Anglicanismo, eleições e antitruste: “Uma casa dividida contra si mesma não se sustenta”
Ana Sofia Cardoso Monteiro SignorelliA igreja anglicana foi criada em 1534, a partir de um...
Ana Sofia Cardoso Monteiro SignorelliA igreja anglicana foi criada em 1534, a partir de um...
Eduardo Molan Gaban & Guilherme dos SantosNo dia 26 de outubro de 2022, a Superintendência-Geral...
Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça
O Poder Judiciário brasileiro contava em 31.07.2022 com 75.855.539 milhões de processos em tramitação[1], segundo números do Relatório Justiça em Números de 2022 (Ano-Base 2021).[2] A busca por uma solução que contemple o par “eficiência” e “celeridade” no julgamento das lides urge e, nessa angústia, muitos apostam todas as suas fichas na algoritmização do Poder Judiciário.
Não parece haver dúvidas de que essa algoritmização faz parte da inclusão do Poder Judiciário na (nova) Sociedade da Informação e é fato que já vem auxiliando para a “celeridade” da prestação jurisdicional, na medida em que os algoritmos, treinados para determinados fins, fazem o trabalho de modo mais ágil que o ser humano.
No entanto, algoritmização do Poder Judiciário entregará a eficiência e a verdadeira prestação jurisdicional? Esse é o questionamento que esse artigo chama à atenção, além do perigo da algoritmização de toda e qualquer atividade desenvolvida pelo Poder Judiciário.
Para responder a esse questionamento, dividimos o artigo em três partes: (i) O estado atual da algoritmização do Poder Judiciário; (ii) Os algoritmos; (iii) O Juiz de Lata e o perigo da robotização do Poder Judiciário.
(i) O estado atual da algoritmização do Poder Judiciário
A algoritmização do Poder Judiciário caminha a passos largos. Programa criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – Justiça 4.0 – anuncia que “[o] Programa Justiça 4.0 torna sistema judiciário brasileiro da sociedade ao disponibilizar novas tecnologias de inteligência artificial”, “impulsiona a transformação digital do Judiciário para garantir serviços mais rápidos, eficazes e acessíveis”, além de “promover soluções digitais colaborativas que automatizam as atividades dos tribunais, otimizam o trabalho dos magistrados, servidores e advogados e garantem, assim, mais produtividade, celeridade, governança e transparência dos processos”, atuando em 4 eixos:
O sítio eletrônico do CNJ também informa que há outras ações em andamento como: (i) Plataforma Digital do Poder Judiciário; (ii) Plataforma Sinapses/Inteligência Artificial; (iii) Plataforma Codex; (iv) Balcão Virtual; (v) Núcleos de Justiça 4.0; (vi) Juízo 100% Digital; (vii) Painel das Resoluções; e (viii) Domicílio Judicial Eletrônico.
O Segundo Relatório do CNJ elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) tratou sobre as “Tecnologias Aplicadas à Gestão de Conflitos no Poder Judiciário com ênfase no uso da inteligência artificial”[4] quando em 2020, já contava com 64 projetos de Inteligência Artificial em funcionamento ou em processo de implantação em 47 tribunais do país, além da Plataforma Sinapses do CNJ, sendo entendidas, pelo próprio CNJ, como um dos instrumentos mais importantes de gestão do Poder Judiciário, uma vez que implica em racionalizar recursos, mão de obra e atividades, diante de uma demanda cada vez mais crescente.[5]
Artigo escrito pelo Ministro Luis Felipe Salomão[6], Coordenador do Projeto, classifica os programas de Inteligência Artificial aplicados no Poder Judiciário em quatro grupos:
Recentemente, também foi noticiada a ocorrência da primeira audiência via metaverso na Justiça Federal na Paraíba,[7] o que confirma que o caminho em direção a algoritmização do Poder Judiciário brasileiro anda de vento em popa.
Essa é a fotografia atual da algoritmização do Poder Judiciário.
(ii) Os algoritmos
Os algoritmos estão por toda parte e podem ser usados com boas ou más intenções. Para se permitir indiscriminadamente a utilização de algoritmos no Poder Judiciário é fundamental entender como são construídos, por quem são construídos e quais os interesses, ideias e ideais das empresas que os constroem.
A origem da palavra algoritmo remete a Al Khowarizmi, famoso matemático árabe do século IX.[8] Mas, o que são os algoritmos? Como são desenvolvidos? São opacos? Como são formadas as bases de informações no input para produzirem o resultado output?
Um algoritmo é, pois, uma sequência de raciocínios, instruções ou operações para alcançar um objetivo, sendo necessários que os passos sejam finitos e operados sistematicamente. Um algoritmo, portanto, conta com a entrada (input) e a saída (output) de informações mediadas pelas instruções. Na prática, “são apresentados, corriqueiramente, como fornecedores de insights de como somos como pessoas e são capazes de prever como nos comportaremos no futuro.”[9]
Segundo Leonardo Marques Vieira, “[o]s algoritmos são modelos matemáticos (softwares) ordenados por uma determinada finalidade, buscando padrões de números.”[10] Registre-se, pois, que os “algoritmos são falíveis e limitados”[11] e “as conclusões que tiram a nosso respeito podem ser discriminatórias”[12] mas, não obstante isso, já dominam todas as formas do comportamento humano na sociedade do controle.
David Sumpter parafraseando Cathy O’Neil diz que “os usos indevidos de algoritmos em tudo, desde a avaliação de professores e propagandas on-line de cursos universitários a fornecimento de crédito privado e previsões de reincidências criminais” e que “[s]uas conclusões eram assustadoras, eis que os algoritmos estavam nos julgando de maneira arbitrária, frequentemente baseados em pressuposições dúbias e dados imprecisos”.
No estágio atual da transição paradigmática para a sociedade do controle, das redes, da tecnologia da informação, os algoritmos provocam ao menos dois grandes sentimentos:
No que concerne as suas características, ao menos duas já foram identificadas:
(i) a primeira, a de que são opacos, verdadeiras “caixas pretas”, onde não há possibilidade dos juízes ou qualquer um dos jurisdicionados entender quais informações foram introduzidas no (Input) e nem como o algoritmo chegou a determinado resultado (Output), o que impede o conhecimento do funcionamento interno dos algoritmos, daí “[a]s pessoas quererem saber o que está acontecendo dentro das caixas-pretas que são usadas para nos avaliar e influenciar.”[13]
(ii) o segundo, o de que o modo como os algoritmos são “ensinados” partem de duas perspectivas bastante preocupantes do ponto de vista da retratação da “realidade fática”, ou seja, não só são projetados por meio das informações que o próprio homem ensina à máquina, como captam informações e vieses de outros algoritmos semelhantes por meio de machine learnings ou deep learnings.
Sobre a opacidade dos algoritmos, Sumpter aduz que o termo “caixa-preta” foi utilizado em duas oportunidades, tanto por Frank Pasquale, no título do seu livro “The Black Box Society”, quanto pela ProPublica, em sua série de matérias e vídeos curtos sobre algoritmos chamada “Breaking the Black Box”.” [14]
É fato que na sociedade da informação, “[k]nowledge is power.”[15] Frank Pasquale anuncia que “Deconstructing the black boxes of Big Data isn’t easy”[16] e que há três motivos, ao menos, para se manter as caixas pretas fechadas: sigilo real, sigilo legal e ofuscação, ex vi:
O verdadeiro sigilo estabelece uma barreira entre o conteúdo oculto e o acesso não autorizado a ele. Usamos sigilo real diariamente quando trancamos nossas portas ou protegemos nosso e-mail com senhas. O sigilo legal obriga aqueles que têm acesso a certas informações a mantê-las em segredo; um funcionário do banco é obrigado tanto por autoridade estatutária quanto por termos de contrato a não revelar saldos de clientes a seus amigos. A ofuscação envolve tentativas deliberadas de ocultação quando o sigilo foi comprometido. [17]
Posto isso, considerando que “[n]enhum modelo consegue incluir toda e qualquer complexidade do mundo real ou as nuances da comunicação humana e que “inevitavelmente alguma informação importante fica de fora”[18], acende-se um gravíssimo alerta para a algoritmização de toda e qualquer função no Poder Judiciário.
(iii) O Juiz de Lata e o perigo da robotização do Poder Judiciário
A partir de todas essas considerações, surgem alguns questionamentos importantes:
Surge, então, uma reflexão, um balanceamento dos interesses em conflito, entre a “celeridade” que os programas tecnológicos constituídos por algoritmos podem proporcionar ao Poder Judiciário em termos de rapidez, organização de dados, diminuição da mão-de-obra humana, barateamento de recursos, dentre inúmeros outros e, de outro lado, o perigo para a robotização de todas as funções do Poder Judiciário e, sobretudo, a função de julgar (Terceiro Grupo de programas) que já estão sendo usados no Brasil.
Desse modo, por mais que se diga que a decisão elaborada por um “algoritmo, programa ou robô” ainda prescinda da intervenção humana, dada a quantidade de processos que assolam o Poder Judiciário, a pequena quantidade de servidores para dar conta de tão grande demanda, a pressão pelo atingimento das metas de julgamento, dentre inúmeros outros fatores, chegamos a duas importantes conclusões:
Posto isso, estejamos ainda mais atentos para que a humanidade e o Poder Judiciário não percam o que tanto o homem de lata buscou – um coração que possa compreender de modo holístico o que por trás dos processos judiciais (físicos ou digitais, átomos ou bits) porque atrás desses existem vidas e o sentimento de Justiça que não pode ser alcançado por um juiz de lata, sem coração.
[1] Disponível em Estatísticas do Poder Judiciário (cnj.jus.br) em 07/10/2022.
[2] Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf em 05/10/2022. (p. 30)
[3] Disponível em https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/
[4] Disponível em https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/relatorio_ia_2fase.pdf em 05/10/2022.
[5] Disponível em https://www.cnj.jus.br/pesquisa-revela-que-47-tribunais-ja-investem-em-inteligencia-artificial/ em 05/10/2022.
[6] Disponívsel em https://www.conjur.com.br/2022-mai-11/salomao-tauk-estamos-perto-juiz-robo em 05/10/2022.
[7] Disponível em Justiça Federal na Paraíba realiza primeira audiência real do Brasil no metaverso – Portal CNJ em 05/10/2022.
[8] Disponível em https://rockcontent.com/br/blog/algoritmo/#:~:text=Um%20algoritmo%20%C3%A9%20uma%20sequ%C3%AAncia,matem%C3%A1tico%20%C3%A1rabe%20do%20s%C3%A9culo%20IX disponível em 28/07/2022.
[9] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 63.
[10] VIEIRA, Leonardo Marques. A problemática da Inteligência Artificial e dos vieses algorítmicos: caso Compas. Op. Cit.
[11] VIEIRA, Leonardo Marques. A problemática da Inteligência Artificial e dos vieses algorítmicos: caso Compas. Brasilian Technology Symposium, 2019. Disponível em https://www.lcv.fee.unicamp.br/images/BTSym-19/Papers/090.pdf em 11/08/2022.
[12] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Tradução: Anna Maria Sotero e Marcello Neto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019, p. 23.
[13] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 27.
[14] Idem.
[15] PASQUALE, Frank. The black box Society: the Secret Algorithms That Control Money and Information. First Harvard University Press paperback edition, 2016, Sixth Printing, p.3.
[16] PASQUALE, Frank. The black box Society: the Secret Algorithms That Control Money and Information. Idem, p. 6.
[17] Tradução livre: Real secrecy establishes a barrier between hidden contente and unauthorized access to it. We use real secrecy daily when we lock our doors or protect our e-mail with passwords. Legal secrecy obliges those privy to certain information to keep it secret; a bank Employee is obliged both by staturory authority and by terms of employment not to reveal costumers’ balances to his buddies. Obfuscation involves deliberate attempts at concelament when secrecy has been comprommised.[17]
[18] O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Tradução: Rafael Abraham. Santo André, SP: Editora Rua do Sabão, 2020, p. 33.
[19] SUMPTER, David. Dominados pelos números do Facebook e Google às Fake News – os algoritmos que controlam nossa vida. Op. Cit., p. 59.
Angelo Prata de Carvalho
Francis Fukuyama conquistou ampla fama ao sustentar que, por ocasião da queda do muro de Berlim, firmou-se notável consenso em torno da superioridade das democracias liberais ocidentais e do capitalismo sobre suas ideologias rivais. A conclusão do autor, na verdade, não se limita a afirmar a vitória do capitalismo liberal ocidental, mas consiste em dizer que tal sistema político-econômico consiste no ponto final da evolução ideológica humana ou, ainda, no fim da história[1].
O fim da história já foi também pontificado no campo do Direito Empresarial, como se depreende do texto clássico de Henry Hansmann e Reinier Kraakman, para quem, por mais que ainda persistam intensos debates a respeito de instituições fundantes do Direito Societário, do mercado de capitais e das próprias estruturas de governança, as reflexões essenciais sobre essa seara adquiriram considerável grau de homogeneidade em torno da proteção dos interesses dos sócios[2]. Assim, os esforços empreendidos no sentido de proteger outros interesses afetados pela atuação dos agentes econômicos foram suplantados por uma ideologia dominante que protege preocupações de curto prazo relacionadas à satisfação dos interesses mais imediatos dos sócios – notadamente a maximização de seu autointeresse.
A construção de um consenso a respeito das premissas básicas de reflexão de campos vinculados à atuação dos agentes econômicos invariavelmente conduziria à convergência tanto dos institutos jurídicos quanto das próprias metodologias de interpretação e aplicação do direito, de maneira a estruturar um corpo minimamente previsível e confiável de ferramentas capazes de pavimentar a estrada para que agentes privados possam usufruir de sua grande capacidade de organização – ou, talvez, de sua eficiência.
O percurso histórico do Direito da Concorrência – capítulo indispensável de qualquer estudo a respeito do campo, com as necessárias referências ao advento do Sherman Act como meio de defesa da sociedade contra o poder (econômico e político) acumulado pela elite capitalista – é marcado por frequentes conflitos de ideias, pelo desenvolvimento de intrincadas metodologias econômicas e pela marcante preocupação com as repercussões políticas e sociais da concentração do poder econômico. Acontece que, em dado momento do século XX, nascem em Chicago premissas de análise econômica aplicadas ao Direito da Concorrência que tiveram a pretensão de emprestar a esse ramo do direito não somente a objetividade metodológica buscada pelos agentes econômicos para construírem seus modelos de negócio de maneira a maximizar a eficiência dos mercados, mas também seu próprio conceito de eficiência.
Pouco importaria, nesse sentido, a aversão aos monopólios que originou o Direito da Concorrência – aversão esta motivada pelo fundado receio de que os monopolistas vertessem seu monumental poder econômico em avassaladora força política –, na medida em que, aplicados os métodos, técnicas e conceitos gestados pela Escola de Chicago, seria possível aferir os efeitos decorrentes de seu comportamento e eventualmente até qualifica-los como positivos. Associados os ganhos de eficiência às grandes estruturas corporativas antes combatidas pelo próprio Direito da Concorrência, as preocupações relacionadas à concentração de mercado são arrefecidas pela possibilidade de produzirem efeitos positivos caso garantidas condições mínimas de rivalidade.
Não sem motivo, assinala Paula Baqueiro, em sua recente dissertação de mestrado, que a ascensão dos pressupostos da Escola de Chicago teve como passo necessário “abandonar quaisquer finalidades e valores políticos, sociais e econômicos e eleger a eficiência econômica como objetivo único do direito antitruste, no intuito de superar a subjetividade e imprecisão que valores “não econômicos” implicariam na análise concorrencial”[3]. O sucesso das metodologias neoclássicas, assim, verdadeiramente estimulou o abandono dos pressupostos sociais, políticos e econômicos que motivaram a própria criação do Direito da Concorrência, de tal maneira que “findou por estreitar gravemente o escopo do direito antitruste e afastá-lo da economia política, por minimizar a atuação do direito antitruste e restringi-la aos casos de “ineficiência”, e por difundir a presunção de que os mercados se autorregulam e não seriam problemáticas a conquista e manutenção de poder de mercado”[4].
Em outras palavras, uma vez consagradas premissas teóricas e metodologias operacionais capazes de suficientemente simplificar a realidade complexa com que se depara o Direito da Concorrência, com a vantagem adicional de comportar o ânimo concentracionista dos agentes econômicos, pôde o Direito da Concorrência acomodar-se na tranquilidade produzida pelo consenso em torno das ideias da Escola de Chicago. Dessa maneira, por mais que episodicamente surjam posicionamentos críticos capazes de gerar fagulhas de divergência diante da ideologia dominante, tais eventos não passariam de fogos controlados, a tal ponto que algumas oscilações na teoria antitruste mainstream passariam a ser vistas não como alertas quanto às falhas de Chicago, mas modismos passageiros que, cedo ou tarde, confirmariam a adequação e a suficiência das metodologias neoclássicas.
A história do Direito da Concorrência, assim, teria chegado ao seu fim tão logo a Escola de Chicago construiu seu edifício teórico e declarou-o – ela própria – patrimônio tombado passível até de algumas rachaduras, mas jamais de ser derrubado. Por mais que não se ignore a adaptabilidade dessas metodologias a essas novas realidades, renovando-se por meio da articulação de modelos matemáticos que supostamente são capazes de apreender a transformação da sociedade e da economia, parece verdadeiramente contraditório fazer-se vista grossa ao fato de que marcadamente repetem as mesmas premissas teóricas simplistas que fragilizam a argumentação da Escola de Chicago desde a sua gênese.
As contradições do fim da história do Direito da Concorrência evidenciam-se de maneira exponencial diante dos desafios da economia digital e dos danos causados pela intensificação do movimento de concentrações que as metodologias de Chicago permitiram, de forma que também endurecem as críticas à sua impermeabilidade a variáveis sociais, políticas e mesmo econômicas. Daí pontuar Lina Khan que o que o “fim da história” do Direito da Concorrência nada mais seria do que uma pausa prolongada na constante disputa a respeito da finalidade e dos valores que orientam o antitruste norte-americano[5]. Com os recentes desenvolvimentos de posturas críticas a respeito do Direito da Concorrência e com a verificação dos efeitos nefastos da concentração, a estabilidade do consenso sobre os seus propósitos viria sendo gravemente abalada pelo que a autora denomina de ruptura protagonizada por autores que integram a corrente neobrandeisiana.
Facilmente se poderia, porém, apontar a corrente neobrandeisiana como apenas mais um episódio de questionamento ao Direito da Concorrência mainstream, que, como vários outros, será passageiro e não tardará a ser suplantado pelos firmes pilares da ideologia de Chicago, que atribui ao antitruste a limitada função de promover o bem-estar do consumidor a partir de suas já há muito conhecidas definições de eficiência. Acontece que olhar para a origem do Direito da Concorrência e seu ulterior desenvolvimento, de fato, não permite que se chegue a conclusões muito distintas, já que a Escola de Chicago efetivamente expande sua influência a nível global e chega a orientar um processo de convergência tanto das legislações quanto das metodologias de análise antitruste. O neobrandeisianismo, assim, seria tão somente mais um sintoma do fim da história do Direito da Concorrência.
Isso porque o verdadeiro fim da história do Direito da Concorrência não ocorre com o advento da Escola de Chicago – como se pode crer a partir da observação atenta e ansiosa dos movimentos das autoridades e dos teóricos norte-americanos –, mas sim com a aceitação do pressuposto de que é a partir dos Estados Unidos e da história do Direito da Concorrência norte-americano que serão balizadas as políticas de defesa da livre concorrência de países radicalmente diversos. A análise centrada no direito norte-americano – e mesmo nas recentes contradições com relação às posições europeias e à ativa literatura crítica à postura dos Estados Unidos – ignora que há outros Direitos da Concorrência regidos por constituições e leis próprias, orientados por normas sociais e culturais peculiares e que foram capazes de gerar modalidades de capitalismo que, ainda que não sejam essencialmente distintas, no mínimo são conformadas por elementos valorativos diversos daqueles que permitira, a ascensão das metodologias de Chicago.
Diferentemente do que aconteceu com a queda do muro de Berlim – que tanto não encerrou lutas ideológicas como abriu espaço para o recrudescimento de um liberalismo infenso às clivagens sociais e mesmo aos imperativos democráticos que fez corar até o próprio Fukuyama –, de fato parece acertado declarar o fim da história do Direito da Concorrência nos Estados Unidos, ao menos para que se coloque em dúvida a conduta de assumi-lo como referencial a ser acompanhado e copiado. No entanto, de maneira alguma parece justo decretar o fim da história do Direito da Concorrência como ramo do direito fundado nas características idiossincráticas dos demais sistemas jurídicos, políticos e econômicos que prezam pela defesa da livre concorrência – sobretudo pois sua história ainda está por começar.
[1] Ver: FUKUYAMA, Francis. The end of history and the last man. Nova York: The Free Press, 1992.
[2] HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for corporate law. 2000. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=204528.
[3] BAQUEIRO, Paula. Poder econômico e poder político no Direito da Concorrência brasileiro: uma análise a partir da sociologia econômica e da ordem econômica constitucional. Dissertação de Mestrado. Brasília: Universidade de Brasília, 2022. p. 86.
[4] BAQUEIRO, Op. cit., p. 87.
[5] KHAN, Lina. The end of Antitrust history revisited. Harvard Law Review. v. 133, pp. 1655-1682, 2020.