas de Freitas

A precificação de medicamentos no Brasil é um tema complexo que envolve o equilíbrio entre o acesso aos tratamentos, a promoção da inovação farmacêutica e a sustentabilidade financeira do sistema de saúde. Para enfrentar esse desafio, uma abordagem inovadora seria a aplicação da Teoria do Design de Mecanismos, um ramo da economia que busca criar incentivos para que os agentes econômicos ajam de maneira a maximizar o bem-estar social. Este artigo propõe a utilização dessa teoria como base para um novo modelo regulatório que contemple os interesses de todos os envolvidos, incluindo as empresas farmacêuticas, o governo, os reguladores e os consumidores.

1. O Desafio da Precificação de Medicamentos

Atualmente, a precificação de medicamentos no Brasil segue um modelo baseado na análise de custos e nos parâmetros definidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Embora o sistema tenha como objetivo garantir que os medicamentos estejam disponíveis a preços acessíveis, muitas vezes, ele acaba privilegiando a proteção dos investimentos das farmacêuticas. As empresas, ao apresentarem informações sobre custos e desenvolvimento de seus produtos, mantêm certa assimetria de informações: dados críticos sobre o custo real de produção, o investimento em pesquisa e desenvolvimento, e os ganhos potenciais são conhecidos apenas por elas, dificultando uma avaliação completa e justa por parte do regulador. Isso resulta em um ambiente onde as farmacêuticas têm um poder desproporcional na definição dos preços, impactando diretamente o acesso da população aos medicamentos essenciais.

Essa falta de transparência pode levar a distorções no mercado. Os preços elevados, frequentemente justificados com base em investimentos em inovação, acabam por limitar o acesso da população a tratamentos essenciais, especialmente em um sistema de saúde público como o SUS, que precisa equilibrar orçamento limitado com a demanda crescente por novos medicamentos. Além disso, essa dinâmica pode reduzir a concorrência, já que o poder de mercado de algumas grandes farmacêuticas as permite manter posições dominantes, dificultando a entrada de competidores que poderiam oferecer alternativas mais acessíveis.

O grande desafio regulatório, portanto, é criar um sistema de precificação que considere tanto a necessidade de acesso quanto a sustentabilidade da inovação farmacêutica. Deve-se garantir que os preços reflitam o valor terapêutico real dos medicamentos, sem inviabilizar a capacidade das empresas de continuar investindo em pesquisa e desenvolvimento. A Teoria do Design de Mecanismos surge como uma ferramenta potente para lidar com essa complexidade, propondo um redesenho das regras que governam o mercado. Essa abordagem busca alinhar os incentivos de todos os agentes envolvidos — governo, indústria e consumidores — para criar um sistema de precificação mais justo, transparente e eficiente.

Ao estabelecer regras claras que incentivem a revelação honesta de informações, a teoria sugere mecanismos que diminuem a assimetria de informações e incentivam as farmacêuticas a serem mais transparentes sobre seus custos e benefícios reais. Esses mecanismos poderiam incluir, por exemplo, exigências de auditorias independentes, contratos vinculados a resultados e métricas de avaliação pública, de modo que a precificação seja baseada no impacto real para a saúde pública e não apenas em estratégias de mercado. Isso representaria uma mudança de paradigma, colocando o interesse coletivo como eixo central da regulação, sem comprometer os incentivos à inovação que são vitais para a evolução do setor farmacêutico.

2.Precificação Baseada em Valor: Um Modelo Inovador

Uma abordagem promissora para aplicar a Teoria do Design de Mecanismos ao contexto da precificação de medicamentos é a adoção da precificação baseada em valor (Value-Based Pricing). Esse modelo propõe que o preço dos medicamentos seja definido com base no impacto terapêutico real que eles proporcionam, tanto para os pacientes quanto para o sistema de saúde, ao invés de se basear exclusivamente nos custos de desenvolvimento ou nas estratégias de mercado das empresas farmacêuticas, que muitas vezes se beneficiam de monopólios temporários. Dessa forma, o foco passa a ser o valor gerado pelo medicamento em termos de resultados concretos para a saúde, como melhorias na qualidade de vida, eficácia no tratamento e redução de custos futuros no sistema de saúde.

A ideia central da precificação baseada em valor é criar um ambiente em que os incentivos estejam alinhados para fomentar inovações genuínas e de alto impacto. Em vez de apenas buscar maximizar lucros por meio de patentes e exclusividade de mercado, as empresas farmacêuticas seriam incentivadas a concentrar seus investimentos e esforços em tratamentos que tragam benefícios substanciais para os pacientes. Isso significa que medicamentos que ofereçam uma cura significativa, reduzam a necessidade de hospitalizações, ou melhorem de forma considerável a qualidade de vida dos pacientes teriam preços mais altos, refletindo o valor agregado que entregam. Por outro lado, tratamentos com benefícios marginais ou incertos teriam preços mais baixos, garantindo que o investimento público e privado seja direcionado para inovações realmente relevantes.

Ao aplicar esse modelo, o sistema de saúde poderia, por exemplo, negociar contratos de desempenho, nos quais o pagamento final depende dos resultados alcançados. Isso garante que o preço pago seja justo, com base no valor terapêutico real, e oferece um incentivo poderoso para as farmacêuticas desenvolverem medicamentos de alta qualidade. Além disso, a adoção de métricas claras e objetivas de eficácia permite uma maior transparência no processo de precificação, facilitando o controle público e a avaliação contínua dos impactos dos medicamentos na saúde da população.

2.1 Contratos de Desempenho: Uma Alternativa Eficaz

Uma forma concreta de implementar a precificação baseada em valor seria por meio de Contratos de Desempenho. Nesse modelo, o preço final de um medicamento está diretamente ligado a indicadores específicos de saúde. Desse modo, o valor final pago por um medicamento depende da sua eficácia em atingir objetivos clínicos claros, como a melhoria na saúde dos pacientes ou a redução de custos para o sistema de saúde. Se os resultados prometidos pelo fabricante não forem alcançados, o preço é ajustado para baixo, assegurando que o pagamento seja proporcional ao benefício terapêutico efetivamente proporcionado.

Por exemplo, considere um medicamento voltado para o tratamento de uma doença crônica que promete diminuir as hospitalizações em 50%. Se, após a introdução do medicamento, os dados mostrarem que a redução de hospitalizações foi menor do que o esperado, o contrato pode prever uma redução proporcional no preço. Essa abordagem não apenas garante que os pagamentos estejam alinhados com os resultados, mas também estabelece um incentivo claro para as empresas farmacêuticas desenvolverem tratamentos que realmente cumpram suas promessas terapêuticas. Além disso, o uso de Contratos de Desempenho promove maior transparência no processo de precificação, facilitando a incorporação de novas tecnologias ao sistema de saúde com base em evidências concretas de eficácia. Isso torna o processo mais justo para o governo e para os pacientes, que podem confiar que estão investindo em medicamentos que comprovadamente trazem benefícios significativos.

3. Benefícios e Desafios da Implementação

A aplicação da Teoria do Design de Mecanismos à precificação de medicamentos no Brasil traria uma série de benefícios, mas também enfrentaria desafios consideráveis. Um dos principais benefícios seria a maior transparência na precificação. A adoção de métricas de desempenho claras ajudaria a reduzir a assimetria de informações, tornando o processo de definição de preços mais justo e acessível para todos os envolvidos. Além disso, a vinculação do preço ao benefício real proporcionado pelo medicamento incentivaria as farmacêuticas a direcionarem seus investimentos para tratamentos que ofereçam avanços terapêuticos significativos, promovendo uma inovação de alto valor. Esse modelo de precificação também contribuiria para a sustentabilidade financeira do sistema de saúde, permitindo uma alocação mais eficiente dos recursos públicos ao reduzir os custos associados a tratamentos de baixa eficácia.

Por outro lado, a implementação desse modelo enfrenta desafios importantes. Seria essencial criar um sistema robusto de avaliação e monitoramento, capaz de coletar dados de forma confiável e justa, a fim de fundamentar as decisões de precificação baseadas em desempenho. Além disso, uma mudança desse porte exigiria um esforço legislativo significativo, com a revisão e adaptação das normativas vigentes que regulam a precificação e incorporação de medicamentos. Tanto a CMED quanto a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) precisariam ajustar suas regulamentações para garantir que os novos mecanismos sejam adequadamente incorporados ao arcabouço regulatório, garantindo sua eficácia e aplicabilidade no contexto brasileiro.

4. Caminhos para a Implementação: Revisão e Adaptação da Legislação

Para viabilizar essa proposta, o primeiro passo é realizar uma análise detalhada da legislação existente, identificando lacunas e pontos que precisam de atualização. Isso exigirá uma revisão minuciosa das resoluções, portarias e decretos que regem a precificação e a incorporação de medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS).

A revisão deve ter um enfoque especial em regras de transparência, buscando estabelecer normas claras para a divulgação de dados de custos e eficácia dos medicamentos, garantindo que as informações estejam disponíveis de forma acessível e confiável. Além disso, é essencial definir critérios de precificação baseados em valor, estabelecendo parâmetros objetivos para avaliar o desempenho de cada medicamento, possibilitando o ajuste de preços conforme os resultados clínicos observados.

Outro aspecto fundamental para o sucesso da proposta é a criação de sistemas robustos de auditoria e monitoramento. Um sistema de auditoria independente precisa ser instituído para garantir a precisão e a veracidade dos dados fornecidos pelas farmacêuticas, bem como para realizar avaliações periódicas sobre a eficácia e o impacto dos medicamentos. Essa estrutura permitirá maior controle sobre o processo de precificação e assegurará que os medicamentos ofereçam benefícios reais à saúde pública, contribuindo para a sustentabilidade e a transparência do sistema de saúde brasileiro.

5. Conclusão: Um Novo Paradigma para a Regulação da Saúde no Brasil

A aplicação da Teoria do Design de Mecanismos ao contexto da precificação de medicamentos no Brasil representa uma oportunidade de transformar o sistema de saúde, criando um ambiente mais justo, transparente e sustentável. Ao alinhar os incentivos para que todos os agentes envolvidos colaborem de forma eficaz, é possível garantir que os medicamentos essenciais sejam acessíveis à população, sem comprometer o dinamismo e a inovação no setor farmacêutico.

Esse é um caminho desafiador, que exige um esforço coordenado entre governo, indústria e sociedade civil. No entanto, os benefícios de um sistema de saúde mais equilibrado e eficiente são claros e representam um avanço importante para o Brasil. A adoção de modelos inovadores, como a precificação baseada em valor e os contratos de desempenho, pode ser o primeiro passo para uma transformação regulatória que atenda às necessidades de todos os brasileiros.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996.


Vantagens e Desvantagens do Compartilhamento de Informações sobre Preços de Medicamentos entre Países

Apresentação

Os Textos para Discussão da WebAdvocacy é uma série de textos técnico-científicos nas áreas de direito e economia, que visa a ampliar a discussão acadêmica em torno dos temas de defesa da concorrência, regulação econômica, comércio internacional, direito econômico, direito tributário, entre outros.

Os textos para discussão da WebAdvocacy estão disponíveis para leitura na plataforma no link: Textos para Discussão.

Corpo editorial

Editor:

Elvino de Carvalho Mendonça

Conselho editorial:

Amanda Flávio de Oliveira – Doutora em direito

Eduardo Molan Gaban – Doutor em direito

Elvino de Carvalho Mendonça – Doutor em economia

Fernanda Manzano Sayeg – Doutora em direito

Fernando de Magalhães Furlan – Doutor em direito

Katia Rocha – Doutora em Engenharia de Produção/Finanças

Luiz Alberto Esteves – Doutor em economia

Márcio de Oliveira Júnior – Doutor em economia

Marco Aurélio Bittencourt – Doutor em economia

Marcos André Mattos de Lima – Mestre em economia 

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça – Doutora em direito pelo IDP/DF

Vanessa Vilela Berbel – Doutora em Direito

Ficha catalográfica

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy – Direito e Economia.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


Vantagens e Desvantagens do Compartilhamento de Informações sobre Preços de Medicamentos entre Países

Andrey Vilas Boas de Freitas

Resumo

O artigo explora o conceito de compartilhamento de preços de medicamentos entre diferentes países, destacando sua relevância no contexto global de saúde e identificando seus impactos econômicos e regulatórios. A prática visa reduzir a desigualdade de preços e melhorar o acesso a medicamentos, especialmente em países de baixa e média renda. São apresentados os objetivos principais do compartilhamento de preços, que incluem a redução de preços de medicamentos, aumento da transparência e promoção de políticas de preços mais justas. A discussão abrange os desafios enfrentados pelos países ao implementar essa prática, como a resistência de empresas farmacêuticas e a variação nas políticas de saúde. O artigo também analisa diferentes modelos de compartilhamento de preços utilizados em diversos países, bem como suas vantagens e limitações, dependendo do contexto econômico e regulatório local. São apresentados exemplos de países que implementaram práticas de compartilhamento de preços, incluindo as iniciativas na União Europeia, oferecendo insights sobre os resultados alcançados e as lições aprendidas. A conclusão resume os principais achados do artigo e discute as implicações futuras do compartilhamento de preços de medicamentos. O artigo conclui que, embora o compartilhamento de preços possa oferecer benefícios significativos, sua eficácia depende de uma abordagem coordenada e adaptada às necessidades locais.

Palavras-chave: Compartilhamento de Preços, Medicamentos, Transparência de Preços, Acesso a Medicamentos, Modelos de Preços, Negociação de Preços, Regulação de Medicamentos.

Introdução

O compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos tem sido amplamente debatido como uma estratégia potencial para promover maior transparência e equidade nos mercados farmacêuticos globais. Com a crescente preocupação sobre os altos custos dos medicamentos e o acesso desigual a tratamentos essenciais, diversas partes interessadas, incluindo governos, organizações internacionais e empresas farmacêuticas, têm explorado a viabilidade dessa prática. O objetivo principal do compartilhamento de preços é permitir uma comparação mais eficiente entre diferentes mercados e promover uma negociação mais justa, reduzindo as disparidades de preços e facilitando o acesso a medicamentos.

Este artigo se propõe a analisar as principais vantagens e desvantagens do compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos, com base no relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). [1] O relatório da OCDE fornece uma visão detalhada sobre como o compartilhamento de preços pode influenciar a política farmacêutica global e quais são os desafios associados à sua implementação. Entre os benefícios identificados, estão a possibilidade de uma maior transparência, a redução das discrepâncias de preços entre países e a promoção de uma concorrência mais saudável no setor farmacêutico. No entanto, também existem desvantagens potenciais, como a resistência das empresas farmacêuticas e as complexidades regulatórias envolvidas.

Ao explorar essas questões, o artigo pretende fornecer uma compreensão abrangente sobre como o compartilhamento de preços pode moldar o futuro da política farmacêutica e quais são as implicações para os países em desenvolvimento e desenvolvidos. A análise se baseia em exemplos práticos e estudos de caso apresentados no relatório da OCDE, destacando as lições aprendidas e as recomendações para uma implementação bem-sucedida desta prática.

Vantagens

1. Fortalecimento da Capacidade de Negociação

Uma das principais vantagens do compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos é o fortalecimento da capacidade de negociação dos países, especialmente daqueles com mercados farmacêuticos menores ou com menor poder de barganha em relação às grandes empresas farmacêuticas. Países com economias mais modestas ou com menor volume de compras tendem a ter dificuldades para negociar preços mais baixos em relação aos medicamentos de alto custo. Sem informações precisas e comparativas sobre os preços praticados em outras regiões, esses governos ficam em desvantagem ao tentar negociar condições mais favoráveis, sendo muitas vezes forçados a aceitar os preços iniciais oferecidos pelos fabricantes.

No entanto, o acesso a dados de preços praticados em outros países pode transformar essa dinâmica. Quando os governos têm à disposição informações sobre os valores pagos por outros países, especialmente aqueles com mercados semelhantes, eles podem argumentar de forma mais eficaz nas negociações. O conhecimento de que uma empresa farmacêutica ofereceu preços mais baixos em uma jurisdição pode ser usado como um ponto de pressão, incentivando a empresa a estender condições semelhantes a outros países. Essa transparência nas informações aumenta a competitividade do mercado e pode forçar os fabricantes a oferecerem preços mais equilibrados e acessíveis.

Além disso, o compartilhamento de informações pode criar uma espécie de “efeito cascata” nas negociações. Se um país consegue negociar um preço mais baixo com base nas informações de outro, esse preço reduzido pode, por sua vez, ser usado como referência para futuros acordos em outras nações. Isso gera uma cadeia de negociações mais favorável globalmente, à medida que mais países passam a se beneficiar dessas informações compartilhadas.

As economias geradas por negociações mais informadas podem ser substanciais. Em muitos casos, os custos com medicamentos representam uma parte significativa do orçamento de saúde pública. Portanto, qualquer redução nos preços dos medicamentos pode liberar recursos que podem ser reinvestidos em outras áreas prioritárias, como a ampliação do acesso a tratamentos ou a melhoria de infraestruturas de saúde. Para países com orçamentos de saúde mais apertados, como nações de baixa e média renda, essa capacidade de negociar preços mais competitivos pode ser crucial para garantir o acesso da população a medicamentos essenciais, especialmente em áreas como doenças crônicas ou medicamentos de alto custo, como aqueles para o tratamento de câncer e doenças raras.

Assim, o compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos não só fortalece a capacidade de negociação dos governos, como também promove uma maior equidade no acesso a medicamentos em diferentes regiões do mundo.

2. Promoção da Transparência

O aumento da transparência nas transações pode desempenhar um papel crucial na redução das disparidades de preços de medicamentos entre países. Atualmente, há uma grande variação nos preços que diferentes países pagam pelos mesmos medicamentos, o que é amplamente influenciado por fatores como o poder econômico, o volume de compras e as políticas de saúde de cada nação. Essas disparidades muitas vezes resultam em medicamentos inacessíveis para países de baixa e média renda, exacerbando as desigualdades globais no acesso a tratamentos essenciais.

Com uma maior transparência, essas discrepâncias podem ser reduzidas, já que os países com menor poder de barganha podem utilizar as informações de preços pagos por países economicamente mais fortes como referência em suas negociações. Isso promoveria uma maior justiça no acesso a medicamentos essenciais, especialmente aqueles voltados para o tratamento de doenças graves, como HIV, câncer e doenças raras, cujos custos elevados tornam o acesso desigual um problema crítico em diversas partes do mundo.

A transparência também contribui para a criação de um ambiente de maior confiança entre governos e fabricantes de medicamentos. A falta de visibilidade nas transações atuais, nas quais muitos acordos de preço incluem cláusulas de confidencialidade que escondem os descontos e rebates aplicados, pode gerar desconfiança e levar a percepções de que as negociações são injustas ou desvantajosas para determinados países. Ao tornar os preços mais visíveis, os governos podem avaliar melhor o que está sendo oferecido e tomar decisões mais informadas, baseadas em dados concretos.

Essa transparência ajuda a nivelar o campo de jogo, tornando as negociações mais equilibradas e menos propensas a serem influenciadas por táticas comerciais desiguais. Além disso, ao revelar os preços reais pagos por outros países, especialmente aqueles com economias e condições de mercado semelhantes, as empresas farmacêuticas podem ser incentivadas a adotar práticas de precificação mais consistentes e justas em diferentes regiões. Isso não apenas cria um ambiente de mercado mais previsível e equitativo, mas também fortalece a percepção pública de que o acesso a medicamentos está sendo tratado de maneira justa.

Outra consequência positiva do aumento da transparência é que ele pode incentivar os fabricantes de medicamentos a se engajarem em práticas comerciais mais responsáveis e éticas. Quando os preços e as condições de venda são transparentes, as empresas têm menos espaço para discriminar entre mercados, e isso pode pressioná-las a oferecer preços mais acessíveis de forma mais ampla. Assim, a transparência pode funcionar como uma força moralizante no mercado, reduzindo as práticas de preços excessivos em países mais vulneráveis.

Em última análise, a transparência não beneficia apenas os governos, mas também as próprias empresas farmacêuticas. Ao fortalecer a confiança nas negociações e promover a previsibilidade no mercado global, as empresas podem construir relações de longo prazo mais sólidas com os governos, minimizando conflitos e facilitando a entrada em novos mercados. Esse ambiente de confiança e cooperação pode, por sua vez, acelerar o acesso de novos medicamentos a mercados globais, beneficiando tanto os fabricantes quanto os pacientes que precisam de tratamentos essenciais.

Portanto, ao promover maior transparência nas transações, não apenas se reduz as disparidades de preços entre países, mas também se cria um ambiente de maior equidade, confiança e justiça, beneficiando tanto os sistemas de saúde pública quanto a indústria farmacêutica.

3. Aprimoramento do Planejamento Orçamentário

Com acesso a informações mais precisas sobre os preços de medicamentos em diferentes mercados, os governos podem otimizar significativamente seu planejamento orçamentário e a alocação de recursos, resultando em uma gestão financeira mais eficiente e estratégica. Quando os responsáveis pelo orçamento da saúde pública sabem exatamente quanto outros países estão pagando por medicamentos semelhantes, eles podem fazer previsões mais realistas sobre os custos que enfrentarão ao negociar com as empresas farmacêuticas. Esse conhecimento permite que o orçamento de saúde seja estruturado com maior precisão, reduzindo a probabilidade de déficits ou de gastos excessivos, especialmente em áreas críticas como a compra de medicamentos de alto custo para doenças crônicas ou raras.

Essa melhoria no planejamento orçamentário é especialmente relevante para países que utilizam mecanismos de preços de referência externos (External Reference Pricing – ERP). O ERP é uma estratégia comum, na qual os preços de medicamentos em um país são estabelecidos com base em benchmarks de preços praticados em outros países. Com informações detalhadas sobre os preços reais — não apenas os preços de lista, mas também os preços líquidos após descontos e reembolsos —, os países podem ajustar seus próprios preços de maneira mais eficaz. Isso lhes confere uma posição mais vantajosa para negociar com fabricantes, reduzindo a possibilidade de pagar mais do que outras nações em situações comparáveis.

Além disso, o uso de dados de ERP mais precisos também evita que os governos tomem decisões orçamentárias com base em preços desatualizados ou irrealistas. Em muitos casos, os preços de referência publicados em plataformas internacionais não refletem os preços reais pagos após as negociações confidenciais entre países e fabricantes. Isso pode levar a uma alocação inadequada de recursos, uma vez que os países, ao se basearem em preços de lista inflacionados, podem reservar mais fundos do que o necessário para a compra de medicamentos, em detrimento de outras áreas prioritárias do sistema de saúde. Com o compartilhamento mais amplo de informações sobre os preços líquidos, os governos podem ajustar essas alocações com base em dados reais, possibilitando um uso mais eficiente dos recursos disponíveis.

Além disso, esse acesso a informações mais precisas permite que os países respondam mais rapidamente às mudanças no mercado de medicamentos. Se um país sabe que o preço de um medicamento específico caiu significativamente em outra jurisdição, ele pode negociar rapidamente condições semelhantes, ajustando seus planos de compra e redistribuindo os recursos economizados para outras áreas de necessidade, como infraestrutura hospitalar, campanhas de prevenção de doenças ou aquisição de novos medicamentos que antes eram inacessíveis devido aos custos elevados.

Por fim, o impacto de um planejamento orçamentário mais refinado se traduz diretamente na capacidade de fornecer acesso mais amplo e equitativo aos medicamentos para a população. Países que gerenciam seus recursos de maneira mais eficiente são capazes de ampliar seus programas de saúde, garantindo que os tratamentos estejam disponíveis para um maior número de pacientes, sem comprometer a sustentabilidade fiscal de seus sistemas de saúde. Assim, o acesso a informações precisas sobre preços em diferentes mercados não é apenas uma ferramenta de controle financeiro, mas um fator determinante na promoção de sistemas de saúde mais justos e eficientes.

Em resumo, a transparência nas informações de preços oferece aos governos uma base sólida para melhorar a alocação de recursos e maximizar o impacto do orçamento da saúde. Isso é especialmente crucial para aqueles que utilizam mecanismos de preços de referência externos, onde o acesso a dados precisos sobre os preços praticados internacionalmente pode fazer a diferença entre um sistema de saúde sustentável e acessível e um sistema sobrecarregado por custos desnecessários.

4. Facilitação de Compras Conjuntas

Iniciativas de compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos têm o potencial de facilitar consideravelmente programas de compras conjuntas entre países, uma estratégia que pode resultar em economias substanciais. Ao se unirem para adquirir medicamentos em volumes maiores, países podem negociar diretamente com os fabricantes de maneira mais competitiva, aproveitando o poder de compra ampliado que esses consórcios proporcionam. Esse aumento no volume total de compras permite que os países obtenham descontos significativos, o que seria mais difícil de alcançar individualmente, especialmente para países menores com menor demanda de mercado.

Quando vários países se unem para negociar conjuntamente, a balança de poder nas negociações se inclina em favor dos compradores, uma vez que as empresas farmacêuticas ficam mais dispostas a oferecer condições de preço mais atrativas em troca do acesso a mercados maiores e de vendas garantidas em maiores quantidades. Esse tipo de coordenação é crucial para os sistemas de saúde que enfrentam desafios financeiros e pressões orçamentárias, particularmente quando se trata de medicamentos de alto custo ou aqueles voltados para o tratamento de doenças raras, onde os preços podem ser exorbitantes.

Essa estratégia é especialmente relevante em iniciativas regionais ou multilaterais, como o EURIPID na União Europeia. O EURIPID (European Integrated Price Information Database) é uma iniciativa cooperativa que visa promover a transparência nos preços de medicamentos em países europeus. Trata-se de uma base de dados não comercial que permite o compartilhamento de informações sobre os preços oficiais de medicamentos entre os países membros. Criado como uma plataforma para ajudar na regulação e definição de políticas de preços de medicamentos, o EURIPID se tornou um recurso valioso para governos que buscam usar informações precisas e atualizadas de preços para melhorar seus sistemas de saúde.

O principal objetivo do EURIPID é fornecer informações padronizadas e comparáveis sobre os preços de medicamentos em diferentes países, facilitando o uso dessas informações em processos de preço de referência externo (External Reference Pricing – ERP). No ERP, os países comparam os preços de medicamentos praticados em outros mercados para definir suas próprias políticas de preços. O EURIPID oferece aos países membros um ponto de referência confiável, permitindo a tomada de decisões mais informadas e baseadas em dados concretos, minimizando o risco de pagar preços inflacionados.

A base de dados EURIPID contém informações detalhadas sobre os preços de medicamentos, como o preço de lista ex-fábrica, que é o valor inicial estabelecido pelo fabricante, geralmente utilizado como referência para negociações posteriores. Esses dados são atualizados regularmente pelos países participantes, o que assegura que as informações sejam precisas e refletiam a realidade do mercado farmacêutico em tempo real. A plataforma é aberta a países da União Europeia (UE), do Espaço Econômico Europeu (EEE), além de outros países europeus que não são membros da UE. Entre os participantes, estão nações como Alemanha, França, Itália, Espanha, Reino Unido, Suécia, Noruega, Suíça e Israel. A participação no EURIPID é voluntária, e cada país pode decidir o tipo de informação que vai compartilhar, embora a maioria dos países opte por compartilhar os preços de medicamentos de venda ao público e os preços máximos regulamentados.

A plataforma permite que os governos obtenham informações sobre medicamentos tanto on-patent (medicamentos patenteados) quanto off-patent (genéricos e similares), oferecendo uma visão ampla do mercado. O foco principal do EURIPID são os medicamentos reembolsáveis, ou seja, aqueles cujos custos são em parte ou totalmente cobertos pelos sistemas de saúde pública dos países.

Um dos grandes benefícios do EURIPID é a transparência que ele proporciona, especialmente em um mercado farmacêutico que, tradicionalmente, tem sido marcado por acordos confidenciais entre fabricantes e governos. Ao ter acesso a preços comparáveis de medicamentos, os países podem evitar pagar mais por um medicamento do que seus vizinhos, promovendo um mercado mais justo e competitivo.

Além disso, a plataforma facilita o intercâmbio de informações entre os governos, criando um ambiente de cooperação que pode levar a iniciativas de compras conjuntas. Isso é particularmente importante para países menores ou com menor poder de compra, que podem negociar preços mais competitivos ao se unir a outros países em grandes aquisições.

Apesar dos benefícios, o EURIPID enfrenta alguns desafios. Um dos principais é a questão da confidencialidade. Muitos países, ao negociar preços com as empresas farmacêuticas, aceitam cláusulas de confidencialidade que impedem a divulgação dos preços reais (preços após descontos e rebates). Como resultado, o EURIPID se baseia principalmente em preços de lista, que podem não refletir os valores finais pagos pelos governos após negociações. Isso limita a eficácia do sistema para países que buscam ter uma visão mais precisa dos preços reais no mercado.

Outro desafio é que nem todos os países membros da UE participam da iniciativa, e a cobertura de certos medicamentos pode ser desigual. Além disso, a complexidade dos sistemas de precificação de medicamentos, que variam significativamente entre os países, torna difícil a comparação direta de preços, mesmo com a padronização dos dados.

O EURIPID é uma ferramenta poderosa para promover a transparência e facilitar a colaboração entre países na área da saúde. Ao permitir o compartilhamento de informações padronizadas sobre os preços de medicamentos, o sistema ajuda a garantir que os governos possam tomar decisões de precificação mais justas e informadas, potencialmente gerando economias substanciais. Ao usar essas plataformas de informação, os países podem não apenas obter acesso a dados precisos sobre o que outros pagam por medicamentos, mas também organizar esforços de compra coletiva para maximizar os descontos disponíveis. Isso cria uma sinergia, onde o conhecimento compartilhado e o esforço coletivo se traduzem em reduções de custos significativas para todos os envolvidos.

Além disso, essas iniciativas multilaterais de compras conjuntas permitem uma melhor distribuição de riscos e responsabilidades entre os países participantes. Quando países compram em conjunto, o risco de flutuações de preços ou de falta de fornecimento é diluído entre as nações envolvidas, proporcionando maior segurança tanto na disponibilidade de medicamentos quanto na estabilidade dos preços. Esse tipo de cooperação também fortalece as relações diplomáticas e econômicas entre os países, uma vez que o sucesso de programas de compras conjuntas depende de uma coordenação eficiente e de confiança mútua.

Para países que enfrentam dificuldades financeiras ou têm um mercado farmacêutico limitado, a participação em programas de compras conjuntas é uma oportunidade estratégica de obter acesso a medicamentos que, de outra forma, seriam inacessíveis devido aos altos custos. O impacto disso é particularmente relevante para medicamentos inovadores ou de última geração, como os tratamentos para câncer, medicamentos biológicos ou terapias para doenças raras, cujos preços podem ser proibitivos em negociações individuais.

Por fim, a economia gerada por essas compras conjuntas pode ser reinvestida em outras áreas do sistema de saúde, melhorando o acesso a tratamentos, fortalecendo a infraestrutura hospitalar, ou expandindo programas de prevenção e educação em saúde. O sucesso dessas iniciativas regionais e multilaterais, como o EURIPID, serve de modelo para outros países e regiões que buscam formas de reduzir os custos com medicamentos enquanto garantem um fornecimento sustentável e equitativo para suas populações.

Em suma, o compartilhamento de informações de preços e a organização de compras conjuntas entre países não apenas ampliam o poder de negociação, mas também promovem uma gestão mais eficiente dos recursos públicos. Através de iniciativas como o EURIPID, os países podem maximizar os benefícios econômicos e logísticos de comprar em grande escala, fortalecendo seus sistemas de saúde e ampliando o acesso da população a medicamentos essenciais.

Desvantagens

1. Barreiras Legais e Contratuais

Um dos maiores desafios para o compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos são, sem dúvida, as barreiras legais e contratuais que permeiam o setor farmacêutico global. Essas barreiras são formadas por uma combinação de acordos confidenciais estabelecidos entre governos e fabricantes de medicamentos, além de legislações nacionais que protegem essas transações, tornando difícil a implementação de um sistema de compartilhamento de preços que seja verdadeiramente funcional e transparente.

As barreiras legais são especialmente problemáticas, uma vez que cada país possui suas próprias regulamentações sobre transparência de preços e divulgação de dados comerciais. Em muitos países, os preços dos medicamentos estão sujeitos a regulamentações rigorosas que incluem a proteção de segredos comerciais. Isso significa que os governos, mesmo quando conseguem negociar preços mais baixos através de descontos e rebates, não podem legalmente divulgar esses valores, pois estão obrigados a manter sigilo sobre as condições específicas dos acordos com os fabricantes.

A legislação de proteção ao segredo comercial é amplamente aplicada para resguardar os interesses comerciais das empresas farmacêuticas, que alegam que a divulgação de preços negociados poderia prejudicar sua competitividade em diferentes mercados. Por exemplo, se uma empresa oferece um desconto substancial para um país, mas esse preço se torna público, outros mercados podem exigir o mesmo desconto, o que poderia reduzir significativamente a margem de lucro da empresa em regiões mais rentáveis. Por isso, as cláusulas de confidencialidade são usadas para proteger essa informação e impedir a criação de precedentes internacionais que possam comprometer suas estratégias de precificação.

Além disso, em alguns países, há leis específicas que obrigam os governos a manterem confidenciais os detalhes dos acordos de compra de medicamentos. Em nações como os Estados Unidos, por exemplo, a Lei de Segredos Comerciais impõe restrições severas à divulgação de informações comerciais sensíveis, incluindo preços de medicamentos após negociações. Esse tipo de legislação torna praticamente impossível que as autoridades de saúde compartilhem informações sobre os preços reais que estão pagando, mesmo que isso fosse benéfico para o mercado global.

No âmbito contratual, muitos acordos firmados entre governos e fabricantes de medicamentos incluem cláusulas de confidencialidade estritas, que proíbem a divulgação pública dos preços acordados após descontos, rebates ou qualquer outro tipo de concessão financeira. Esses acordos são rotineiramente utilizados em negociações envolvendo medicamentos de alto custo, onde os fabricantes oferecem descontos consideráveis para garantir a venda de seus produtos, mas exigem que esses valores sejam mantidos em sigilo para proteger seus interesses em outros mercados.

Essas cláusulas contratuais são projetadas para proteger os modelos de precificação discriminatória que as empresas farmacêuticas utilizam globalmente. Esse modelo permite que os fabricantes ajustem os preços de acordo com a capacidade de pagamento de cada país ou região, o que, em teoria, pode tornar medicamentos acessíveis em mercados mais pobres. No entanto, a manutenção desses acordos confidenciais impede que os governos de outros países tenham acesso a informações reais de preços, o que poderia ajudá-los a negociar de forma mais eficiente e justa.

Ademais, a existência de cláusulas de confidencialidade em praticamente todos os grandes acordos de compra de medicamentos limita a cooperatividade internacional. Mesmo que alguns países estejam dispostos a compartilhar informações, eles ficam legalmente impedidos de fazê-lo devido às restrições contratuais. A quebra dessas cláusulas pode resultar em litígios jurídicos onerosos, além de prejudicar as relações entre governos e fabricantes, o que dissuade os países de compartilhar dados sensíveis, mesmo em redes fechadas de cooperação.

Essas barreiras legais e contratuais tornam a criação de um sistema de compartilhamento de preços de medicamentos amplamente funcional um desafio considerável. Embora exista um interesse crescente por parte dos países em aumentar a transparência nos preços, as restrições impostas pelos acordos comerciais e pela legislação interna limitam drasticamente o que pode ser compartilhado. Para que um sistema internacional de compartilhamento de informações de preços seja viável, seria necessário uma série de reformas legais e regulatórias em muitos países, além de uma reestruturação significativa dos contratos comerciais com as indústrias farmacêuticas.

Um exemplo claro desse desafio é o fato de que, mesmo em iniciativas regionais, como o EURIPID na União Europeia, os países compartilham principalmente preços de lista de medicamentos, que muitas vezes não refletem os valores reais pagos após as negociações. Os preços de lista, que são os preços iniciais oferecidos pelos fabricantes, podem ser muito mais elevados do que os preços finais, o que limita a utilidade dessas informações para outros países que estão tentando negociar. A falta de transparência sobre os preços líquidos — aqueles que refletem descontos e concessões — impede que o sistema de referência de preços funcione de forma eficaz.

Além disso, qualquer esforço para criar um sistema de compartilhamento funcional exigiria que as empresas farmacêuticas estivessem dispostas a renegociar suas cláusulas de confidencialidade e aceitassem uma maior transparência, o que não é fácil de alcançar. As empresas têm fortes incentivos para manter seus preços confidenciais, já que isso lhes permite ajustar estrategicamente os preços conforme o mercado, maximizando seus lucros.

Portanto, as barreiras legais e contratuais representam um dos maiores obstáculos para o compartilhamento efetivo de informações sobre preços de medicamentos. Embora haja um movimento global em prol da transparência e da cooperação internacional, a proteção dos interesses comerciais e os acordos confidenciais permanecem desafios formidáveis. Superar esses obstáculos exigirá um diálogo constante entre governos, reguladores e a indústria farmacêutica, bem como a implementação de políticas internacionais que possam equilibrar a necessidade de transparência com a proteção de informações comerciais sensíveis.

2. Desalinhamento de Interesses Entre Países

Nem todos os países estão dispostos a compartilhar as informações de forma igualitária, e esse desequilíbrio de interesses representa um dos maiores desafios para a implementação de iniciativas globais de compartilhamento de preços de medicamentos. Embora exista um interesse claro por parte de muitos governos em acessar informações sobre os preços pagos por outros países, principalmente para melhorar sua capacidade de negociação, apenas uma minoria está disposta a divulgar seus próprios dados. Esse desalinhamento de incentivos cria uma barreira significativa à viabilidade de sistemas cooperativos de transparência de preços.

Muitos países, especialmente aqueles com menos poder de compra ou economias menores, veem o acesso a informações de preços internacionais como uma oportunidade crucial para nivelar o campo de negociação com as grandes empresas farmacêuticas. Para essas nações, saber quanto outros países pagam pelos mesmos medicamentos é uma forma de garantir que não estão sendo penalizadas com preços inflacionados. Elas podem usar esses dados para pressionar por condições mais justas e para assegurar que seus cidadãos tenham acesso aos medicamentos a um custo sustentável.

Por outro lado, os países que conseguem negociar preços significativamente mais baixos, muitas vezes devido ao seu poder de mercado ou ao volume de compras, são relutantes em compartilhar essas informações. Isso se deve, em parte, ao medo de perder sua vantagem competitiva nas negociações com a indústria farmacêutica. Se os preços que eles negociaram forem tornados públicos, outros países podem exigir os mesmos descontos, o que poderia comprometer os benefícios que esses países conseguiram em suas negociações exclusivas.

Além disso, países com economias maiores e mais robustas, que muitas vezes são capazes de negociar diretamente com grandes descontos, temem que, ao compartilhar essas informações, possam afetar negativamente seus relacionamentos comerciais com as empresas farmacêuticas. Esses fabricantes, ao perceberem que seus descontos estão sendo divulgados internacionalmente, poderiam se tornar mais reticentes em conceder reduções substanciais no futuro, prejudicando assim os acordos exclusivos que esses países desfrutam.

Esse desalinhamento entre o interesse em acessar dados e a disposição para compartilhá-los cria um grande impasse para a criação de um sistema global de compartilhamento de preços. Para que essas iniciativas sejam eficazes, é necessário que haja reciprocidade — ou seja, todos os países que se beneficiam do acesso às informações devem estar dispostos a fornecer seus próprios dados. Quando essa reciprocidade não é alcançada, o sistema perde legitimidade e eficácia, já que apenas uma parte das informações estará disponível para os demais participantes.

Esse cenário de interesses conflitantes também coloca em risco a confiabilidade e a abrangência dos dados que são compartilhados. Se apenas alguns países estiverem dispostos a divulgar seus preços, e outros optarem por manter sigilo, o valor dos dados disponíveis será reduzido, dificultando a criação de uma base de dados sólida que possa realmente apoiar as negociações globais e regionais. Além disso, a falta de cooperação entre os países mais influentes no mercado farmacêutico pode dissuadir nações menores de participarem dessas iniciativas, uma vez que não há garantias de que obterão as informações que realmente precisam.

Por exemplo, em iniciativas como o EURIPID e outras plataformas regionais de compartilhamento de preços, esse desequilíbrio já é visível. Alguns países participantes estão dispostos a compartilhar apenas preços de lista, que muitas vezes não refletem os preços reais após descontos e rebates. Enquanto isso, países que desejam acessar informações sobre preços líquidos — aqueles que mostram o valor final pago, incluindo descontos — frequentemente ficam frustrados, já que as informações de que realmente precisam não estão disponíveis devido às restrições contratuais e legais impostas por outros membros do sistema.

O efeito desse desalinhamento de interesses na viabilidade de iniciativas globais de compartilhamento de preços é profundo. A confiança é um componente essencial para o sucesso dessas iniciativas, e quando alguns países não estão dispostos a compartilhar informações importantes, isso enfraquece a confiança mútua entre os participantes. Sem um acordo claro de que todos os membros de uma iniciativa de compartilhamento de informações estarão comprometidos com a reciprocidade, será difícil estabelecer um sistema funcional que possa beneficiar todos os envolvidos.

Além disso, a falta de compartilhamento equitativo de informações também pode aumentar as desigualdades globais no acesso a medicamentos. Países com maior poder de compra continuarão a negociar preços mais baixos em segredo, enquanto aqueles com menos influência terão que pagar preços mais elevados, perpetuando as disparidades no acesso a medicamentos essenciais. Essas dinâmicas minam os objetivos fundamentais das iniciativas de compartilhamento de preços, que são justamente promover a equidade e melhorar o acesso global a medicamentos.

Por fim, é importante reconhecer que, sem um maior equilíbrio entre o interesse em acessar e a disposição em compartilhar informações, essas iniciativas correm o risco de se tornarem ferramentas incompletas e, em última análise, ineficazes. A construção de um sistema de compartilhamento global de preços de medicamentos exigirá compromissos tanto de países grandes quanto pequenos, além de reformas nas práticas de negociação e políticas de transparência que incentivem todos a contribuir igualmente.

O desalinhamento entre os países no que diz respeito ao compartilhamento de informações de preços de medicamentos é uma barreira significativa para a criação de um sistema global funcional e eficaz. Embora muitos estejam ansiosos para acessar esses dados, a relutância de alguns em compartilhar suas próprias informações impede o desenvolvimento de um sistema verdadeiramente transparente e equitativo. Superar essa barreira exigirá diálogo internacional, confiança mútua e compromissos recíprocos, além de uma reflexão profunda sobre a importância da transparência para o bem-estar global e o acesso justo a medicamentos.

3. Impacto no Acesso a Medicamentos

Há preocupações significativas de que a maior transparência nos preços de medicamentos possa, em certos casos, ter o efeito inverso ao desejado, levando ao aumento dos preços em mercados que atualmente pagam menos pelos mesmos medicamentos. Embora a transparência seja geralmente vista como uma medida que promove equidade e justiça no acesso, o comportamento das empresas farmacêuticas em um ambiente mais transparente pode acabar criando dinâmicas de precificação mais complexas e, potencialmente, prejudiciais a determinados mercados.

Quando as informações sobre os preços negociados em diferentes países são tornadas públicas, existe o risco de que os fabricantes de medicamentos reajam negativamente. Esses fabricantes, ao verem que seus descontos concedidos em determinados mercados estão sendo divulgados, podem adotar uma postura defensiva, temendo que outros países exijam os mesmos preços reduzidos. Em resposta, as empresas podem tentar ajustar suas estratégias de precificação para minimizar as perdas, o que pode resultar em aumentos de preços em mercados que anteriormente pagavam menos.

Esse fenômeno pode ocorrer porque as empresas farmacêuticas, ao enfrentar a pressão para igualar os preços em vários mercados, podem optar por nivelar os preços por cima, elevando os preços nos mercados que atualmente desfrutam de condições mais favoráveis. Esse comportamento é particularmente relevante para países de baixa e média renda, que muitas vezes recebem medicamentos a preços mais baixos como resultado de negociações individualizadas ou de políticas diferenciadas de precificação. No entanto, se as empresas começarem a perceber que esses preços mais baixos estão sendo comparados globalmente, podem ser menos propensas a oferecer tais concessões no futuro, buscando um modelo de precificação mais uniforme e, potencialmente, mais elevado.

Os fabricantes de medicamentos podem, de fato, resistir a acordos de preço mais baixos ao saber que, em um ambiente de maior transparência, esses valores podem se tornar públicos e repercutir em outros mercados. A indústria farmacêutica – que historicamente adota estratégias de discriminação de preços, ou seja, ajusta os preços conforme o poder aquisitivo e as características de cada mercado – pode ser forçada a rever essa abordagem. Se os preços reduzidos para mercados mais vulneráveis forem revelados, os países economicamente mais fortes podem pressionar por condições similares, ameaçando a margem de lucro das empresas nos mercados mais rentáveis.

Nessa situação, os fabricantes podem, em vez de continuar a conceder descontos, adotar uma postura mais rígida, optando por uniformizar os preços em um patamar mais elevado, eliminando as grandes diferenças entre países. Em última análise, essa reação pode desfavorecer os mercados que hoje conseguem negociar preços mais acessíveis, já que a divulgação de dados pode levar os fabricantes a tentarem evitar perdas em mercados mais lucrativos, impondo condições menos favoráveis em todos os lugares. Esse tipo de ajuste estratégico na precificação global pode prejudicar diretamente os países que mais dependem de preços baixos para garantir o acesso a medicamentos essenciais.

A precificação discriminatória tem sido uma prática comum no setor farmacêutico, permitindo que os fabricantes ajustem os preços de acordo com a realidade econômica de cada país. Em muitos casos, isso permite que países de baixa e média renda obtenham medicamentos a preços mais acessíveis, enquanto os países mais ricos pagam valores mais altos. No entanto, a transparência pode desequilibrar essa estratégia, já que as nações mais ricas, ao terem acesso a informações sobre os preços mais baixos praticados em mercados menos favorecidos, podem exigir a mesma redução de custos.

Por exemplo, um medicamento que é vendido a um preço reduzido em um país de baixa renda pode ser alvo de negociações em países desenvolvidos que querem igualar esse valor. Nesse cenário, as empresas podem se sentir pressionadas a reequilibrar seus modelos de precificação. Elas podem tentar compensar a perda potencial em mercados de alta renda elevando os preços nos países que, anteriormente, tinham vantagens ao negociar em condições mais favoráveis.

Além disso, a pressão para manter a lucratividade global pode levar as empresas a repensarem suas políticas de descontos, o que prejudicaria especialmente os mercados que dependem desses descontos para garantir o acesso a medicamentos caros, como os tratamentos de doenças raras e os medicamentos oncológicos. O resultado pode ser um acesso reduzido em países mais vulneráveis, justamente o oposto do que as políticas de transparência pretendem alcançar.

A resistência dos fabricantes a acordos de preço mais baixos, com medo de que esses valores se tornem públicos, também pode ter consequências políticas. Os governos, especialmente em mercados de alta renda, podem se ver pressionados por suas populações a reduzir os custos dos medicamentos, com base nas informações transparentes que indicam que outros países estão pagando menos pelos mesmos produtos. Isso pode levar a conflitos nas negociações entre governos e empresas farmacêuticas, que buscarão proteger suas margens de lucro, e, como consequência, pode retardar o acesso a medicamentos em certos mercados enquanto as negociações se arrastam.

Além disso, a transparência pode gerar instabilidade nos mercados farmacêuticos globais, à medida que as empresas tentam reformular suas estratégias de precificação para evitar os efeitos da divulgação de dados sensíveis. Isso pode causar incertezas sobre os preços de novos medicamentos e tornar as negociações mais difíceis, especialmente em um ambiente em que os governos estão cada vez mais preocupados com a sustentabilidade dos sistemas de saúde e a escalada dos custos dos medicamentos.

Embora a transparência nos preços de medicamentos seja, em teoria, uma ferramenta poderosa para promover a equidade e o acesso global, há preocupações legítimas de que ela possa levar a efeitos colaterais indesejados, como o aumento dos preços em mercados que atualmente pagam menos. O comportamento defensivo dos fabricantes, que podem resistir a conceder descontos ou ajustar seus preços globalmente para proteger seus lucros, pode minar os objetivos de políticas de transparência e resultar em condições menos favoráveis para os mercados mais vulneráveis. A transparência precisa, portanto, ser implementada com cautela, considerando as complexidades do mercado farmacêutico global e os incentivos comerciais das empresas, para garantir que os benefícios superem os riscos e que o acesso a medicamentos seja realmente ampliado de forma equitativa.

4. Complexidade das Negociações

O compartilhamento de informações de preços pode tornar as negociações com fabricantes mais complexas, pois as empresas podem ajustar suas estratégias globais de precificação. Isso pode criar desafios para os países, que precisariam equilibrar a transparência com a proteção de sua capacidade de obter descontos confidenciais.

Esse equilíbrio é essencial, já que muitos países enfrentam barreiras legais e contratuais para compartilhar preços reais. Enquanto a transparência de preços ajuda a melhorar a accountability e a reduzir custos em saúde, a divulgação irrestrita de preços pode expor informações estratégicas, levando os fabricantes a aumentarem os preços em países com maior capacidade de pagamento para compensar eventuais descontos em países com menor capacidade. Isso pode inviabilizar acordos de preços confidenciais, que muitas vezes são necessários para garantir o acesso a medicamentos de alto custo, como remédios para doenças raras e medicamentos órfãos.

Além disso, o aumento da complexidade das negociações internacionais de preços pode influenciar a sustentabilidade dos sistemas de saúde, especialmente em mercados menores que dependem da capacidade de negociação coletiva ou de acordos regionais. Diversos países preferem compartilhar informações em redes fechadas e controladas, em vez de divulgá-las publicamente, como uma forma de mitigar o impacto negativo que a divulgação aberta dos preços pode ter sobre as negociações e a estabilidade de mercado.

Conclusão

O compartilhamento de informações sobre preços de medicamentos entre países oferece várias vantagens, incluindo o fortalecimento da negociação e a promoção da transparência. A troca de dados permite que países, especialmente aqueles com menor poder de barganha, se beneficiem de negociações mais informadas e estratégias de precificação baseadas em referências internacionais. Além disso, ao promover a transparência, pode-se reduzir a assimetria de informações que favorece os fabricantes, melhorando a eficiência dos gastos públicos com saúde e facilitando o acesso a medicamentos essenciais.

No entanto, as barreiras legais e o desalinhamento de interesses entre os países representam desafios significativos para a implementação de um sistema eficaz de compartilhamento de preços. Conforme detalhado no relatório da OCDE, muitos países enfrentam restrições legais que impedem a divulgação de preços reais devido a cláusulas de confidencialidade inseridas em acordos contratuais com fabricantes. Essas cláusulas muitas vezes são fundamentais para assegurar descontos ou condições vantajosas de fornecimento, especialmente em mercados de medicamentos de alto custo, como os medicamentos órfãos e de terapias avançadas.

Outro obstáculo importante é o desalinhamento de interesses entre os países. Países com maior capacidade econômica podem não estar dispostos a compartilhar seus preços reais, temendo que isso impacte negativamente suas negociações futuras. Como o relatório aponta, mesmo que haja interesse em acessar informações de outros países, há uma relutância significativa em compartilhar os próprios dados, o que cria um ciclo de falta de cooperação que limita a efetividade de iniciativas de transparência.

Para que essa prática seja viável, será necessária uma colaboração internacional cuidadosa e ajustes nas regulamentações que governam a confidencialidade dos preços. Países terão que trabalhar juntos para criar mecanismos que equilibrem a transparência com a necessidade de proteger negociações estratégicas. Um exemplo de solução pode ser a criação de redes fechadas de compartilhamento de informações, nas quais os dados são trocados de forma confidencial entre autoridades competentes. Além disso, mudanças nas legislações nacionais, como a revisão de cláusulas de confidencialidade e a flexibilização das normas de transparência, serão essenciais para superar as barreiras legais e criar um ambiente de maior cooperação global.

Referências Bibliográficas

BARRENHO, E.; LOPERT R. Exploring the consequences of greater price transparency on the dynamics of pharmaceutical markets, OECD Health Working Papers, nº 146, OECD Publishing, Paris, Disponível em: https://doi.org/10.1787/c9250e17-en.

FONTRIER AM; GILL, J, KANAVOS P. International impact of external reference pricing: should national policy-makers care? Eur J Health Econ. 2019 Nov;20(8):1147-1164. doi: 10.1007/s10198-019-01083-w. Epub 2019 Jul 9. PMID: 31289948.

MOENS, Marjolijn; BARRENHO, Eliana; PARIS, Valérie. Exploring the feasibility of sharing information on medicine prices across countries. OECD Health Working Papers No. 171. Paris: Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD), 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1787/5e4a7a47-en.

MORGAN, Steven G.; VOGLER, Sabine; WAGNER, Anita K., Payers’ experiences with confidential pharmaceutical price discounts: A survey of public and statutory health systems in North America, Europe, and Australasia, Health Policy, Volume 121, Issue 4, 2017, Pages 354-362, Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0168851017300301).

VOGLER S, SCHNEIDER P, ZIMMERMANN N. Evolution of Average European Medicine Prices: Implications for the Methodology of External Price Referencing. Pharmacoecon Open. 2019 Sep;3(3):303-309. doi: 10.1007/s41669-019-0120-9. PMID: 30721410; PMCID: PMC6710305.

WORLD HEALTH ASSEMBLY. Improving the transparency of markets for medicines, vaccines, and health products. Resolução da 72ª Assembleia Mundial da Saúde, 2019. Disponível em: <https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA72/A72_ACONF2Rev1-en.pdf>. Acesso em: 17 set. 2024.


[1] Moens, M., E. Barrenho and V. Paris (2024), “Exploring the feasibility of sharing information on medicine prices across countries”, OECD Health Working Papers, No. 171, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/5e4a7a47-en.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


A Lei nº 14.874/2024 e a Necessidade de Regulamentação da Pesquisa com Seres Humanos no Brasil

Andrey Vilas Boas de Freitas

A promulgação da Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024[1], marca um avanço significativo na regulamentação da pesquisa com seres humanos no Brasil. Esta legislação estabelece diretrizes éticas e procedimentos rigorosos para a condução de pesquisas, além de instituir o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (SINEPSH). No entanto, apesar dos avanços, diversos aspectos da lei necessitam de regulamentação para garantir a sua plena eficácia.

Um dos aspectos a serem regulamentados é a composição e as competências do SINEPSH. A Lei nº 14.874/2024 institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, mas carece de detalhamento sobre a composição do SINEPSH, suas competências específicas e os critérios para a escolha de seus membros. Uma alternativa sugerida seria regulamentar a composição do SINEPSH com base em exemplos internacionais, como o Comitê de Ética da União Europeia[2], que inclui especialistas de diversas áreas, representantes da sociedade civil e membros independentes. A escolha dos membros poderia seguir critérios de qualificação acadêmica e experiência prática em ética de pesquisa, garantindo diversidade e representatividade.

Outro ponto que necessita de regulamentação é o processo de consentimento informado. A lei aborda o consentimento informado, mas não especifica os requisitos mínimos para sua obtenção, especialmente em contextos vulneráveis ou com populações específicas, como crianças ou pessoas com deficiência. Uma alternativa seria inspirar-se em diretrizes como as da Declaração de Helsinki e do CIOMS (Council for International Organizations of Medical Sciences)[3], que estipulam a necessidade de processos adaptados ao nível de compreensão dos participantes, incluindo consentimento informado por escrito e, em certos casos, audiovisuais. A regulamentação deve garantir que o consentimento seja um processo contínuo, com revisões periódicas durante a pesquisa.

A proteção de dados pessoais e privacidade também é um aspecto que precisa ser regulamentado. A proteção de dados pessoais dos participantes de pesquisa é mencionada na lei, mas falta um detalhamento sobre como as informações devem ser coletadas, armazenadas e compartilhadas, especialmente em estudos multicêntricos ou internacionais. A regulamentação pode seguir o modelo da GDPR (General Data Protection Regulation) da União Europeia, impondo regras estritas sobre a anonimização dos dados, a limitação do acesso a informações sensíveis e o direito dos participantes de acessarem e controlarem seus dados. É importante assegurar que as instituições de pesquisa estejam em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) do Brasil.

A fiscalização e as penalidades são outro ponto que exige regulamentação. A lei estabelece penalidades para violações das diretrizes de pesquisa, mas não especifica os mecanismos de fiscalização, nem os critérios para a aplicação de penalidades. A regulamentação poderia detalhar as competências das comissões de ética locais e do SINEPSH na fiscalização contínua das pesquisas, incluindo auditorias periódicas e mecanismos de denúncia anônima. A aplicação de penalidades deve ser proporcional à gravidade da violação e incluir desde advertências até a suspensão de licenças de pesquisa.

Por fim, a responsabilidade e a reparação em caso de danos também necessitam de regulamentação. A responsabilidade dos pesquisadores e das instituições em caso de danos aos participantes não é totalmente clara na lei, especialmente no que tange à reparação de danos físicos, psicológicos ou materiais. Uma alternativa seria basear-se em normas como as do NIH (National Institutes of Health) dos Estados Unidos[4], que estipulam a obrigatoriedade de seguros de responsabilidade civil para pesquisas envolvendo seres humanos. A regulamentação deve prever mecanismos claros e céleres para a reparação de danos, além de um fundo de compensação para vítimas em casos de insolvência dos responsáveis.

Em conclusão, a Lei nº 14.874/2024 é um marco importante, mas sua eficácia depende de uma regulamentação detalhada e bem estruturada. A adoção de melhores práticas internacionais pode contribuir para um sistema robusto de proteção aos participantes de pesquisa no Brasil, equilibrando o avanço científico com a defesa dos direitos humanos. A regulamentação desses aspectos críticos não só fortalecerá o SINEPSH, como também garantirá que o Brasil se alinhe aos mais altos padrões éticos globais em pesquisa científica.


[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Lei/L14874.htm

[2] The Independent Ethical Committee – European Commission (europa.eu)

[3] https://cioms.ch/

[4] https://www.nih.gov/


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


A Urgente Necessidade de Regulamentação da Lei 14.758/2023: Garantindo a Efetividade na Prevenção e Controle do Câncer

Andrey Vilas Boas de Freitas

Introdução

A Lei 14.758, publicada em 20 de dezembro de 2023, institui a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Câncer. Com um período de “vacatio legis” de 180 dias, esperava-se que a regulamentação da lei ocorresse até junho de 2024. No entanto, já se passaram 223 dias e ainda não há regulamentação efetiva por parte do Ministério da Saúde. Esse atraso compromete a implementação das políticas previstas e a garantia de atendimento adequado aos pacientes oncológicos no Brasil. Este artigo destaca os principais pontos da Lei 14.758 que necessitam de imediata regulamentação e a importância de flexibilidade na adaptação das normativas conforme as realidades locais.

  1. Da definição de critérios e procedimentos para otimizar a navegação dos pacientes

A “navegação do paciente” refere-se a um sistema de acompanhamento personalizado para pacientes com doenças complexas, como o câncer, com o objetivo de facilitar o acesso ao diagnóstico, tratamento e cuidados contínuos. O conceito foi desenvolvido para ajudar os pacientes a superarem as barreiras que dificultam a obtenção de cuidados médicos adequados e oportunos. Envolve a coordenação entre diferentes profissionais e serviços de saúde para garantir que o paciente receba cuidados contínuos e integrados. Isso pode incluir a organização de consultas com especialistas, a coordenação de tratamentos em diferentes locais e a comunicação entre os diferentes membros da equipe de saúde.

A regulamentação deve definir os critérios de seleção e capacitação dos navegadores de saúde[1], suas atribuições e responsabilidades, incluindo o acompanhamento do paciente desde o diagnóstico até o término do tratamento, além dos mecanismos de monitoramento e avaliação do programa para garantir sua eficiência e eficácia.

A ideia é de que os navegadores ajudem os pacientes a superarem barreiras que podem incluir dificuldades financeiras, problemas de transporte, falta de informação sobre a doença e o tratamento, barreiras linguísticas e culturais e obstáculos administrativos. Nesse sentido, sua ação envolve o fornecimento de informações sobre a doença, opções de tratamento e recursos de apoio disponíveis, ajudando os pacientes a tomarem decisões informadas sobre seu cuidado. Também cabe aos navegadores a oferta de suporte emocional e prático para ajudar os pacientes a lidarem com o impacto da doença.

Além disso, é papel dos navegadores o monitoramento do progresso do paciente ao longo do tratamento e a avaliação da eficácia do plano de cuidados, de modo a permitir a realização de ajustes conforme necessário. Essa atividade está centrada, portanto, na coleta de dados para identificar áreas de melhoria e garantir que o paciente esteja recebendo o melhor atendimento possível.

A navegação do paciente é uma abordagem essencial para melhorar a qualidade e a eficiência dos cuidados de saúde para pacientes com câncer. Ao fornecer suporte personalizado, superar barreiras, coordenar cuidados e monitorar o progresso, os navegadores de saúde ajudam a garantir que os pacientes recebam o tratamento adequado de maneira oportuna e eficaz. A implementação de um programa robusto de navegação do paciente, conforme previsto pela Lei 14.758/2023, é fundamental para alcançar os objetivos da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e melhorar a qualidade de vida dos pacientes oncológicos no Brasil.

Exemplos de Navegação do Paciente em Oncologia

Diagnóstico Rápido e Tratamento Inicial

Um paciente diagnosticado com câncer de mama pode ser designado a um navegador de saúde que ajuda a agendar rapidamente consultas com oncologistas, exames de imagem e biópsias. O navegador também pode ajudar o paciente a entender os resultados dos exames e discutir opções de tratamento.

Acesso a Tratamentos Especializados

Um paciente em uma área rural pode enfrentar dificuldades para acessar tratamentos especializados. O navegador pode organizar transporte para o paciente até um centro oncológico regional, coordenar consultas com especialistas e facilitar o uso de telemedicina para consultas de acompanhamento.

Suporte durante o Tratamento

Durante a quimioterapia, o navegador pode ajudar o paciente a gerenciar os efeitos colaterais, pode fornecer informações sobre nutrição e cuidados de suporte e mesmo organizar serviços de apoio, como aconselhamento psicológico ou grupos de apoio.

Transição para Cuidados Pós-Tratamento

Após o tratamento, o navegador pode ajudar o paciente a fazer a transição para os cuidados de sobrevivência, coordenando consultas de acompanhamento, exames regulares de monitoramento e programas de reabilitação.

  • Das fontes de financiamento

A implementação efetiva da Lei 14.758/2023 depende de um financiamento robusto e sustentável. A regulamentação das fontes de financiamento é crucial para garantir que os recursos necessários estejam disponíveis e sejam utilizados de forma eficiente e equitativa. A falta de clareza e transparência sobre as fontes de financiamento pode levar a desigualdades na distribuição de recursos, comprometendo a efetividade das políticas de prevenção e controle do câncer.

A regulamentação deve definir claramente as fontes de financiamento, que podem incluir orçamento federal, estadual e municipal, além de parcerias com a iniciativa privada e organizações não-governamentais. Isso assegura que todas as partes interessadas estejam cientes de suas responsabilidades e compromissos financeiros.

A regulamentação deve ainda estabelecer critérios claros e justos para a distribuição dos recursos financeiros. Isso pode incluir a avaliação das necessidades locais, considerando fatores como a incidência de câncer, a infraestrutura de saúde existente, a disponibilidade de profissionais qualificados e a capacidade de implementação das políticas.

Por exemplo, municípios com alta incidência de câncer e infraestrutura limitada devem receber mais recursos para desenvolver suas capacidades. Em contraste, grandes centros urbanos com recursos adequados podem focar em programas de inovação e aprimoramento da qualidade dos cuidados.

Importante destacar também a necessidade de a regulamentação incluir mecanismos de monitoramento e transparência para garantir que os recursos sejam utilizados de maneira eficaz e ética. Isso pode envolver auditorias regulares, relatórios públicos sobre a alocação e uso dos recursos, e a participação da sociedade civil no monitoramento das políticas de financiamento.

Uma via interessante seria estimular parcerias com o setor privado para complementar o financiamento público, trazendo investimentos adicionais e inovações tecnológicas para o sistema de saúde. Empresas farmacêuticas, por exemplo, podem colaborar em programas de acesso expandido a medicamentos oncológicos, enquanto organizações não-governamentais podem oferecer apoio logístico e educacional.

  • Dos protocolos clínicos

A uniformização dos tratamentos oncológicos é crucial para garantir a qualidade do atendimento. A regulamentação deve definir protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas baseadas em evidências científicas e estabelecer a obrigatoriedade da adoção desses protocolos por todas as unidades de saúde, públicas e privadas.

Além de garantir a qualidade, a adoção de protocolos clínicos facilita o atendimento de pacientes que, eventualmente, precisem se deslocar para municípios diferentes daqueles nos quais iniciaram seu tratamento.

Vale lembrar também que, para garantir a qualidade do atendimento, é fundamental investir na formação continuada dos profissionais de saúde. A regulamentação deve estabelecer programas de capacitação em oncologia para médicos, enfermeiros e demais profissionais envolvidos no cuidado dos pacientes, além de promover parcerias com universidades e instituições de ensino para o desenvolvimento de cursos e treinamentos especializados.

É preciso ainda buscar a estruturação de uma rede de assistência oncológica integrada e eficiente, abrangendo a definição de centros de referência em oncologia, garantindo acesso a tratamentos especializados, e a criação de mecanismos de regulação e encaminhamento de pacientes, evitando longas filas de espera e deslocamentos desnecessários.

  • Da necessária adaptação da política à diversidade regional e local

A diversidade regional do Brasil exige que a regulamentação da Lei 14.758/2023 seja flexível o suficiente para se adaptar às diferentes realidades locais. Municípios e estados possuem diferentes níveis de infraestrutura e disponibilidade de profissionais de saúde. A regulamentação deve permitir que cada local adapte as normativas conforme suas capacidades, garantindo a implementação eficiente da política em todo o território nacional.

Estimular parcerias entre governos locais, instituições de ensino, organizações não-governamentais e a iniciativa privada pode acelerar a implementação das políticas e melhorar a qualidade do atendimento. Incentivar o uso de tecnologias, como telemedicina e sistemas de informação em saúde, é fundamental para superar barreiras geográficas e otimizar o atendimento aos pacientes oncológicos.

A diversidade do sistema de saúde brasileiro torna imperativo que a regulamentação seja adaptável às necessidades e capacidades locais. Por exemplo, em grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, a infraestrutura de saúde é mais desenvolvida, com a presença de diversos hospitais especializados em oncologia, tecnologias avançadas e uma quantidade significativa de profissionais qualificados. Nesse contexto, a implementação dos programas previstos pela lei pode ser mais rápida e abrangente.

Por outro lado, em municípios menores e regiões mais remotas, como no interior do Amazonas ou no sertão nordestino, a realidade é bem diferente. A escassez de profissionais de saúde especializados, equipamentos médicos adequados e infraestrutura hospitalar torna a implementação da política de prevenção e controle do câncer um desafio muito maior. Nesses locais, a regulamentação deve permitir adaptações, como a utilização de telemedicina para consultas e acompanhamento de pacientes, parcerias com hospitais regionais para o encaminhamento de casos mais complexos e programas de capacitação específicos para profissionais de saúde locais.

Nos casos concretos em que existem dificuldades logísticas e de infraestrutura para oferecer tratamento oncológico adequado, a regulamentação flexível permitiria a criação de um sistema de navegação que integrasse a telemedicina para consultas iniciais e de acompanhamento, além de prever a realização de mutirões de saúde periódicos com equipes médicas especializadas que se deslocariam até a região para atendimento presencial e capacitação dos profissionais locais.

Outro aspecto crítico que necessita de regulamentação é a questão da oferta desigual de medicamentos oncológicos entre os diversos estados e municípios brasileiros pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo os medicamentos que já foram incorporados há anos ao sistema público não estão disponíveis de maneira uniforme em todo o país. Essa desigualdade no fornecimento compromete significativamente o tratamento de pacientes oncológicos, criando uma disparidade no acesso a terapias essenciais.

Por exemplo, medicamentos como o trastuzumabe, usado no tratamento do câncer de mama HER2 positivo, e o imatinibe, utilizado para tratar leucemias e tumores gastrointestinais, são amplamente reconhecidos e incorporados ao SUS. Contudo, pacientes em estados do Norte e Nordeste frequentemente enfrentam dificuldades para acessar esses medicamentos, diferentemente de pacientes em estados do Sudeste e Sul, onde a disponibilidade é mais regular.

A regulamentação precisa estabelecer mecanismos para garantir a distribuição equitativa de medicamentos oncológicos em todas as regiões do país. Isso pode incluir a criação de um sistema centralizado de gestão de estoques e distribuição, que leve em consideração as necessidades específicas de cada localidade, e a implementação de políticas que assegurem o reabastecimento constante dos medicamentos essenciais, evitando interrupções no tratamento. Experiências internacionais bem-sucedidas podem servir de referência e permitir a economia de tempo e de recursos na implementação das medidas necessárias.

Conclusão

A regulamentação da Lei 14.758/2023 é urgente para garantir a efetividade da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e do Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Câncer. A definição clara das diretrizes de implementação, financiamento, protocolos clínicos, capacitação de profissionais e garantia de distribuição equitativa de medicamentos é essencial para que os pacientes oncológicos recebam o atendimento adequado e oportuno.

Além disso, a flexibilidade na regulamentação permitirá a adaptação das políticas às diferentes realidades locais, promovendo equidade no acesso aos serviços de saúde em todo o Brasil. É imperativo que o Ministério da Saúde agilize esse processo para garantir a plena implementação da lei e a melhoria da qualidade de vida dos pacientes oncológicos no País.


[1] Os navegadores de saúde, que podem ser profissionais da área médica, enfermeiros ou assistentes sociais, são designados para cada paciente para oferecer suporte contínuo. Eles ajudam a coordenar consultas, exames, tratamentos e outras necessidades do paciente ao longo do percurso de cuidado.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


Gestão de Valor em Saúde: Um Paradigma Orientado por Desfechos

Andrey Vilas Boas de Freitas

Em um mundo cada vez mais focado na qualidade e eficiência dos serviços de saúde, a gestão de valor surge como um conceito fundamental para garantir que os pacientes recebam o melhor cuidado possível. Central para esse paradigma está a compreensão do conceito de desfecho – os resultados tangíveis e intangíveis que os pacientes experimentam ao usar produtos ou serviços de saúde.

Os desfechos são os verdadeiros direcionadores de escolhas para os consumidores de serviços de saúde. Eles representam a medida definitiva da qualidade e eficácia do cuidado prestado, influenciando diretamente a satisfação do paciente e sua decisão de continuar utilizando os serviços oferecidos.

Designers, arquitetos e engenheiros têm uma compreensão intrínseca dos desfechos em seus respectivos campos. Seu trabalho é projetar e criar produtos e ambientes que entreguem desfechos que os clientes valorizam, ao mesmo tempo em que são acessíveis e economicamente viáveis. Da mesma forma, os serviços de saúde devem ser projetados e prestados com o objetivo claro de atingir certos desfechos para os pacientes.

A gestão de valor em saúde representa uma mudança de paradigma crucial nesse sentido. Em vez de se concentrar apenas nos processos e custos associados ao fornecimento de serviços de saúde, a gestão de valor coloca os desfechos do paciente no centro de todas as decisões e estratégias.

No entanto, diferentemente de outros setores, os serviços de saúde não são tradicionalmente projetados com base naquilo que realmente importa para os pacientes. Em vez disso, os sistemas de saúde usualmente estão mais preocupados com a eficiência operacional ou com a conformidade regulatória.

Na maioria dos sistemas de saúde ao redor do mundo, a regulação e o financiamento estão historicamente centrados na quantidade de serviços prestados, em vez de nos resultados alcançados pelos pacientes. Esse modelo de remuneração, baseado em fee-for-service, ou seja, no pagamento por procedimento realizado, muitas vezes cria incentivos perversos que priorizam a quantidade sobre a qualidade e eficácia dos cuidados de saúde.

Essa abordagem quantitativa tem levado a uma ênfase excessiva em procedimentos médicos e intervenções, em detrimento de estratégias de prevenção, promoção da saúde e gestão de doenças crônicas. Além disso, incentiva a fragmentação do cuidado, pois os prestadores de serviços de saúde são pagos por cada serviço prestado, resultando em falta de coordenação entre diferentes profissionais e instituições de saúde.

Por outro lado, a falta de incentivos financeiros para a melhoria dos desfechos do paciente pode levar à estagnação na qualidade do cuidado. Os prestadores de serviços de saúde podem não ter incentivos para investir em programas de melhoria da qualidade ou adotar práticas baseadas em evidências, se essas iniciativas não estiverem diretamente ligadas ao aumento da remuneração pelos serviços prestados.

Essa desconexão entre pagamento e resultados também pode levar a um desperdício significativo de recursos. Os pacientes podem receber cuidados excessivos ou desnecessários, simplesmente porque os prestadores de serviços são recompensados por cada intervenção realizada, independentemente de sua eficácia ou valor para o paciente.

Para superar esses desafios, é fundamental uma mudança na forma pela qual os serviços de saúde são regulados e financiados. Em vez de se concentrar exclusivamente na quantidade de serviços prestados, os sistemas de saúde devem adotar abordagens de pagamento baseadas em valor, que recompensam os prestadores de serviços pelo alcance de desfechos específicos e pela entrega de cuidados de alta qualidade e eficácia.

Essa mudança para um modelo de pagamento baseado em valor exige a implementação de estruturas de incentivo que recompensem os prestadores de serviços por resultados mensuráveis, como a melhoria da saúde do paciente, a redução de readmissões hospitalares e a prevenção de complicações relacionadas ao tratamento.

Além disso, é necessário um maior investimento em sistemas de informação e tecnologia que possam monitorar e avaliar continuamente os desfechos do paciente e o desempenho dos prestadores de serviços de saúde. Isso permitirá uma avaliação mais precisa do valor entregue pelos diferentes intervenientes no sistema de saúde e uma tomada de decisão mais informada sobre a alocação de recursos.

A mudança de um modelo de pagamento baseado em quantidade para um modelo baseado em valor é essencial para promover uma prestação de cuidados de saúde mais eficaz, eficiente e centrada no paciente. Ao alinhar os incentivos financeiros com os desfechos do paciente, os sistemas de saúde podem melhorar significativamente a qualidade e a equidade do cuidado, ao mesmo tempo em que garantem a sustentabilidade financeira a longo prazo.

Para efetivamente implementar uma abordagem de gestão de valor em saúde, é essencial que os prestadores de serviços de saúde identifiquem e priorizem os desfechos que são mais significativos para os pacientes. Isso requer uma compreensão profunda das necessidades, preferências e valores dos usuários finais.

Uma vez identificados, os desfechos devem orientar todas as etapas do processo de prestação de cuidados de saúde, desde o design de intervenções clínicas até a alocação de recursos e a medição do desempenho. Os sistemas de saúde devem ser estruturados de forma a maximizar a entrega dos desfechos desejados, garantindo ao mesmo tempo uma utilização eficiente dos recursos disponíveis.

Além disso, a gestão de valor em saúde exige uma mudança cultural e organizacional significativa dentro das instituições de saúde. Isso inclui o desenvolvimento de uma cultura de transparência, prestação de contas e melhoria contínua, na qual os desfechos do paciente são constantemente monitorados e utilizados para informar a tomada de decisões em todos os níveis da organização.

A gestão de valor em saúde representa uma abordagem inovadora e orientada para o paciente, que coloca os desfechos do paciente no centro de todas as atividades e decisões relacionadas à prestação de cuidados de saúde. Ao adotar esse paradigma, os sistemas de saúde podem avançar na construção de um modelo que ofereça realmente resultados que atendam às necessidades e expectativas dos pacientes.

Os Desafios do Modelo “Fee for Service” na Gestão da Saúde

Andrey Vilas Boas de Freitas

Introdução

O modelo de “fee for service” (“pagamento por serviço”) é um método de pagamento comum na gestão de saúde, no qual os provedores de serviços médicos e de saúde recebem uma taxa fixa por cada serviço ou procedimento realizado. Em outras palavras, os profissionais de saúde são reembolsados com base na quantidade de serviços que prestam, independentemente dos resultados ou qualidade dos cuidados fornecidos.

Este modelo tem sido amplamente utilizado em sistemas de saúde em todo o mundo, especialmente nos Estados Unidos, onde historicamente tem sido a forma predominante de pagamento pelos serviços de saúde. Sob o modelo de “fee for service”, os médicos, hospitais e outros prestadores de serviços têm sido recompensados financeiramente por cada consulta, exame, tratamento ou procedimento realizado.

Embora o modelo de “fee for service” possa oferecer certa flexibilidade e liberdade de escolha aos pacientes, ele também tem sido objeto de críticas consideráveis devido aos incentivos econômicos que gera. Uma das principais críticas é que esse modelo pode produzir incentivos perversos, como o estímulo para que prestadores de serviços aumentem o volume de serviços prestados, muitas vezes às custas da qualidade, eficácia e eficiência dos cuidados de saúde, em busca de maior retorno financeiro.

Esses incentivos econômicos podem resultar em uma série de problemas, incluindo o uso excessivo e abusivo de procedimentos médicos, exames diagnósticos e internações hospitalares, bem como uma falta de incentivo para a prevenção de doenças, a gestão de condições crônicas e a coordenação eficaz dos cuidados entre os diferentes prestadores de serviços de saúde.

Como resultado, o modelo de pagamento por serviço tem sido associado a altos custos de saúde, desperdício de recursos, fragmentação dos cuidados, aumento das disparidades de saúde e subutilização de abordagens preventivas e baseadas em evidências.

O objetivo do presente artigo é discutir as implicações do modelo “fee for service” na decisão de investir em novas tecnologias (inclusive de gestão) em busca da redução de desperdícios. Acredita-se que o modelo acaba por ser um obstáculo a esses investimentos, inviabilizando-os ou, na melhor das hipóteses, mitigando seus efeitos positivos.

Incentivo ao Volume em Detrimento da Qualidade

O modelo “fee for service” (“pagamento por serviço”) é um sistema de pagamento no qual os prestadores de serviços de saúde recebem uma taxa fixa por cada serviço ou procedimento realizado, independentemente dos resultados ou qualidade dos cuidados. Sob esse modelo, os prestadores de serviços são recompensados financeiramente com base na quantidade de serviços que prestam, o que significa que quanto mais procedimentos são realizados, mais receita é gerada.

Por exemplo, um médico que trabalha sob o modelo de “fee for service” receberá uma taxa por cada consulta realizada, por cada exame de diagnóstico solicitado, por cada tratamento administrado e por cada procedimento cirúrgico realizado. Essa estrutura de pagamento cria um incentivo econômico para os prestadores de serviços aumentarem o volume de serviços prestados, uma vez que cada serviço adicional representa uma fonte adicional de receita.

Sob esse modelo, os prestadores de serviços têm um incentivo financeiro para aumentar o número de serviços prestados, independentemente da necessidade clínica real do paciente. Isso pode levar à realização excessiva de procedimentos, exames e tratamentos, muitas vezes sem evidências sólidas de benefício clínico, resultando em uma abordagem mais voltada para o volume do que para a qualidade dos cuidados. Também pode resultar em consultas mais curtas, menos tempo gasto com cada paciente e menos ênfase na comunicação, no envolvimento do paciente e na prestação de cuidados holísticos e centrados no paciente e priorização de serviços e procedimentos lucrativos em detrimento de serviços que não geram tanto lucro (o que explica em grande medida a explosão do número de exames realizados em 2023, em comparação a outros procedimentos, conforme dados da ANS.

Um estudo publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) examinou a associação entre o modelo de pagamento “fee for service” e a realização excessiva de exames de imagem para dores lombares na região lombar. Os resultados mostraram que os pacientes atendidos por médicos remunerados sob o modelo de pagamento por serviço tinham uma probabilidade significativamente maior de receber exames de imagem desnecessários em comparação com aqueles atendidos por médicos sob modelos alternativos de pagamento, como o pagamento por desempenho ou o pagamento global.[1]

Outro estudo também publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) analisou o potencial de redução de custos associados a gastos excessivos com saúde, especialmente em áreas onde os prestadores de serviços têm mais liberdade para determinar o volume e o tipo de serviços prestados.[2]

 Além disso, exemplos anedóticos de práticas clínicas que priorizam o volume sobre a qualidade também são abundantes na literatura médica e nos relatórios da mídia. Por exemplo, casos de prescrição excessiva de medicamentos, realização desnecessária de cirurgias e internações hospitalares prolongadas são frequentemente atribuídos aos incentivos criados pelo modelo “fee for service”. [3] [4] [5]

Esses exemplos e estudos destacam os desafios associados ao modelo de pagamento por serviço na prestação de cuidados de saúde e ilustram como esse modelo pode levar à priorização do volume em detrimento da qualidade dos cuidados. Essas preocupações são fundamentais para a compreensão das críticas ao modelo e para a busca de alternativas que recompensem a qualidade, a eficiência e os resultados de saúde efetivos.

Desestímulo à Inovação em Eficiência e Redução de Custos

O modelo de “fee for service” pode ter impactos significativos na inovação em eficiência e redução de custos dentro do sistema de saúde, uma vez que os prestadores de serviços são recompensados com base na quantidade de serviços prestados, e não necessariamente na eficiência com que esses serviços são entregues. Essa lógica pode desencorajar os prestadores de serviços de adotarem práticas mais eficientes, investirem em tecnologias que otimizem processos ou buscarem formas de reduzir custos, uma vez que tais medidas podem reduzir a receita gerada por meio do volume de serviços. Essas escolhas podem criar uma lacuna entre o que é financeiramente lucrativo para os prestadores de serviços e o que é clinicamente ou economicamente benéfico para o sistema de saúde como um todo.

Além disso, o modelo de pagamento por serviço pode criar barreiras à implementação de inovações em eficiência, uma vez que as mudanças nos processos de prestação de cuidados muitas vezes requerem investimentos significativos em infraestrutura, treinamento de pessoal e sistemas de informação. Sob um modelo que prioriza o volume de serviços, os prestadores de serviços podem ser relutantes em fazer tais investimentos, pois podem não ver retornos financeiros imediatos ou garantidos.

Também pode haver a priorização na oferta de serviços de alto custo em vez de investir em tecnologias ou práticas que reduzam os custos globais de assistência médica. Isso ocorre porque os prestadores de serviços são recompensados com base nos serviços prestados, e não nos custos totais de tratamento de um paciente ou população.

Falta de Incentivo à Prevenção e Gestão de Doenças Crônicas

Sob o modelo “fee for service”, os prestadores de serviços podem ter pouco incentivo financeiro para investir em programas de prevenção de doenças crônicas, como educação sobre saúde, rastreamento de riscos e intervenções de estilo de vida saudável. Isso ocorre porque os benefícios da prevenção muitas vezes não são imediatamente percebidos e podem não se traduzir em aumento direto da receita para os prestadores de serviços, uma vez que o modelo remunera com base na quantidade de serviços prestados, em vez de recompensar resultados de saúde positivos ou a eficácia na prevenção e gestão de doenças crônicas.

A ênfase do modelo está no tratamento agudo de doenças, em vez da gestão contínua de doenças crônicas. Isso pode resultar em subutilização de abordagens de gestão de doenças crônicas baseadas em evidências, como monitoramento regular, ajustes de medicação e apoio ao autocuidado, que são fundamentais para manter a saúde e prevenir complicações em pacientes com condições crônicas. Também pode criar barreiras para a coordenação eficaz do cuidado, especialmente para pacientes com múltiplas condições crônicas que requerem cuidados coordenados de vários prestadores de serviços. Como os prestadores de serviços são recompensados por serviços individuais em vez de resultados globais de saúde, pode haver falta de incentivo para a colaboração interdisciplinar e a comunicação entre os diferentes prestadores de serviços envolvidos no cuidado do paciente.

Falta de incentivos para investimentos em tecnologias preventivas e de gestão de doenças crônicas

O modelo “fee for service” pode desencorajar investimentos em tecnologias preventivas e de gestão de doenças crônicas de várias maneiras: primeiramente, por incentivar a priorização de investimentos em tecnologias e serviços que gerem receita imediata por meio de procedimentos e tratamentos curativos, em vez de investir em tecnologias preventivas ou de gestão de doenças crônicas, que podem ter retornos financeiros menos diretos e imediatos.

Além disso, o modelo de pagamento por serviço não oferece reembolso adequado para serviços preventivos e de gestão de doenças crônicas, especialmente aqueles que exigem tempo e recursos para serem eficazes, como aconselhamento sobre estilo de vida saudável, monitoramento remoto e apoio ao autocuidado. Essa é uma característica que desincentiva o investimento em tais tecnologias e serviços.

Alternativas ao “fee for service”

Existem abordagens alternativas de pagamento que recompensam investimentos em prevenção e gerenciamento de doenças crônicas, como o pagamento baseado em valor, modelo que recompensa os prestadores de serviços com base nos resultados de saúde dos pacientes, em vez de simplesmente no volume de serviços prestados. Isso pode incluir medidas de prevenção de doenças, gestão de doenças crônicas e satisfação do paciente, incentivando os prestadores de serviços a investirem em tecnologias e serviços que melhorem a saúde e reduzam os custos a longo prazo.

Outro modelo é o chamado “remuneração por capitação” (“capitation”): nesse modelo, os prestadores de serviços recebem um pagamento fixo por paciente por um determinado período, independentemente dos serviços prestados. Isso incentiva os prestadores de serviços a investirem em prevenção e gestão de doenças crônicas, uma vez que eles têm um interesse financeiro em manter os pacientes saudáveis e evitar a necessidade de tratamentos caros e procedimentos invasivos.

Existe ainda o chamado “pacote de cuidados” (“bundled services”), abordagem que envolve o pagamento de uma única taxa para um conjunto completo de serviços relacionados a um episódio de cuidado específico, como o tratamento de uma condição crônica. Isso incentiva a coordenação do cuidado e a eficiência na prestação de serviços, enquanto também pode incluir incentivos para prevenção e gestão eficaz de doenças crônicas como parte do pacote de cuidados.

Essas abordagens alternativas recompensam investimentos em prevenção e gerenciamento de doenças crônicas, fornecendo incentivos financeiros claros para os prestadores de serviços priorizarem a qualidade, eficácia e eficiência dos cuidados de saúde a longo prazo.

Exemplos de tecnologias que poderiam ser investidas sob um modelo alternativo

Investimentos em tecnologias que reduzem o desperdício e otimizam os processos podem melhorar a eficiência e reduzir os custos de assistência médica em um modelo de pagamento que prioriza resultados de saúde efetivos em vez do volume de serviços prestados.

Um bom exemplo nesse sentido é a telemedicina, na medida em que permite que os pacientes acessem cuidados de saúde remotamente, reduzindo a necessidade de visitas presenciais ao consultório médico e, consequentemente, otimizando os processos e reduzindo custos associados a viagens e tempo de espera.

Outra tecnologia fundamental são os sistemas de saúde eletrônica que integram registros médicos eletrônicos, facilitando a comunicação entre os prestadores de serviços, melhorando a coordenação do cuidado e reduzindo erros médicos associados a registros em papel. Associados a eles, o uso de dispositivos de monitoramento remoto possibilita que os pacientes monitorem seus próprios sinais vitais em casa, permitindo a detecção precoce de problemas de saúde e evitando hospitalizações desnecessárias.

Por fim, a utilização de inteligência artificial para análise de dados pode ajudar os prestadores de serviços a identificarem padrões e tendências nos dados de saúde, viabilizando intervenção precoce, personalização do tratamento e prevenção de complicações.

Conclusão

O modelo “fee for service” na gestão da saúde, embora tenha sido amplamente adotado em todo o mundo, enfrenta críticas substanciais devido aos incentivos econômicos que gera. Ao recompensar os prestadores de serviços com base no volume de serviços prestados, em vez de focar na qualidade, eficácia e eficiência dos cuidados, este modelo tem sido associado a uma série de desafios, incluindo o estímulo ao excesso de tratamentos e procedimentos, a falta de incentivo para a prevenção e a gestão de doenças crônicas, e a desestímulo à inovação em eficiência e redução de custos.

No entanto, existem alternativas promissoras que recompensam investimentos em prevenção e gerenciamento de doenças crônicas, como o pagamento baseado em valor, a remuneração por capitação e o pacote de cuidados. Essas abordagens incentivam os prestadores de serviços a priorizarem a qualidade e eficiência dos cuidados de saúde a longo prazo, ao invés do volume de serviços prestados.

Além disso, investimentos em tecnologias como telemedicina, sistemas de saúde eletrônica, dispositivos de monitoramento remoto e inteligência artificial podem melhorar a eficiência, reduzir custos e promover resultados melhores de saúde sob esses modelos alternativos.

Portanto, para enfrentar os desafios do modelo “fee for service” na gestão da saúde e avançar em direção a um sistema mais sustentável e centrado no paciente, é fundamental considerar e implementar essas alternativas e investir em tecnologias que promovam a eficiência, a prevenção e a qualidade dos cuidados de saúde.


[1] Smith-Bindman R, Miglioretti DL, Johnson E, Lee C, Feigelson HS, Flynn M, Greenlee RT, Kruger RL, Hornbrook MC, Roblin D, Solberg LI, Vanneman N, Weinmann S, Williams AE. Use of diagnostic imaging studies and associated radiation exposure for patients enrolled in large integrated health care systems, 1996-2010. JAMA. 2012 Jun 13;307(22):2400-9. doi: 10.1001/jama.2012.5960. PMID: 22692172; PMCID: PMC3859870. Disponível em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22692172/. Acesso em 27 de janeiro de 2024.

[2] Berwick DM, Hackbarth AD. Eliminating waste in US health care. JAMA. 2012 Apr 11;307(14):1513-6. doi: 10.1001/jama.2012.362. Epub 2012 Mar 14. PMID: 22419800. Disponível em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22419800/. Acesso em 28 de janeiro de 2024.

[3] https://www.em.com.br/app/noticia/saude-e-bem-viver/2022/12/11/interna_bem_viver,1430998/choosing-wisely-movimento-quer-diminuir-exames-e-tratamentos-evitaveis.shtml#google_vignette

[4] https://ndmais.com.br/saude/medico-faz-discurso-no-super-17-contra-exames-desnecessarios-em-sc-falha-de-diagnostico/

[5] https://www.gazetadopovo.com.br/viver-bem/saude-e-bem-estar/choosing-wisely-movimento-combate-ilusao-terapeutica/

A Importância da Utilização de Evidências do Mundo Real na Tomada de Decisão em Saúde no Brasil

Andrey Vilas Boas de Freitas

O crescente interesse na utilização das evidências do mundo real reflete uma mudança no paradigma da pesquisa clínica, que reconhece a necessidade de dados obtidos fora dos ensaios clínicos randomizados para informar de maneira mais abrangente as decisões em saúde. No contexto brasileiro, em que as políticas de saúde são moldadas por uma diversidade de fatores, incluindo características da população, limitações de recursos e vieses ideológicos, a utilização das evidências do mundo real pode ser um divisor de águas para uma tomada de decisão mais contextualizada e eficaz.

As evidências do mundo real (RWE, na sigla em inglês) derivam da análise de dados do mundo real, compreendendo informações obtidas durante a prática clínica rotineira, em contraste com os tradicionais ensaios clínicos randomizados. AS RWE incluem dados de estudos observacionais retrospectivos ou prospectivos, bem como registros observacionais. Ao contrário dos ensaios clínicos randomizados, nos quais a seleção de tratamentos é rigidamente controlada, os estudos de mundo real refletem as escolhas reais de pacientes e médicos, proporcionando uma visão mais alinhada com a prática clínica diária.

Embora as evidências do mundo real proporcionem uma visão inestimável da eficácia e segurança dos tratamentos em ambientes do mundo real, não se deve ignorar os desafios inerentes a essa abordagem. Questões relacionadas à incerteza sobre a validade interna, registro impreciso de eventos de saúde e a possibilidade de viés na literatura são preocupações legítimas que exigem abordagens proativas para garantir a credibilidade e utilidade desses dados.

A validade interna de estudos baseados em evidências do mundo real muitas vezes é questionada devido à falta de controle estrito sobre variáveis que podem confundir a análise. Ao contrário dos ensaios clínicos randomizados, em que as condições são altamente reguladas, os estudos de mundo real enfrentam o desafio de capturar uma ampla gama de fatores que influenciam as decisões de tratamento na prática clínica. Essa variabilidade pode introduzir incertezas nos resultados, levando a dúvidas sobre a robustez e confiabilidade dos dados.

Ao abordar essa incerteza, os pesquisadores devem empregar métodos estatísticos avançados, como ajustes de propensão e modelagem de causalidade, para minimizar o impacto de variáveis de confusão. Além disso, a transparência na divulgação das limitações e do escopo dos estudos é crucial para que os decisores entendam a extensão da incerteza associada aos resultados apresentados.

Outro desafio enfrentado nas evidências do mundo real reside no registro impreciso de eventos de saúde. Diferentemente dos ensaios clínicos randomizados, nos quais os eventos adversos são monitorados de perto em um ambiente controlado, os estudos de mundo real dependem muitas vezes de registros médicos e sistemas de saúde, que podem não capturar completamente todos os eventos relevantes. Esta lacuna pode levar a uma subestimação ou superestimação da segurança dos tratamentos.

Para abordar essa preocupação, é fundamental implementar estratégias que melhorem a qualidade dos dados de saúde utilizados nos estudos de mundo real. Isso pode envolver a integração de sistemas de informação, aprimoramento da padronização nos registros médicos e, quando possível, a validação cruzada de eventos de saúde por meio de diferentes fontes de dados. Além disso, os pesquisadores devem ser transparentes sobre as limitações nos dados de eventos de saúde e destacar as medidas tomadas para mitigar essas limitações.

Além disso, a possibilidade de viés na literatura é uma inquietação legítima, especialmente considerando preocupações sobre “data dredging” (realização de múltiplas análises até encontrar um resultado desejado) e a preferência das revistas por publicar resultados positivos. Esse viés pode distorcer a percepção dos tratamentos e influenciar indevidamente a tomada de decisões em saúde.

Para mitigar essa preocupação, um passo significativo na promoção da confiança nas evidências derivadas de estudos de mundo real é a implementação de boas práticas procedimentais como, por exemplo:

  1. a pré-especificação clara de hipóteses, protocolo e plano de análise, seguido pela publicação desses documentos antes da condução do estudo para reduzir o viés de publicação;
  2. a diferenciação entre estudos exploratórios e estudos de avaliação de hipóteses de eficácia (HETE) para uma compreensão clara dos objetivos do estudo;
  3. a publicação dos resultados do estudo com uma declaração contendo informações detalhadas sobre conformidade ou desvio do plano de análise original oferece uma visão honesta e completa do estudo, melhorando a confiabilidade e transparência;
  4. a criação de oportunidades para a replicação do estudo por outros pesquisadores sempre que possível, promovendo a transparência e confiabilidade;
  5. a realização de estudos HETE em fontes e populações diferentes daquelas usadas para gerar as hipóteses, quando viável;
  6. a produção de respostas a críticas metodológicas pelos autores do estudo original, promovendo a discussão pública e o aprimoramento contínuo do estudo;
  7. o envolvimento de partes interessadas (stakeholders) que sejam essenciais para o design, a condução e a disseminação do estudo, para garantir relevância e aplicabilidade.

Ao abordar proativamente essas preocupações, é possível otimizar a utilização das evidências do mundo real para aprimorar a tomada de decisões em saúde no Brasil. Os desafios não devem ser vistos como obstáculos intransponíveis, mas como áreas que demandam constante aprimoramento e inovação. A transparência, a colaboração entre stakeholders e o compromisso com práticas metodológicas robustas são os pilares para transformar os desafios em oportunidades.

À medida que o Brasil busca aprimorar suas políticas de saúde, a incorporação de evidências do mundo real na tomada de decisões emerge como uma estratégia vital. Ao seguir boas práticas procedimentais, é possível promover não apenas a transparência, mas também a confiança necessária para utilizar plenamente essas evidências. Essa abordagem, combinada com a consideração das nuances locais, promete uma tomada de decisão em saúde mais informada e alinhada com as necessidades específicas da população brasileira.

O caminho para a integração bem-sucedida das evidências de mundo real  às políticas de saúde do Brasil exige um esforço colaborativo de pesquisadores, decisores políticos e outros stakeholders para impulsionar uma mudança positiva em direção a práticas mais eficazes e contextualizadas.

Ao reconhecer e enfrentar os desafios inerentes às evidências do mundo real, o Brasil pode construir uma base sólida para decisões em saúde mais informadas, eficazes e alinhadas com a realidade dos cuidados médicos diários. A busca pela excelência na utilização de evidências de mundo real é uma jornada contínua, mas os benefícios potenciais para a saúde da população brasileira são inestimáveis.

Os desafios da precificação de terapias avançadas no Brasil

Andrey Vilas Boas de Freitas

A indústria farmacêutica enfrenta um desafio complexo ao precificar terapias avançadas. A busca pela inovação e o desenvolvimento de tratamentos de ponta demandam altos investimentos em pesquisa, ensaios clínicos e produção, custos muito significativos que são considerados ao determinar o preço final do produto.

Além disso, a indústria busca refletir o valor terapêutico inovador das terapias avançadas ao estabelecer preços. Isso inclui considerações sobre as evidências de eficácia e os benefícios clínicos dessas terapias, bem como a segurança e o impacto que a terapia tem na qualidade de vida do paciente.

Nas estratégias de precificação, a indústria ainda leva em conta as políticas de reembolso e as barreiras de acesso ao mercado. Preços excessivamente altos podem limitar o acesso dos pacientes, enquanto preços muito baixos podem afetar a sustentabilidade financeira da empresa. Nesse sentido, o desenvolvimento de modelos alternativos de pagamento, como acordos de pagamento por desempenho ou modelos de pagamento baseados em resultados, além de parcerias com sistemas de saúde, tem sido uma estratégia para garantir o acesso e a viabilidade financeira.

Vale dizer que é preciso ainda considerar, nesse cálculo, questões éticas e sociais, especialmente porque o desenvolvimento de terapias avançadas tem estado associado a condições graves ou raras. Nesse aspecto, a forma como a terapia é comercializada e comunicada ao público, aos médicos e aos pagadores de saúde desempenha um papel na percepção do valor do produto, o que pode impactar as estratégias de precificação.

Por fim, à medida que a disseminação de terapias avançadas torna esse tipo de produto o “novo normal”, é fundamental considerar a concorrência nesse mercado como um fator decisivo na precificação. Quanto maior a quantidade de alternativas para tratamento de questões diversas por meio de terapias avançadas, maior a pressão para redução de preços desses produtos.

Por outro lado, as operadoras de planos de saúde se deparam com a necessidade de equilibrar a acessibilidade aos tratamentos com a sustentabilidade financeira do plano. Em um ambiente no qual as terapias avançadas frequentemente apresentam preços elevados, as operadoras buscam negociar valores mais baixos para garantir que esses tratamentos sejam acessíveis aos beneficiários do plano. O debate se foca não apenas na eficácia clínica, mas também na relação custo-benefício dessas terapias para a saúde financeira de longo prazo do plano.

Essa perspectiva decorre do fato de que as operadoras de planos de saúde estão preocupadas com a sustentabilidade financeira a longo prazo. Elas buscam controlar os custos médicos para garantir que os prêmios sejam acessíveis e não se tornem proibitivos para os participantes dos planos. Nesse sentido, para cobrir determinada terapia, as operadoras de planos de saúde buscam evidências robustas de eficácia e custo-efetividade. Elas avaliam se os benefícios clínicos justificam os custos associados à terapia.

Com base nessa análise, as operadoras consideram como a terapia trará valor tangível para os participantes dos planos. Isso inclui avaliar se a terapia resolverá condições significativas, reduzirá a necessidade de tratamentos futuros e melhorará a qualidade de vida. Elas também avaliam o impacto financeiro da inclusão de uma terapia no pool de riscos do plano de saúde. Uma terapia muito cara pode afetar a distribuição dos custos entre os membros do plano.[1]

Nessa perspectiva, os altos valores atribuídos às terapias avançadas já autorizadas a serem comercializadas no Brasil serviram como incentivo ao debate sobre a necessidade de buscar acordos de compartilhamento de riscos entre as operadoras de planos de saúde e as empresas farmacêuticas, nos quais o custo da terapia está vinculado ao desempenho e aos resultados dos pacientes.

Os conflitos entre as perspectivas da indústria farmacêutica e das operadoras de planos de saúde surgem de suas prioridades e objetivos distintos. Enquanto a indústria enfatiza a inovação, os custos de pesquisa e a justificativa do valor com base em benefícios clínicos, as operadoras focam na acessibilidade, na eficácia comprovada e no controle de custos.

Esses pontos de conflito incluem a divergência entre custos elevados e acessibilidade, o debate sobre evidências de eficácia versus critérios de cobertura, além da negociação de preços. Enquanto a indústria busca lucratividade e aceitação no mercado, as operadoras buscam limitar custos médicos e proteger seus beneficiários contra encargos financeiros excessivos. A busca por um terreno comum entre essas perspectivas muitas vezes representa um desafio, requerendo um equilíbrio delicado entre inovação, acessibilidade e sustentabilidade financeira.

Esse embate precisa ser mediado pelos reguladores. O regramento atual de precificação de medicamentos no Brasil grita por atualização. Esse debate precisa avançar rapidamente, não apenas para estabelecer parâmetros efetivos de precificação de terapias avançadas, mas também para permitir nova racionalidade para todo o mercado de medicamentos.

Aliado a essas mudanças, é urgente rever critérios para que a incorporação das terapias avançadas no sistema de saúde suplementar no Brasil ocorra dentro de condições que viabilizem o acesso, preservem a estabilidade econômico-financeira das operadoras e garantam a segurança dos beneficiários. Parece ser o catalisador ideal para um debate de aprimoramento das interfaces entre os sistemas público e privado, seja para a coleta de informações sobre desfechos (essencial para assegurar a eficácia dos tratamentos), seja para a negociação das condições de pagamento pelos tratamentos, que podem ser mais benéficas para os dois sistemas se forem consideradas conjuntamente as populações por eles atendidas.

Do lado da indústria farmacêutica, a regulação deve ser incentivadora de inovação, protetora de direitos de patente, promotora da concorrência e fiscalizadora de boas práticas. É preciso eliminar, definitivamente, o viés que faz a regulação nacional tratar com desconfiança o setor produtivo.


[1] Vale dizer que no Brasil, diferentemente do que ocorre em outros países, as operadoras estão submetidas a uma regulamentação que as obriga a oferecer cobertura a tratamentos incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde, conforme normatizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o que diminui consideravelmente seu poder de negociação frente à indústria farmacêutica. Também é preciso considerar, no caso brasileiro, os parâmetros de precificação definidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), colegiado responsável pelo estabelecimento dos preços-teto de comercialização de medicamentos no Brasil, o que inclui a precificação de terapias avançadas.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996.


Inteligência Regulatória: Adaptação, Evolução e Eficiência na Regulação

Andrey Vilas Boas de Freitas

Em um mundo dinâmico e complexo, a regulação eficaz não pode mais se basear apenas em estruturas estáticas. A evolução constante da sociedade, das tecnologias e das relações econômicas exige uma abordagem mais flexível e adaptativa. Surge, então, o conceito de Inteligência Regulatória, que representa a capacidade dos órgãos reguladores de se transformar e evoluir, utilizando informações diversas para se ajustar às necessidades emergentes da realidade.

A base desse conceito está na compreensão de que os sistemas regulatórios não devem tentar impor um modelo pré-concebido à realidade, mas sim se adaptar e responder às demandas e mudanças observadas. Isso significa uma mudança de paradigma: em vez de moldar a realidade a formatos regulatórios fixos, a inteligência regulatória busca entender e se integrar à realidade em constante mutação.

Um dos pilares da inteligência regulatória é a coleta e processamento contínuo de informações provenientes de diversas fontes. Os órgãos reguladores, ao terem acesso a uma ampla gama de dados – desde indicadores econômicos e sociais até avanços tecnológicos e descobertas científicas -, podem adquirir uma visão abrangente e precisa do panorama em constante mudança no ambiente regulado. Essa inteligência é essencial para a tomada de decisões informadas e eficazes.

Os dados econômicos oferecem uma visão detalhada das dinâmicas do mercado, permitindo aos reguladores entenderem melhor os fluxos financeiros, as tendências de investimento e as pressões econômicas que impactam os diferentes setores. Com essas informações, é possível antecipar possíveis impactos de políticas regulatórias e ajustar estratégias para promover um ambiente econômico mais estável e competitivo.

Da mesma forma, dados sociais fornecem insights vitais sobre as necessidades e demandas da sociedade. Compreender questões demográficas, padrões de consumo, desigualdades e preocupações públicas é essencial para a construção de políticas regulatórias mais alinhadas com os interesses e bem-estar dos cidadãos.

Já os dados tecnológicos permitem acompanhar o ritmo acelerado das inovações. Ao estarem cientes das novas tecnologias emergentes e das mudanças nos modelos de negócios, os reguladores podem adaptar suas diretrizes para estimular a inovação responsável e garantir a segurança e eficácia dessas novas tecnologias.

Por fim, os dados científicos representam um pilar crucial para a tomada de decisões informadas. Informações provenientes de estudos e pesquisas científicas ajudam a avaliar riscos, identificar melhores práticas, compreender os impactos ambientais e de saúde, bem como a promover regulamentações baseadas em evidências.

Essa abordagem baseada em dados permite que os órgãos reguladores avaliem mais precisamente as tendências e os desafios emergentes, antecipem possíveis impactos das políticas regulatórias e, assim, tomem decisões mais informadas e eficazes. A inteligência regulatória, sustentada por análises precisas e atualizadas, não apenas promove a eficiência, mas também reforça a confiança dos cidadãos e dos agentes econômicos no sistema regulatório. É um passo crucial em direção a um ambiente regulatório mais responsivo, inovador e orientado para o bem comum.

Outro aspecto fundamental é a flexibilidade e adaptabilidade das políticas e normas regulatórias. Reconhecer que as condições e as necessidades do ambiente regulado estão em constante evolução é o cerne dessa abordagem. A inteligência regulatória compreende que políticas estáticas podem se tornar rapidamente obsoletas diante de mudanças repentinas e, portanto, defende uma abordagem dinâmica e receptiva.

A capacidade de ajustar e revisar as políticas conforme novas informações surgem é um dos pontos fundamentais. Isso implica não apenas receber dados, mas também utilizá-los de forma ágil na revisão das normas, permitindo que sejam atualizadas de acordo com as necessidades emergentes. Seja diante de avanços tecnológicos, mudanças de comportamento do mercado, descobertas científicas ou eventos inesperados, a agilidade na resposta regulatória é essencial.

Essa flexibilidade não significa apenas adaptar-se às mudanças, mas também antecipar-se a elas. Ao prever possíveis cenários futuros e analisar tendências emergentes, os órgãos reguladores podem tomar medidas proativas. Isso não apenas previne a desatualização das políticas regulatórias, mas também possibilita a criação de um ambiente mais propício à inovação e ao desenvolvimento.

Ao invés de sufocar a inovação, essa abordagem dinâmica e adaptativa promove um ambiente regulatório que estimula o surgimento de novas ideias e soluções. Ao fornecer um arcabouço normativo mais flexível e responsivo, a inteligência regulatória permite que as empresas e indivíduos experimentem e implementem novas abordagens de forma segura, criando um ciclo virtuoso de desenvolvimento e avanço.

Uma ferramenta importante nessa abordagem mais flexível é o sandbox regulatório: um ambiente controlado e seguro no qual empresas, startups, e até mesmo indivíduos, podem testar e implementar novas ideias, produtos e serviços inovadores, sem o ônus das restrições regulatórias convencionais. A principal vantagem do sandbox é a flexibilidade oferecida dentro de um ambiente regulamentado: em vez de impor regras rígidas e estáticas desde o início, o sandbox permite uma abordagem mais interativa e colaborativa. Ele possibilita que os reguladores e as entidades reguladas trabalhem juntos na criação de regras adaptadas às especificidades do projeto inovador em questão.

Dentro desse ambiente controlado, as empresas e empreendedores podem testar suas soluções em um ambiente real, mas delimitado, com uma supervisão regulatória que busca entender os riscos envolvidos e oferecer orientação conforme o processo avança. Isso permite que os participantes experimentem e implementem novas abordagens com mais segurança, minimizando possíveis impactos negativos para o mercado ou para os consumidores.

Ao facilitar essa experimentação controlada, o sandbox promove um ciclo virtuoso de desenvolvimento. As empresas podem testar e ajustar suas inovações de forma mais ágil, respondendo rapidamente às necessidades do mercado. Isso não apenas acelera o processo de inovação, mas também permite que novas ideias sejam refinadas e aprimoradas antes de serem lançadas em escala comercial.

Além disso, o sandbox pode gerar benefícios mais amplos, uma vez que os insights obtidos durante esses testes podem ser compartilhados com os reguladores para aprimorar a compreensão das necessidades do mercado e dos desafios regulatórios.

Por fim, a transparência e o diálogo são peças-chave na construção da inteligência regulatória. A participação ativa dos diversos atores envolvidos no processo regulatório – da sociedade civil ao setor privado e acadêmico – enriquece o processo decisório, fornecendo uma variedade de perspectivas e conhecimentos. Uma colaboração frutífera começa com o estabelecimento de canais abertos e transparentes de comunicação entre os órgãos reguladores, empresas do setor privado e instituições acadêmicas. O diálogo constante permite a troca de conhecimentos, experiências e informações cruciais para o desenvolvimento de políticas regulatórias mais eficazes.

O ambiente concorrencial deve ser um tema transversal nessa estratégia colaborativa. O objetivo é promover uma concorrência justa que estimule a inovação, melhore a qualidade dos produtos e serviços oferecidos e beneficie os consumidores. A busca por políticas regulatórias equilibradas e flexíveis é essencial para criar um ambiente que impulsione a competição saudável.

A aplicação bem-sucedida da inteligência regulatória não é apenas uma questão de eficiência; é uma questão de garantir um ambiente regulatório que responda adequadamente aos desafios e necessidades contemporâneos. Essa abordagem adaptativa é fundamental para promover a inovação, proteger os interesses públicos e, ao mesmo tempo, fomentar o desenvolvimento econômico e social.

Em um mundo em constante transformação, a inteligência regulatória se torna uma ferramenta vital para a construção de um ambiente regulatório mais dinâmico, responsivo e capaz de promover um desenvolvimento sustentável e inclusivo. É a capacidade de evoluir e se adaptar que define a eficácia da regulação nos tempos modernos.