Recuperação Judicial e Falência

Luis Henrique B. Braido[i]

O processo de falência empresarial foi profundamente reformulado pela Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que substituiu o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945. Essa legislação regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, excluindo as empresas públicas, as sociedades de economia mista, as instituições financeiras, as cooperativas de crédito, os consórcios, as entidades de previdência complementar, as operadoras de planos de assistência à saúde, as companhias seguradoras e as sociedades de capitalização. O texto recebeu alguns aprimoramentos por meio da Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Atualmente, discute-se no Senado o Projeto de Lei nº 3/2024, já aprovado na Câmara de Deputados, o qual amplia o poder de ação de credores em caso de falência. Neste artigo, descreverei os principais aspectos da legislação vigente, com ênfase na questão de alinhamento de incentivos; discutirei alguns dos impactos econômicos derivados da mudança da Lei em 2005; e comentarei a proposta legislativa em discussão no Senado.

Inicialmente, convém esclarecer que a recuperação judicial visa superar a crise do devedor e permitir a manutenção da produção, do emprego e dos interesses dos credores, de modo a preservar a empresa e sua atividade econômica (art. 47, Lei nº 11.101/2005). A falência, por sua vez, promove o afastamento do devedor de suas atividades e busca liquidar a empresa inviável de modo a realocar eficientemente seus recursos na economia (art. 75, Lei nº 11.101/2005, modificado pela Lei nº 14.112/2020).

O processo de recuperação judicial se inicia por pedido do devedor, acompanhado de um plano de recuperação a ser analisado pelo juízo local, sendo facultado aos credores propor plano alternativo. O deferimento do processo de recuperação judicial ou a decretação da falência suspendem as execuções ajuizadas contra o devedor e proíbem a apreensão de seus bens, relativamente às obrigações sujeitas à recuperação judicial.

O devedor pode também negociar com seus credores um plano de recuperação extrajudicial, a ser homologado pelo juízo local. Tal plano não pode contemplar o pagamento antecipado de dívidas nem o tratamento desfavorável aos credores não participantes. Os créditos tributários não estão sujeitos ao processo extrajudicial. A inclusão de créditos trabalhistas e por acidentes de trabalho requer negociação coletiva com sindicatos. A sentença de homologação desse plano constitui título executivo judicial.

Os arts. 83 e 84 da Lei nº 11.101/2005 promovem uma classificação de créditos para orientar o pagamento dos valores devidos em caso de falência. Por ordem de prioridade, tem-se: (i) os créditos extraconcursais previstos no art. 84; (ii) os créditos trabalhistas, limitados a 150 salários mínimos, e aqueles decorrentes de acidentes de trabalho; (iii) os créditos gravados com direito real, até o limite do valor do bem gravado; (iv) os créditos tributários; (v) os créditos quirografários e demais créditos, incluindo os saldos remanescentes dos créditos trabalhistas e gravados com direito real; (vi) as multas contratuais e penas pecuniárias; (vii) os créditos subordinados e aqueles contraídos com sócios e administradores sem vínculo empregatício; e (viii) os juros vencidos após a decretação da falência.

Dessa forma, os créditos gravados com direito real possuem considerável grau de prioridade, estando à frente dos créditos tributários, até o limite do bem gravado, e atrás dos créditos extraconcursais, trabalhistas (com limite de valor) e decorrentes de acidente de trabalho. A ordem de recebimentos em caso de falência determina os incentivos dos credores na fase de recuperação judicial. A depender da situação econômico-financeira do devedor, da composição de seus débitos e do valor dos ativos passíveis de liquidação, os credores terão maior ou menor interesse em recuperar a empresa, com eventual divergência entre eles.

O passo seguinte de um processo de recuperação judicial ou de falência é a verificação de créditos, realizada pelo administrador judicial, um profissional especializado e idôneo nomeado pelo juízo responsável. Esse trabalho deverá ser supervisionado pelo Comitê de Credores constituído por um representante indicado por cada uma das seguintes classes de credores: (i) trabalhistas; (ii) com direitos reais de garantia ou privilégios especiais; (iii) quirografários e com privilégios gerais; (iv) microempresas e empresas de pequeno porte.

Esse Comitê se reúne em Assembleia de Credores, convocada pelo juízo responsável e presidida pelo administrador judicial, cujas decisões devem ser ratificadas por representantes de mais da metade do valor dos créditos presentes.

Deve-se registrar que a composição do Comitê de Credores não reflete exatamente as categorias de classificação dos créditos em caso de falência. Ressalte-se, em particular, a não inclusão de representante da classe de créditos tributários e a inclusão de representante de microempresas e empresas de pequeno porte, independentemente da classificação de seus créditos.

Impactos Econômicos

Ao instituir o processo de recuperação judicial com o objetivo de manter a produção, o emprego e os interesses dos credores, a legislação brasileira busca sopesar os interesses de diferentes partes interessadas (stakeholders). A preservação de empresas eficientes e a manutenção de suas atividades econômicas são certamente benéficas aos consumidores, aos trabalhadores e aos sócios e acionistas. Adicionalmente, esse objetivo pode ser também do interesse dos credores, especialmente dos detentores de créditos com menor prioridade na falência, uma vez que parte relevante do valor de uma firma se deve a sua estrutura organizacional e a investimentos afundados, sem valor comercial significativo em caso de desfazimento da empresa. Em caso de falência, o máximo que os credores podem recuperar é o valor de alienação dos ativos do devedor, geralmente muito inferior ao valor de mercado da empresa recuperada.

A literatura econômica sobre inadimplência demonstra ser socialmente desejável haver balanceamento das garantias aos credores e aos devedores. Garantias aos credores estimulam a concessão de crédito e, assim, afetam positivamente a expansão da produção. Entretanto, na impossibilidade de se segurar contra todos os possíveis eventos adversos, a previsão de punições excessivas ao devedor levaria os investidores a reduzir sua exposição a empreendimentos arriscados, diminuindo a demanda por crédito e o crescimento econômico.

Nesse sentido, convém destacar que, nos processos de recuperação judicial e de falência, os sócios e os acionistas podem perder todo o valor investido e só fazem jus a algum direito sobre a empresa após os demais créditos terem sido honrados. Nas sociedades limitadas e nas sociedades anônimas, os sócios e os acionistas gozam de responsabilidade limitada e, portanto, não comprometem seus bens pessoais, exceto em caso de desconsideração da personalidade jurídica por abuso, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conforme previsto no art. 50 do Código Civil[ii]. Esse foi o equilíbrio encontrado na ampla maioria das economias capitalistas para sopesar garantias a credores e devedores.

Do ponto de vista financeiro, a boa estruturação dos processos de recuperação judicial e de falência, com etapas bem definidas e atenção aos interesses dos credores, tende a ampliar os incentivos à oferta de crédito corporativo, com consequente expansão do volume emprestado e redução dos spreads. De fato, no período que seguiu a aprovação da Lei nº 11.101/2005, verificou-se uma considerável expansão de crédito corporativo de longo prazo e redução de spreads. Entretanto, outros aprimoramentos legais contemporâneos podem ter tido relevância nessa expansão do crédito de longo prazo, a exemplo das modificações nas regras para créditos imobiliários e agropecuários promovidas, respectivamente, pelas Leis nº 10.931/2004 e 11.076/2004. Adicionalmente, esse período também contou com significativos estímulos públicos ao crédito de longo prazo, incluindo crédito subsidiado por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), tornando difícil atribuir os efeitos documentados apenas às novas legislações.

Projeto de Lei

Em janeiro deste ano, o governo federal enviou ao Congresso Nacional uma proposta de projeto de lei, elaborado pelo Ministério da Fazenda, com alterações no instituto da falência empresarial. A proposta tramitou na Câmara de Deputados como Projeto de Lei nº 3/2024 e, atualmente, encontra-se em discussão no Senado.

A exposição de motivos apresentada pelo Ministério da Fazenda discorre sobre a necessidade de se imprimir maior celeridade e eficiência ao processo de falência. A mesma justificativa aparece no parecer da deputada federal relatora do projeto. Em breve síntese, o texto aprovado na Câmara de Deputados modifica as regras de remuneração do administrador judicial, estabelecendo teto global de dez mil salários-mínimos para a totalidade das remunerações na recuperação judicial ou na falência, além de limites percentuais máximos por faixas de valores devidos aos credores na recuperação judicial ou efetivamente pagos a eles na falência.

Adicionalmente, na falência, o projeto de lei confere à Assembleia de Credores a prerrogativa de, a qualquer tempo, substituir o administrador judicial por um gestor fiduciário, a fim de otimizar a alienação dos ativos, ou de simplesmente retirá-lo, deixando a indicação de substituto ao juízo responsável.

O texto também proíbe o administrador judicial na fase de recuperação de atuar como administrador judicial ou gestor fiduciário na fase de falência; impede que este atue em mais de um processo na mesma jurisdição, com valor superior a cem mil salários-mínimos, em até dois anos do término de seu mandato; e veda sua atuação simultânea em mais de quatro recuperações judiciais e quatro falências.

Essas mudanças, a meu ver, aprimoram a legislação brasileira, conferindo mais segurança aos credores, especialmente nos casos de falência. Deve-se esperar, entretanto, forte reação corporativa a elas, especialmente em relação às restrições de atuação e de remuneração dos administradores judiciais e à prerrogativa da Assembleia de Credores de substituí-lo, na falência, por um gestor fiduciário.

No contexto da discussão de possíveis aprimoramentos à legislação de falência, convém apontar para aspectos concorrenciais associados à alienação de ativos. Em seu art. 75, a lei preconiza a “liquidação célere de empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia”. Essa preocupação com a eficiência alocativa de recursos se coaduna com os ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência e repressão ao abuso do poder econômico. Isso é importante porque, em mercados concentrados, o maior concorrente tende a ser aquele com maior valoração para os bens alienados, pois a incorporação ajudará a consolidar seu poder dominante. Entretanto, essa troca nem sempre é a melhor realocação dos recursos na economia, posto que o exercício de poder dominante costuma gerar ineficiência alocativa e reduzir o bem-estar social.

Naturalmente, a alienação de ativos, quando significativa, precisará passar pelo controle de concentrações exercido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Porém, considerando a importância da celeridade do processo, seria interessante incorporar preocupações concorrenciais nas diretrizes gerais para a alienação de ativos.

Essa é uma preocupação abstrata, mas que possui correspondência concreta. Deve-se recordar, por exemplo, que duas das três principais companhias aéreas com atuação em voos domésticos se encontram em recuperação judicial. Não me parece ser do interesse da sociedade brasileira que, caso necessário, elas venham a alienar seus ativos para a empresa líder de mercado sem antes considerar e priorizar compradores alternativos, tais como companhias regionais ou entrantes no mercado brasileiro.


[i] Agradeço os comentários de Flávio Moraes e Paulo Riscado Jr.

[ii] Esse entendimento sobre a responsabilidade limitada tem sido flexibilizado, especialmente em processos trabalhistas, previdenciários e ambientais.


Luis Henrique B. Braido. Possui graduação em Economia pela Universidade de São Paulo (1995), mestrado em Economia pela Fundação Getulio Vargas (FGV/EPGE, 1998) e pela Universidade de Chicago (2000), e doutorado em Economia pela Universidade de Chicago (2002). Atualmente, é professor associado da FGV/EPGE e foi Conselheiro do CADE.


IA no setor público: BC e outros órgãos avançam

Leandro Oliveira Leite

A adoção de ciência de dados e inteligência artificial (IA) nas instituições públicas tem sido uma tendência crescente nos últimos anos, com o objetivo de promover maior eficiência, transparência e segurança nos serviços prestados à população. O Banco Central do Brasil (BC) e outros órgãos governamentais estão liderando esse movimento, desenvolvendo soluções baseadas em IA e big data para otimizar processos, fortalecer a regulação e melhorar o atendimento aos cidadãos. Neste artigo, discutiremos detalhadamente as iniciativas de integração de IA no Banco Central do Brasil e em outros órgãos, analisando seus impactos na sociedade, no mercado financeiro e na concorrência.

A criação do Centro de Excelência de Ciência de Dados e Inteligência Artificial (CdE IA) pelo Banco Central em agosto de 2024 marca um importante avanço no uso de tecnologias emergentes dentro da instituição. O CdE IA tem caráter consultivo e propositivo, e funcionará como uma comunidade de práticas composta por especialistas de diversas áreas da instituição. Seu principal objetivo é propor diretrizes de governança para o uso de IA de maneira segura e ética, além de sugerir requisitos para o desenvolvimento de produtos e serviços de IA generativa.

Essa iniciativa está alinhada ao Plano Diretor de Tecnologia da Informação e Comunicação (PDTIC) do BC, que prevê o uso de ciência de dados e IA para aprimorar a capacidade analítica e preditiva da instituição. Entre os objetivos principais do centro, destacam-se: (i) melhorar a eficiência e a produtividade dos processos de negócios do Banco Central; (ii) desenvolver e aplicar IA de maneira segura e governada, garantindo que os algoritmos utilizados sejam transparentes e livres de vieses prejudiciais; e (iii) capacitar servidores públicos em ciência de dados e IA, promovendo uma cultura de inovação dentro da instituição.

O uso de IA no Banco Central tem um potencial transformador, especialmente na automação de processos de supervisão e regulação. Por exemplo, com o uso de machine learning e análise preditiva, o BC pode detectar padrões de comportamento que indiquem atividades irregulares no sistema financeiro, como fraudes ou práticas de lavagem de dinheiro. Isso aumentaria significativamente a capacidade de fiscalização e mitigaria riscos ao sistema financeiro nacional.

A integração de IA no Banco Central tem implicações diretas para o mercado financeiro. A IA permite uma análise mais precisa e detalhada de grandes volumes de dados, o que pode resultar em um processo regulatório mais eficiente e eficaz. Além disso, o uso de IA na detecção de fraudes e no monitoramento do comportamento das instituições financeiras pode reduzir os riscos sistêmicos, promovendo um ambiente financeiro mais seguro e confiável.

Por outro lado, as empresas que adotarem tecnologias de IA de forma rápida e eficaz terão uma vantagem competitiva significativa no mercado. Bancos e instituições financeiras que implementarem soluções de IA para automatizar processos, melhorar a análise de crédito e personalizar serviços para clientes poderão atender de forma mais eficiente às demandas do mercado. No entanto, aquelas que não se adaptarem a essas novas exigências tecnológicas poderão enfrentar dificuldades em um ambiente cada vez mais competitivo.

Além disso, a adoção de IA pode facilitar a inclusão financeira no Brasil. Ferramentas baseadas em IA, como os chatbots inteligentes e plataformas de atendimento ao cliente, podem ajudar a tornar os serviços financeiros mais acessíveis para a população de baixa renda, especialmente nas regiões mais remotas do país. O BC, por meio de programas como o Open Finance e o Pix, tem buscado aumentar o acesso a serviços financeiros, e a IA pode potencializar ainda mais esses esforços.

Além do Banco Central, outros órgãos governamentais no Brasil também têm adotado a ciência de dados e a IA em seus processos. Esses esforços visam aumentar a eficiência dos serviços públicos, melhorar a tomada de decisões e fortalecer o combate a fraudes e irregularidades.

A Receita Federal do Brasil (RFB) utiliza IA e ciência de dados em seus sistemas de fiscalização para identificar fraudes fiscais e sonegação de impostos. O uso de algoritmos de machine learning permite que a RFB analise grandes volumes de informações e identifique padrões anômalos nas declarações fiscais, agilizando auditorias e aumentando a arrecadação tributária.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) também utiliza IA no combate a cartéis. O seu sistema de IA, denominado Projeto Cérebro, permite que o Cade identifique padrões suspeitos em grandes volumes de dados de licitações públicas e de mercados específicos, facilitando a detecção de práticas anticoncorrenciais. O uso de IA no Cade aumentou significativamente a eficiência na identificação de comportamentos que sugerem a formação de cartéis, auxiliando na investigação de condutas anticompetitivas e reforçando a atuação da autarquia na promoção de um ambiente de concorrência leal no Brasil.

A CGU adotou IA para combater a corrupção e fraudes em contratos públicos. Algoritmos avançados analisam contratos, processos licitatórios e outras transações financeiras, identificando potenciais irregularidades e permitindo ações preventivas. O uso de IA também facilita o cruzamento de dados entre diferentes órgãos públicos, promovendo maior transparência.

O TCU utiliza IA para auditorias automáticas em grandes bases de dados. A tecnologia permite ao tribunal identificar possíveis desvios de recursos públicos, monitorar a execução de políticas públicas e recomendar melhorias. Um exemplo é o uso de ciência de dados para acompanhar a execução de obras públicas, garantindo que os recursos sejam utilizados de forma adequada.

O STJ está utilizando IA em um projeto chamado Victor, que automatiza a análise de processos judiciais. O sistema de IA é capaz de identificar padrões e organizar processos, facilitando a triagem e a tomada de decisões. Isso tem potencial para acelerar o trâmite processual e reduzir o acúmulo de processos no tribunal.

Embora a integração de IA nos órgãos governamentais traga inúmeras vantagens, há também desafios a serem enfrentados. Um dos principais desafios é garantir que o uso de IA seja ético e transparente. As decisões automatizadas por IA devem ser compreensíveis para que haja confiança pública. Além disso, é importante que os algoritmos utilizados sejam auditáveis e que não perpetuem vieses discriminatórios.

Outro desafio é o desenvolvimento de capacidades técnicas dentro dos órgãos públicos. Embora o BC e outras instituições tenham investido em capacitação de seus servidores, a escassez de profissionais especializados em IA e ciência de dados ainda é uma realidade que pode dificultar a expansão dessas tecnologias no setor público.

Por outro lado, as oportunidades são vastas. O uso de IA pode aumentar a eficiência dos serviços públicos, reduzir custos e melhorar o atendimento à população. A capacidade de prever problemas e tomar decisões mais bem informadas tem o potencial de transformar a forma como o governo administra recursos e regula setores como o financeiro.

A criação do Centro de Excelência de Ciência de Dados e IA do Banco Central é um marco no avanço do uso de tecnologia no setor público brasileiro. Com a implementação dessas tecnologias, o BC não apenas moderniza seus processos internos, mas também prepara o país para enfrentar os desafios globais da era digital, promovendo um sistema financeiro mais inclusivo, seguro e competitivo.

As iniciativas de IA adotadas por outros órgãos do governo, como o Cade, a Receita Federal, a CGU e o TCU, mostram que o setor público está avançando em direção a uma administração mais eficiente e transparente. A integração de IA e ciência de dados no governo tem o potencial de transformar a gestão pública no Brasil, trazendo benefícios diretos à sociedade e ao mercado.


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


A inteligência artificial e o futuro da humanidade: um debate aberto

Marco Aurélio Bittencourt

A inteligência artificial (IA) tem se tornado onipresente em nossas vidas, moldando a maneira como interagimos com o mundo e com as outras pessoas. Se, por um lado, vislumbramos um futuro com soluções para problemas complexos e melhorias na qualidade de vida, por outro, nos deparamos com questões cruciais sobre o futuro da humanidade, a liberdade individual e o próprio significado de ser humano. O termo “inteligência artificial” em si já gera debate, questionando a natureza da inteligência e os limites da IA. Afinal, a inteligência humana é fruto de milhões de anos de evolução, inerente aos organismos vivos e não às máquinas, por mais sofisticadas que sejam. Alan Turing, o pai da computação, ao reconhecer a existência de problemas não computáveis, já demonstrava a limitação da lógica digital, um obstáculo intransponível para máquinas que tentam replicar a complexidade da intuição, criatividade e emoção, inerentemente humanas.

Essa complexidade inerente à mente humana é o que Miguel Nicolelis, renomado neurocientista brasileiro, explora em sua Teoria do Cérebro Relativístico (TCR). Segundo ele, o cérebro não se limita à lógica binária dos computadores; opera de forma relativística, criativa e imprevisível, construindo seu próprio “espaço-tempo” interno para processar informações. A TCR reforça a singularidade da inteligência humana e questiona a possibilidade de uma IA realmente inteligente e autônoma, como a que muitos preveem com a singularidade tecnológica. Essa visão de um futuro em que algoritmos ditam nossas vidas e máquinas controlam a sociedade é perturbadora e exige profunda reflexão.

Vivemos em uma era onde algoritmos influenciam cada vez mais nossas escolhas, desde compras online até as notícias que consumimos. Essa influência silenciosa e persuasiva representa um risco à liberdade individual, demonstrando o poder dos algoritmos e a erosão da liberdade. Quem controla esses algoritmos detém um poder imenso, podendo manipular comportamentos e moldar opiniões. A perda da autonomia e a submissão a uma lógica determinística imposta por máquinas ameaçam a essência do ser humano. A imersão no mundo digital e a adaptação constante à lógica das máquinas podem ter consequências profundas na forma como nossos cérebros funcionam, resultando na moldagem do cérebro e na perda de habilidades humanas.

Habilidades essenciais como a intuição, a criatividade, o pensamento crítico e a empatia podem ser atrofiadas em um ambiente dominado pela lógica binária e, talvez pela evolução analógica dessas criaturas forjadas por códigos, e principalmente pela busca constante por eficiência que faz parte do nosso arsenal de inteligência. A máquina poderia ser binária e analógica, mas há dúvida que possa incluir mais um elemento crucial que a aproximaria do cérebro humano: a complexidade.

Corremos o risco de nos tornarmos seres menos humanos, menos capazes de compreender a complexidade do mundo e de nos conectarmos com os outros. Diante desse cenário potencialmente distópico, a questão das mutações genéticas traz um elemento de imprevisibilidade, podendo representar uma luz no fim do túnel. As mutações, por sua natureza aleatória, podem conferir à humanidade uma saída inesperada, tornando-nos mais resilientes à influência das máquinas ou conferindo-nos novas habilidades cognitivas. No entanto, como eventos aleatórios ocorrem de forma imprevisível e tanto para o bem quanto para o mal, não se pode contar com a sorte para que o rumo do controle da vida seja resgatável.

Assim como o cérebro busca eficiência, as pessoas buscam preservar seus valores. Se a criatividade, a independência e outros aspectos da vida estiverem em perigo, a ação rebelde contra as máquinas será mais intensa quanto maior for a ameaça. Essa resistência, enraizada na capacidade de organização de grupos minoritários com interesses bem definidos, pode ser crucial para evitar um futuro distópico, a menos que a maioria se una em torno da alienação. De fato, já hoje encontramos regiões, cidades ou países em que políticas educacionais restringem o uso de aparelhos digitais na escola.

É certo que as inovações despertam interesse, mas compreender sua oportunidade é ainda um achado no escuro. Se as máquinas dominarem essa área da inteligência humana, a luta se tornaria mais difícil, e talvez dois mundos convivam simultaneamente: o “atrasado” e o “moderno”, em uma relação de poder ainda incerta.

Resta saber se a convivência entre o “atrasado” e o “moderno” seria pacífica ou se o moderno absorveria o atrasado. Caminharíamos para uma senda intelectual mais arbitrária, um futurismo de cartomante. Sabemos, porém, que os valores democráticos só se mantêm pelo equilíbrio entre os poderes, que, com freios e contrapesos (checks and balances), impedem que um poder se sobreponha aos demais e derrube os princípios constitucionais fundamentais e as cláusulas pétreas. Portanto, creio que um mundo distópico não prevalecerá.

A inteligência artificial é uma ferramenta poderosa, com potencial de transformar o mundo de maneiras inimagináveis. No entanto, seu desenvolvimento e aplicação exigem cuidado, responsabilidade e uma reflexão profunda sobre seus impactos na humanidade. A busca desenfreada pela eficiência e pelo progresso tecnológico não pode se dar às custas da liberdade, da individualidade e dos valores que nos tornam humanos. É preciso garantir que a IA seja utilizada para o bem da humanidade, e não para sua subjugação. O futuro da nossa espécie depende das escolhas que fazemos hoje, e dentre elas está a liberdade que estamos perdendo por não nos posicionarmos criticamente sobre o caminho que a própria humanidade toma.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Inovação na Precificação de Medicamentos no Brasil: Aplicando a Teoria do Design de Mecanismos

Andrey Vilas Boas de Freitas

A precificação de medicamentos no Brasil é um tema complexo que envolve o equilíbrio entre o acesso aos tratamentos, a promoção da inovação farmacêutica e a sustentabilidade financeira do sistema de saúde. Para enfrentar esse desafio, uma abordagem inovadora seria a aplicação da Teoria do Design de Mecanismos, um ramo da economia que busca criar incentivos para que os agentes econômicos ajam de maneira a maximizar o bem-estar social. Este artigo propõe a utilização dessa teoria como base para um novo modelo regulatório que contemple os interesses de todos os envolvidos, incluindo as empresas farmacêuticas, o governo, os reguladores e os consumidores.

1. O Desafio da Precificação de Medicamentos

Atualmente, a precificação de medicamentos no Brasil segue um modelo baseado na análise de custos e nos parâmetros definidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Embora o sistema tenha como objetivo garantir que os medicamentos estejam disponíveis a preços acessíveis, muitas vezes, ele acaba privilegiando a proteção dos investimentos das farmacêuticas. As empresas, ao apresentarem informações sobre custos e desenvolvimento de seus produtos, mantêm certa assimetria de informações: dados críticos sobre o custo real de produção, o investimento em pesquisa e desenvolvimento, e os ganhos potenciais são conhecidos apenas por elas, dificultando uma avaliação completa e justa por parte do regulador. Isso resulta em um ambiente onde as farmacêuticas têm um poder desproporcional na definição dos preços, impactando diretamente o acesso da população aos medicamentos essenciais.

Essa falta de transparência pode levar a distorções no mercado. Os preços elevados, frequentemente justificados com base em investimentos em inovação, acabam por limitar o acesso da população a tratamentos essenciais, especialmente em um sistema de saúde público como o SUS, que precisa equilibrar orçamento limitado com a demanda crescente por novos medicamentos. Além disso, essa dinâmica pode reduzir a concorrência, já que o poder de mercado de algumas grandes farmacêuticas as permite manter posições dominantes, dificultando a entrada de competidores que poderiam oferecer alternativas mais acessíveis.

O grande desafio regulatório, portanto, é criar um sistema de precificação que considere tanto a necessidade de acesso quanto a sustentabilidade da inovação farmacêutica. Deve-se garantir que os preços reflitam o valor terapêutico real dos medicamentos, sem inviabilizar a capacidade das empresas de continuar investindo em pesquisa e desenvolvimento. A Teoria do Design de Mecanismos surge como uma ferramenta potente para lidar com essa complexidade, propondo um redesenho das regras que governam o mercado. Essa abordagem busca alinhar os incentivos de todos os agentes envolvidos — governo, indústria e consumidores — para criar um sistema de precificação mais justo, transparente e eficiente.

Ao estabelecer regras claras que incentivem a revelação honesta de informações, a teoria sugere mecanismos que diminuem a assimetria de informações e incentivam as farmacêuticas a serem mais transparentes sobre seus custos e benefícios reais. Esses mecanismos poderiam incluir, por exemplo, exigências de auditorias independentes, contratos vinculados a resultados e métricas de avaliação pública, de modo que a precificação seja baseada no impacto real para a saúde pública e não apenas em estratégias de mercado. Isso representaria uma mudança de paradigma, colocando o interesse coletivo como eixo central da regulação, sem comprometer os incentivos à inovação que são vitais para a evolução do setor farmacêutico.

2.Precificação Baseada em Valor: Um Modelo Inovador

Uma abordagem promissora para aplicar a Teoria do Design de Mecanismos ao contexto da precificação de medicamentos é a adoção da precificação baseada em valor (Value-Based Pricing). Esse modelo propõe que o preço dos medicamentos seja definido com base no impacto terapêutico real que eles proporcionam, tanto para os pacientes quanto para o sistema de saúde, ao invés de se basear exclusivamente nos custos de desenvolvimento ou nas estratégias de mercado das empresas farmacêuticas, que muitas vezes se beneficiam de monopólios temporários. Dessa forma, o foco passa a ser o valor gerado pelo medicamento em termos de resultados concretos para a saúde, como melhorias na qualidade de vida, eficácia no tratamento e redução de custos futuros no sistema de saúde.

A ideia central da precificação baseada em valor é criar um ambiente em que os incentivos estejam alinhados para fomentar inovações genuínas e de alto impacto. Em vez de apenas buscar maximizar lucros por meio de patentes e exclusividade de mercado, as empresas farmacêuticas seriam incentivadas a concentrar seus investimentos e esforços em tratamentos que tragam benefícios substanciais para os pacientes. Isso significa que medicamentos que ofereçam uma cura significativa, reduzam a necessidade de hospitalizações, ou melhorem de forma considerável a qualidade de vida dos pacientes teriam preços mais altos, refletindo o valor agregado que entregam. Por outro lado, tratamentos com benefícios marginais ou incertos teriam preços mais baixos, garantindo que o investimento público e privado seja direcionado para inovações realmente relevantes.

Ao aplicar esse modelo, o sistema de saúde poderia, por exemplo, negociar contratos de desempenho, nos quais o pagamento final depende dos resultados alcançados. Isso garante que o preço pago seja justo, com base no valor terapêutico real, e oferece um incentivo poderoso para as farmacêuticas desenvolverem medicamentos de alta qualidade. Além disso, a adoção de métricas claras e objetivas de eficácia permite uma maior transparência no processo de precificação, facilitando o controle público e a avaliação contínua dos impactos dos medicamentos na saúde da população.

2.1 Contratos de Desempenho: Uma Alternativa Eficaz

Uma forma concreta de implementar a precificação baseada em valor seria por meio de Contratos de Desempenho. Nesse modelo, o preço final de um medicamento está diretamente ligado a indicadores específicos de saúde. Desse modo, o valor final pago por um medicamento depende da sua eficácia em atingir objetivos clínicos claros, como a melhoria na saúde dos pacientes ou a redução de custos para o sistema de saúde. Se os resultados prometidos pelo fabricante não forem alcançados, o preço é ajustado para baixo, assegurando que o pagamento seja proporcional ao benefício terapêutico efetivamente proporcionado.

Por exemplo, considere um medicamento voltado para o tratamento de uma doença crônica que promete diminuir as hospitalizações em 50%. Se, após a introdução do medicamento, os dados mostrarem que a redução de hospitalizações foi menor do que o esperado, o contrato pode prever uma redução proporcional no preço. Essa abordagem não apenas garante que os pagamentos estejam alinhados com os resultados, mas também estabelece um incentivo claro para as empresas farmacêuticas desenvolverem tratamentos que realmente cumpram suas promessas terapêuticas. Além disso, o uso de Contratos de Desempenho promove maior transparência no processo de precificação, facilitando a incorporação de novas tecnologias ao sistema de saúde com base em evidências concretas de eficácia. Isso torna o processo mais justo para o governo e para os pacientes, que podem confiar que estão investindo em medicamentos que comprovadamente trazem benefícios significativos.

3. Benefícios e Desafios da Implementação

A aplicação da Teoria do Design de Mecanismos à precificação de medicamentos no Brasil traria uma série de benefícios, mas também enfrentaria desafios consideráveis. Um dos principais benefícios seria a maior transparência na precificação. A adoção de métricas de desempenho claras ajudaria a reduzir a assimetria de informações, tornando o processo de definição de preços mais justo e acessível para todos os envolvidos. Além disso, a vinculação do preço ao benefício real proporcionado pelo medicamento incentivaria as farmacêuticas a direcionarem seus investimentos para tratamentos que ofereçam avanços terapêuticos significativos, promovendo uma inovação de alto valor. Esse modelo de precificação também contribuiria para a sustentabilidade financeira do sistema de saúde, permitindo uma alocação mais eficiente dos recursos públicos ao reduzir os custos associados a tratamentos de baixa eficácia.

Por outro lado, a implementação desse modelo enfrenta desafios importantes. Seria essencial criar um sistema robusto de avaliação e monitoramento, capaz de coletar dados de forma confiável e justa, a fim de fundamentar as decisões de precificação baseadas em desempenho. Além disso, uma mudança desse porte exigiria um esforço legislativo significativo, com a revisão e adaptação das normativas vigentes que regulam a precificação e incorporação de medicamentos. Tanto a CMED quanto a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) precisariam ajustar suas regulamentações para garantir que os novos mecanismos sejam adequadamente incorporados ao arcabouço regulatório, garantindo sua eficácia e aplicabilidade no contexto brasileiro.

4. Caminhos para a Implementação: Revisão e Adaptação da Legislação

Para viabilizar essa proposta, o primeiro passo é realizar uma análise detalhada da legislação existente, identificando lacunas e pontos que precisam de atualização. Isso exigirá uma revisão minuciosa das resoluções, portarias e decretos que regem a precificação e a incorporação de medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS).

A revisão deve ter um enfoque especial em regras de transparência, buscando estabelecer normas claras para a divulgação de dados de custos e eficácia dos medicamentos, garantindo que as informações estejam disponíveis de forma acessível e confiável. Além disso, é essencial definir critérios de precificação baseados em valor, estabelecendo parâmetros objetivos para avaliar o desempenho de cada medicamento, possibilitando o ajuste de preços conforme os resultados clínicos observados.

Outro aspecto fundamental para o sucesso da proposta é a criação de sistemas robustos de auditoria e monitoramento. Um sistema de auditoria independente precisa ser instituído para garantir a precisão e a veracidade dos dados fornecidos pelas farmacêuticas, bem como para realizar avaliações periódicas sobre a eficácia e o impacto dos medicamentos. Essa estrutura permitirá maior controle sobre o processo de precificação e assegurará que os medicamentos ofereçam benefícios reais à saúde pública, contribuindo para a sustentabilidade e a transparência do sistema de saúde brasileiro.

5. Conclusão: Um Novo Paradigma para a Regulação da Saúde no Brasil

A aplicação da Teoria do Design de Mecanismos ao contexto da precificação de medicamentos no Brasil representa uma oportunidade de transformar o sistema de saúde, criando um ambiente mais justo, transparente e sustentável. Ao alinhar os incentivos para que todos os agentes envolvidos colaborem de forma eficaz, é possível garantir que os medicamentos essenciais sejam acessíveis à população, sem comprometer o dinamismo e a inovação no setor farmacêutico.

Esse é um caminho desafiador, que exige um esforço coordenado entre governo, indústria e sociedade civil. No entanto, os benefícios de um sistema de saúde mais equilibrado e eficiente são claros e representam um avanço importante para o Brasil. A adoção de modelos inovadores, como a precificação baseada em valor e os contratos de desempenho, pode ser o primeiro passo para uma transformação regulatória que atenda às necessidades de todos os brasileiros.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996.


A CLT não está mais em vigor no Brasil

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

A nossa principal lei trabalhista vigora há mais de 80 anos. Surgida durante a ditadura do Estado Novo, no governo Vargas, trata-se de um conjunto de normas totalmente divorciado na realidade vigente no País e no mundo, em pleno Século 21.

Sem dúvida, a importante reforma, feita em 2017, que alterou significativamente muitas das normas da CLT, não foi suficiente para a modernização completa deste diploma, que é necessária em tempos nos quais o cenário e as relações em muito se diferenciam daqueles existentes à época de sua promulgação.  Assim, uma nova legislação se impõe, e enquanto não acontece, vamos convivendo com uma colcha de retalhos, à qual se somam as mudanças que são feitas pela jurisprudência.

Luiz Antonio Abagge e Outros, em recente artigo publicado no Valor Econômico[1], destaca que “… a Justiça do Trabalho tem vivido, nos últimos tempos, uma verdadeira crise institucional, já que, de um lado, o seu tradicional objeto, a relação de trabalho subordinada, ensejadora do vínculo empregatício, a cada dia tem perdido força na sociedade moderna e, de outro, a sua competência para processar e julgar relações de trabalho em sentido amplo tem sido questionada pela cúpula do Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF).”

Isso se deve, sem dúvida, ao fato de a CLT ainda estar em vigor no Brasil, fazendo com que a Justiça do Trabalho tenha que se submeter a ela, fique engessada e não se atualize às novas visões que devem moderar as relações de trabalho no Brasil.

A CLT, não só como norma jurídica, mas também como norma técnica, reflete principalmente o cenário da época em que foi editada, não sendo admissível que, atualmente, se torne um complicador, impondo custos e procedimentos injustificáveis às empresas. Neste cenário, é possível a afirmação de que foi ela derrogada, por absoluto conflito com a realidade.

No que diz respeito à administração das relações do trabalho, sua obsolescência é ainda mais flagrante. Traz ela inúmeros dispositivos que transferem ao Estado uma série de responsabilidades e atos. Ora, a prática diária, reforçada por acordos e convenções coletivas, pela ação de sindicatos, por inúmeras decisões judiciais, leva à inafastável certeza de que patrões e empregados devem resolver, sem intermediários, as suas relações de trabalho, baseados na confiança e na responsabilidade.

Mantidas as normas atuais da CLT, que ainda estão vigentes, as relações trabalhistas andam para trás. Não pode ser ela um obstáculo à adoção de práticas modernas, racionais e transparentes, com foco num sistema livre e negocial, e não mais em um sistema estatutário. Repetimos que a reforma de 2017 já foi um grande avanço, mas há mais ainda a ser feito.

Impõe-se criar uma legislação trabalhista completa e moderna, que reflita as necessidades da sociedade atual. Lei, sem consonância com a realidade, tanto jurídica como social, não é mais lei. A CLT não acompanhou as alterações ocorridas nas relações entre capital e trabalho no Brasil.

Note-se que, já em 1988, o saudoso Ministro Almir Pazzianotto, que foi Ministro do Trabalho e Ministro do Tribunal Superior do Trabalho – TST, dizia que “… a nossa velha e querida CLT, concebida no crepúsculo da década de 30 e aprovada em 1943, parou no tempo”.

Vamos aproveitar o momento de mudanças pelo qual passa o País, para revogar e modernizar essa legislação retrógrada e policialesca, que serve tão somente para gerar conflitos e atravancar a justiça. A empresa moderna não é mais o campo de batalha onde se desenrola uma guerra entre duas classes, mas o território produtivo onde se deve multiplicar a confiança e o respeito mútuos.

Na prática, a CLT não está mais em vigor. Urge, então, revogá-la.


[1] Abagge, Luiz A., et al. Novas relações estão no escopo da Justiça do Trabalho. Publicado 15.10.2024. Disponível em:

https://valor.globo.com/legislacao/coluna/novas-relacoes-estao-no-escopo-da-justica-do-trabalho.ghtml. Acesso em 17.10.2024.


Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Liberdade (apenas uma força) de expressão: também uma questão concorrencial

Maxwell de Alencar Meneses

Falar sobre liberdade de expressão é sempre difícil, dada a profundidade do assunto. Portanto, nada melhor do que partir do que foi expresso por julgadores de cortes constitucionais ao redor do mundo a respeito do tema, porque, afinal de contas, é a pluralidade — efeito da mencionada liberdade — que sustenta a busca pela verdade. Para isso, utilizou-se, de modo fortuito, uma excelente pesquisa de jurisprudência internacional, obtida no site do STF (STF, 2021).

A referida pesquisa é parafraseada a seguir, estabelecendo um fio condutor para a reflexão aqui ensejada, que, como de costume, não reflete a opinião de nenhuma entidade em especial, nem mesmo do autor, sendo apenas um livre exercício de raciocínio crítico.

De início, na África do Sul, a Corte Constitucional afirmou em 2007 que a liberdade de expressão é central para a democracia, que a Constituição garante aos indivíduos a capacidade de ouvir, formar e expressar opiniões livremente, sendo essa liberdade crucial para a busca da verdade. Em 2013, a Corte complementou que o valor de permitir vozes dissidentes é fundamental em uma democracia constitucional, alertando que medidas restritivas não devem ser usadas para silenciar essas vozes.

Na Alemanha, em 1996, o Tribunal Constitucional precisou lidar com os limites dessa liberdade ao avaliar como uma pessoa poderia criticar uma organização de assistência ao suicídio. Na América, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2009, destacou que os Estados devem evitar interferências nos direitos daqueles que participam do discurso público, especialmente em contextos de polarização social, afirmando que a liberdade de expressão inclui o direito de buscar, receber e transmitir informações livremente.

Todavia, na França, em 2018, o Conselho Constitucional estabeleceu limites à liberdade de expressão para garantir eleições justas, justificando restrições sob o argumento de combater a manipulação da informação.

Em Israel, a Suprema Corte decidiu, em 2003, que a ofensa ou rudeza de uma manifestação não pode ser motivo para impedir sua proteção. A Corte foi clara ao afirmar que a verdade da expressão não é relevante e que permitir restrições com base nisso daria ao governo o poder de definir o que é verdade ou falso. Essa visão ressalta a defesa radical da liberdade de expressão, mesmo que inclua a disseminação de expressões falsas.

Por fim, na Turquia, em 1994, o Tribunal Constitucional afirmou que partidos políticos não podem promover atividades que ameacem a democracia e a paz social, como incitar rebeliões ou fomentar diferenças étnicas. Aqui, vemos mais uma vez a liberdade de expressão sendo subordinada à proteção do Estado e da unidade nacional. Da mesma forma, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em 1994, justificou a apreensão de um filme blasfemo como uma interferência legítima na liberdade de expressão, desde que prevista em lei e visando proteger os direitos dos cidadãos de não serem insultados.

É possível agora perceber melhor a dura e pouco desejável realidade prática do jogo de palavras contido no título deste artigo, que, rescrito da seguinte forma, demonstra o conteúdo encapsulado, de fato implícito sob uma espécie de sanfona: ora estendida, liberdade »apenas uma força« de expressão; ora contraída, liberdade »« de expressão, a depender do caso. Sendo assim, pode-se afirmar, pela lógica, que algo não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Portanto, de fato, não há liberdade de expressão; esse termo é apenas uma força de expressão, outra hype, uma hipérbole, a exemplo da descrita no último artigo, a respeito da inteligência artificial, como quando se diz que o azeite está pelos olhos da cara, por mais verdadeira que pareça tal afirmação para quem vai aos mercados.

Nota-se, fazendo uma primeira associação com ideias de concorrência, que os Estados, aqui e acolá, não resistem à tentação de criar regulações sobre o discurso e, assim, mal ou bem, criam barreiras de entrada para segmentos que concorrem entre si, a partir do mercado relevante das ideias, que são o insumo básico para outros mercados, como o editorial, jornalístico, educacional e seus desdobramentos em uma longa cadeia de valor. Desse modo, constituem-se os consensos fabricados, um tipo de monopólio de conclusões.

No dia a dia, ou melhor dizendo, de modo empírico, essa realidade é vivida há tempos. A experiência deste autor, que viveu sob vários regimes, remonta à época em que a simples menção dos nomes de antigos presidentes-generais na escola criava um clima tenso. O leitor pode, por si só, traçar paralelos com nomes atuais que provoquem sensação semelhante.

Na Escola Anglicana John F. Kennedy, em Belém-PA, havia um cemitério dentro da própria instituição, pois os missionários anglicanos não podiam ser enterrados em outro lugar. Regras são aprendidas desde a infância, como não perguntar a idade das professoras, evitar falar de religião, política e futebol. Os lugares de fala estão constantemente sendo estreitados; somente quem compartilha exatamente da condição analisada pode se pronunciar a respeito.

Portanto, por mais simplórios que sejam esses exemplos, eles deslindam a realidade fática de que ninguém é realmente livre para dizer o que pensa. O filtro é normalmente aplicado conforme o poder econômico ou político vigente. Nos anos 80 e 90, assistia-se a um programa infantil todas as noites de domingo, o famoso ‘Os Trapalhões’. As falas e o humor utilizados nesse programa são hoje veiculados após avisos legais que praticamente imploram desculpas pelas falas ali contidas. Ao mesmo tempo, em eventos de âmbito internacional, como nas recentes Olimpíadas de Paris, deboches considerados por alguns desrespeitosos à fé cristã são propagados livremente, enquanto conteúdos ditos culturais, de cunho erotizante, são expostos cada vez mais cedo para crianças, como parte, inclusive, de ações governamentais.

E a concorrência, o que tem com isso? Tudo, porque a concorrência está em toda parte. Basta lembrar do conceito de controle de concentrações como um modo de evitar nocivas concentrações de poder econômico, que seriam capazes de conferir aos seus possuidores o condão de influenciar, ao seu bel-prazer, a economia, a política e, por que não, os costumes, como Soros, Musk, Bezos, Gates, Batistas, Odebrechts ou, nos primórdios da criação do Direito Concorrencial no Brasil, Chateaubriand versus Agamenon.

Em fechamento, como um possível resultado da reflexão apresentada neste artigo, que percorreu de modo sucinto decisões de cortes supremas ao redor do mundo e passou pela experiência pessoal do autor, é fundamental entender e ter plena consciência da real e prática possibilidade de se expressar, tanto na sociedade de hoje quanto na de ontem. O que pode ou não ser dito está, em grande parte, atrelado aos poderes dominantes, mais do que à ideia abstrata de liberdade. Nesse cenário, o papel do CADE se torna crucial, pois seu trabalho constante de evitar ou mitigar a formação de grupos econômicos capazes de ditar como devemos viver e nos expressar está diretamente ligado à preservação de uma concorrência saudável. Sem esse equilíbrio, corremos o risco de viver sob a influência de poucos, que controlam tanto o mercado quanto o discurso. Assim, a concorrência se revela não apenas como uma questão econômica, mas como um mecanismo essencial para a manutenção da liberdade de expressão em sua forma mais autêntica.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DEFESA DA DEMOCRACIA. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaInternacional/anexo/PJI22021LiberdadedeExpressoeDefesadaDemocracia.pdf#:~:text=%E2%80%9CA%20liberdade%20de%20express%C3%A3o,%20a%20liberdade%20de%20reuni%C3%A3o>. Acesso em: 30 set. 2024.


Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


O Nobel de Economia de 2024 e as reformas estruturais em direção a melhores instituições e desenvolvimento

Katia Rocha

Nessa semana, o Prêmio Nobel de Economia de 2024 foi concedido a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson, por seus trabalhos sobre como as instituições são formadas e como afetam o desenvolvimento econômico e social dos países. Entre os diversos trabalhos seminais, talvez o mais conhecido seja o livro Por que as Nações Fracassam. As Origens do Poder, da Prosperidade e da Pobreza de 2012.

Segundo os laureados, as instituições econômicas de uma sociedade dependem da natureza das suas instituições políticas e da distribuição do poder político na sociedade. A ideia norteadora recai no argumento no qual o principal determinante das diferenças das riquezas entre países são suas instituições econômicas. As instituições, entendidas em aspecto amplo, seriam as causas no que toca a disparidade e heterogeneidade no desenvolvimento econômico e social dos países, determinando não apenas o potencial de desenvolvimento econômico da respectiva economia, mas também a sua distribuição de recursos na sociedade.

A investigação recai, portanto, nos fatores que levam uma sociedade a um equilíbrio político que apoia boas instituições econômicas (“inclusivas ao contrário de extrativistas” segundo os autores) e que facilita as reformas econômicas necessárias em direção à prosperidade.

Os estudos apontam evidências em direção a causalidade, ou seja, uma associação direta entre causa-efeito, entre as características institucionais dos países e seu nível de riqueza ou renda per capita. Dessa forma, pode-se cotejar a hipótese de que melhores instituições, como um todo, estão associadas a um maior desenvolvimento e riqueza.

As Figuras a seguir nos ajudam a observar estruturas de correlação entre possíveis características institucionais representadas pelos indicadores de Governança do Banco Mundial – qualidade regulatória, aparato legal, efetividade das políticas públicas, controle de corrupção, responsabilidade e gestão – e a renda per capita (riqueza) dessas economias, considerando uma amostra aleatória de 180 países em diversos anos.

Instituições x Riqueza

Fonte: World Govenarce Indicators (2023)

O incentivo, portanto, recai em compreender e reformar as forças que mantêm as más instituições em funcionamento. Nesse sentido, e em particular para Brasil, os estudos guardam boa relação com as reformas estruturais propostas por diversos think tanks há tempos para o país, e que se relacionam a questões de produtividade, investimentos em infraestrutura, educação e outras. Tais reformas teriam exatamente o potencial de estimular o crescimento via aumento de produtividade, ao promover maior eficiência alocativa de recursos.

A OCDE, por exemplo, sempre apresenta em sua publicação OCDE – Economic Surveys Brazil uma seção dedicada a estimar, através de modelos econométricos de crescimento de longo prazo, o potencial impacto de médio e longo prazo na atividade, decorrente de diversos conjuntos de reformas políticas e institucionais. Na última publicação, um pacote de reformas, que melhorasse a qualidade regulatória e a concorrência, reduzisse as barreiras ao comércio exterior e melhorasse as instituições e a governança, geraria um aumento real do PIB de 14.1% e um incremento no crescimento médio anual de 1% ao ano, de forma consistente no longo prazo.

Entre as propostas sugeridas temos a reforma tributária de consumo (IVA), aprovada recentemente e objeto atual de regulamentação. Há também recomendações em direção à reforma tributária de renda, com maior progressividade, bem como a pauta da abertura econômica, com redução de barreiras tarifárias e não tarifárias (atingindo, em 5 anos, o nível atual nas principais economias da OCDE) e abertura gradual da conta de capital. Há reformas institucionais com melhorias nos indicadores de Governança, capturado pelos índices do Banco Mundial (controle de corrupção, aparato legal e judiciário, qualidade regulatória, governança das empresas estatais, efetividade, reponsabilidade, controle e gestão) convergindo gradualmente ao valor médio da OCDE em 2060. 

Nesse aspecto, sempre oportuno ressaltar a palavra chave concorrência e o entendimento no qual a propriedade pública não é uma questão per se, desde que as regras de governança das empresas estatais envolvidas em atividades comerciais limitem a interferência política indevida, e, promovam a igualdade de condições entre empresas públicas e privadas.

O FMI, igualmente, recomenda nos seus relatórios anuais para a Economia Brasileira  (Brazil 2024: Article IV Consultation) sugestões de políticas e reformas estruturais similares. Identifica que melhoras em indicadores relacionados a qualidade regulatória, ambiente de negócios, governança e abertura econômica foram os principais drivers do fluxo de investimento externo direto para os países emergentes na última década. Identifica ainda que a dimensão de Governança é o condicionante que define e potencializa o impacto dos investimentos públicos (gastos públicos) na economia, induzindo maiores dividendos de crescimento por meio de uma maior participação do setor privado (efeito crowding in). Melhorias de Governança aumentariam a eficiência do investimento público entre 30% e 40% nas economias emergentes. Ou seja, crescem mais gastando menos, contribuindo inclusive para a agenda de responsabilidade fiscal, com menor pressão na curva de juros.

A agenda de reformas sugeridas dialoga bem com as diretrizes e instrumentos legais da própria OCDE, aos quais, o Brasil já aderiu, praticamente, à metade, em sua jornada para adesão. A continuidade desse processo, tem o potencial de fortalecer as instituições econômicas inclusivas, conforme propõe os laureados do Nobel. Alinha-se, igualmente, aos diversos eixos estratégicos do Estado Brasileiro para o desenvolvimento econômico e social. São recomendações de reformas em direção a uma agenda positiva que devemos considerar.

Financiamento de Litígios na São Paulo Arbitration Week 2024: Moldando o Futuro da Resolução de Disputas

Eric Moura

À medida que se aproxima a São Paulo Arbitration Week (SPAW) 2024, programada para a semana de 14 de outubro, percebe-se a comunidade internacional de arbitragem repleta de expectativas. Este evento anual tornou-se um fórum essencial para explorar as dinâmicas em evolução da arbitragem, especialmente em setores cruciais para o crescimento econômico global. Em indústrias como energia e infraestrutura, onde as disputas podem ser de alto risco e complexas, o financiamento de litígios tem se mostrado fundamental na superação de barreiras financeiras, permitindo que as partes busquem e defendam suas causas de maneira mais eficaz.

Os setores de energia e infraestrutura formam a espinha dorsal do desenvolvimento global, envolvendo projetos de grande escala e natureza intrincada. Seja na construção de gasodutos transnacionais, no desenvolvimento de instalações de energia renovável ou na modernização de redes de transporte, esses empreendimentos exigem enormes investimentos de capital e coordenação entre múltiplos marcos legais e regulatórios. Dada a sua magnitude, não é surpreendente que disputas frequentemente surjam. Essas disputas podem derivar de desacordos contratuais, mudanças regulatórias, questões ambientais ou fatores externos, como tensões geopolíticas e desastres naturais. Quando milhões de reais estão em jogo, os riscos são extremamente elevados, tornando imperativa a busca por uma resolução justa.

A arbitragem tem sido o método preferido para a resolução dessas disputas devido à sua flexibilidade, confidencialidade e capacidade de fornecer às partes especialização por meio da escolha dos árbitros. Para os setores de energia e infraestrutura, a arbitragem permite uma abordagem sob medida para tratar disputas que envolvem questões altamente técnicas e complexas do ponto de vista jurídico. No entanto, essa flexibilidade tem um custo. As despesas com honorários advocatícios, custos de peritos e a necessidade de gerir disputas transfronteiriças podem tornar a arbitragem proibitivamente cara ou particularmente indesejável, especialmente para entidades menores ou provenientes de mercados onde o acesso ao capital é limitado.

Quando as disputas frequentemente envolvem conhecimentos técnicos altamente especializados, o financiamento de litígios torna-se um facilitador essencial. Questões complexas, como tecnologias de energia renovável, regulamentações ambientais e contratos multipartes, exigem a participação de advogados e peritos de ponta. O financiamento de litígios garante que as partes tenham os recursos para engajar esses especialistas, melhorando assim a qualidade geral dos procedimentos arbitrais.

Em um mundo ideal, as restrições financeiras jamais deveriam impedir uma parte de acessar a justiça. A arbitragem, como método de resolução de disputas, é construída sobre princípios de equidade, igualdade e acessibilidade. O financiamento de litígios alinha-se com esses princípios ao tornar a arbitragem mais acessível a um espectro mais amplo de partes, especialmente àquelas oriundas de contextos com menos recursos. Ao reduzir as barreiras financeiras de entrada, o financiamento de litígios reforça a integridade da arbitragem como um processo que entrega resultados justos e equitativos.

É nesse contexto que o financiamento de litígios surge como uma solução revolucionária. Ao fornecer recursos financeiros non-recourse[1] necessário para a condução da arbitragem, financiadores de terceiros permitem que as partes busquem justiça sem arcar com todo o ônus financeiro. Em troca de um percentual acordado ou de um montante dos proveitos, o financiamento de litígios geralmente cobre uma ampla gama de despesas, incluindo honorários advocatícios, custos de peritos e despesas operacionais durante o processo. Esse apoio financeiro é especialmente crucial em indústrias onde o fluxo de caixa precisa ser gerido cuidadosamente para garantir a continuidade das operações durante disputas prolongadas. O financiamento de litígios nivela, assim, o campo de atuação, permitindo que as partes enfrentem-se em pé de igualdade.

O financiamento de litígios também introduz uma camada de escrutínio profissional que pode elevar a qualidade dos casos arbitrados. Os financiadores conduzem uma rigorosa due diligence antes de comprometer recursos, avaliando minuciosamente os méritos do caso e a probabilidade de sucesso. Esse processo de avaliação frequentemente ajuda as partes a refinarem suas estratégias jurídicas e a focarem nos aspectos mais persuasivos de seus argumentos. Como resultado, os casos apoiados por financiamento de litígios podem se beneficiar de maior eficiência, representação de qualidade superior e resultados mais equitativos.

Uma aplicação particularmente relevante do financiamento de litígios nos setores de energia e infraestrutura é a prática de monetização de sentenças arbitrais. A monetização de sentenças envolve a conversão de uma decisão arbitral pendente ou final em capital imediato, por meio de sua venda ou uso como garantia para financiamento. Ao monetizar uma sentença, as partes podem acessar os fundos de que necessitam para reinvestir em projetos ou compensar perdas financeiras sofridas durante a disputa. Para empresas envolvidas em projetos de grande escala de infraestrutura ou energia, o acesso oportuno ao capital pode ser a diferença entre manter-se operante ou enfrentar retrocessos significativos. A capacidade de converter um resultado incerto em um retorno financeiro garantido oferece um conforto financeira necessário, assegurando que as operações empresariais continuem sem interrupções.

Além disso, o financiamento de litígios e a monetização de sentenças beneficiam mais do que apenas as partes diretamente envolvidas na disputa. Essas ferramentas financeiras contribuem para a estabilidade e o crescimento dos setores de energia e infraestrutura como um todo. Facilitando a resolução de disputas, ajudam a manter o fluxo de investimentos e a prevenir atrasos custosos na progressão de projetos de desenvolvimento essenciais. Em economias emergentes, onde o desenvolvimento da infraestrutura está muitas vezes vinculado ao crescimento econômico nacional, a capacidade de resolver disputas de maneira eficiente é especialmente crucial. O financiamento de litígios garante que restrições financeiras não impeçam o acesso à justiça, permitindo que os projetos avancem e atendam a necessidades sociais prementes.

Ao olharmos para a São Paulo Arbitration Week, fica claro que o papel do financiamento de litígios na arbitragem está pronto para crescer. Seu impacto nos setores de energia e infraestrutura, em particular, tem grande potencial de expansão. Ao remover barreiras financeiras, o financiamento de litígios permite que as partes defendam vigorosamente suas reivindicações, contribuindo para a execução de contratos, a resolução de disputas e a continuidade de projetos importantes. As discussões na SPAW 2024, sem dúvida, ajudarão a moldar o futuro da arbitragem, tornando-a mais acessível, equitativa e eficaz.

Em conclusão, à medida que a arbitragem continua a evoluir, o financiamento de litígios desempenhará um papel central nesse processo. Ele fornece suporte essencial às partes em disputas complexas e de alto risco, assegurando que restrições financeiras não impeçam o acesso à justiça. Ao oferecer soluções inovadoras, como a monetização de sentenças, o financiamento de litígios auxilia as partes a gerenciar riscos e a manter a estabilidade financeira, mesmo diante de longas batalhas jurídicas. À medida que nos reunimos na São Paulo Arbitration Week, a comunidade arbitral tem uma oportunidade empolgante de explorar esses desenvolvimentos e de trabalhar em conjunto para refinar as ferramentas e práticas que definirão o futuro da arbitragem.


[1] “Non-recourse” significa que a recuperação do financiamento ocorre apenas a partir dos rendimentos do litígio financiado, sem que o financiador possa exigir o pagamento de outros bens ou ativos da parte financiada.


Eric Moura. LLM in Global Business Law pela Columbia Law School. Consultor na Omni Bridgeway. E-mail: emoura@omnibridgeway.com


Remédios concorrenciais na Economia Digital

Fernando de Magalhães Furlan

Jurisdições antitruste ao redor do mundo têm se debruçado sobre os mercados digitais e os desafios trazidos pelas rupturas tecnológicas e mercadológicas.

As primeiras iniciativas legislativo-regulatórias adotadas, como na União Europeia e no Reino Unido, privilegiam um sistema híbrido, conjugando instrumentos típicos do controle antitruste prévio ou ex ante, com ferramentas características do controle posterior ou ex post. A esse sistema híbrido chamamos de “controle antitruste simultâneo”, em que as autoridades da concorrência mantêm um âmbito oficial de diálogo constante com os grandes operadores da economia digital, a fim de que possam acompanhar, esclarecer e, eventualmente, remediar preocupações concorrências nesses espaços cibernéticos.

Estudos sustentam, de maneira convergente, que existem aspectos econômicos específicos dos mercados digitais que favorecem elevados níveis de concentração. Entre eles:

  • economias de escala e de escopo relevantes, que, potencialmente podem incentivar comportamentos anticoncorrenciais em relação aos utilizadores empresariais a jusante ou a montante;
  • subsídios cruzados, especialmente quanto a receitas publicitárias que permitem oferecer serviços gratuitos a usuários de outros lados comerciais da plataforma;
  • coleta e utilização de dados dos utilizadores, isto é, as plataformas utilizam os dados como insumo essencial, criando uma “economia dinâmica de escala”, uma vez que empresas com mais dados melhoram os seus produtos a custos mais baixos do que outras (menores). Isto pode caracterizar potencial barreira à entrada de novos competidores;
  • (custos de mudança (switching costs): algumas plataformas podem gerar altos custos para os usuários mudarem de provedor de serviço, como configurar um novo perfil, enviar novos conteúdos ou criar nova comunidade de seguidores;
  • externalidades de rede: a utilidade de uma tecnologia ou serviço cresce à medida que aumenta o seu número de usuários. Os efeitos de bloqueio (lock-in) podem dificultar a substituição de uma plataforma dominante, mesmo que exista uma alternativa superior disponível;
  • competição “o vencedor leva tudo” (“winner takes all”) ou “o vencedor leva a maior parte” (“winner takes most”): o primeiro a entrar num mercado pode tornar-se forte tão rapidamente que deixa os participantes posteriores em desvantagem;
  • estratégias de auto favorecimento (self-preferencing) de produtos e serviços oferecidos pelo próprio grupo econômico da plataforma, para excluir seus rivais, tais como: mostrar classificações de pesquisa online com seus resultados primeiro, distribuição “desigual” de lojas de aplicativos e imposição de dificuldades à interoperabilidade, isto é, quando uma plataforma dominante restringe a capacidade dos concorrentes de interoperar com a sua plataforma ou acessar informações importantes, como dados, APIs ou lojas de aplicativos (barreiras à entrada);
  • as plataformas digitais também podem dar um novo significado aos comportamentos abusivos tradicionais, como práticas de exclusividade e vendas casadas. Os exemplos incluem a pré-instalação de aplicativos da empresa em sistemas operacionais móveis, a imposição de serviços conjuntos de mídia social e anúncios de comércio eletrônico.

Autoridades de defesa da concorrência mundo afora, inclusive no Brasil, têm defendido a adoção do modelo de controle prévio (ex ante) para os mercados digitais, além da adoção de normas específicas e preventivas para atender às peculiaridades da economia digital.

Exemplos de inciativas em jurisdições tradicionais nesse sentido são o Reino Unido (2023), a Alemanha (2021), a Austrália (2021), a África do Sul (2023), o Japão (2021) e o Canadá (2023). A ideia é adotar um quadro regulamentar flexível e adaptável, um modelo que se ajusta de forma dinâmica e permite um acompanhamento contínuo, mantendo o controle e a autonomia sobre a evolução das normas aplicáveis aos mercados digitais.

Limitações de um controle posterior (ex post)

O controle ex post da conduta, ainda que potencialmente, anticoncorrencial não é considerado adequado para os mercados digitais, quando considerado sozinho. Tem se considerado mais adequado, não somente a aplicação de ambos, o controle prévio (via atos de concentração econômica) e o controle posterior (via investigação de condutas); mas algo novo: um controle simultâneo da operação das grandes plataformas digitais.

Mesmo que a Lei de Defesa da Concorrência brasileira seja considerada moderna, especialmente quando contempla formas de intervenção mais flexíveis, como medidas preventivas, que inclusive têm sido utilizadas em casos envolvendo aplicativos digitais (iFood[1] e Gympass[2]), ou a celebração de acordos de cessação de conduta (TCC), não é suficiente e adequado enfrentar investigações, que podem durar anos e exigir a estrita observância dos direitos processuais, num contexto contraditório, que pode prolongar o processo de tomada de decisão para remediar a conduta anticompetitiva.

O desenho de soluções comportamentais ou estruturais eficazes é um desafio, uma vez que as condições de mercado tendem a mudar substancialmente, além de envolver questões como acesso a dados, interoperabilidade e portabilidade, que são difíceis de controlar.

Nos casos Google Shopping[3], Google AdWords[4] e Google Scraping[5], por exemplo, houve longos debates sobre os padrões de prova e a presunção de regimes de ilegalidade necessários para demonstrar os efeitos anticompetitivos das práticas analisadas. Isto acabou por determinar o arquivamento do processo.

Os conceitos de “mercado relevante”, “posição dominante” e “fechamento de mercado” enfrentam desafios adicionais em modelos de negócios baseados em dados, onde os efeitos anticoncorrenciais não relacionados com o preço permitem a configuração de situações de exclusão (por exemplo: exploração abusiva de dados, imposição de restrições à interoperabilidade, cópia de conteúdos em mercados de comparação de preços e relações de favoritismo em mercados de pesquisa etc.).

A definição de mercado relevante, focada na substitutibilidade e na participação de mercado, não considera a concorrência dentro do ecossistema, onde a competição por receitas emergentes de serviços complementares é mais relevante do que a rivalidade horizontal.

As estratégias utilizadas pelas plataformas digitais dominantes manifestam-se de formas que tornam difícil classificá-las como violações antitruste conhecidas, como “recusa de contratar”, “vinculação” ou “discriminação”.

Objetivos e fundamentos do controle prévio (ex ante)

O controle ex ante das plataformas e aplicativos digitais deve abordar as disfunções nos ecossistemas digitais como falhas funcionais e distributivas que afetam a geração e apropriação de valor, com peculiaridades em relação às falhas tradicionais de mercado[6].

A ideia seria adotar um modelo de diálogo contínuo, para orientar e garantir o cumprimento dos padrões de concorrência, reduzindo a necessidade de intervenções punitivas e permitindo uma aplicação mais ágil e adaptativa da lei, ajustando-se rapidamente às inovações do mercado.

Da mesma forma, esse modelo promoveria uma cultura de compliance, garantindo o pilar da prevenção voluntária de condutas, importante em qualquer jurisdição antitruste.

Assim, a intervenção antitruste “simultânea” promoveria a concorrência por meio da garantia pari passu da redução de barreiras à entrada, da contestabilidade dos mercados, da inovação (incremental, disruptiva ou radical) e o empreendedorismo (livre iniciativa).

A necessidade de um controle, não somente prévio, mas simultâneo, capaz de prevenir e impor imediatamente obrigações de proteção da concorrência aos operadores em mercados digitais, aliás, já foi objeto de legislação (hard law) ou regulamentação (soft law) em Jurisdições tradicionais.

A União Europeia aprovou no Parlamento Europeu o Digital Markets Act – DMA, lei para tornar os mercados no setor digital mais justos e contestáveis, estabelecendo um conjunto de critérios objetivos claramente definidos para identificar potenciais riscos à concorrência.

No Reino Unido, o Parlamento também aprovou o Digital Markets, Competition and Consumers Act – DMCC Act, ou Lei de Mercados Digitais, Concorrência e Consumidores, de 2024. Um projeto de lei apresentado pelo governo, incialmente à Câmara dos Comuns. O objetivo é a regulamentação da concorrência em mercados digitais, alterando a Lei da Concorrência de 1998 e a Lei Empresarial de 2002.  A nova lei também traz disposições relacionadas à proteção dos direitos do consumidor em mercados digitais.

Na Alemanha, o novo artigo 19-A da Lei Alemã da Concorrência, também com aprovação legislativa, a chamada “Lex GAFA” (iniciais de Google, Apple, Facebook e Amazon), do início de 2021, aborda “empreendimentos de suma importância para a concorrência em todos os mercados” e permite que o Bundeskartellamt, como autoridade da concorrência alemã, impeça certos comportamentos abusivos de detentores de grande poder de mercado. No entanto, procedimentos para declarar a Apple, o Facebook (Meta) e a Amazon como “empreendimentos de suma importância” (undertakings of paramount significance) ainda estão em andamento[7]. Embora, após quase um ano de avaliação, o Bundeskartellamt tenha declarado o Google (Alphabet) como um empreendimento de suma importância[8], medidas concretas ainda não foram tomadas.

O Senado dos Estados Unidos da América atualmente discute um projeto de lei conhecido como American Innovation and Choice Online Act (“AICO”)[9]. Tal proposição legislativa proíbe certas grandes plataformas on-line de se envolverem em atos específicos, incluindo dar preferência aos seus próprios produtos na plataforma, limitar injustamente a disponibilidade de produtos concorrentes de outra empresa ou discriminar na aplicação ou execução dos termos de serviço da plataforma entre usuários em situação semelhante.

Além disso, segundo a proposta em análise no Senado estadunidense, uma plataforma não pode restringir ou impedir materialmente a capacidade de um usuário comercial concorrente acessar ou interoperar com a mesma plataforma, sistema operacional ou recursos de hardware ou software. O projeto de lei também restringe a instalação ou desinstalação de software, funcionalidade de pesquisa ou classificação e retaliação por contato com a polícia em relação a violações reais ou potenciais da lei.

O que parece incontestável é a necessidade de adaptar e melhorar as leis de concorrência, as suas ferramentas e o desenho institucional das autoridades para serem capazes de fazer frente à dinâmica e inovadora economia digital e desempenhar o papel de prevenir e reprimir o abuso do poder econômico nesses mercados.

Conclusão

O “regulador” antitruste pode e deve adaptar o seu ferramental prático e teórico na medida em que novos desafios da realidade dinâmica dos mercados, especialmente os inovadores, se apresentam.

No contexto brasileiro, mostramos brevemente que isso vem sendo feito ao longo do tempo, com a adoção de soluções criativas, contudo realistas e fundamentadas, no direito e na economia, capazes de fazer frente à necessidade de implantação de providências para prevenir e remediar condutas potencialmente danosas.

Não há que se falar em “reorientação do direito da concorrência” em razão dos desafios postos pela Economia Digital. No máximo, estamos diante de uma adaptação. Os conceitos do direito da concorrência também continuam intocados, talvez merecendo um novo verniz, uma nova tonalidade.


[1] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcaPonKpemYl591TZDVz41cKkeMG3znSccU-isTZDv-qj. Acesso em: 05/07/2024.

[2] Processo Administrativo nº 08700.004136/2020-65. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcSAlNG3BEuxBuDxuaTl21JtluCsnT1rW6o6w8bRweD-x. Acesso em: 05/09/2024.

[3] Processo Administrativo nº 08012.010483/2011-94. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOb0rdAAnkZ36Rru6H33qbFO51_fjuVWb1uid6m5S5BxJ8gFyW8xprjnuylPdYbaX3VDhhG3SAtGWLJPIqjsEDX. Acesso em: 05/09/2024.

[4] Processo Administrativo nº 08700.005694/2013-19. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?2pXoYgv29q86Rn-fAe4ZUaXIR3v7-gVxEWL1JeB-RtUgqOwvr6Zlwydl0IhRNSr2Q22lByVKByYDYwsa13_Jxjwy0jsF2VUK9nLLMn4AapgzHPEyXU3WqUFUJvQc-tbB. Acesso em: 05/09/2024.

[5] Processo Administrativo nº 08700.009082/2013-03. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?2pXoYgv29q86Rn-fAe4ZUaXIR3v7-gVxEWL1JeB-RtUgqOwvr6Zlwydl0IhRNSr2Q22lByVKByYDYwsa13_JxuPKafcwvOhoHGvTOhF6VN9yQ1Q84rME0Sb3aYKzWyP2. Acesso em: 05/09/2024.

[6] Informação assimétrica, concentração de mercado, externalidades etc.

[7] Bauermeister, Tabea.  Section 19a GWB as the German “Lex GAFA” – lighthouse project or superfluous national solo run?   Working Paper Series No. 23/22. Jean Monnet Network on EU Law Enforcement Working Paper Series, p.2. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://jmn-eulen.nl/wp-content/uploads/sites/575/2022/05/WP-Series-No.-23-22-Section-19a-GWB-as-the-German-Lex-GAFA-Bauermeister.pdf. Acesso em: 06/09/2024.

[8] Idem, p.2.  Alphabet Inc. Google Germany GmbH (2021) B7-61/21 (BKartA).

[9] Disponível em: https://www.congress.gov/bill/117th-congress/senate-bill/2992/text. Acesso em: 18/09/2024.


Fernando de Magalhães Furlan. Antigo Secretario-Executivo do Ministerio do Desenvolvi mento, Industria e Comercio Exterior (MDIC) e assessor especial da CAMEX. Foi presidente do Conselho de Administracao do BNDES e da BNDESPAR. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE. Foi também diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. Atualmente e membro do grupo de especialistas do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL e consultor ad hoc de projetos de defesa da concorrência das Nações Unidas (UNCTAD). É professor de direito em Brasília e atua, como professor ou pesquisador, em universidades e institutos no Brasil e no exterior. É consultor externo ou membro não-governamental de organizações e institutos brasileiros e estrangeiros e consultorias. Graduado em Administração pela UDESC/ESAG e em Direito pela UnB, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela Universidade de Macau, China.


Termos de Compromisso: BCB chega a 100 homologados

Leandro Oliveira Leite

Tanto o Banco Central do Brasil (BCB) quanto o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) desempenham papéis cruciais na supervisão de suas respectivas esferas de atuação – o BCB na regulação do sistema financeiro e o Cade na defesa da concorrência econômica.

Para cumprir suas funções de maneira mais eficiente e ágil, ambas as instituições utilizam instrumentos que possibilitam soluções alternativas aos tradicionais processos administrativos sancionadores: o Termo de Compromisso (TC), no caso do BCB, e o Termo de Compromisso de Cessação (TCC), no caso do Cade. Além desses instrumentos, ambas as entidades também dispõem de acordos adicionais: o Acordo Administrativo em Processo de Supervisão (APS) pelo lado do BCB, e o Acordo de Leniência e o Acordo em Controle de Concentrações (ACC) pelo lado do Cade.

Apesar de serem instrumentos com objetivos semelhantes, existem algumas diferenças fundamentais em sua aplicação e impacto. A seguir, será feita uma análise comparativa desses instrumentos, destacando suas semelhanças e diferenças, além de uma visão quantitativa dos resultados obtidos por ambas as instituições.

Tanto o TC quanto o TCC são mecanismos que permitem às instituições envolvidas a correção de práticas inadequadas sem a necessidade de passar por um longo processo administrativo sancionador. O TC é utilizado pelo Banco Central como uma alternativa para que instituições financeiras cessem irregularidades antes ou durante o processo sancionador. De forma similar, o TCC do Cade é uma ferramenta para que empresas acusadas de práticas anticompetitivas possam encerrar as infrações e se comprometer a pagar contribuições pecuniárias, evitando penalidades mais severas.

Nos dois casos, as entidades investigadas devem realizar o pagamento de contribuições pecuniárias. No BCB, o valor arrecadado com o TC é destinado a corrigir as falhas identificadas, podendo também incluir ressarcimentos aos consumidores lesados. No Cade, o pagamento de contribuições pecuniárias é uma forma de penalizar as empresas envolvidas em condutas anticompetitivas, e os valores podem variar conforme a gravidade do caso.

O principal objetivo de ambos os instrumentos é garantir que as práticas prejudiciais sejam interrompidas. O BCB utiliza o TC para que instituições financeiras corrijam irregularidades como desvio de recursos, falhas em controles internos ou negligência em auditorias. No Cade, o TCC é aplicado para suspender práticas anticompetitivas, como cartéis e abusos de poder de mercado, promovendo um ambiente de concorrência saudável.

A principal diferença entre o TC e o TCC está na área de atuação de cada órgão. O BCB supervisiona instituições financeiras, como bancos, cooperativas de crédito e corretoras, garantindo que operem dentro das normas regulatórias estabelecidas. Já o Cade atua na defesa da concorrência em todos os setores da economia, inclusive também o mercado financeiro, investigando práticas que podem prejudicar o livre mercado, como formação de cartéis e abuso de poder econômico.

No Termo de Compromisso do BCB, as instituições financeiras não são obrigadas a confessar a prática de irregularidades. Elas apenas precisam cessar as práticas investigadas e implementar correções que garantam a adequação às normas regulatórias. Por outro lado, o TCC do Cade pode exigir que as empresas admitam a prática de infrações à ordem econômica ou, no mínimo, assumam o compromisso de cessar as práticas investigadas e adotar medidas que restabeleçam a concorrência no mercado.

O Termo de Compromisso do BCB, além de corrigir as práticas inadequadas, tem um foco forte no ressarcimento de clientes prejudicados. Desde a criação desse instrumento, o BCB obteve o ressarcimento a mais de 13 milhões de clientes. No TCC do Cade, o foco é principalmente na suspensão das práticas anticompetitivas e no pagamento de contribuições pecuniárias, sendo que os valores arrecadados são destinados ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD).

Além dos Termos de Compromisso, tanto o BCB quanto o Cade têm à sua disposição instrumentos complementares para lidar com irregularidades.

O Acordo Administrativo em Processo de Supervisão (APS) do Banco Central, por exemplo, pode ser celebrado quando uma instituição supervisionada confessa ilícitos, identifica os demais envolvidos e fornece provas das quais o BCB ainda não tinha conhecimento. Esse acordo permite a extinção da ação punitiva ou a redução da pena aplicada, dependendo da colaboração do investigado. O APS funciona de maneira semelhante ao Acordo de Leniência no Cade, mas é focado em questões relacionadas à supervisão do sistema financeiro.

Já no Cade, o Acordo de Leniência é um dos principais instrumentos para combater cartéis e outras práticas anticompetitivas. As empresas ou pessoas físicas que confessam a prática de infrações e cooperam com as investigações podem obter benefícios, como a isenção total ou parcial das multas que seriam aplicadas. Esse acordo é particularmente eficaz em casos de cartel, onde a cooperação entre as partes é essencial para identificar os demais infratores. O Cade também utiliza o Acordo em Controle de Concentrações (ACC) em processos de fusões e aquisições que possam gerar concentração econômica e diminuir a concorrência. O ACC permite que as empresas envolvidas se comprometam a adotar medidas que mitiguem os efeitos anticompetitivos, facilitando a aprovação das operações.

Comparação de números entre BCB e Cade:

O Banco Central celebrou, até 2024, 100 Termos de Compromisso, com um impacto direto na correção de irregularidades no sistema financeiro. Desde sua criação, em 2017, esses acordos resultaram no ressarcimento de mais de R$ 683 milhões aos consumidores e no recolhimento de R$ 300,9 milhões em contribuições pecuniárias pelas instituições financeiras envolvidas. Mais de 13 milhões de clientes foram diretamente beneficiados.

Pelo lado do Cade, até outubro de 2022, foram homologados 349 TCCs, resultando em R$ 724 milhões em contribuições pecuniárias aplicadas. Esses números demonstram o impacto financeiro considerável e a importância dos TCCs para o restabelecimento da concorrência no mercado e para a penalização de práticas anticompetitivas.

Esses acordos são importantes instrumentos de resolução de casos complexos, oferecendo benefícios tanto para o órgão regulador quanto para as empresas, como a suspensão de investigações em troca de compromissos que favorecem a concorrência.

O Termo de Compromisso do BCB e o Termo de Compromisso de Cessação do Cade são instrumentos fundamentais na manutenção da ordem econômica e financeira do Brasil. Embora operem em esferas distintas – o TC na supervisão do sistema financeiro e o TCC na defesa da concorrência –, ambos compartilham o objetivo de promover a correção de irregularidades e garantir que as práticas prejudiciais sejam interrompidas de forma ágil e eficaz.

Além disso, tanto o Acordo Administrativo em Processo de Supervisão do BCB quanto o Acordo de Leniência e o Acordo em Controle de Concentrações do Cade são ferramentas adicionais para garantir a colaboração dos envolvidos e a eficiência nas investigações, resultando em acordos que beneficiam a sociedade como um todo.

Logo, conforme vimos, em termos numéricos, ambos os instrumentos de compromisso de cessação de conduta têm obtido resultados expressivos, com o BCB beneficiando milhões de clientes e o Cade promovendo um ambiente mais competitivo. As contribuições pecuniárias e o ressarcimento aos clientes são componentes importantes de ambos os instrumentos, mas a ênfase do BCB está em proteger o consumidor e garantir a estabilidade do sistema financeiro, enquanto o Cade foca na promoção de um mercado justo e competitivo.


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.