Andrey Vilas Boas de Freitas

Introdução

O modelo de “fee for service” (“pagamento por serviço”) é um método de pagamento comum na gestão de saúde, no qual os provedores de serviços médicos e de saúde recebem uma taxa fixa por cada serviço ou procedimento realizado. Em outras palavras, os profissionais de saúde são reembolsados com base na quantidade de serviços que prestam, independentemente dos resultados ou qualidade dos cuidados fornecidos.

Este modelo tem sido amplamente utilizado em sistemas de saúde em todo o mundo, especialmente nos Estados Unidos, onde historicamente tem sido a forma predominante de pagamento pelos serviços de saúde. Sob o modelo de “fee for service”, os médicos, hospitais e outros prestadores de serviços têm sido recompensados financeiramente por cada consulta, exame, tratamento ou procedimento realizado.

Embora o modelo de “fee for service” possa oferecer certa flexibilidade e liberdade de escolha aos pacientes, ele também tem sido objeto de críticas consideráveis devido aos incentivos econômicos que gera. Uma das principais críticas é que esse modelo pode produzir incentivos perversos, como o estímulo para que prestadores de serviços aumentem o volume de serviços prestados, muitas vezes às custas da qualidade, eficácia e eficiência dos cuidados de saúde, em busca de maior retorno financeiro.

Esses incentivos econômicos podem resultar em uma série de problemas, incluindo o uso excessivo e abusivo de procedimentos médicos, exames diagnósticos e internações hospitalares, bem como uma falta de incentivo para a prevenção de doenças, a gestão de condições crônicas e a coordenação eficaz dos cuidados entre os diferentes prestadores de serviços de saúde.

Como resultado, o modelo de pagamento por serviço tem sido associado a altos custos de saúde, desperdício de recursos, fragmentação dos cuidados, aumento das disparidades de saúde e subutilização de abordagens preventivas e baseadas em evidências.

O objetivo do presente artigo é discutir as implicações do modelo “fee for service” na decisão de investir em novas tecnologias (inclusive de gestão) em busca da redução de desperdícios. Acredita-se que o modelo acaba por ser um obstáculo a esses investimentos, inviabilizando-os ou, na melhor das hipóteses, mitigando seus efeitos positivos.

Incentivo ao Volume em Detrimento da Qualidade

O modelo “fee for service” (“pagamento por serviço”) é um sistema de pagamento no qual os prestadores de serviços de saúde recebem uma taxa fixa por cada serviço ou procedimento realizado, independentemente dos resultados ou qualidade dos cuidados. Sob esse modelo, os prestadores de serviços são recompensados financeiramente com base na quantidade de serviços que prestam, o que significa que quanto mais procedimentos são realizados, mais receita é gerada.

Por exemplo, um médico que trabalha sob o modelo de “fee for service” receberá uma taxa por cada consulta realizada, por cada exame de diagnóstico solicitado, por cada tratamento administrado e por cada procedimento cirúrgico realizado. Essa estrutura de pagamento cria um incentivo econômico para os prestadores de serviços aumentarem o volume de serviços prestados, uma vez que cada serviço adicional representa uma fonte adicional de receita.

Sob esse modelo, os prestadores de serviços têm um incentivo financeiro para aumentar o número de serviços prestados, independentemente da necessidade clínica real do paciente. Isso pode levar à realização excessiva de procedimentos, exames e tratamentos, muitas vezes sem evidências sólidas de benefício clínico, resultando em uma abordagem mais voltada para o volume do que para a qualidade dos cuidados. Também pode resultar em consultas mais curtas, menos tempo gasto com cada paciente e menos ênfase na comunicação, no envolvimento do paciente e na prestação de cuidados holísticos e centrados no paciente e priorização de serviços e procedimentos lucrativos em detrimento de serviços que não geram tanto lucro (o que explica em grande medida a explosão do número de exames realizados em 2023, em comparação a outros procedimentos, conforme dados da ANS.

Um estudo publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) examinou a associação entre o modelo de pagamento “fee for service” e a realização excessiva de exames de imagem para dores lombares na região lombar. Os resultados mostraram que os pacientes atendidos por médicos remunerados sob o modelo de pagamento por serviço tinham uma probabilidade significativamente maior de receber exames de imagem desnecessários em comparação com aqueles atendidos por médicos sob modelos alternativos de pagamento, como o pagamento por desempenho ou o pagamento global.[1]

Outro estudo também publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) analisou o potencial de redução de custos associados a gastos excessivos com saúde, especialmente em áreas onde os prestadores de serviços têm mais liberdade para determinar o volume e o tipo de serviços prestados.[2]

 Além disso, exemplos anedóticos de práticas clínicas que priorizam o volume sobre a qualidade também são abundantes na literatura médica e nos relatórios da mídia. Por exemplo, casos de prescrição excessiva de medicamentos, realização desnecessária de cirurgias e internações hospitalares prolongadas são frequentemente atribuídos aos incentivos criados pelo modelo “fee for service”. [3] [4] [5]

Esses exemplos e estudos destacam os desafios associados ao modelo de pagamento por serviço na prestação de cuidados de saúde e ilustram como esse modelo pode levar à priorização do volume em detrimento da qualidade dos cuidados. Essas preocupações são fundamentais para a compreensão das críticas ao modelo e para a busca de alternativas que recompensem a qualidade, a eficiência e os resultados de saúde efetivos.

Desestímulo à Inovação em Eficiência e Redução de Custos

O modelo de “fee for service” pode ter impactos significativos na inovação em eficiência e redução de custos dentro do sistema de saúde, uma vez que os prestadores de serviços são recompensados com base na quantidade de serviços prestados, e não necessariamente na eficiência com que esses serviços são entregues. Essa lógica pode desencorajar os prestadores de serviços de adotarem práticas mais eficientes, investirem em tecnologias que otimizem processos ou buscarem formas de reduzir custos, uma vez que tais medidas podem reduzir a receita gerada por meio do volume de serviços. Essas escolhas podem criar uma lacuna entre o que é financeiramente lucrativo para os prestadores de serviços e o que é clinicamente ou economicamente benéfico para o sistema de saúde como um todo.

Além disso, o modelo de pagamento por serviço pode criar barreiras à implementação de inovações em eficiência, uma vez que as mudanças nos processos de prestação de cuidados muitas vezes requerem investimentos significativos em infraestrutura, treinamento de pessoal e sistemas de informação. Sob um modelo que prioriza o volume de serviços, os prestadores de serviços podem ser relutantes em fazer tais investimentos, pois podem não ver retornos financeiros imediatos ou garantidos.

Também pode haver a priorização na oferta de serviços de alto custo em vez de investir em tecnologias ou práticas que reduzam os custos globais de assistência médica. Isso ocorre porque os prestadores de serviços são recompensados com base nos serviços prestados, e não nos custos totais de tratamento de um paciente ou população.

Falta de Incentivo à Prevenção e Gestão de Doenças Crônicas

Sob o modelo “fee for service”, os prestadores de serviços podem ter pouco incentivo financeiro para investir em programas de prevenção de doenças crônicas, como educação sobre saúde, rastreamento de riscos e intervenções de estilo de vida saudável. Isso ocorre porque os benefícios da prevenção muitas vezes não são imediatamente percebidos e podem não se traduzir em aumento direto da receita para os prestadores de serviços, uma vez que o modelo remunera com base na quantidade de serviços prestados, em vez de recompensar resultados de saúde positivos ou a eficácia na prevenção e gestão de doenças crônicas.

A ênfase do modelo está no tratamento agudo de doenças, em vez da gestão contínua de doenças crônicas. Isso pode resultar em subutilização de abordagens de gestão de doenças crônicas baseadas em evidências, como monitoramento regular, ajustes de medicação e apoio ao autocuidado, que são fundamentais para manter a saúde e prevenir complicações em pacientes com condições crônicas. Também pode criar barreiras para a coordenação eficaz do cuidado, especialmente para pacientes com múltiplas condições crônicas que requerem cuidados coordenados de vários prestadores de serviços. Como os prestadores de serviços são recompensados por serviços individuais em vez de resultados globais de saúde, pode haver falta de incentivo para a colaboração interdisciplinar e a comunicação entre os diferentes prestadores de serviços envolvidos no cuidado do paciente.

Falta de incentivos para investimentos em tecnologias preventivas e de gestão de doenças crônicas

O modelo “fee for service” pode desencorajar investimentos em tecnologias preventivas e de gestão de doenças crônicas de várias maneiras: primeiramente, por incentivar a priorização de investimentos em tecnologias e serviços que gerem receita imediata por meio de procedimentos e tratamentos curativos, em vez de investir em tecnologias preventivas ou de gestão de doenças crônicas, que podem ter retornos financeiros menos diretos e imediatos.

Além disso, o modelo de pagamento por serviço não oferece reembolso adequado para serviços preventivos e de gestão de doenças crônicas, especialmente aqueles que exigem tempo e recursos para serem eficazes, como aconselhamento sobre estilo de vida saudável, monitoramento remoto e apoio ao autocuidado. Essa é uma característica que desincentiva o investimento em tais tecnologias e serviços.

Alternativas ao “fee for service”

Existem abordagens alternativas de pagamento que recompensam investimentos em prevenção e gerenciamento de doenças crônicas, como o pagamento baseado em valor, modelo que recompensa os prestadores de serviços com base nos resultados de saúde dos pacientes, em vez de simplesmente no volume de serviços prestados. Isso pode incluir medidas de prevenção de doenças, gestão de doenças crônicas e satisfação do paciente, incentivando os prestadores de serviços a investirem em tecnologias e serviços que melhorem a saúde e reduzam os custos a longo prazo.

Outro modelo é o chamado “remuneração por capitação” (“capitation”): nesse modelo, os prestadores de serviços recebem um pagamento fixo por paciente por um determinado período, independentemente dos serviços prestados. Isso incentiva os prestadores de serviços a investirem em prevenção e gestão de doenças crônicas, uma vez que eles têm um interesse financeiro em manter os pacientes saudáveis e evitar a necessidade de tratamentos caros e procedimentos invasivos.

Existe ainda o chamado “pacote de cuidados” (“bundled services”), abordagem que envolve o pagamento de uma única taxa para um conjunto completo de serviços relacionados a um episódio de cuidado específico, como o tratamento de uma condição crônica. Isso incentiva a coordenação do cuidado e a eficiência na prestação de serviços, enquanto também pode incluir incentivos para prevenção e gestão eficaz de doenças crônicas como parte do pacote de cuidados.

Essas abordagens alternativas recompensam investimentos em prevenção e gerenciamento de doenças crônicas, fornecendo incentivos financeiros claros para os prestadores de serviços priorizarem a qualidade, eficácia e eficiência dos cuidados de saúde a longo prazo.

Exemplos de tecnologias que poderiam ser investidas sob um modelo alternativo

Investimentos em tecnologias que reduzem o desperdício e otimizam os processos podem melhorar a eficiência e reduzir os custos de assistência médica em um modelo de pagamento que prioriza resultados de saúde efetivos em vez do volume de serviços prestados.

Um bom exemplo nesse sentido é a telemedicina, na medida em que permite que os pacientes acessem cuidados de saúde remotamente, reduzindo a necessidade de visitas presenciais ao consultório médico e, consequentemente, otimizando os processos e reduzindo custos associados a viagens e tempo de espera.

Outra tecnologia fundamental são os sistemas de saúde eletrônica que integram registros médicos eletrônicos, facilitando a comunicação entre os prestadores de serviços, melhorando a coordenação do cuidado e reduzindo erros médicos associados a registros em papel. Associados a eles, o uso de dispositivos de monitoramento remoto possibilita que os pacientes monitorem seus próprios sinais vitais em casa, permitindo a detecção precoce de problemas de saúde e evitando hospitalizações desnecessárias.

Por fim, a utilização de inteligência artificial para análise de dados pode ajudar os prestadores de serviços a identificarem padrões e tendências nos dados de saúde, viabilizando intervenção precoce, personalização do tratamento e prevenção de complicações.

Conclusão

O modelo “fee for service” na gestão da saúde, embora tenha sido amplamente adotado em todo o mundo, enfrenta críticas substanciais devido aos incentivos econômicos que gera. Ao recompensar os prestadores de serviços com base no volume de serviços prestados, em vez de focar na qualidade, eficácia e eficiência dos cuidados, este modelo tem sido associado a uma série de desafios, incluindo o estímulo ao excesso de tratamentos e procedimentos, a falta de incentivo para a prevenção e a gestão de doenças crônicas, e a desestímulo à inovação em eficiência e redução de custos.

No entanto, existem alternativas promissoras que recompensam investimentos em prevenção e gerenciamento de doenças crônicas, como o pagamento baseado em valor, a remuneração por capitação e o pacote de cuidados. Essas abordagens incentivam os prestadores de serviços a priorizarem a qualidade e eficiência dos cuidados de saúde a longo prazo, ao invés do volume de serviços prestados.

Além disso, investimentos em tecnologias como telemedicina, sistemas de saúde eletrônica, dispositivos de monitoramento remoto e inteligência artificial podem melhorar a eficiência, reduzir custos e promover resultados melhores de saúde sob esses modelos alternativos.

Portanto, para enfrentar os desafios do modelo “fee for service” na gestão da saúde e avançar em direção a um sistema mais sustentável e centrado no paciente, é fundamental considerar e implementar essas alternativas e investir em tecnologias que promovam a eficiência, a prevenção e a qualidade dos cuidados de saúde.


[1] Smith-Bindman R, Miglioretti DL, Johnson E, Lee C, Feigelson HS, Flynn M, Greenlee RT, Kruger RL, Hornbrook MC, Roblin D, Solberg LI, Vanneman N, Weinmann S, Williams AE. Use of diagnostic imaging studies and associated radiation exposure for patients enrolled in large integrated health care systems, 1996-2010. JAMA. 2012 Jun 13;307(22):2400-9. doi: 10.1001/jama.2012.5960. PMID: 22692172; PMCID: PMC3859870. Disponível em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22692172/. Acesso em 27 de janeiro de 2024.

[2] Berwick DM, Hackbarth AD. Eliminating waste in US health care. JAMA. 2012 Apr 11;307(14):1513-6. doi: 10.1001/jama.2012.362. Epub 2012 Mar 14. PMID: 22419800. Disponível em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22419800/. Acesso em 28 de janeiro de 2024.

[3] https://www.em.com.br/app/noticia/saude-e-bem-viver/2022/12/11/interna_bem_viver,1430998/choosing-wisely-movimento-quer-diminuir-exames-e-tratamentos-evitaveis.shtml#google_vignette

[4] https://ndmais.com.br/saude/medico-faz-discurso-no-super-17-contra-exames-desnecessarios-em-sc-falha-de-diagnostico/

[5] https://www.gazetadopovo.com.br/viver-bem/saude-e-bem-estar/choosing-wisely-movimento-combate-ilusao-terapeutica/

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