Defesa da concorrência

Características Econômicas das Grandes Plataformas Digitais e o Poder de Mercado

César Mattos

O poder econômico das grandes plataformas digitais (ou “Big Techs”) tem sido cada vez mais destacado nas análises de concorrência em todo o mundo. O fundamental Relatório do Congresso Americano-RCA-(2020)[1] sobre concorrência e Big Techs, organizado pela atual Presidente da Federal Trade Commission (FTC) americana, Lina Khan, descreve o que seriam as condutas anticompetitivas das quatro principais plataformas: Google, Amazon. Facebook e Apple.

A emergência deste fenômeno é algo relativamente novo, tendo início neste século e surpreendendo com a rapidez com que aconteceu. Wu (2018)[2] aponta a grande concentração de mercado nas Big Techs: “de repente, não havia uma dúzia de mecanismos de busca, cada um com uma ideia diferente, mas apenas um mecanismo de busca (o Google). Não havia mais centenas de lojas que todos iam, mas apenas uma “loja de tudo” (a Amazon). E evitar o Facebook era como fazer de você mesmo um hermitão digital”.

Além dos vários casos antitruste que apareceram e continuam surgindo no mundo, a partir do Relatório americano de 2020 foi proposto em 2022, o American Innovation and Choice Online Act[3] para conter este processo de concentração pela via regulatória. O Digital Market Act (DMA) Europeu também caminha na mesma direção. Ambas as iniciativas americana e europeia apresentam uma postura hostil ao conjunto de condutas de self-preferencing, que ocorre quando a Big Tech privilegia empresas de seu grupo em detrimento de outras.

Mas afinal, quais são as características econômicas das Big Techs que propiciam esta tendência de concentração dos mercados de plataformas digitais? O objetivo deste artigo é fazer uma síntese de quais elementos explicariam este fenômeno. Vejamos um a um.

Efeitos de Rede

Quando uma plataforma digital traz diferentes grupos de usuários para interagirem, são gerados “efeitos de rede” (network effects): quanto mais usuários, maior o valor da plataforma para cada usuário.

Esta característica repete a falha de mercado dos mercados de telecomunicações, a qual justificou a regulação de interconexão neste setor. Como o valor de um telefone para qualquer pessoa se deriva de quantas pessoas de suas relações também possuem telefones e podem ser contactados, uma nova companhia telefônica que entre no mercado, mas que não seja capaz de se interconectar com os usuários da empresa incumbente, não será de grande valor, ainda que tenha a melhor tecnologia e serviço disponível.

Da mesma forma, uma rede social como o Facebook, o Instagram, o Twitter ou o Linkedin apenas atraem mais usuários porque já têm muitos usuários com quem se deseja interagir. Documentos internos do Facebook[4], inclusive com falas de Mark Zuckerberg, indicam que a empresa montou sua estratégia de competição apoiada no reforço destes efeitos de rede na “família de produtos” desta rede social.

A questão econômica relevante é que, de um lado, os efeitos de rede induzem a uma lógica “the winner takes most[5] ou “the winner takes it all[6], o que concentra o mercado. De outro lado, a realização desses efeitos de rede pela interação entre usuários é, ao mesmo tempo, positiva para os usuários, o que é um benefício. 

O RCA (2020) aponta dois tipos principais de efeitos de rede nos mercados digitais. Primeiro, os “efeitos diretos” nos quais quanto mais pessoas usam um produto, mais pessoas obtêm valor desse produto como é o caso dos serviços de E-mail ou Whats app por exemplo.

Segundo, há os chamados efeitos de rede indiretos quando o maior uso de um serviço digital estabelece um padrão tecnológico no setor que induz terceiros a inventarem e desenvolverem produtos com tecnologias compatíveis e que podem ser utilizadas de forma complementar ao serviço digital inicial. Essa multiplicação de serviços compatíveis reforça a popularidade dos serviços originais, o que constitui os efeitos de rede indiretos. Estes são muito relevantes nas duas grandes lojas de aplicativos, Apple Store (sistema ioS) e Google Play (sistema Android).

Mercados de Dois ou Vários Lados

Os usuários das plataformas podem estar “no mesmo lado” ou em “mais de um lado” do mercado. O Google oferece acesso não apenas para os usuários finais que realizam buscas na internet em “um lado do mercado” como para os sites a serem acessados, no “outro lado do mercado”. O Google também intermedeia os usuários finais em um lado com outros sites de acesso no outro lado que, por sua vez, intermediarão estes com sites em um terceiro lado. 

A questão relevante aqui é que a microeconomia de mercados de mais de um lado é diferente da convencional e isso afeta diretamente a lógica da análise concorrencial. Por exemplo, como destacado pela OCDE (2022), os testes SSNIP (o que acontece com a quantidade e o lucro quando há um pequeno, mas substantivo e não transitório aumento nos preços), usados para delimitar mercados relevantes na análise concorrencial, devem ser completamente ajustados em mercados de vários lados. Isso porque passam a ser requeridos múltiplas interações, estimando o impacto inicial de um aumento de preço em um lado, a reação em outros lados e o retorno dos efeitos nestes outros lados no lado original. Nesse contexto, não faz sentido pensar no exercício de poder de mercado em apenas um lado da plataforma, cabendo avaliar as elasticidades da demanda e as taxas de desvio (diversion ratios) dos usuários de uma plataforma a outra em resposta a alterações em preços relativos em todos os lados dos mercados analisados.

Estas múltiplas interações fazem com que o cálculo das participações de mercado e índices de concentração se tornem menos significativos para a análise concorrencial nos mercados com mais de um lado, dado que não capturam as relações em todos os lados das plataformas e entre plataformas.

Note-se o incentivo para subsídios cruzados entre os diversos lados do mercado. Por exemplo, se a existência de muitos usuários em um lado do mercado gera maior atratividade para aderir ao outro lado, os usuários desse último se tornam mais dispostos a pagar pelo produto. Daí pode fazer sentido reduzir bastante o preço no primeiro lado para induzir à adesão no segundo lado, inclusive podendo cobrar mais. É o caso de casas noturnas em que homens (um lado do mercado) pagam mais do que mulheres (o outro lado do mercado), o que no mundo digital tem o seu equivalente em sites de namoro como o Tinder[7]. Assim, se o “preço” do lado feminino estiver abaixo do custo não quer dizer que haja uma conduta de preço predatório, pois é economicamente racional subsidiar este lado para atrair mais usuários para o outro lado que se tornará mais disposto a pagar mais caro.

Para avaliar se isso é uma conduta anticompetitiva, cabe verificar se preços abaixo de custo em um dos lados é lucrativo porque amplia a base de usuários, gerando receitas em outros lados, ou apenas porque enfraquece concorrentes. O problema é diferenciar as duas.

Economias de Escala[8] e Escopo[9]

“junte todos os nossos produtos, e assim nós prenderemos os consumidores ainda mais em nosso ecossistema”     Stevie Jobs

Os mercados digitais apresentam altos custos fixos para desenvolver a plataforma, incluindo hardware e armazenamento de dados, e custos variáveis e marginais baixos para incorporar cada novo usuário. Isso inclusive em produtos relevantes distintos, mas relacionados, com custos comuns de hardware e de know-how sobre como operar a plataforma, configurando economias de escopo. Conforme o CADE (2021)[10], em alguns casos, os “custos e/ou dados de desenvolvimento podem ser compartilhados entre linhas de negócios. Inclusive, os aplicativos podem ter uma aparência e um comportamento parecidos para que os usuários se acostumem com as plataformas de forma mais rápida”.

Tanto como nos efeitos de rede, economias de escala e escopo induzem a mercados mais concentrados (um custo), mas tais estruturas são mais eficientes por reduzir o custo médio da plataforma (um benefício), tal como ocorre nos mercados de infraestrutura que têm alta proporção custo fixo/variável.

O CADE (2021) ressalta que os mercados digitais, diferente dos setores de infraestrutura, possuem a chamada “escala sem massa”, por não possuírem um bem tangível físico, possibilitando às plataformas crescer de maneira mais rápida e barata comparativamente aos mercados de bens físicos e com custos marginais de processamento, armazenamento, replicação e transmissão de dados muito baixos. Isso, no entanto, vale tanto para incumbentes quanto para entrantes, o que indica não representar uma barreira à entrada no sentido de Stigler.

Vantagem da Firma Pioneira

Um ponto comum das quatro Big Techs é o desafio bem sucedido às então “firmas pioneiras”, questionando o que se considera usualmente como a vantagem de ser incumbente pelas autoridades de concorrência.

De fato, segundo Picker (2020)[11], em julho de 2001, a FTC iniciou investigação sobre os mecanismos de busca da Microsoft, AOL Time Warner, AltaVista, Direct Hit Technologies, iWon, Looksmart e Terra Lycos. O curioso é que nesse momento o Google era tão pequeno em relação a essas outras empresas (e só as duas primeiras ainda existem!!!!) que não integrava a lista das investigadas. Apenas dois anos depois, o Google já era considerado o líder claro deste mercado, tendo a Microsoft chegado a propor uma aquisição do Google que foi recusada pela empresa.

Conforme Picker (2020), a Apple que lançou o iPhone em janeiro de 2007 desafiando as posições dos incumbentes Research in Motion (RIM) que aperfeiçoava o seu Blackberry original e da clara líder em aparelhos celulares, a Nokia. A loja de aplicativos da Apple, um conceito até então inexistente, foi aberta um ano e meio depois.

Prossegue o autor, lembrando que Jeff Bezos lançou a Amazon em julho de 1995 para vender livros online, disputando o mercado com incumbentes bem estabelecidos como as livrarias Barnes & Noble e Borders. A empresa estende sua venda de livros para CDs e DVDs em 1998 e eletrônicos em 1999. A partir de outubro de 1999, começa a vender vários produtos de terceiros em seu novo programa zShops. Nesse alcance maior de produtos, uma das concorrentes da Amazon é a Walmart que teve em 1996 um faturamento de US$ 93,6 bilhões, muito maior que o da Amazon em seu negócio com livros no mesmo ano de US$ 15,7 milhões.

Por fim, Picker (2020) aponta que quando Mark Zuckerberg lançou o Facebook em 2004, já existiam redes sociais, sendo a mais conhecida a Friendster.com, a Tribe.net de 2003, a Tickle (de encontros amorosos) e o Linkedin (profissional). A SixDegrees.com havia sido lançada em 1997, mas não deu certo. O Myspace chegou a ser a maior rede social em julho de 2005, antes de ser ultrapassado pelo Facebook.

No entanto, apesar de não serem tão pioneiras assim, as Big Techs conseguiram “enraizar” (uma medida de como firmas pioneiras conseguem adquirir uma vantagem sobre entrantes) melhor a sua posição dominante do que os predecessores e a dificuldade de entrada parece maior que antes.

Um exemplo relevante de maior “enraizamento” da posição dominante é o do Google. O RCA (2020) aponta que a indexação de títulos da busca requer elevados custos fixos e grandes capacidades de armazenamento e de computação. O rastreamento da internet (web crawling) é custoso e favoreceu o pioneirismo do Google que rastreou toda a rede mundial de computadores. E o custo deste rastreamento, mesmo com o avanço da tecnologia, aumentou muito por causa do crescimento exponencial da internet.

A grande vantagem da firma pioneira “Google” ou “Bing” (da Microsoft) decorre do fato que, como ser rastreado pode causar danos às páginas, as maiores páginas da web permitem a apenas uma pequena parte dos “rastreadores” existentes rastrearem suas páginas. Ao mesmo tempo não estar nos índices dos principais buscadores, Google e Bing, implica perder tráfego. Assim, as principais páginas da Web autorizam o rastreamento apenas daqueles buscadores principais. Ou seja, buscadores entrantes serão provavelmente bloqueados pelas principais páginas da web, dificultando sua operação. Buscadores horizontais como Yahoo e DuckDuckGo não rastreiam, mas adquirem acesso dos índices de Google e Bing por meio de acordos. Esta atuação dependente reduz, naturalmente, o vigor competitivo daqueles buscadores.

Custos de Troca e Dados

Os usuários investem tempo e esforço para utilizar uma plataforma, gerando custos de troca.

A plataforma, por sua vez, coleta e “acumula” os dados desses usuários. No caso de redes sociais como o Facebook ou Instagram, são fotos, vídeos, textos e outras informações que os usuários vão postando e que se tornam os seus “dados” naquelas plataformas.

Nesse contexto, se um usuário desejar mudar de plataforma, mas não puder levar este histórico de dados, há custos de troca (switching costs), reduzindo a capacidade de entrantes capturarem a clientela (locked-in) dos incumbentes.

Conforme o RCA (2020), no Facebook, os usuários não são capazes de migrar ou fazer o download de seus dados para uma plataforma concorrente. Caso quisesse migrar, o usuário teria que refazer o upload de suas fotos e informação pessoal na nova plataforma. Na Amazon, quando um vendedor online já gerou várias avaliações de produto, terá problemas similares de recuperação desses rankings se migrar para outra plataforma.

Mesmo para aplicativos, o custo de troca pode ser alto. Um exemplo são os usuários do Spotify que quando assinam pelo Facebook, conforme o RCA (2020) “não conseguem desconectar o Spotify do Facebook”. Para fazê-lo, apenas por uma nova conta no Spotify, o que implica perder as playlists, história do que escutou e outros dados do aplicativo.

A regulação da “portabilidade de dados” visa justamente reduzir esses custos de troca, dando conveniência para o usuário migrar de plataforma, promovendo a concorrência. Por isso é uma medida de promoção da concorrência indicada no RCA (2020).

O CADE (2021) foi particularmente sanguíneo quanto a restrições de uma plataforma relativamente à negativa de portabilidade dos dados, entendendo que tais restrições seriam anticompetitivas quase per se.

Relacionada à regulação de portabilidade de dados está a interoperabilidade das plataformas, o que também diminui custos de troca dos usuários. Quanto mais os sistemas se comunicarem, mais fácil para os usuários não só trocarem de plataformas, mas também usarem as duas simultaneamente, fazendo o multihoming, o que favorece a concorrência.

O mais importante é que, conforme lembra o RCA (2020), a interoperabilidade “quebra o poder dos efeitos de rede”, ao permitir que os entrantes também se beneficiem destes efeitos “ao nível do mercado e não apenas ao nível da firma”. 

Obrigar a interoperar pela regulação, por outro lado, pode impor restrições à inovação já que o desenho dos produtos estará sempre condicionado a ter que interoperar com outros produtos. Essa restrição técnica será tão mais significativa quanto mais diferentes e/ou inovadores forem aqueles. De fato, de um lado, o desenho de um produto pode ser concebido de forma deliberada para restringir a interoperabilidade e/ou a portabilidade de dados, diminuindo a concorrência.

De outro lado, o próprio fato de haver muita inovação pode gerar uma dificuldade técnica genuína de o inovador promover a interoperabilidade com as plataformas existentes. O produto é tão diferente do que existe que dificulta tecnicamente a ser interoperável. Alternativamente, para viabilizar a interoperabilidade, é possível que o inovador tenha que tornar o seu novo produto um “pouco menos diferente”, o que pode reduzir o próprio grau de inovação. Em síntese, pode haver um trade-off grau de inovação/interoperabilidade.   

Papel Competitivo dos Dados em Mercados Digitais

Dados são o novo óleo”. Clive Humby, 2006

A aprendizagem dos vendedores sobre como agem os consumidores é decorrência do tempo e das transações realizadas nesse período em qualquer negócio. Quanto mais transações, mais se aprende sobre os consumidores. Tocar um negócio é intensivo em experiência. 

Em mercados digitais, esse aprendizado é particularmente intenso e se faz com a intermediação da plataforma que dispõe de ferramentas que continuamente analisam tudo o que está sendo feito (ou clicado) pelos usuários. Mais do que nunca, a geração de dados sobre os usuários é resultado do próprio “processo produtivo” das plataformas que vai “revelando” continuamente como se comportam.

Os dados são gerados inclusive daqueles que não concretizaram as transações, algo que nos mercados físicos os vendedores apresentam capacidade de observação bem mais reduzida sobre os comportamentos dos usuários. Quem já fez uma busca de um destino em site de viagem, por exemplo, mesmo sem ter comprado já teve a experiencia de, logo depois, receber várias ofertas exatamente para este destino.  É como uma “câmera espiã” contínua funcionando no “chão de fábrica” dos mercados digitais. O fato é que a capacidade de as plataformas processarem e avaliarem os dados dos usuários é multiplicada várias vezes nos mercados digitais. Conforme o CADE (2021), os dados constituem um insumo tão essencial nos mercados digitais que pode se falar de “economias de escala dinâmicas” derivadas disso.

E quanto mais usuários uma plataforma tiver, mais ela terá acesso a dados. Como é difícil para entrantes replicar a quantidade de dados e aprendizado das plataformas incumbentes, há dificuldade para os primeiros em entender tão bem o comportamento dos usuários quanto os segundos, o que é mais um indutor à concentração de mercados.

Cientes desta vantagem competitiva dos dados, os incumbentes muitas vezes buscam ampliá-la, coletando também informações dos usuários de seus concorrentes que acessam sua plataforma ao mesmo tempo que dificultam o acesso aos seus próprios dados.

Uma consequência fundamental dessa enorme capacidade de conhecer o usuário nas plataformas digitais é poder direcionar propaganda para os usuários mais predispostos a serem influenciados. Ou seja, os gastos de marketing são particularmente eficazes no mundo digital, tendendo a atingir mais diretamente o público-alvo, o que resulta em mais vendas por dólar investido em propaganda.

Para terem capacidade de gerar valor, no entanto, os dados devem ser intensamente trabalhados. Como Clive Humby[12] ressaltou: “isso (o óleo) tem valor, mas se não for refinado, não poderá ser efetivamente utilizado. Ele tem que ser transformado em gás, plástico, químicos etc  para criar algo valioso que direciona a atividade lucrativa; logo os dados devem ser desagregados, analisados para terem valor”  

Petit e Teece (2021) [13] destacam que dados podem ser tidos como o novo lego: “o problema que os dados colocam para os negócios é muito prático. Tem a ver com analisar, organizar, combinar e utilizar os dados para criar novos produtos, modelos de negócios e oportunidades comerciais. Uma miríade de combinações é possível. Para levar a metáfora adiante, em um mundo de informação digitalizada, as firmas digitais são desafiadas a construir milhões de peças de legos, só que sem as instruções. A vantagem competitiva é criada pela capacidade de criativamente combinar ciência de dados, tecnologia e negócios. Não se pode concluir que o controle passivo sobre grandes bancos de dados permite à firma viver uma vida tranquila. Ao contrário, a “orquestração” dos dados é um elemento crítico e requer fortes capacidades dinâmicas”.

Isso implica que nos mercados digitais a capacidade de acessar, processar e utilizar uma enorme massa de dados (montar os milhões de legos) é parte indistinguível do processo concorrencial.

Assim, uma regulação de portabilidade de dados deve ser muito cuidadosa. De um lado, os “dados” que, regulatoriamente, devem ser “portados” não podem ser aqueles já trabalhados sob pena de expropriar a empresa justamente naquilo que define o seu esforço na “competição nos méritos”, destruindo os incentivos à concorrência que se deseja gerar. Assim, cabe limitar a regulação de portabilidade aos dados mais brutos, àquele diamante sem lapidação, não estendendo aos dados mais trabalhados.

De outro lado, esta portabilidade dos dados mais brutos de cada usuário de uma plataforma para outra equivale a apenas uma parte ínfima das milhões de peças de lego com as quais a primeira plataforma está construindo a sua forma de operação. O impacto real na capacidade de competir da plataforma para a qual ocorre a migração dos dados do usuário pode ser muito pequena para justificar a regulação.

A OCDE (2022) recomenda uma regra para avaliar o papel dos dados na concorrência, o que pode ser pensado como uma forma de evitar uma regulação excessiva. É importante considerar para cada mercado se

  1. o conjunto de dados é único ou obtenível de outras fontes;
  2. o conjunto de dados é replicável facilmente ou não;
  3. há economias de escala e escopo associadas à coleta, uso e armazenamento destes dados;
  4. há algum tipo de “lock-in” que impede que os dados sejam interoperáveis.

Modelo de Negócio Baseado em Propaganda

“quando propaganda está envolvida, você, o usuário, é o produto” Fundadores do Whats app

O RCA (2020) reporta que Google e Facebook representam 99% do crescimento anual do mercado de propaganda digital americano, dando uma dimensão da importância das Big Techs no segmento. Isso está associado à “produtividade” da propaganda propiciada pela coleta de dados dos usuários das Big Techs apontada acima.

Quando o modelo de negócio é muito baseado em propaganda, os preços são muito baixos ou mesmo zero, o que remove uma importante forma de competir, desviando clientela para entrantes via preços mais baixos. Conforme a OCDE (2022)[14], “sete das dez maiores companhias globais trabalham com produtos e serviços a preço zero nos mercados digitais”.

Como o serviço não tem preço, as ferramentas de delimitação de mercado clássicas do antitruste como o efeito de “um aumento pequeno, mas significativo e não transitório” de preços não apresenta qualquer serventia.

Concorrência Baseada em Inovações

Schumpeter (1950) criticava a microeconomia convencional que via como principal virtude da concorrência a redução de preços. Conforme o autor, a competição por meio da “destruição criativa” seria muito mais importante para a economia do que por meio da “redução de preços”:

na realidade capitalista, que é diferente daquela mostrada nos livros textos, não é a competição de preços que conta, mas a competição que vem do novo produto, da nova tecnologia, da nova fonte de oferta, do novo tipo de organização…..aquela que comanda uma vantagem decisiva de custo ou qualidade, a qual afeta não as margens dos lucros e produtos das firmas existentes mas os seus fundamentos e a sua própria existência. Este tipo de competição é tão mais efetiva que a outra, que seria como se comparássemos um bombardeio a um arrombamento de uma porta”.

Mais do que nunca, a concorrência nos mercados digitais se aproxima de Schumpeter, com o foco em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), inovação e qualidade do produto. Petit e Teece (2021) defendem, inclusive, uma mudança no paradigma de análise das agências de concorrência: “a concorrência estática domina os modelos analíticos empregados na política de concorrência….(i) faz uso extensivo de modelos de equilíbrio enquanto as tecnologias digitais apresentam propriedades de desequilíbrio; (ii) conta essencialmente com a expertise de economia industrial e apenas marginalmente utiliza “insights” da literatura de negócios e gestão de tecnologia; e (iii) frequentemente elimina incerteza de maneira a formular regras simples. Estamos, portanto, ainda longe de uma mudança de paradigma coerente para alguns funcionários de agências e instituições de concorrência”.

Uma diferença analítica fundamental defendida por estes autores quando a concorrência é Schumpeteriana e muito baseada em inovações faz conexão aos questionamentos já trazidos em seção anterior sobre a “vantagem da firma pioneira”. Enquanto as agências antitruste consideram a incumbência como uma vantagem competitiva em si com o conhecimento do mercado e do negócio e a lealdade dos consumidores à marca, a literatura sobre gestão de tecnologia considera a incumbência muitas vezes como uma desvantagem. Incumbentes estariam relativamente mais presos à “sabedoria da gestão convencional”, aos valores estabelecidos nas redes ou às trajetórias tecnológicas existentes, o que prejudicaria sua propensão a inovar.

A ideia de Schumpeter de “destruição criativa” já embutiria esta diferença entre os dois paradigmas. O conceito é formado de duas palavras, uma positiva “criativa” e outra negativa “destruição”. A parte “positiva” diz respeito ao fato de que empreendedores, usualmente entrantes, criam novos produtos ou novas formas de produzi-los, incrementando o bem-estar.

Tais novidades podem ser tão superiores aos produtos existentes que os consumidores substituem os antigos pelos novos. E daí vem a “parte negativa”: os negócios existentes que têm substituídos os seus produtos podem ser “destruídos”. Na verdade, dado o “efeito substituição” da inovação[15], os entrantes tendem a inovar e “destruir criativamente” mais do que os incumbentes. Isso mitigaria a preocupação concorrencial usual das agências antitruste nos mercados com muita inovação em geral, e nos mercados virtuais em particular.

Assim, a incumbência nos mercados digitais, onde a concorrência é regida pela inovação, pode ser simultaneamente uma vantagem e um fardo.

Verticalização

Os mercados virtuais são verticalizados e as preocupações concorrenciais usuais que ocorrem quando pelo menos um dos elos apresenta características monopolistas e pode discriminar terceiros em outros elos são aplicáveis.

Sendo verticalizadas, as plataformas teriam um “papel duplo” de fornecedores e concorrentes de serviços com outras plataformas. A questão competitiva chave dos mercados digitais seria a exploração do “poder de controle de acesso”[16] pelas plataformas dominantes na mesma linha da chamada “facilidade essencial”.

O RCA (2020) aponta para a necessidade de medidas de quebra vertical de Big Techs, tal como foi utilizado nos casos históricos da Standard Oil e AT&T e que as agências desejaram aplicar na Microsoft. Havendo esta quebra, muitas relações econômicas que hoje ocorrem dentro da Big Tech passariam a ser regidas apenas pelo mercado. Conforme Petit e Teece (2021), isso faria perder importantes economias de coordenação nos mercados digitais: “Criar e orquestrar ativos digitais de forma a alcançar um valor aos clientes finais envolve atingir uma convergência de expectativas dentro da gestão do ecossistema de um tipo que o sistema de preços não é capaz de atingir por ele mesmo”.

As economias de escopo nos dados em especial podem ser perdidas. Não há algo como os dados que vão servir para uma linha de negócio “A” e outros dados separados que vão servir para a linha de negócio “B”. Dados provenientes de “A” servem para “A”, “B” e “C”. Como colocado por Petit e Teece (2020) “os dados vêm de várias fontes diferentes e podem ser utilizados de várias formas diferentes, é frequentemente impossível saber ex-ante de quais fontes e de quais usos serão gerados mais valor”.  

Vieses Comportamentais em Mercados Digitais

Como destacado no RCA (2020), osvieses comportamentais dos consumidores seriam particularmente fortes nos mercados virtuais como i) o viés de enquadramento (framing bias), quando a decisão de compra é influenciada pela forma que as diferentes opções são apresentadas; ii) o viés de saliência (salience bias) com decisões focando no item mais proeminente e iii) o viés de default, com baixa tendência a alterar a escolha para ofertas inequivocamente melhores.

Estes vieses facilitariam a estratégia das Big Techs de implementar o self-preferencing. Quando a Apple, por exemplo, coloca nos iphones, os seus próprios aplicativos como “default”, está usando este tipo de viés para induzir os usuários a utilizá-los em lugar de aplicativos concorrentes em um típico self-preferencing.

Para se ter uma ideia das dificuldades que seriam impostas à regulação se, porventura, buscasse, eliminar o reforço dos vieses comportamentais pelas grandes plataformas, imagine-se que o regulador proíba que a Apple ou o Google coloquem seus próprios aplicativos como default nos smartphones, tal como fazem hoje. Assim, a plataforma poderia colocar o aplicativo de um terceiro, mas não o seu como default? Isso não geraria enorme desincentivo à inovação nos aplicativos da Big Tech?

O consumidor não perderia em termos de funcionamento com os aplicativos próprios da Big Tech melhor calibrados para o aparelho ou sistema operacional respectivo?

Alternativamente se for proibido colocar aplicativos próprios como default, aumentam-se os custos de uso, obrigando ao consumidor correr atrás de todos os aplicativos que deseja em lugar de ter a comodidade de ter pelo menos os principais já instalados no smartphone.

Outra opção seria obrigar a Big Tech colocar todos os aplicativos existentes para uma dada função (por exemplo, maps) no celular, de forma a não haver discriminação. A questão é que se isso for imposto para todos os aplicativos com concorrentes, sobrecarregaria o sistema? E ainda haveria intermináveis discussões regulatórias quando a Big Tech entender que algum aplicativo de terceiros puder prejudicar o funcionamento do aparelho do sistema operacional ou de outras funções. Enfim, mitigar os vieses comportamentais pela via regulatória está longe de ser trivial.

Conclusões

As características econômicas das plataformas digitais apresentam várias peculiaridades que, de fato, geram uma tendência à concentração do mercado, o que suscita preocupações concorrenciais. Estas mesmas características, ao mesmo tempo, indicam não ser eficiente uma oferta com muitos agentes.

Nesse ponto há paralelos a se fazer com os mercados de infraestrutura com monopólios naturais e com integração vertical. E muito da discussão regulatória se dá em relação a como não perder economias de escala e escopo, mas garantir acesso às plataformas que tenham se tornado insumos essenciais para os serviços. 

Em particular, a relação entre vigor concorrencial e concentração de mercado não é clara, sendo medidas como o HHI ou o C4 de pouca serventia.

Economistas da área de concorrência e regulação são mais preocupados com a possibilidade de que uma intervenção excessivamente tardia possa tornar o poder de mercado dos incumbentes perene, sem chances de contestação.
Haveria, ademais, similaridade da necessidade de acesso dos concorrentes aos serviços principais das Big Techs com o que ocorre com monopólios naturais verticalmente integrados na infraestrutura, o que pressupõe uma lógica típica de facilidade essencial.

Já economistas da tecnologia com um viés mais Schumpeteriano acreditam que sempre há um entrante disruptivo à espreita que, com muito capital humano, pode achar formas mais inovadoras de “montar os legos” dos dados dos usuários e do mercado e superar boa parte da aparente inércia da incumbência. Esta inexpugnável economia de escala e escopo no uso de dados seria, na verdade, uma grande ilusão, sendo que inteligência artificial e machine learning seriam os novos veículos do processo de destruição criativa Schumpeteriana que estão longe de serem monopólios dos incumbentes apenas pela quantidade maior de dados que dispõem.

Ademais, os economistas da tecnologia não acreditam tanto que o acesso ao serviço principal das Big Techs seja realmente “essencial”, mas apenas uma forma mais cômoda e menos custosa de entrar. Até porque seria quase uma contradição um entrante “disruptivo raiz” depender do negócio que está a ser “criativamente destruído”.

As características econômicas distintivas dos mercados digitais jogam alguma luz sobre por que têm surgido tantas questões concorrenciais no setor. Em outros artigos discutiremos um pouco mais das condutas das plataformas digitais que vêm sendo analisadas pelas agencias antitruste mundo afora e as iniciativas de regulá-las.        


[1] Investigation of Competition in Digital Markets. competition_in_digital_markets.pdf (house.gov)

[2] Wu,T.: “The Curse of Bigness”. Antitrust in the New Gilded Age. Columbia Global Reports.

[3] H.R.3816 – 117th Congress (2021-2022): American Choice and Innovation Online Act | Congress.gov | Library of Congress

[4] Ver RCA (2020).

[5] O ganhador leva a grande parte.

[6] O ganhador leva tudo.

[7] Aqui o “preço” pode ser entendido como vantagens e promoções que são dadas pelo site a um ou outro lado do mercado.

[8] Economias de escala ocorrem quando os custos médios caem quando o produto aumenta, Custos fixos elevados podem ter este efeito ao serem mais diluídos com o aumento do produto. 

[9] Economias de escopo ocorrem quando é mais barato produzir dois produtos juntos do que separados. Custos comuns entre os dois produtos, muitas vezes fixos, podem ser a fonte das economias de escopo.

[10] MERCADO DE PLATAFORMAS DIGITAIS – CADERNOS DO CADE https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/plataformas-digitais.pdf. Agosto de 2021

[11] https://judiciary.house.gov/uploadedfiles/submission_from_randalpicker.pdf.

[12] Ver nesta interessante referência sobre o assunto de Amol Mavoduru Is Data Really the New Oil in the 21st Century? | Towards Data Science.

[13] Petit,N. e Teece,D.: “Innovating Big Tech Firms and Competition Policy: favoring dynamic over static competition”. Industrial and Corporate Change, Vol. 30, Issue 5, October 2021.

[14] OECD Handbook on Competition Policy in the Digital Age 2022. OECD Handbook on Competition Policy in the Digital Age

[15] No caso das chamadas “inovações drásticas”, o entrante se transforma em monopolista (Reinganum, J.: Uncertain Innovation and Persistence of Monopoly.American Economic Review 73 (4), 1983).

[16] Gatekeeper power.

Ainda sobre Desvios, Abusos e Usurpações: o CADE na contramão da própria história.

Lucia Helena Salgado

Há pouco, no dia 10 de setembro, o CADE completou 60 anos como a autoridade brasileira de defesa da concorrência. No desenrolar dessas seis décadas, a trajetória da instituição tem refletido com precisão o desenrolar da História contemporânea do país. O CADE conheceu um longo período ofuscado pelo intenso dirigismo estatal da economia durante o regime militar. O advento da Nova República representou uma verdadeira primavera para a instituição, com a indicação de juristas notáveis, como Isabel Vaz e Mauro Grinberg. O rito de passagem para a maioridade como instituição, identidade essa conferida pela lei 8.884/94, foi conduzido por agentes públicos do calibre de Neide Malard e Rui Coutinho, que não poderiam traduzir melhor os critérios legais de notório saber e ilibada reputação.

O momento em que o CADE como autoridade antitruste alcança a maioridade não por acaso coincide com aquele em que se gestava o Plano Real, os programas de transferência direta de renda e a reforma do Estado, com a introdução de novos atores, as Agências Reguladoras, e novas formas de gestão de setores de infraestrutura. Foi em meados dos anos 1990, que o CADE inaugura o desenho de “agência reguladora”, como autarquia dotada de autonomia decisória e recursos necessários para o enforcement legal (como capacitação técnica, procuradoria especializada e institutos como medidas preventivas e sancionadoras e ordens de cessação). No curso das mais de duas décadas, já neste século, sucessivas composições memoráveis da autoridade brasileira – sempre primando pela excelência técnica e a submissão ao interesse público – lograram difundir a cultura da concorrência, obtendo sucesso na alteração de padrões de conduta de firmas no mercado, firmar jurisprudência, propor ao legislativo aperfeiçoamentos ao enforcement legal – como os instrumentos de busca e apreensão e acordos de leniência firmados em casos de cartel. Foi o processo que levou a instituição à maturidade, com a promulgação da lei 12.529/11, que confirmou os avanços anteriores, corrigiu falhas e lapidou o desenho institucional da autoridade.

Esse processo de amadurecimento do CADE, no curso do qual firmou reputação que ultrapassa fronteiras pela qualidade e independência de suas decisões, acompanhou um processo mais amplo de construção institucional, inaugurado com a promulgação da Constituição Cidadã e moldado de forma especial pelos princípios da boa governança – autonomia, transparência e fundamentação técnica das decisões e prestação de contas à sociedade soberana. É com profundo assombro, portanto, que se recebe a notícia de que o atual presidente do CADE determinou de oficio à Superintendência Geral a abertura de inquérito administrativo para apurar suposta conduta colusiva de institutos de pesquisa de opinião em razão de erros de previsão semelhantes incorridos nos levantamentos de intenção de voto a candidatos à Presidência da República.

O desenho institucional do CADE, fortalecido pelo compromisso de seus integrantes – dirigentes e corpo técnico – com o cumprimento estrito das melhores práticas de governança, manteve-o por muito tempo infenso ao fenômeno que a literatura especializada denominou como captura. A reputação de qualidade técnica das decisões, por outro lado, sempre inibiu indicações fundadas no apadrinhamento político. Essas salvaguardas, contudo, demonstram perder força quando as instituições que sustentam o Estado de Direito – como as eleições – sofrem continuado ataque.

A determinação para que a SG abra inquérito para apurar suposto cartel entre institutos de pesquisa não encontra qualquer fundamento na Economia e no Direito Antitruste; os elementos econômicos básicos estão ausentes, a começar pela racionalidade da conduta: conluios quando organizados intencionam afetar artificialmente quantidades e preços visando maximizar lucros conjuntos.  Não há teoria do dano fundada em teoria ou jurisprudência de defesa da concorrência capaz de descrever como hipótese a racionalidade de institutos de pesquisa combinarem errar resultados de pesquisas de intenção de voto para assim maximizarem lucros no mercado de surveys de opinião.

A ilação de que haveria “uma ação orquestrada dos institutos de pesquisa na forma de cartel para manipular em conjunto o mercado e, em última instância, as eleições” (SEI/CADE – 1133237 – Oficio) revela um espantoso desconhecimento da economia aplicada à defesa da concorrência, do escopo da legislação em defesa da concorrência e das competências legais do CADE. Em última análise, estamos diante de um flagrante desvio de finalidade e de vicio de competência, condutas incorridas por parte do dirigente do CADE que ferem mortalmente a reputação construída pela instituição em décadas de esforço coletivo de seus integrantes e da comunidade antitruste que a acompanha e respeita.

Em editorial do último dia 15/10[1], a WebAdvocacy descreveu com perfeito didatismo o porquê da economia antitruste não se aplicar à análise de pretensa conduta de institutos de pesquisa de opinião, além de explicar as características básicas de uma análise estatística – algo que se esperaria ser de conhecimento da presidência do CADE, saber elementar que jamais faltou aos ocupantes desse importante cargo de Estado. Àquela análise, caberia acrescentar apenas uma conjectura: os surveys de opinião seguem metodologia estatística consagrada, usualmente supondo uma distribuição gaussiana (normal) da população. Contudo, o distanciamento entre resultados de pesquisa e resultados concretos de eleições na atualidade – como na eleição presidencial estadunidense de 2020 e nos referendos do Brexit também em 2020 e do projeto de Constituição chilena em 2022 – apontam para a necessidade de revisão da metodologia que supõe a distribuição normal da população (em formato de sino). É plausível supor que a divisão recente das sociedades entre posições inconciliáveis esteja gerando distribuições assimétricas de frequências, a serem melhor representadas por outros formatos de função.

Como é consabido, na mesma data de publicação do fatídico ofício do Presidente do CADE a seu Superintendente, a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou de pronto sem efeito a decisão de instaurar o referido inquérito administrativo, entendendo haver usurpação de competência da Justiça Eleitoral e indícios de abuso de poder político. Determinou ainda o envio do despacho à Corregedoria-Geral Eleitoral e à Procuradoria-Geral para apuração das irregularidades cometidas. Aguardemos com paciência – e confiança na solidez institucional do CADE – os resultados das apurações serem promovidas pelo TSE.

Mais uma vez, o instituto dos pesos e contrapesos, um dos pilares da engenharia institucional que sustenta o Estado de Direito, veio em socorro de nossa jovem Democracia. Que o funesto episódio sirva de alerta à Sociedade, para que esta atente à seriedade da exigência imposta pelo Legislador quando estabeleceu requisitos de notório saber e ilibada reputação aos indicados pela Presidência e sabatinados e aprovados pelo Senado da República para exercer mandato seja nas Agências Reguladoras, seja no CADE.

Lucia Helena Salgado, Professora Titular de Ciências Econômicas, UERJ, foi Conselheira do CADE por dois mandatos (1996-2000).


[1] WEBADVOCACY. Resultados semelhantes e distantes do efetivamente verificado são indícios de cartel capazes de merecer inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica? Vamos à teoria antitruste!!! – WebAdvocacy. Editorial. 15 de outubro de 2021. Disponível em: Resultados semelhantes e distantes do efetivamente verificado são indícios de cartel capazes de merecer inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica? Vamos à teoria antitruste!!! – WebAdvocacy.

A OCDE e o Novo Mercado de Gás: O Ponto Virtual de Negociação como Mercado Relevante no setor de Gás Natural

Felipe Fernandes Reis

Os desafios do setor de gás natural no Brasil vem sendo objeto de iniciativas em prol de boas práticas regulatórias e de defesa da concorrência, a Web Advocacy ostenta importantes publicações nesse sentido, dentre os quais destaco a coluna da Dra. Daniela Santos, profunda conhecedora da matéria[1]. Com esse intuito, a proposta deste artigo é defender o conceito e dinâmica de um dos pilares desenhados para o novo modelo do setor, “o mercado de comercialização atacadista de gás”, especialmente no indispensável papel do CADE em suas análises de atos de concentração ou controle de condutas.

Aliás, aproveita-se que a OCDE incluiu a delimitação de mercado relevante nos setores de Oil & Gas (“O&G”) entre os temas tratados na “Latin American and Caribbean Competition Forum”[2], como oportunidadede também considerar as recomendações desse importante órgão a respeito desse tema. No paper que endereça as principais questões encaminhadas no aludido Forum[3], é destacado a importância de boas práticas na delimitação do mercado relevante, reforçando o entendimento que tal exercício consiste em valioso instrumento de análise, mas não sendo “um fim em si mesmo” ou o único meio de análise da autoridade antitruste para apurar os possíveis efeitos anticompetitivos de uma conduta ou ato de concentração. O CADE, inclusive, vem adotando essa premissa, reconhecendo o papel da delimitação do mercado relevante como instrumento de análise e importante mecanismo para apurar probabilidade de condutas anticompetitivas e seus respectivos efeitos[4].

No referido paper da OCDE, também é mencionado o desafio da delimitação de mercado relevante em setores objetos de transformação, seja em razão de inovações tecnológicas ou pela própria regulação, como é o caso do setor de gás natural no Brasil, que nos últimos anos vem sendo objeto de reformas legais e regulatórias, alterando a sua estrutura e dinâmica, com o objetivo de promover concorrência, eficiência e liquidez no setor de gás natural, conforme proposto pelo Comitê de Promoção da Concorrência no Mercado de Gás Natural[5] e estruturado pelo novo modelo desenhado pela ANP[6].

Além disso, vale citar a orientação da OCDE sobre a necessidade da interação entre a agência reguladora com a autoridade antitruste, para melhor compreensão do setor, redução de assimetrias de informação e outras formas de colaboração na adoção de medidas de preservação e promoção da concorrência. Ressalta-se, também, o reconhecimento, no referido paper, acerca da evolução das análises do CADE na delimitação do mercado relevante no setor de gás natural, especialmente a partir do ato de concentração envolvendo a aquisição do controle da GASPETRO pela Compass Gás e Energia S.A, que antes era detido pela Petrobras[7]. No documento, essa evolução é atrelada à importante separação entre os mercados de comercialização e distribuição de gás natural[8].

Nesse sentido, vale citar que a referida operação foi objeto de análise tanto pela Superintendência Geral (“SG/CADE”) como pelo Tribunal do CADE. A SG/CADE[9] e o Conselheiro Relator definiram o mercado relevante da distribuição de gás canalizado de forma separada da Comercialização, a qual foi segmentada em dois mercados distintos:

  • Comercialização para atender ao Consumidor Livre;
  • Comercialização para fornecimento ao Consumidor Cativo (ou seja: Comercialização para atender as Distribuidoras de Gás Canalizado).

Por outro lado, apesar de acompanhar o Relator em suas conclusões quanto à aprovação da operação, o Conselheiro Victor Fernandes divergiu no tocante à delimitação dos mercados relevantes acima mencionados. No que se refere aos mercados de Comercialização de gás, o Conselheiro o definiu em “Comercialização Atacadista”, segmentado em dois níveis: a montante (i.e. entre produtores e importadores) e a jusante (que ocorre a partir da rede de transporte), aliás, também tratou do mercado de comercialização varejista, que consiste no fornecimento aos usuários do mercado cativo, atualmente de exclusividade das Concessionárias do serviço público de distribuição gás canalizado (Distribuidoras/CDL).

Entre as diferenças dos entendimentos acima, é importante principalmente destacar a opção de incluir as distribuidoras no lado da demanda juntamente com os consumidores livres, conforme delimitado pelo Conselheiro Victor no denominado “mercado de comercialização atacadista à jusante”, enquanto o entendimento da SG/CADE e do Conselheiro Relator seria apenas incluir os consumidores livres na demanda do mercado de comercialização, sem considerar, portanto, o volume adquirido pela Distribuidora e seu papel enquanto adquirente de gás nesse mercado.

É importante destacar que o presente artigo não tem por objeto analisar os fundamentos e motivações alcançadas no referido ato de concentração, o que poderá ser feito em oportunidades futuras. Contudo, é importante apenas mencionar que durante a análise dessa operação, os debates a respeito da dinâmica do setor, em especial sobre a comercialização de gás (se seria apenas uma atividade; um elo e/ou um mercado relevante) acabou por prejudicar, a meu ver, a adequada compreensão da comercialização, sua definição como um mercado relevante, bem como a sua dinâmica concorrencial.

Feito esse breve resumo acerca dos diferentes entendimentos recentemente adotados pelo CADE, entende-se de suma importância defender o mercado de comercialização atacadista de gás à jusante (nos termos propostos pelo Conselheiro Victor), isso porque, no atual momento e de forma geral, é possível e provável que os ofertantes atuem e rivalizem para atender tanto o consumidor livre como as distribuidoras, as quais, além de representarem a maior parcela do volume comercializado no país, desempenham significativo papel no acesso dos comercializadores ao consumidor livre, na medida que esses precisam contratar seu serviço de distribuição de gás no nível downstream para então migrarem como demandante nesse mercado de comercialização atacadista à jusante. Aliás, são vários os casos de comercializadoras que já celebraram contratos com ambos[10].

As recentes reformas do setor buscaram instituir o mercado de comercialização atacadista à jusante[11], a partir do Ponto Virtual de Negociação (“PVN”) ou “Hub” atrelado à respectiva área de capacidade de transporte- como o ambiente propício à competição entre os diferentes ofertantes (comercializadoras de produtoras, importadoras, do grupo econômico das distribuidoras e traders) para atender a demanda das CDL’s, dos consumidores livres e das distribuidoras a granel (GNL/GNC), de modo que as relações comerciais não sejam necessariamente atreladas ao fluxo físico da molécula, gerando, desse forma, liquidez, concorrência e flexibilidade, com aumento da oferta e entrada novos agentes. Por tais razões, o CNPE, através da Resolução n.03 de 2022, estabeleceu como de interesse da Política Energética Nacional que os agentes identifiquem nos contratos de comercialização o Ponto Virtual de Negociação como o ambiente de troca de titularidade do gás, conforme modelo estruturado nas reformas do setor:

Sugere-se, portanto, que o mercado relevante de comercialização atacadista à jusante seja delimitado à luz do Ponto Virtual de Negociação, adotando, inclusive, essa terminologia, de modo a evitar que esse seja confundido com outras atividades e segmentos adjacentes que também envolvem a compra e venda de gás, por exemplo: comercialização de gás não processado entre produtoras (upstream) ou o fornecimento de gás pelas Distribuidoras ao usuário cativo (downstream).

Em sua esfera geográfica, até a completa integração entre as diferentes áreas de transportes, sugere-se a segmentação do mercado conforme cada uma das áreas de capacidades de transporte, uma vez que a sua contratação (no formato de entrada e saída) é necessária para a atuação do agente em cada mercado, conforme assim delimitado pela ANP:

Reita-se que a definição do PVN como um mercado relevante permite a melhor identificação de sua dinâmica competitiva e os riscos de eventuais atos anticoncorrenciais, em especial a partir da sua integração vertical, seja com o elo upstream (comercialização atacadista à montante) como a partir do downstream (Distribuidoras Locais de Gás Canalizado).

No que se refere ao elo upstream, cita-se, como hipótese, o caso dos concorrentes da Petrobras que constantemente necessitam contratar capacidade de escoamento e processamento de suas infraestruturas à montante para então ofertarem gás junto aos consumidores livres e distribuidoras no mercado Ponto Virtual de Negociação. Sob a perspectiva concorrencial, a adequada delimitação do PVN como mercado relevante, permite avaliar riscos de eventuais estratégias para criação de custos, dificuldades e outras condutas restritivas verticalizadas a partir do elo upstream contra esses concorrentes na contratação de de gás e de acesso às suas essential facilities, prejudicando a concorrência no Ponto Virtual de Negociação.

Em relação à integração vertical entre o mercado de Ponto Virtual de Negociação com as distribuidoras de gás canalizado (monopólio natural), os riscos decorrem especialmente no caso do grupo da distribuidora também atuar como comercializadora no PVN, ou seja, concorrendo com outros comercializadores para atender a sua demanda ou a dos usuários cativos aptos para migrarem para o ambiente livre. A definição do PVN como mercado relevante independente, permite, assim, identificar quaisquer tentativas de práticas restritivas a partir do elo da distribuição, as quais devem ser efetivamente apuradas, para fins de preservar um ambiente competitivo, no qual os agentes tenham condições reais de concorrerem para atender às CDL’s e aos potenciais consumidores livres.

Por fim, importante destacar que a nova Lei do Gás (Lei Federal 14.134/2021) instituiu mecanismos importantes para preservação da concorrência nesse mercado, e, assim, evitar condutas anticompetitivas. Contudo, a aplicação dessas medidas requer a constante atuação e cooperação entre as autoridades competentes, em especial do CADE com os respectivos reguladores, à luz das boas práticas internacionais e conforme destacado pela OCDE.


[1] Disponível em: https://webadvocacy.com.br/daniela-santos/

[2] Para mais informações sobre o Latin American and Caribbean Competition: https://www.oecd.org/competition/latinamerica/2022forum/

[3] Disponível em: https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/LACF(2022)12/en/pdf

[4] Nesse sentido, ver: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2010/documento-de-trabalho-n01-2010-delimitacao-de-mercado-relevante.pdf

[5] Instituído pela Resolução n.:04 de 2022 do CNPE.

[6] Disponível em: http://www.anp.gov.br/arquivos/cp/2020/cp01/cp1-2020-modelo-conceitual.pdf

[7] Ato de Concentração: 08700.004540/2021-10.

[8] Entendimento da OCDE desde os anos 2000, disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/sectors/1920080.pdf

[9] Em seu parecer, a SG consignou a possibilidade da revisão desse entendimento conforme as mudanças da dinâmica do setor, nos moldes pretendidos pela regulação

[10]  Nesse sentido, ver: https://epbr.com.br/abertura-do-mercado-de-gas-natural-ja-tem-dez-novos-fornecedores/

[11] Nessa linha, sugere-se o estudo da CNI sobre a organização do mercado atacadista: https://static.portaldaindustria.com.br/media/filer_public/22/4d/224de293-bec6-455d-8b9f-dc5a69e30e14/id_237108_organizacao_do_mercado_atacadista_de_gas_web1.pdf

Resultados semelhantes e distantes do efetivamente verificado são indícios de cartel capazes de merecer inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica? Vamos à teoria antitruste!!!

EditorialNa última quinta-feira (13.10.2022), a Presidência do CADE enviou o Ofício n.o 8333/2022/GAB-PRES/PRES/CADE  ao Superintendente-Geral...

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Uma recomendação e suas possíveis consequências e não consequências

Mauro Grinberg

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Recomendação nº 135, de 12 de setembro de 2022, que resolve “recomendar aos magistrados, com o objetivo de maximizar a segurança jurídica e de impedir o comprometimento da política de defesa da concorrência, prevista na Lei nº 12.529/2011, que, sempre que possível, realizem a oitiva do órgão de defesa da concorrência, em especial a sua Procuradoria Federal Especializada, antes de concederem tutelas de urgência relacionadas a processos administrativos em tramitação no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), assim minimizando efeitos danosos decorrentes de eventual abuso do direito de demandar”.

De início, houve um certo espanto por parte da comunidade antitruste, sobretudo advogados que militam no Cade pois aparentemente a Recomendação parecia padecer de inocuidade. No entanto, suas palavras são fortes e seu peso deve ser bem medido. Daí a importância da análise da recomendação, cujo objetivo é muito mais de alerta dos riscos do que de impedimento de concessão de medidas.

Comecemos com o seu objetivo declarado: “maximizar a segurança jurídica” e “impedir o comprometimento da política de defesa da concorrência”. Há aqui uma presunção, embora relativa, de que as partes acusadas querem minimizar a segurança jurídica e comprometer a e política de defesa da concorrência. Além de ignorar o princípio da cooperação, instituído pelo art. 6º do Código de Processo Civil (“os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”), a Recomendação parte da ideia de que a parte contrária ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) está sempre do lado culpado, eliminando assim o princípio da inocência até prova em contrário (Constituição Federal, art. 5º, LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”).

Mais ainda, a Recomendação, neste ponto, considera que os magistrados são suscetíveis a influências a que deveriam resistir, sobretudo na aplicação do art. 300 do CPC: “A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”. Nada diferente do que se dizia antes em latim: “fumus boni iuris” e “periculum in mora”. Ou seja, o Juiz deve ter a capacidade de examinar a existência dos requisitos para a concessão da tutela de urgência e concedê-la ou )não, conforme o caso. Não se pode tirar, mormente por via infralegal, esta competência do magistrado.

Sidney Sanches, em curta obra-prima anterior ao atual CPC, bem definiu o “fumus boni iuris”: “Consiste na probabilidade da existência do direito invocado pelo autor da ação cautelar. Direito a ser examinado aprofundadamente, em termos de certeza, apenas no processo principal já existente, ou, então, a ser instaurado”[1] . E quanto ao “periculum in mora”: “probabilidade de dano a uma das partes de futura ou atual ação principal, resultante na demora do ajuizamento ou no processamento e julgamento desta”[2]. Se encontrados esses requisitos, a tutela de urgência deve ser concedida, ainda mais porque ela pode ser revogada a qualquer tempo (CPC, art. 296: “A tutela provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, mas pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada”). Assim, se, mais adiante, os fundamentos para a concessão da cautela se revelarem inexistentes ou mesmo fracos, o próprio magistrado ou a instância superior podem revogar a medida.

Mas aí vem a pergunta: quando é possível ouvir previamente o Cade? Vamos examinar aqui duas hipóteses, a primeira das quais envolve uma empresa condenada pelo Cade a multa milionária mas que entende descabida a condenação ou até mesmo a multa aplicada, por entende-la confiscatória. Há um prazo para o cumprimento da decisão do Cade (pagamento da multa e eventuais condenações acessórias) e, se não cumprido o prazo, pode ocorrer a inscrição na Dívida Ativa e as suas consequentes limitações, inclusive o impedimento de contratar com o Poder Público e as consequências negativas no próprio mercado. Numa situação como esta, se o Juiz ouvir o Cade antes de proferir seu despacho, este, se for positivo para o litigante, será inócuo pois as consequências já terão sido observadas e os danos já verificados.   

Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni, “as tutelas antecipada e cautelar são incompatíveis com o aprofundamento do contraditório e da convicção judicial, uma vez que estes demandam porção de tempo que impede a concessão da tutela de modo urgente”[3]. Assim, nas palavras do CPC e na interpretação do autor, já se terão verificado o “dano” e o “risco ao resultado útil do processo”. Assim, se a concessão tiver que aguardar a manifestação do Cade – ou, para este efeito, qualquer manifestação –, ter-se-á a perda do direito.

A segunda hipótese é menos radical. Um acusado requer a produção de uma determinada prova num processo administrativo correndo no Cade. Esta é uma hipótese que se tem repetido na prática dos processos administrativos do Cade, sobretudo quando se trata de perícias e inspeções, eventualmente sob o argumento de que existem meios menos custosos de se chegar ao mesmo resultado. A parte pode entender que aquela perícia ou aquela inspeção são necessárias e/ou importantes para o seu exercício da ampla defesa   (Constituição Federal, art. 5º, LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”). Aqui, se o Juiz ouvir o Cade antes da concessão da tutela, provavelmente não se verificará o “risco ao resultado útil do processo” pois ainda se terá tempo suficiente. Ou seja, nesta hipótese é possível, em geral, ouvir o Cade previamente.

Seguindo no exame do texto da Recomendação, o que ela procura minimizar são os “efeitos danosos decorrentes de eventual abuso do direito de demandar”. Mas não se pode presumir que o direito de demandar seja abusivo. Ao contrário, a presunção é de legitimidade e o magistrado deve considera-la desta maneira, até decisão final. Não se pode presumir que o demandante quer levar ao “comprometimento da política de defesa da concorrência”. Ao contrário, mirando-se o art. 6º do CPC, o demandante está apresentando contribuição ao bom desenvolvimento do processo.

Não há motivo lógico para concluir previamente que qualquer das partes envolvidas está certa ou errada. Como dizem Pollyanna Vilanova e Isabel Jardim, “não se descarta que o mérito das decisões do Cade pode e, em alguns casos deve ser revisto pelo Poder Judiciário, no entanto, a complexidade do Direito Concorrencial deve ser levada em consideração na análise dos tribunais, bem como os possíveis impactos no mercado”[4].

Essa complexidade do Direito Concorrencial, longe de justificar a não judicialização, é a maior razão para dar margem ao exame da matéria pelo Poder Judiciário que, aliás, pode apreciar os temas independente e diretamente, de acordo com o art. 47 da Lei 12.529/2011. A Recomendação aqui analisada deve servir como um alerta para eventuais danos ou riscos mas nunca causar a perda de direito da parte que pede a tutela de urgência.

Mauro Grinberg é ex-Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional aposentado, ex-Presidente e atual Conselheiro do Ibrac advogado especialista em Direito Concorrencial, sócio fundador de Grinberg Cordovil Advogados


[1] “Poder Geral de Cautela”, RT, São Paulo, 1978, pág. 43

[2]  Obra e pág. citadas

[3] “Tutela de Urgência e Tutela de Evidência”, RT, São Paulo, 2018, pág. 13

[4] Recomendação CNJ nº 135/22 e a Judicialização das Decisões do Cade”, Consultor Jurídico, 20/09/2022

O fim da história do Direito da Concorrência

Angelo Prata de Carvalho

Francis Fukuyama conquistou ampla fama ao sustentar que, por ocasião da queda do muro de Berlim, firmou-se notável consenso em torno da superioridade das democracias liberais ocidentais e do capitalismo sobre suas ideologias rivais. A conclusão do autor, na verdade, não se limita a afirmar a vitória do capitalismo liberal ocidental, mas consiste em dizer que tal sistema político-econômico consiste no ponto final da evolução ideológica humana ou, ainda, no fim da história[1].

            O fim da história já foi também pontificado no campo do Direito Empresarial, como se depreende do texto clássico de Henry Hansmann e Reinier Kraakman, para quem, por mais que ainda persistam intensos debates a respeito de instituições fundantes do Direito Societário, do mercado de capitais e das próprias estruturas de governança, as reflexões essenciais sobre essa seara adquiriram considerável grau de homogeneidade em torno da proteção dos interesses dos sócios[2]. Assim, os esforços empreendidos no sentido de proteger outros interesses afetados pela atuação dos agentes econômicos foram suplantados por uma ideologia dominante que protege preocupações de curto prazo relacionadas à satisfação dos interesses mais imediatos dos sócios – notadamente a maximização de seu autointeresse.

            A construção de um consenso a respeito das premissas básicas de reflexão de campos vinculados à atuação dos agentes econômicos invariavelmente conduziria à convergência tanto dos institutos jurídicos quanto das próprias metodologias de interpretação e aplicação do direito, de maneira a estruturar um corpo minimamente previsível e confiável de ferramentas capazes de pavimentar a estrada para que agentes privados possam usufruir de sua grande capacidade de organização – ou, talvez, de sua eficiência.

            O percurso histórico do Direito da Concorrência – capítulo indispensável de qualquer estudo a respeito do campo, com as necessárias referências ao advento do Sherman Act como meio de defesa da sociedade contra o poder (econômico e político) acumulado pela elite capitalista – é marcado por frequentes conflitos de ideias, pelo desenvolvimento de intrincadas metodologias econômicas e pela marcante preocupação com as repercussões políticas e sociais da concentração do poder econômico. Acontece que, em dado momento do século XX, nascem em Chicago premissas de análise econômica aplicadas ao Direito da Concorrência que tiveram a pretensão de emprestar a esse ramo do direito não somente a objetividade metodológica buscada pelos agentes econômicos para construírem seus modelos de negócio de maneira a maximizar a eficiência dos mercados, mas também seu próprio conceito de eficiência.

            Pouco importaria, nesse sentido, a aversão aos monopólios que originou o Direito da Concorrência – aversão esta motivada pelo fundado receio de que os monopolistas vertessem seu monumental poder econômico em avassaladora força política –, na medida em que, aplicados os métodos, técnicas e conceitos gestados pela Escola de Chicago, seria possível aferir os efeitos decorrentes de seu comportamento e eventualmente até qualifica-los como positivos. Associados os ganhos de eficiência às grandes estruturas corporativas antes combatidas pelo próprio Direito da Concorrência, as preocupações relacionadas à concentração de mercado são arrefecidas pela possibilidade de produzirem efeitos positivos caso garantidas condições mínimas de rivalidade.

            Não sem motivo, assinala Paula Baqueiro, em sua recente dissertação de mestrado, que a ascensão dos pressupostos da Escola de Chicago teve como passo necessário “abandonar quaisquer finalidades e valores políticos, sociais e econômicos e eleger a eficiência econômica como objetivo único do direito antitruste, no intuito de superar a subjetividade e imprecisão que valores “não econômicos” implicariam na análise concorrencial”[3]. O sucesso das metodologias neoclássicas, assim, verdadeiramente estimulou o abandono dos pressupostos sociais, políticos e econômicos que motivaram a própria criação do Direito da Concorrência, de tal maneira que “findou por estreitar gravemente o escopo do direito antitruste e afastá-lo da economia política, por minimizar a atuação do direito antitruste e restringi-la aos casos de “ineficiência”, e por difundir a presunção de que os mercados se autorregulam e não seriam problemáticas a conquista e manutenção de poder de mercado”[4].

            Em outras palavras, uma vez consagradas premissas teóricas e metodologias operacionais capazes de suficientemente simplificar a realidade complexa com que se depara o Direito da Concorrência, com a vantagem adicional de comportar o ânimo concentracionista dos agentes econômicos, pôde o Direito da Concorrência acomodar-se na tranquilidade produzida pelo consenso em torno das ideias da Escola de Chicago. Dessa maneira, por mais que episodicamente surjam posicionamentos críticos capazes de gerar fagulhas de divergência diante da ideologia dominante, tais eventos não passariam de fogos controlados, a tal ponto que algumas oscilações na teoria antitruste mainstream passariam a ser vistas não como alertas quanto às falhas de Chicago, mas modismos passageiros que, cedo ou tarde, confirmariam a adequação e a suficiência das metodologias neoclássicas.

            A história do Direito da Concorrência, assim, teria chegado ao seu fim tão logo a Escola de Chicago construiu seu edifício teórico e declarou-o – ela própria – patrimônio tombado passível até de algumas rachaduras, mas jamais de ser derrubado. Por mais que não se ignore a adaptabilidade dessas metodologias a essas novas realidades, renovando-se por meio da articulação de modelos matemáticos que supostamente são capazes de apreender a transformação da sociedade e da economia, parece verdadeiramente contraditório fazer-se vista grossa ao fato de que marcadamente repetem as mesmas premissas teóricas simplistas que fragilizam a argumentação da Escola de Chicago desde a sua gênese.

            As contradições do fim da história do Direito da Concorrência evidenciam-se de maneira exponencial diante dos desafios da economia digital e dos danos causados pela intensificação do movimento de concentrações que as metodologias de Chicago permitiram, de forma que também endurecem as críticas à sua impermeabilidade a variáveis sociais, políticas e mesmo econômicas. Daí pontuar Lina Khan que o que o “fim da história” do Direito da Concorrência nada mais seria do que uma pausa prolongada na constante disputa a respeito da finalidade e dos valores que orientam o antitruste norte-americano[5]. Com os recentes desenvolvimentos de posturas críticas a respeito do Direito da Concorrência e com a verificação dos efeitos nefastos da concentração, a estabilidade do consenso sobre os seus propósitos viria sendo gravemente abalada pelo que a autora denomina de ruptura protagonizada por autores que integram a corrente neobrandeisiana.

            Facilmente se poderia, porém, apontar a corrente neobrandeisiana como apenas mais um episódio de questionamento ao Direito da Concorrência mainstream, que, como vários outros, será passageiro e não tardará a ser suplantado pelos firmes pilares da ideologia de Chicago, que atribui ao antitruste a limitada função de promover o bem-estar do consumidor a partir de suas já há muito conhecidas definições de eficiência. Acontece que olhar para a origem do Direito da Concorrência e seu ulterior desenvolvimento, de fato, não permite que se chegue a conclusões muito distintas, já que a Escola de Chicago efetivamente expande sua influência a nível global e chega a orientar um processo de convergência tanto das legislações quanto das metodologias de análise antitruste. O neobrandeisianismo, assim, seria tão somente mais um sintoma do fim da história do Direito da Concorrência.

            Isso porque o verdadeiro fim da história do Direito da Concorrência não ocorre com o advento da Escola de Chicago – como se pode crer a partir da observação atenta e ansiosa dos movimentos das autoridades e dos teóricos norte-americanos –, mas sim com a aceitação do pressuposto de que é a partir dos Estados Unidos e da história do Direito da Concorrência norte-americano que serão balizadas as políticas de defesa da livre concorrência de países radicalmente diversos. A análise centrada no direito norte-americano – e mesmo nas recentes contradições com relação às posições europeias e à ativa literatura crítica à postura dos Estados Unidos – ignora que há outros Direitos da Concorrência regidos por constituições e leis próprias, orientados por normas sociais e culturais peculiares e que foram capazes de gerar modalidades de capitalismo que, ainda que não sejam essencialmente distintas, no mínimo são conformadas por elementos valorativos diversos daqueles que permitira, a ascensão das metodologias de Chicago.

            Diferentemente do que aconteceu com a queda do muro de Berlim – que tanto não encerrou lutas ideológicas como abriu espaço para o recrudescimento de um liberalismo infenso às clivagens sociais e mesmo aos imperativos democráticos que fez corar até o próprio Fukuyama –, de fato parece acertado declarar o fim da história do Direito da Concorrência nos Estados Unidos, ao menos para que se coloque em dúvida a conduta de assumi-lo como referencial a ser acompanhado e copiado. No entanto, de maneira alguma parece justo decretar o fim da história do Direito da Concorrência como ramo do direito fundado nas características idiossincráticas dos demais sistemas jurídicos, políticos e econômicos que prezam pela defesa da livre concorrência – sobretudo pois sua história ainda está por começar.


[1] Ver: FUKUYAMA, Francis. The end of history and the last man. Nova York: The Free Press, 1992.

[2] HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for corporate law. 2000. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=204528.

[3] BAQUEIRO, Paula. Poder econômico e poder político no Direito da Concorrência brasileiro: uma análise a partir da sociologia econômica e da ordem econômica constitucional. Dissertação de Mestrado. Brasília: Universidade de Brasília, 2022. p. 86.

[4] BAQUEIRO, Op. cit., p. 87.

[5] KHAN, Lina. The end of Antitrust history revisited. Harvard Law Review. v. 133, pp. 1655-1682, 2020.