IA Hype – hiperentusiasmo e exaltação marketeira

Maxwell de Alencar Meneses

Em maio de 2024, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) apresentou sua contribuição ao projeto de lei (PL) destinado a regular a Inteligência Artificial (IA). Existem preocupações sobre o uso de algoritmos que podem facilitar estratégias anticompetitivas e dificultar a detecção e punição pelas autoridades competentes. Também se discute a necessidade de equilibrar a regulação da IA com incentivos à inovação, considerando os riscos e benefícios.

O órgão mantém, assim, sua postura equilibrada de advocacia da concorrência, evitando açodamentos, como já demonstrado no caso do projeto de lei de congelamento de preços durante a Covid, ou na questão da proibição da cobrança por bagagens em voos nacionais (CADE, 2020). A atual proposta inclui a criação de um sandbox regulatório como uma estratégia para testar e monitorar algoritmos de IA em um ambiente controlado. A ideia é equilibrar a regulação da IA com incentivos à inovação para evitar barreiras à entrada e promover a concorrência. (CADE, 2024)

Adicionalmente, o próprio Superintendente-Geral do Cade, Alexandre Barreto, de acordo com entrevista publicada no Valor Econômico por ocasião de sua recente recondução ao cargo, ao ser perguntado a respeito da IA como problema concorrencial em si, afirma de modo muito ponderado e pragmático que não seria possível dizer que se tornará um problema específico. No entanto, ele destaca que a IA é um instrumento que, se usado para infração econômica, entra na atuação do Cade, não pelo instrumento em si, mas pela sua utilização em efeito anticompetitivo. (OLIVON; PIMENTA, 2024)

Dessa forma, é possível extrapolar que ferramentas como bancos de dados, planilhas ou aplicativos de mensagens podem ser utilizadas para diversas infrações, incluindo delitos econômicos. Nesse sentido, exemplifica-se que a criação da planilha eletrônica, com suas atualizações automáticas, representou uma revolução em relação às versões datilografadas, acelerando muitos processos de trabalho e, infelizmente, também facilitando atividades criminosas. No entanto, isso não levanta questionamentos sobre uma eventual descabida necessidade de regulamentar o uso do pacote Office em si. Ressaltando de início, que nenhuma das cogitações desse texto representam a opinião de nenhuma instituição em particular, nem mesmo do autor, apenas de um teste de hipótese para fins de reflexão.

Logo, esse equilíbrio observado no Cade pode estar ausente em outras esferas. Muito se discute sobre os perigos da IA, frequentemente em tom apocalíptico, e não é difícil encontrar argumentos que sustentem essa visão. No entanto, sigamos aqui pela estrada menos percorrida, como em um teste científico para avaliar o verdadeiro estágio da IA ou se isso não passa de mais uma onda de marketing comum no ambiente tecnológico, usada para gerar interesse em novos produtos. Considerando que mudanças na sociedade frequentemente surgem de pensamentos entrópicos — ou seja, desvinculados de certezas estáticas estatais — é essencial manter a mente aberta. Como dizem: use a criatividade.

Por essa estrada menos percorrida, portanto, serão visitadas avaliações de cenários por parte de autoridades, assim como serão revisitadas ações comparáveis da história recente que podem lançar luz sobre as questões levantadas, iniciando pelo hype.

Nesse sentido, o Ph.D. em aprendizado de máquina pela Universidade Columbia, ex-professor da mesma instituição, escritor, CEO e co-fundador da Gooder AI, Eric Siegel, afirma categoricamente que o que vemos nas manchetes acerca da IA generativa (aquela que cria conteúdo em resposta a comandos dos usuários), em suas palavras, “It’s hyperbole. It’s hype.” Segundo Siegel, embora a tecnologia atual de fato ofereça eficiências e capacidades de automação, no mundo real ele não acredita que, tão cedo, ou sequer que haja avanços consistentes na direção da replicação da inteligência humana (SIEGEL, 2024).

Ao falar sobre incerteza, que é muitas vezes característica do hype, Jason Abelak, professor de economia na Yale School of Management, afirma que a IA representa um momento revolucionário na tecnologia, mas ainda há muitas incertezas sobre seu verdadeiro potencial. Abelak, assim como este artigo, questiona: estamos em um momento em que o progresso tecnológico irá acelerar drasticamente, resolvendo muitos dos problemas complexos que enfrentamos, ou a tecnologia existente basicamente estagnará? (GOOD WORK, 2023)

Como efeito colateral do hype ou de suas características, observam-se paralelos com danos ao progresso e ao acesso a tecnologias emergentes, algo que já ocorreu no passado. John Coogan, economista formado pela Northeastern University, CTO, documentarista e cofundador da Soylent e Lucy, e atualmente Entrepreneur-in-Residence no Founders Fund — que tem em seu portfólio empresas como OpenAI, Nubank e SpaceX —, afirma em seu documentário “AI Regulation, Explained” que a IA “acabou de se tornar nuclear”. Ele argumenta que, assim como aconteceu com o desenvolvimento da tecnologia atômica, a IA está gerando preocupações globais, e o futuro dessa tecnologia pode ser ameaçado por uma regulamentação excessiva, baseada no medo.

Coogan destaca que, após a criação da bomba atômica, o foco se desviou de uma visão promissora de energia nuclear abundante para uma corrida armamentista, sufocando o progresso civil. A IA pode estar seguindo um caminho semelhante, sendo amplamente utilizada por governos e militares, enquanto o público em geral se beneficia pouco dessa tecnologia. Portanto, em sua visão, seria necessária uma regulamentação equilibrada, que evite o bloqueio total da inovação e assegure que a IA traga benefícios reais, sem se tornar uma ferramenta de controle autoritário ou causar danos irreversíveis à sociedade (JOHN COOGAN, 2023).

Esse bloqueio indesejável mencionado por Coogan, causado pela mistura de hype e medo (hype-medo), já começa a se manifestar devido a regulações. O Brasil, assim como a União Europeia, ficou de fora do lançamento da IA da Meta em razão de entraves regulatórios. Enquanto isso, as ferramentas foram disponibilizadas em outros países da América Latina, como Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru. Segundo uma reportagem da CNN, no início de julho, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) notificou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) sobre a forma como a Meta estava utilizando as informações dos usuários de suas redes sociais no Brasil para treinar sua inteligência artificial (BRITO, 2024).

Curiosamente, o hype-medo, funciona como um propulsor regulatório, sob a égide da proteção do uso de dados, tanto que para combater vazamentos e roubos de dados, o governo brasileiro decidiu parar de utilizar até mesmo o WhatsApp. Ricardo Cappelli, presidente da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial), abrirá uma licitação para escolher uma plataforma nacional de mensagens que garanta a preservação do sigilo nas comunicações da alta cúpula do governo. Cappelli argumenta que grandes plataformas de mensagens não devem ser usadas para a troca de informações no governo nem pelos demais poderes da União. De acordo com ele, essa alternativa visa aumentar a segurança na comunicação interna e evitar o vazamento de informações altamente sensíveis. Com essa nova iniciativa, as autoridades esperam “proteger a soberania” do país. (WIZIACK, 2024)

Essa proteção, sem fazer juízo de valor, remete ao caso em que o presidente Obama assumiu a responsabilidade pela espionagem da presidente Dilma Rousseff (MACEDO, 2013), levando o Serpro a criar o sistema Expresso V3 para evitar esse tipo de problema. Esse sistema, entretanto, foi descontinuado, e, a partir de 2017, o Zimbra, baseado em uma plataforma de software livre da empresa norte-americana Synacor, foi adotado como nova solução de e-mail para órgãos públicos. Em 2021, o Serpro finalizou a migração do correio eletrônico Zimbra, que usava o Google, para o Office 365 (CONVERGÊNCIA DIGITAL, 2021).

Exemplificando a que destino essa linha regulatória pode levar, a situação também remete à lei de internet soberana promulgada por Putin em 2019, que foi seguida pelo banimento de mídias sociais populares por serem estrangeiras (IYENGAR, 2022). De forma semelhante, Biden sancionou uma lei nos Estados Unidos banindo o TikTok (FUNG, 2024). Agora, as exigências brasileiras colocam o Brasil na lista de países onde o aplicativo X está proibido, como China, Coreia do Norte, Irã, Rússia, Nigéria, Mianmar e Turcomenistão (VICTORIA NOGUEIRA ROSA, 2024).

Nota-se que, segundo Barcellos (2024), a popularização do WhatsApp no Brasil realmente começou em 2013, ainda sem o mesmo impacto e relevância que tem atualmente. Talvez por isso, no caso da espionagem do governo Dilma por Obama e seus desdobramentos tecnológicos, o WhatsApp não tenha sido incluído no esforço original de criação de aplicativos nacionais substitutivos, como ocorre agora com as atuais preocupações.

Nesse sentido, parece que há um retorno ao “cenário do crime” anterior (espionagem), aplicando aparentemente o mesmo remédio precipitado, que ao longo do tempo se mostrou inviável e custoso, ou ainda cortinas de ferro digitais aplicadas em experiências autoritárias e ineficazes (THORNHILL, 2022). Além disso, o vai e vem nas estratégias adotadas tem se revelado ainda mais oneroso, já que mudanças de plataformas tecnológicas são, em geral, bastante dispendiosas. Em países como os EUA, por exemplo, mesmo sendo pioneiros em avanços na área, sistemas legados são mantidos por anos justamente para evitar essas transições custosas. Esse contexto pode explicar a acusação de obsolescência programada a que algumas plataformas estão sujeitas por meio de hype de inovações, um problema que, de certo modo, o Linux ajudou a amenizar, devido a capacidade de operar em máquinas antigas e de hardware limitado. É o que ocorre, por exemplo, com as atuais promessas de incorporação de IA em tudo. (KING, 2016).

Aliás, o criador do Linux, Linus Torvalds, em evento da Linux Foundation, também refletiu sobre o hype em torno da IA, observando que, atualmente, todas as empresas afirmam ter um foco em IA. Apesar das preocupações de que a IA possa substituir empregos como programação ou criação de filmes, ele expressou ceticismo em relação a essas alegações.

Com base em experiências passadas com sistemas de IA que não eram realmente inteligentes, Torvalds argumenta que é essencial aguardar para ver o que a IA realmente será capaz de realizar em 10 anos. Ele desconfia de promessas exageradas, comparando o alvoroço em torno da IA a tendências tecnológicas anteriores, como criptomoedas e computação em nuvem.

Torvalds pede cautela diante do exagero, destacando que, embora a IA possa automatizar tarefas e aumentar a eficiência, é improvável que substitua completamente os profissionais. Para ele, o verdadeiro potencial da IA será revelado ao longo do tempo, em vez de ser definido pela empolgação imediata que a cerca atualmente. (SAVVYNIK, 2024)

Esse hype, por alguns, é visto como uma bomba relógio. Na reportagem da CNBC, intitulada “AI’s trillion dollar time bomb”, é justamente abordada a crescente onda de investimentos em IA generativa por gigantes da tecnologia, como Microsoft, Google e Meta, que tem gerado preocupações sobre o retorno real dessas apostas bilionárias.

A matéria aponta que, enquanto há promessas de grandes avanços em produtividade e inovação, o progresso tangível tem sido modesto, com o setor de IA ainda lutando para apresentar aplicativos que justifiquem o enorme capital empregado. Empresas estão gastando bilhões em infraestrutura, como chips e data centers, mas o retorno financeiro esperado ainda é incerto.

Analistas alertam que, embora o potencial da IA seja promissor, ele pode levar mais tempo do que o previsto para se materializar, comparando a situação com a bolha da internet dos anos 2000. Apesar disso, muitos continuam otimistas de que os benefícios a longo prazo surgirão, mas enfatizam a necessidade de paciência e realismo quanto ao impacto imediato da IA. (CNBC TELEVISION, 2024)

Reforçando o coro da incerteza característica de um hype, a revista The Economist, em seu artigo intitulado “AI needs regulation, but what kind, and how much?”, explora o crescente debate sobre a regulamentação da IA, destacando a tensão entre os riscos existenciais de longo prazo e os danos imediatos da tecnologia. Segundo a matéria, diferentes abordagens estão sendo adotadas globalmente, desde a autorregulamentação até leis abrangentes. No entanto, a incerteza sobre o futuro da IA e seus impactos potenciais levanta a questão: talvez seja prematuro impor regulamentações rígidas sem uma compreensão completa do que regular e como fazê-lo de forma eficaz. (THE ECONOMIST, 2024)

Ainda sobre regulação desmedida, na história recente a respeito de outra hype, em 2018, Bill Clinton, na Ripple’s Swell Conference em San Francisco, expressou preocupações sobre a regulamentação excessiva de tecnologias emergentes, como blockchain. Clinton argumentou que, enquanto a regulamentação é necessária para proteger os mercados e os consumidores, uma abordagem excessiva pode sufocar a inovação. Naquela ocasião, ele comparava a regulamentação excessiva com o risco de matar a ‘galinha dos ovos de ouro’ da tecnologia blockchain, que, em seus estágios iniciais, poderia sofrer com regras rígidas que limitariam seu crescimento e potencial revolucionário. (HIGGINS; FLOYD, 2018)

Continuando pelo caminho da infinita hype, chega-se a avaliação de Steve Case, ex-CEO e presidente da America Online e ex-conselheiro do governo Obama, que viveu o auge da bolha das pontocom em 2000. Reconhecido como um dos empreendedores mais influentes da história da internet (“Steve Case”, 2020), Case falou na cúpula ‘Forjando o Futuro dos Negócios com IA’ da Imagination In Action sobre as semelhanças entre o boom da IA e o boom das pontocom, além das lições que os empreendedores de IA podem aprender com aquele período.

Segundo Case (FORBES, 2024), uma semelhança é que a tecnologia, seja a IA ou a internet, vinha se desenvolvendo há décadas, com 75 anos de investimento em torno da IA. Nos últimos 18 meses, a tecnologia acelerou consideravelmente, principalmente devido ao sucesso repentino do ChatGPT, que levou 75 anos para ser desenvolvido.

Case recorda que o mesmo aconteceu com a AOL. Fundada em 1983, na época apenas 3% das pessoas estavam online, e essas 3% passavam cerca de uma hora por semana na internet. Durante uma década, de 1985 a 1995, poucos se importavam com a internet; o foco estava em semicondutores, computadores pessoais e software. A maioria não acreditava que a internet se tornaria um fenômeno mainstream. Era vista como uma tecnologia de hackers e entusiastas de computadores. Mas em 1995, a internet acelerou e se tornou uma mania. As empresas começaram a mudar seus nomes para algo.com, assim como agora vemos empresas mudando seus nomes para algo com IA para estar na moda. A U.S. Steel, por exemplo, agora é U.S. Steel AI. Isso indica que a tecnologia chegou ao seu momento.

Case lembra de uma música antiga que diz: ‘Algo está acontecendo aqui, mas o que é, não está exatamente claro.’ Em 2000, muitas empresas .com abriram o capital, e muitas acabaram falindo. Houve uma visão de um ‘inverno nuclear da internet’, mas as empresas que sobreviveram, como Google e Facebook, conseguiram se tornar significativas e icônicas. Passava-se da fase em que a pesquisa estava sendo feita, mas sem tração significativa, para uma fase de atenção e crescimento.

Case espera que a IA possa passar para a próxima fase de forma menos disruptiva do que o boom das pontocom, onde 90% das empresas faliram. Ele ressalta que, embora haja preocupações com a regulamentação excessiva sufocando a inovação, nenhuma regulamentação também não é uma resposta adequada. Ele observa que as propostas atuais na Europa podem exagerar e sufocar a inovação, mas uma abordagem equilibrada é necessária.

Na última cúpula de IA do Senado americano, Case destacou a importância de garantir que, ao pensar em proteções e regras, o foco esteja em permitir que novas empresas comecem e cresçam, evitando a captura regulatória que poderia beneficiar apenas os operadores históricos.

Ele recorda que, em 1985, era ilegal para consumidores ou empresas estarem na internet, que era restrita a instituições educacionais e agências governamentais. O Congresso aprovou uma lei de telecomunicações para criar uma internet comercializada, e a FCC determinou o acesso aberto. Não bastava criar novas empresas de telefonia; era necessário permitir que outras, como a AOL, operassem em suas redes. Sem isso, os custos não teriam diminuído, a inovação não teria acelerado e empresas como a AOL não teriam existido.

Case resume as lições para a IA, ressaltando a importância de garantir que ela seja aberta e permita o surgimento de novas empresas, em vez de apenas fazer as grandes empresas de tecnologia se tornarem ainda maiores. Ele acredita que devemos errar para o lado de garantir que a IA seja acessível a todos e que os líderes em IA daqui a 20 anos sejam novas empresas e empreendedores que ainda não existem. Assim como na internet, onde os líderes não eram empresas como AT&T ou IBM, que gastaram um bilhão de dólares para lançar um empreendimento online chamado Prodigy e falharam, novas empresas surgiram e moldaram o cenário. Segundo o bilionário, esse é o arco da inovação e da história americana.

Portanto, ainda no contexto de incerteza, que desenha o retrato falado de uma hype, percebe-se uma estratégia mais coerente, no mesmo sentido proposto pelo Cade. Em seu artigo Regulatory Sandboxes for AI: A Policy Approach, a OECD sugere o uso de sandboxes de IA devido à sua capacidade de permitir a experimentação de tecnologias emergentes em um ambiente controlado e regulado. A principal vantagem desses sandboxes é que eles oferecem um espaço seguro para testar inovações enquanto gerenciam os riscos associados, promovendo a colaboração entre desenvolvedores, reguladores e outras partes interessadas. Essa abordagem não apenas facilita a inovação responsável, mas também garante maior transparência e permite que as tecnologias sejam avaliadas com base em critérios claramente definidos, otimizando assim os benefícios para a sociedade. (FERRANDIS; PERSET; YOKOMORI, 2023)

Em outra avaliação consonante com o que já foi descrito aqui, em dezembro de 2023, o presidente francês Emmanuel Macron expressou preocupações de que a nova Lei de Inteligência Artificial da UE, projetada para regular o desenvolvimento da IA, possa prejudicar a inovação e a competitividade das empresas de tecnologia europeias em comparação com seus rivais dos EUA, Reino Unido e China. Macron criticou a regulamentação rigorosa sobre modelos fundamentais de IA, como o ChatGPT, temendo que isso possa levar a um atraso em relação aos chineses e americanos. A nova lei impõe requisitos de transparência, restrições ao reconhecimento facial e proíbe o uso de IA para “pontuação social”. As empresas que não cumprirem a lei podem enfrentar multas de até 7% do faturamento global. Críticos argumentam que as novas regras exigirão muitos recursos para conformidade, desviando investimentos da inovação. No entanto, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, elogiou a legislação, afirmando que ela “transpõe os valores europeus para uma nova era”. (ESPINOZA; ABBOUD, 2023)

Em mais uma exposição das incertezas, fica clara a única certeza: o perigo de perder competitividade e sufocar a inovação. Esse é o resumo da ópera do recente encontro de líderes mundiais realizado na Inglaterra, que abordou a regulamentação da inteligência artificial (IA). Durante a conferência, representantes de vários países, incluindo Brasil, China e EUA, assinaram uma declaração reconhecendo a importância de regular a IA, mas não chegaram a um consenso sobre uma regulação concreta. O debate sobre a viabilidade de controlar a IA continua, com figuras como Elon Musk questionando se tal controle é realmente possível (MILMO; STACEY, 2023). Contrastando com o cenário, de que nos EUA, uma ordem executiva de Biden sugere diretrizes para o desenvolvimento seguro da IA, mas não estabelece uma lei formal, indicativo de flexibilidade. No Brasil, a PL 2338/2023 propõe regras restritivas, mas há preocupações de que essas medidas possam retardar o progresso da IA no país. Como já percebido, a principal preocupação é que uma regulamentação excessiva possa inibir a inovação, enquanto países com regulações mais flexíveis avançam mais rapidamente no campo da IA.

Finalizando o caminho aqui percorrido de avaliações a respeito da IA, no que tange às regulações europeias, percebeu-se muitas preocupações por parte de autoridades no assunto que participaram do CEO Collaborative Forum (2024). Constantin Pavleas, advogado na União Europeia, admite que todos estão acostumados a ver a Europa regulamentando tudo. Ele lembra que, em certo ponto do processo regulatório, perceberam que ele já estava parcialmente desatualizado, o que resultou em mais um ano e meio de ajustes. Pavleas explica que o foco da regulamentação é a construção de confiança. A regulamentação foi projetada para ser baseada em risco: dependendo de como o sistema de IA for classificado, ele pode ser proibido, altamente regulamentado (se for considerado de alto risco), moderadamente regulamentado (se for de baixo risco) ou não regulamentado (se for de risco mínimo). Por exemplo, o reconhecimento facial para vigilância pública é proibido na UE. A pontuação social, como visto na China, também não será permitida. Da mesma forma, sistemas de IA que rastreiam comportamento e emoções em tempo real para manipular o comportamento humano não serão permitidos.

No que diz respeito à manipulação de comportamento, também não será permitido. Por exemplo, não será possível armar um drone e enviá-lo para atacar e matar alguém com base em uma decisão automatizada — isso não é permitido na UE. No entanto, há muitas outras aplicações da IA que podem ser classificadas como de alto risco. Em setores como saúde, recursos humanos ou educação, quaisquer decisões automatizadas que impactem significativamente as liberdades ou escolhas das pessoas podem ser consideradas de alto risco. Com essa classificação, surgem várias obrigações, incluindo o design adequado e a supervisão rigorosa da ferramenta.

Por exemplo, agora os sistemas de IA são considerados produtos na UE, o que significa que eles exigem a marcação CE. Pavleas afirma que a IA generativa se enquadra na categoria de baixo risco e que, quando a UE começou a trabalhar nessas regulamentações em 2022, o surgimento da IA generativa ainda não havia sido previsto. No entanto, após muito lobby e negociações, a IA generativa passou a ser regulamentada, especialmente em relação às obrigações de transparência.

Ao desenvolver um grande modelo de linguagem, é necessário fornecer uma lista suficientemente detalhada das fontes utilizadas. Isso pode parecer um requisito menor, mas representa um grande desafio para os desenvolvedores de grandes modelos de linguagem. O legislador da UE visa proteger os criadores de conteúdo ao exigir essa transparência, o que sujeita os grandes modelos de linguagem a essas novas obrigações.

O desafio recai sobre as pequenas e médias empresas (PMEs) da UE, que enfrentam uma enorme carga regulatória. Para advogados, isso cria um excelente modelo de negócios na Europa, na opinião de Constantin.

Já o Radouane Oudrhiri (Rad), Doutor e Ph.D. em Teoria da Informação e Sistemas pela ESSEC e Université d’AIX-Marseille, no mesmo evento, opina: “Em relação às leis, não acredito que elas resolvam os problemas subjacentes — elas são apenas o ponto de partida. Costumávamos dizer em IA: ‘Aqueles que podem, fazem; aqueles que não podem, simulam.’ Vou reformular isso: ‘Aqueles que podem, fazem; aqueles que não podem, regulamentam.’ Muitas vezes, há uma crença de que a regulamentação resolverá o problema, mas isso nem sempre acontece. Na maioria das vezes, pessoas com entendimento limitado da tecnologia acabam definindo as regulamentações, e acredito que é isso que está acontecendo agora na UE.

É lamentável, porque temos grandes talentos — muitos cientistas e especialistas em IA — mas talvez estejamos limitando o potencial deles. Isso é preocupante. O segundo problema é que eu não acho que a regulamentação seja a solução. Veja o exemplo dos dados: muitas vezes, assustamos as pessoas em relação ao uso de dados, mas eu os vejo como algo que pode salvar vidas. Os dados deveriam ser tratados como o sangue — deveríamos encorajar as pessoas a doá-los. No entanto, precisamos educá-las sobre o valor dos dados.

Não se trata de impor restrições ou proibir o uso de dados, mas sim de educar e mudar perspectivas. Isso é algo que ainda não consideramos completamente no contexto da regulamentação de IA. Por exemplo, a abordagem baseada em risco que estamos adotando foi emprestada da regulamentação de dispositivos médicos, e é assim que acabamos com este sistema. No entanto, há áreas onde essa abordagem não se encaixa perfeitamente.

Provavelmente o que vai acontecer é que muitos talentos irão para outros lugares — e isso já está acontecendo. Na Europa, particularmente em países como França e Reino Unido, temos grandes matemáticos, pois não devemos esquecer que a IA também é sobre matemática. O que vemos agora é que muitos cérebros estão migrando e trabalhando em outros lugares.

Também podemos ver novas startups que, em vez de abrirem aqui, estão sendo fundadas na África, nos EUA ou em outros lugares. Esse é o custo da conformidade. Isso vai tornar os custos tão altos que acabaremos fazendo isso em outros lugares.

Rad finaliza admitindo que a única maneira de acertar é ser humilde, reconhecer que não sabemos tudo, e entender que a regulamentação, por si só, não será suficiente. Acho que, agora, muitos governos e países estão apenas jogando o jogo para mostrar que estão participando. Mas muitos vão perceber que não vai funcionar. Algo mais colaborativo é necessário. Acredito muito mais em revisões de código aberto, baseadas na comunidade, do que em regulamentação. Educação é fundamental.

A partir de tudo que foi exposto, pode-se refletir sobre um ponto levantado no curso de Organização Industrial Aplicada à Concorrência e à Regulação Econômica, ministrado pelo doutor em economia e ex-conselheiro do Cade, Elvino Mendonça. Esse ponto, aparentemente simples, mas profundamente significativo, corrobora muito do que foi discutido aqui. O Dr. Elvino compartilha uma de suas ricas experiências na administração pública, em que, ao ser instado a regular determinado setor, questionou os envolvidos sobre o que e por que se pretendia regular essa matéria e qual falha de mercado seria abordada. Essas perguntas destacam a necessidade de clareza antes de qualquer ação regulatória — uma abordagem que, em alguns aspectos, contrasta com o cenário aqui apresentado, que se mostra dúbio e incerto conforme as avaliações mencionadas.

Em conclusão, o panorama atual da inteligência artificial (IA) é repleto de incertezas, com muitos sinais de que estamos diante de um hype ou, potencialmente, de uma bolha tecnológica. O entusiasmo exagerado em torno da IA, impulsionado por expectativas de avanços revolucionários, esbarra em dúvidas sobre a capacidade real dessas tecnologias de cumprirem suas promessas. Figuras como Eric Siegel e Steve Case, além de estudos e análises recentes, indicam que o progresso pode ser mais lento do que o previsto, reforçando o risco de uma supervalorização das expectativas.

Neste contexto, o Cade tem adotado uma abordagem prudente e equilibrada. Ao propor o uso de sandboxes regulatórios para testar e monitorar os impactos da IA, o Cade demonstra uma compreensão clara das complexidades envolvidas, evitando o exagero regulatório que poderia sufocar a inovação sem uma real necessidade. Essa postura se alinha a uma visão mais cautelosa e racional, reconhecendo tanto o potencial quanto os perigos da IA, sem ceder ao alarmismo que, em outros contextos, pode gerar regulações prematuras e prejudiciais ao desenvolvimento tecnológico.

Assim, o Conselho se posiciona de maneira acertada ao buscar um equilíbrio entre a necessidade de regulação e o incentivo à inovação, o que parece ser o caminho mais promissor em meio à incerteza que cerca a evolução da IA.

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WIZIACK, J. Contra vazamentos e roubo de dados, agência do governo não usará mais WhatsApp. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2024/08/contra-vazamentos-e-roubo-de-dados-agencia-do-governo-quer-banir-whatsapp.shtml>. Acesso em: 21 ago. 2024.


Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


A Lei nº 14.874/2024 e a Necessidade de Regulamentação da Pesquisa com Seres Humanos no Brasil

Andrey Vilas Boas de Freitas

A promulgação da Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024[1], marca um avanço significativo na regulamentação da pesquisa com seres humanos no Brasil. Esta legislação estabelece diretrizes éticas e procedimentos rigorosos para a condução de pesquisas, além de instituir o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (SINEPSH). No entanto, apesar dos avanços, diversos aspectos da lei necessitam de regulamentação para garantir a sua plena eficácia.

Um dos aspectos a serem regulamentados é a composição e as competências do SINEPSH. A Lei nº 14.874/2024 institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, mas carece de detalhamento sobre a composição do SINEPSH, suas competências específicas e os critérios para a escolha de seus membros. Uma alternativa sugerida seria regulamentar a composição do SINEPSH com base em exemplos internacionais, como o Comitê de Ética da União Europeia[2], que inclui especialistas de diversas áreas, representantes da sociedade civil e membros independentes. A escolha dos membros poderia seguir critérios de qualificação acadêmica e experiência prática em ética de pesquisa, garantindo diversidade e representatividade.

Outro ponto que necessita de regulamentação é o processo de consentimento informado. A lei aborda o consentimento informado, mas não especifica os requisitos mínimos para sua obtenção, especialmente em contextos vulneráveis ou com populações específicas, como crianças ou pessoas com deficiência. Uma alternativa seria inspirar-se em diretrizes como as da Declaração de Helsinki e do CIOMS (Council for International Organizations of Medical Sciences)[3], que estipulam a necessidade de processos adaptados ao nível de compreensão dos participantes, incluindo consentimento informado por escrito e, em certos casos, audiovisuais. A regulamentação deve garantir que o consentimento seja um processo contínuo, com revisões periódicas durante a pesquisa.

A proteção de dados pessoais e privacidade também é um aspecto que precisa ser regulamentado. A proteção de dados pessoais dos participantes de pesquisa é mencionada na lei, mas falta um detalhamento sobre como as informações devem ser coletadas, armazenadas e compartilhadas, especialmente em estudos multicêntricos ou internacionais. A regulamentação pode seguir o modelo da GDPR (General Data Protection Regulation) da União Europeia, impondo regras estritas sobre a anonimização dos dados, a limitação do acesso a informações sensíveis e o direito dos participantes de acessarem e controlarem seus dados. É importante assegurar que as instituições de pesquisa estejam em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) do Brasil.

A fiscalização e as penalidades são outro ponto que exige regulamentação. A lei estabelece penalidades para violações das diretrizes de pesquisa, mas não especifica os mecanismos de fiscalização, nem os critérios para a aplicação de penalidades. A regulamentação poderia detalhar as competências das comissões de ética locais e do SINEPSH na fiscalização contínua das pesquisas, incluindo auditorias periódicas e mecanismos de denúncia anônima. A aplicação de penalidades deve ser proporcional à gravidade da violação e incluir desde advertências até a suspensão de licenças de pesquisa.

Por fim, a responsabilidade e a reparação em caso de danos também necessitam de regulamentação. A responsabilidade dos pesquisadores e das instituições em caso de danos aos participantes não é totalmente clara na lei, especialmente no que tange à reparação de danos físicos, psicológicos ou materiais. Uma alternativa seria basear-se em normas como as do NIH (National Institutes of Health) dos Estados Unidos[4], que estipulam a obrigatoriedade de seguros de responsabilidade civil para pesquisas envolvendo seres humanos. A regulamentação deve prever mecanismos claros e céleres para a reparação de danos, além de um fundo de compensação para vítimas em casos de insolvência dos responsáveis.

Em conclusão, a Lei nº 14.874/2024 é um marco importante, mas sua eficácia depende de uma regulamentação detalhada e bem estruturada. A adoção de melhores práticas internacionais pode contribuir para um sistema robusto de proteção aos participantes de pesquisa no Brasil, equilibrando o avanço científico com a defesa dos direitos humanos. A regulamentação desses aspectos críticos não só fortalecerá o SINEPSH, como também garantirá que o Brasil se alinhe aos mais altos padrões éticos globais em pesquisa científica.


[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Lei/L14874.htm

[2] The Independent Ethical Committee – European Commission (europa.eu)

[3] https://cioms.ch/

[4] https://www.nih.gov/


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


Evidências para uma Agenda Econômica Positiva e os Malefícios das Intervenções nas Agências Reguladoras

Katia Rocha

Há cerca de 5 anos foi publicada a Lei 13.848/19, que instituiu o novo Marco Legal das Agências Reguladoras no Brasil, com a atualização de regras de gestão, organização, processo decisório e controle social, trazendo diversos aperfeiçoamentos em direção à uma maior segurança jurídica, transparência e governança das instituições. As diretrizes avançaram no sentido de reforçar a autonomia institucional e financeira das autarquias, com previsão dos mecanismos de independência técnica e institucional necessária. Uma agenda estrutural positiva e relevante para todos: sociedade, agentes públicos e investidores privados.

No entanto, na arena política ainda presenciamos a persistência de certa dicotomia no tocante à independência técnica das agências, em diversas frentes. Para citar apenas alguns exemplos recentes, a Emenda 54/2023 que previa criação de “conselhos” que retiravam poder e autonomia das agências reguladoras, as tentativas de “retrocessos e mudanças” acerca do Marco Legal de Saneamento, o PDL 94/2022 cuja finalidade era “impossibilitar homologações” da Aneel no tocante a reajustes tarifários, o PDL 365/2022 revogando todo trabalho técnico da Aneel sobre “sinal locacional”, e mais, recentemente, a controvérsia sobre o Ofício 368/2024 do MME sobre “intervenção na Aneel”.

Nesse sentido, é pertinente argumentar e destacar os dados, estimativas e recomendações de políticas públicas de diversos think tanks (FMI, OCDE. etc) em prol do desenvolvimento de um robusto arcabouço regulatório e de governança. Há inúmeras evidências a favor da agenda de Pilar Regulatório e Governança para tratar a política regulatória, gestão e governo como um todo, com foco nas melhores práticas internacionais, abrangendo o fortalecimento das agências reguladoras, com autonomia, independência decisória, administrativa e financeira de forma a perseguir maturidade regulatória, transparência e segurança jurídica, baseadas em pilares técnicos.

Como principal referência deste artigo, destaco o recente relatório anual do FMI da economia Brasileira (Brazil: 2024 Article IV Consultation) publicado mês passado, que dentre diversas sugestões de políticas e reformas estruturais, apresenta em seu Anexo 2, um modelo econométrico que estima os determinantes do fluxo de Investimento Externo Direto (IED) para os emergentes e para o Brasil.

O modelo do tipo painel efeito fixo (push x pull), agrega dados de 28 economias emergentes entre 1990-2023, e conclui que as características estruturais do país, dentre as quais faz-se menção à qualidade regulatória e governança institucional, desempenharam papel significativo e relevante na atração de IED para os emergentes, incluindo Brasil, sendo, atualmente, seu principal driver (Figura 1 abaixo).

O relatório corrobora que as características institucionais dos países (como abertura comercial e conta de capital, qualidade regulatória e governança) potencializaram maior fluxo de IED, com efeitos superiores às variáveis comuns globais, como aversão ao risco global, liquidez internacional, ou variáveis de fundamentos cíclicas, como diferenciais de crescimento e inflação. Fato é que o Pilar Regulatório e as características institucionais de Governança aumentaram a preferência de estrangeiros por investimentos no Brasil, principalmente após a crise financeira global de 2008[1]. O fluxo de IED no Brasil passou de uma média de 1.3% do PIB antes de 2009, para cerca de 2.7% do PIB entre 2010-2023, com os setores de energia, incluindo as renováveis, recebendo fluxos substanciais, vindos, principalmente, da Europa e América do Norte. Como proporção de market share o Brasil recebeu uma média de cerca de 40% dos fluxos anuais de IED para a América Latina e cerca de 9% considerando todas as economias em desenvolvimento.

O relatório também relaciona a agenda regulatória positiva aos dividendos de crescimento e à sustentabilidade fiscal. Avançar nas reformas estruturais relacionadas à abertura comercial, regulação e governança tem potencial de aumentar o crescimento do país em cerca de 1% do PIB ao ano[2], conforme a ilustra a Figura abaixo.

Essa dinâmica virtuosa não é nova. Diversos estudos[3], há tempos, demonstram a relação positiva entre as características institucionais dos países e seu nível de crescimento e renda per capita. Melhores níveis de governança (qualidade regulatória, aparato legal, efetividade do governo, controle de corrupção) está associada a um maior desenvolvimento econômico e social.

Dessa forma, o Pilar Regulatório é cada vez mais visto como complementar de fato às políticas macroeconômicas e fiscais. Uma agenda institucional positiva dialoga e promove os objetivos de sustentabilidade fiscal, ao potencializar uma diminuição nos indicadores do endividamento público, proporcionando um menor risco país e, por conseguinte, menores juros.

O empenho para melhorar o ambiente de negócio, diminuir o custo país e aumentar a produtividade é extenso e contínuo. Os embates persistentes às entidades reguladoras vão na contramão de toda agenda positiva de Estado, e acabam por prejudicar os esforços já empregados seja com o novo arcabouço fiscal, seja com a reforma tributária de consumo (VAT) e sua regulamentação, ou ainda, para com as futuras reformas estruturais, como a reforma tributária de renda, administrativa, previdenciária, etc.

Sigo acreditando que dados, evidências e comparação por pares são extremamente úteis em manter as conquistas obtidas, e, seguir caminhando em direção à agenda positiva para o desenvolvimento econômico e social do país.  


[1] Resultado semelhante considerando o arcabouço regulatório como driver do volume de investimentos privados em infraestrutura (PPI) (Capex e outorgas) e o números de projetos de PPI para 18 economias emergentes entre 2000-2018 é apresentado no Texto de Discussão Ipea 2584 (2022).

[2] Estimativas semelhantes ao relatório OECD Economic Surveys: Brazil (2023)

[3]Ver Acemoglu et al. (2004), Acemoglu et al. (2010).


Katia Rocha é Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), autarquia vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão desde 1997.

Doutora em Engenharia Industrial/Finanças, Mestre e Graduada em Engenharia Industrial e Elétrica pela Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora no Departamento de Engenharia Industrial (2002-2013).

Autora e revisora em diversos periódicos acadêmicos – Energy Policy, Journal of Fixed Income, Emerging Markets Review, Forest Policy and Economics, Pesquisa e Planejamento Econômico, Revista Brasileira de Finanças, Revista Brasileira de Economia, Economia Aplicada e Estudos Econômicos.

Atua no Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação de Políticas públicas nas áreas de Investimentos em Infraestrutura , Economia da Regulação, Financiamento da Infraestrutura (Investidores Institucionais e Mercado de Capitais), Finanças Internacionais, Determinantes de Risco Soberano, IED e Fluxos de Capital para Economias Emergentes.


Impeachment de Ministro: o jogo deve ser jogado!

José Américo Azevedo

O artigo que ora se apresenta, não irá agradar grande parcela dos gregos, nem, tampouco, grande parte dos troianos. Ainda assim, vale o risco.

As opiniões e posicionamentos devem ser apresentados para permitir reflexões e, por que não?, colocar a “cara a tapa” para as bem vindas críticas que, seguramente, nascerão. O posicionamento centralizado (não confundir com centrão…), está em desuso atualmente. A polarização reina, dificultando discussões mais amenas.

Então, vamos ao tema!

O cerne da questão é o modelo adotado pela Constituição Federal para escolha, manutenção e até impedimento dos ministros dos tribunais superiores, focando, em especial, no Excelso Pretório, Supremo Tribunal Federal.

Sem desnecessários didatismos, vale lembrar que a composição das Constituições brasileiras – excetuando-se a de 1824, que previa um Poder Moderador, exercido pelo Imperador –, segue a lógica montesquiana da divisão tripartite de Poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

O necessário equilíbrio, para que não haja despotismos, vem dos freios e contrapesos (check and balance na anglicana tradição da common law). Esse é o diferencial! Não existe, em relação aos procedimentos de Estado, nenhuma ação em que não haja a fiscalização – pelo menos, em tese – de um Poder em relação aos outros!

Avancemos!

A indicação de um ministro do STF (Poder Judiciário) é realizada pelo Presidente da República (Poder Executivo), sendo submetida ao referendum do Senado Federal (Poder Legislativo). É dizer, todos os Poderes participam da escolha de um ministro do Supremo, e de todos os Tribunais Superiores. Dessa forma, a priori, todos os Poderes foram unânimes ao aceitarem determinado cidadão para determinada função. Altamente democrático.

Então, qual é a discussão?

O ponto nevrálgico é a prática de comportamentos questionáveis, por algum dos Poderes, sem a intenção de demonizar qualquer deles. A eventual falta de procedimentos republicanos, caso haja, não significa a necessidade de alteração na Constituição, para corrigir erros momentâneos e circunstanciais.

Faz-se necessário um pacto político, em que forças antagônicas estabeleçam um compromisso em relação ao país, de forma a afastar a polarização, estabelecendo um ambiente minimamente factível de salutar convivência. Nesse momento de histeria coletiva, parece difícil imaginar algo neste sentido. Seria o “mundo de Alice” se transformando em realidade. Porém, o reverso da medalha pode custar caro ao país. E isso deve ser olhado pelos cidadãos, pessoas que querem a verdadeira construção de um ambiente mais saudável.

Abstraindo-se da divagação de um “mundo melhor”, o fato é que temos um ordenamento constitucional e legal extremamente robusto, e, que se quisermos o caminho do Estado Democrático de Direito, devemos segui-lo.

O inciso II do artigo 52 da Constituição Federal define que compete privativamente ao Senado Federal, processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade. Este dispositivo encontra-se secundado pelos artigos 39 e 39-A da Lei 1.079/1950, que foi recepcionada pela atual Carta Magna, e define quais são os crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Não obstante, deve-se cumprir todo o rito formal para uma decisão de impedimento de um ministro, sendo inadmissível uma decisão que se amolde a uma espécie de tribunal de exceção. Assim, faz-se necessária a apresentação da denúncia, seguida pela formação, pelo Senado Federal, de uma comissão especial que apresentará, em até 10 dias, um parecer para a apreciação do plenário da Casa.

Caso a decisão seja pela continuidade do procedimento, abre-se a constitucional garantia de contraditório e ampla defesa para o denunciado, voltando o processo, após esta etapa, para a comissão especial e, novamente, para o plenário.

Julgada procedente a denúncia, e após comunicados o STF, o Presidente da República, o denunciante e o denunciado, fica este suspenso até o julgamento final que ocorrerá no Senado com a presença dos ministros do Supremo.

Somente então, com a votação nominal e a aprovação de 2/3 dos senadores é que ocorrerá o impeachment do denunciado.

Há que se observar que o processo, embora possa parecer deveras moroso, tem como objetivo a garantia da lei e da ordem, além de permitir a possibilidade sagrada de defesa do acusado. É por isso que, entre outros motivos, nossa Constituição preconiza, em seu primeiro artigo que “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”.

Caso respeitada a Carta da República, não existirão ministros de tribunais, diretores e presidentes de autarquias, ministros do Tribunal de Contas da União, presidente e diretores do Banco Central, Procurador Geral da República, embaixadores, e mais uma gama de autoridades, inaptas ao exercício de suas funções, pelo simples fato de que, para a assunção aos seus cargos, devem passar pelo crivo de outro Poder. Caso haja responsabilidade nessas aprovações, o risco de existirem incompetentes atuando tende a diminuir exponencialmente.

Além disso, na remota possibilidade de se cometer um erro de escolha – imaginando-se um processo transparente e legítimo –, estão previstos mecanismos de correção, até o terminativo impedimento da autoridade, conforme descrito alhures.

Por mais que atualmente esteja aflorada a sanha persecutória dos mais radicais, deve se ter como baliza que o país não pode ficar à mercê de posições e comportamentos extremados, necessitando que a parcimônia e a temperança norteiem os rumos da nação.

Nesta linha, resta a reflexão acerca da necessidade de respeito às instituições e ao ordenamento jurídico vigente ou, com a devida contextualização – inclusive e especialmente histórica –, a evolução dos dispositivos legais, não bastando somente alvoroçados gritos de guerra que conturbam a pacificação social e prejudicam inexoravelmente nossa Democracia!


José Américo Azevedo. Engenheiro Civil pela Universidade de Uberaba e Advogado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa IDP, em Brasília. Consultor independente e ex colaborador na Defensoria Pública do Distrito Federal. Colunista na plataforma WebAdvocacy. Atualmente presta consultoria para o Instituto Unidos Brasil. Experiência em gerenciamento e coordenação de contratos, licitações, contratos e concessões públicas atuando por empresas privadas e pelo Governo. Ex-membro de Comissões de Licitações. Relações institucionais e governamentais. Credenciado como perito técnico judicial junto ao TRF 1 Região. Membro da Comissão de Infraestrutura da OAB/DF.


BC no G20: O que vem sendo discutido na Trilha de Finanças?

Leandro Oliveira Leite

O Banco Central do Brasil (BC) tem desempenhado um papel liderança nas discussões da Trilha de Finanças do G20[1], especialmente durante as reuniões realizadas no Rio de Janeiro entre 22 e 26 de julho de 2024[2]. Sob a presidência do Brasil no G20, o BC tem sido um ator importante na condução de debates sobre temas essenciais para o futuro econômico global, como mudanças climáticas, sustentabilidade, inclusão financeira e inovações no sistema financeiro.

A Trilha de Finanças, uma das principais vertentes do G20, concentra-se em assuntos macroeconômicos estratégicos, sendo liderada pelos ministros das Finanças e presidentes dos Bancos Centrais dos países-membros. A coordenação dessa trilha está sob a responsabilidade da Secretária de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda.

Um dos principais focos das discussões na Trilha de Finanças tem sido a sustentabilidade e os riscos climáticos. A presidência brasileira do G20, que adotou o lema “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”, colocou esses temas no topo da agenda, reconhecendo a urgência de enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas.

O BC tem enfatizado a importância de se considerar os impactos econômicos e sociais dos eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes. Além disso, o BC destaca a necessidade de investimentos significativos na transição energética, apesar dos custos adicionais que essa mudança pode acarretar. Esse enfoque reflete a crescente pressão global para integrar questões ambientais e de sustentabilidade nas políticas econômicas e financeiras.

No que diz respeito à mudança climática, a Força-Tarefa para Mobilização Global contra a Mudança do Clima está sendo estabelecida pela presidência brasileira do G20, com reuniões inaugurais ao longo de 2024. Concebida para promover o diálogo entre governos, instituições financeiras e organismos internacionais, a força-tarefa visa alinhar as políticas macroeconômicas e financeiras globais com os objetivos da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e do Acordo de Paris. Essa iniciativa integra um esforço maior de garantir que as ações climáticas estejam no centro das estratégias econômicas e financeiras globais.

Essa força-tarefa terá também a importante missão de consolidar os resultados dos grupos de trabalho e articular respostas coordenadas entre a Trilha de Sherpas[3] e a Trilha de Finanças do G20, reforçando o compromisso dos países-membros em restaurar a confiança na capacidade internacional de enfrentar a emergência climática. Será promovido um painel com economistas notáveis para examinar as plataformas nacionais de transformação ecológica e os arcabouços existentes de políticas públicas, apresentando recomendações que possam guiar os esforços globais nesta área.

Os debates organizados pela força-tarefa buscarão facilitar a troca de experiências entre os países-membros e identificar pontos de convergência na formulação e implementação de planos voltados para a transformação econômica e a sustentabilidade. Um ponto central será o alinhamento do setor financeiro às metas de longo prazo do Acordo de Paris, com a participação de governos, bancos centrais, reguladores financeiros, bancos comerciais e de desenvolvimento, instituições financeiras internacionais, investidores institucionais e outros atores do mercado financeiro. O objetivo é delinear estratégias colaborativas, que incluam abordagens regulatórias e compromissos voluntários, para acelerar a mobilização de recursos destinados ao desenvolvimento sustentável e ao combate às mudanças climáticas.

As reuniões da Trilha de Finanças estão programadas para acontecer em várias cidades brasileiras ao longo de 2024, incluindo Brasília e São Paulo, refletindo o compromisso do Brasil em sediar discussões de alto nível que impactam o sistema financeiro global. A culminação dessas discussões ocorrerá na Cúpula de Líderes do G20, marcada para novembro de 2024, no Rio de Janeiro, onde os avanços das iniciativas discutidas durante o ano serão apresentados, e novos rumos para a governança financeira global serão traçados.

Os demais grupos técnicos da Trilha de Finanças também desempenham papéis essenciais nas discussões. O grupo de Arquitetura Financeira Internacional, por exemplo, criado após a crise financeira global de 2008/2009, tem como foco a promoção de uma arquitetura financeira global mais estável e resiliente. Já o grupo de Economia Global monitora os riscos e incertezas que impactam o cenário econômico mundial, enquanto o grupo de Inclusão Financeira busca melhorar o acesso e a qualidade dos serviços financeiros formais em todo o mundo. Outros grupos discutem temas como Tributação Internacional, infraestrutura e inovação no sistema financeiro.

Essa articulação reflete o papel do BC na construção de um ambiente financeiro mais robusto e resiliente, capaz de lidar com os desafios impostos pelas mudanças climáticas, ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento sustentável. Com isso, o BC contribui para moldar as discussões globais e para garantir que as decisões tomadas no G20 estejam alinhadas com a necessidade de uma economia mais verde e inclusiva.

A atuação do BC no contexto do G20 demonstra um compromisso claro com a incorporação de questões ambientais nas diretrizes financeiras globais. Ao liderar essas discussões, o BC promove uma abordagem que considera os impactos econômicos das mudanças climáticas e busca formas de mitigar esses riscos, contribuindo para um futuro mais sustentável.

As discussões sobre sustentabilidade e mudanças climáticas, lideradas pelo BC no G20, têm implicações diretas para o mercado financeiro. A crescente ênfase em fatores ambientais, sociais e de governança (ESG) está moldando o futuro das finanças globais. Com o BC desempenhando um papel de liderança nessas discussões, o Brasil se posiciona como um líder na integração de práticas sustentáveis no sistema financeiro.

As possíveis mudanças regulatórias decorrentes dessas discussões podem impactar significativamente os mercados. Empresas que se adaptarem às novas exigências terão vantagens competitivas, enquanto aquelas que não se ajustarem poderão enfrentar desafios. Além disso, o foco do BC em práticas sustentáveis pode atrair mais investimentos estrangeiros, especialmente aqueles direcionados a projetos que promovem a transição para uma economia de baixo carbono.

Outro tema central abordado na Trilha de Finanças foi a inclusão financeira. O BC tem destacado que, para ser efetiva, a inclusão financeira deve ir além da simples abertura de contas bancárias. A qualidade da inclusão, que envolve o bem-estar financeiro dos indivíduos, é uma prioridade. Para isso, o BC tem investido em iniciativas de educação financeira e em programas que monitoram e medem os resultados das políticas de inclusão financeira.

Por meio do Programa Aprender Valor, por exemplo, o BC busca melhorar a educação financeira nas escolas, ajudando a formar uma população mais consciente financeiramente. Esse foco em educação financeira é visto como essencial para promover uma maior estabilidade econômica a longo prazo, já que indivíduos mais bem informados tendem a tomar decisões financeiras mais sólidas.

As inovações no sistema financeiro também foram um tópico de destaque nas discussões do G20. O BC está promovendo reformas estruturais importantes por meio de iniciativas como o Pix, o Open Finance[4] e o desenvolvimento da Drex, a moeda digital brasileira. Essas inovações visam aumentar a eficiência, a inclusão e a transparência no sistema financeiro do Brasil, posicionando o país como um líder em inovação financeira global.

Entretanto, desafios como a harmonização de regras internacionais e a governança dos sistemas de pagamento ainda precisam ser enfrentados. O G20 tem um papel fundamental na promoção de condições de concorrência equitativas e na criação de um conjunto mínimo de regras para os pagamentos transfronteiriços, essenciais para a integração dos sistemas de pagamento globais.

O Banco Central do Brasil, através de sua atuação nas discussões da Trilha de Finanças do G20, tem demonstrado um forte compromisso com a sustentabilidade, a inclusão financeira e a inovação. Ao liderar essas discussões, o BC reforça a importância desses temas no cenário global, ao mesmo tempo em que prepara o mercado financeiro brasileiro para um futuro mais sustentável e competitivo. As discussões continuarão até a Cúpula de Líderes do G20 em novembro de 2024, no Rio de Janeiro, onde os avanços alcançados ao longo do ano serão consolidados e novas direções serão definidas para o futuro da governança financeira global.


[1] https://mkt.comunicacao.bcb.gov.br/campaigns/xo592qsy7tb3c/track-url/cw44517kp7c2c/43fb59f8cdebbca0d9b96740ec845fb1912b76a0

[2] https://mkt.comunicacao.bcb.gov.br/campaigns/xo592qsy7tb3c/track-url/cw44517kp7c2c/2de8b85f5c46171afa950abf63859e1bdb34d4c7

[3] A trilha de Sherpas (comandada pelo Itamaraty, trata de temas como emprego, educação e saúde) tem uma atuação política, reunião dos emissários pessoais dos líderes do G20. Já a trilha de finanças trata de assuntos macroeconômicos e é liderada pelos ministros das finanças e presidentes dos bancos centrais dos países-membros.

[4] O Open Finance, ou sistema financeiro aberto, é a possibilidade de clientes de produtos e serviços financeiros permitirem o compartilhamento de suas informações entre diferentes instituições autorizadas pelo Banco Central e a movimentação de suas contas bancárias a partir de diferentes plataformas e não apenas pelo aplicativo ou site do banco, de forma segura, ágil e conveniente. https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/openfinance


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


Simplificação da linguagem como medida de maior acesso à justiça

Pedro Zanotta e Dayane Garcia Lopes Criscuolo

Quando falamos em acesso à justiça, qual a primeira coisa que nos vem à mente? Sem dúvida, ver resguardados os nossos direitos, por intermédio do Poder Judiciário, seja arcando com os custos ou de forma gratuita? Ter a disponibilização de um advogado para nosso auxílio pelo Estado, de forma gratuita? Ter um órgão que, independentemente de outras esferas, analisa o nosso pleito de forma imparcial?

Sem dúvida que, ter garantidos todos estes pontos, significa verdadeiro acesso à justiça. No entanto, quando presente em uma audiência ou, ainda, diante de uma decisão proferida pelo judiciário ou órgãos administrativos especializados, a dificuldade na compreensão do que ali está sendo discutido ou decidido, te faz, de fato, sentir que essa acessibilidade existe? Ou ainda, quando auxiliado por um advogado, a linguagem por ele utilizada é, no todo, clara e acessível?

Vivemos em um país no qual o idioma oficial é o português. No entanto, a utilização de um palavreado técnico e excessivamente rebuscado pelos operadores do direito, popularmente conhecido como “juridiquês”, que inclui, inclusive, diversos termos em latim, prejudica o acesso à justiça, na medida em que é de difícil compreensão por aqueles que não atuam na área jurídica. Há de se dizer que determinados textos chegam a ser incompreensíveis, o que nos faz recordar da primeira vez que abrimos um livro de direito na faculdade, na qual entramos preparados e instruídos para as lições que seriam aprendidas, mas, ainda assim, nada do que ali estava escrito parecia fazer o menor sentido.

Neste cenário, diversos desses termos são utilizados, dificultando sobremaneira a interpretação e compreensão dos textos jurídicos, tais como a petição inicial é chamada de exordial; a denúncia virou exordial increpatória; a apresentação de um recurso, diz-se interposição; a repetição de uma situação jurídica, bis in idem; para apenas argumentar, utiliza-se ad argumentandum tantum; para normas que se aplicam a situações passadas, diz-se ter efeito ex tunc; para INSS[1], autarquia ancilar; a partir do início, diz-se  ab initio; para com todos, em relação a todos, de caráter geral, erga omnes, dentre outros. Assim, pergunta-se, qual a utilidade desta linguagem que restringe o acesso à justiça e cuja compreensão fica restrita apenas aos operadores do direito? Como afirmar, diante desta situação que o acesso à justiça é não só reconhecido, mas, de fato, disponibilizado à todos os cidadãos?

O Professor José Barcelos de Souza, em seu artigo “Linguagem jurídica[2], traz dois exemplos que ilustram esta dificuldade, encontrada pelas pessoas leigas de compreender a linguagem rebuscada:

“Vou citar dois casos curiosos. Um ocorrido nos Estados Unidos, que li no interessante livro The art of cross-examinatoin (A arte de inquirir testemunhas).

Querendo perguntar à testemunha onde ela morava, o advogado lhe indagou: Where do you reside? A testemunha não entendia, e o advogado repetia, elevava a voz, escandia as sílabas, caprichava no “reside”, e nada. Então o oficial de justiça soprou-lhe aos ouvidos: “Pergunte assim, Where do you live?”. Não deu outra. A testemunha respondeu prontamente: moro na rua tal, número tal.

O outro fato – a mim contado por testemunha ocular da história – aconteceu aqui mesmo em Minas Gerais, protagonizado por bom advogado, que se tornou depois desembargador.

Desejando que a testemunha informasse se o tiro foi dado durante a luta da vítima com o réu, o advogado perguntou assim: “O tiro foi antes, no meio ou depois da refrega?”. A testemunha engolia em seco, mostrava-se inibida, ficou vermelha, mas não respondia. Indagada se entendera a pergunta, e instada (opa!) a responder, explicou: “Não foi antes nem depois; foi entre a refrega e o umbigo”. Uma gargalhada geral ecoou no salão.

O pior foi que a sessão teve de ser encerrada antes de terminar o julgamento. Porque, tudo já acalmado, quando menos se esperava, quando parecia que tudo corria normalmente, alguém iniciava uma risadinha, que acabava contagiando todo o auditório.”

Necessário se faz que o conhecimento do dia a dia dos processos, assim como das respectivas decisões, seja levado para além destes profissionais especializados, tornando a comunicação com a sociedade mais abrangente. Neste sentido, diversas medidas têm sido adotadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de que seja adotada uma linguagem mais simples, direta e compreensível na produção das decisões judiciais e na comunicação geral do Judiciário, e dos advogados, tornando a justiça, então, mais acessível à toda população.

Uma destas medidas, foi o lançamento, pelo CNJ e STF, em dezembro de 2023, com base nos princípios constitucionais e nos instrumentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, as Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça da Pessoas em Condição de Vulnerabilidade e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes), do Pacto Nacional pela Linguagem Simples do Judiciário.

De acordo com o Presidente do CNJ e STF, Ministro Luís Roberto Barroso, “[C] com muita frequência, não somos compreendidos. Boa parte das críticas ao Judiciário decorre da incompreensão sobre o que estamos decidindo. A linguagem codificada, a linguagem hermética e inacessível, acaba sendo um instrumento de poder, um instrumento de exclusão das pessoas que não possuem aquele conhecimento e, portanto, não podem participar do debate” e completou “[E] e quase tudo que decidimos pode ser explicado em uma linguagem simples, que as pessoas consigam entender. Ainda que para discordar, mas para discordar daquilo que entenderem”[3].

Ainda de acordo com Barroso, a linguagem simples na Justiça está relacionada ao fortalecimento da democracia, já que promove a igualdade de acesso à informação e à participação de todos os indivíduos no sistema jurídico, devendo ser um compromisso a ser assumido por todos os magistrados[4]. Ressalte-se que, considerando que a linguagem simples pressupõe a acessibilidade, a Pacto dispõe também sobre outras formas de aprimoramento da inclusão, como o uso, sempre que possível, da Língua Brasileira de Sinais (Libras), da audiodescrição, dentre outras medidas.

De acordo com o Pacto, a atuação dos tribunais é articulada por meio de cinco eixos[5] [6] [7], abaixo especificados. De modo a estimular a utilização da linguagem simples pelos tribunais, o CNJ instituiu o Selo da Linguagem Simples, que será concedido anualmente, sempre em outubro, mês em que se comemora o Dia Internacional da Linguagem Simples (no dia 13).

  • Primeiro: diz respeito ao uso da linguagem simples e direta nos documentos judiciais, deixando de lado expressões técnicas desnecessárias, assim como à criação de manuais e guias com objetivo de orientar a população sobre o significado de expressões técnicas indispensáveis nos textos jurídicos;
  • Segundo: incentiva a utilização de versões resumidas de votos nas sessões de julgamento, maior brevidade de pronunciamento em eventos do Judiciário e a criação de protocolos para eventos, que evitem formalidades excessivas;
  • Terceiro: formação (inicial e continuada) dos magistrados (as) e servidores (as) no sentido de utilizar a linguagem simples, assim como promoção de campanhas de amplo alcance visando a conscientização aceca da importância do acesso à justiça;
  • Quarto: incentivo no desenvolvimento de plataformas com interfaces intuitivas e informações claras, assim como a utilização de recursos de áudio, vídeos explicativos e traduções para facilitar a compreensão dos documentos e informações do Judiciário.
  • Quinto: promoção de articulação interinstitucional e social por meio de diversas ações, como criação de uma rede de defesa dos direitos de acesso à Justiça com comunicação simples e clara; compartilhamento de boas práticas e recursos de linguagem simples; criação de programas de treinamento conjunto de servidores para a promoção de comunicação acessível e direta; e estabelecimento de parcerias com universidades, veículos de comunicação ou influenciadores digitais para cooperação técnica e desenvolvimento de protocolos de simplificação da linguagem.

No mesmo sentido que o CNJ e o STF, e antes mesmo do lançamento do Pacto, medidas de acessibilidade foram adotadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[8], tais como, (i) em 2020, sessões do STJ passaram a ser transmitidas pelo Youtube, com tradução simultânea dos julgamentos para Libras e, atualmente, há a possibilidade de habilitação de legendas; (ii) em 2021, criação do balcão virtual, aperfeiçoado em 2023 com a adoção de recursos de linguagem acessível à pessoas com deficiência; (iii) em 2022, criação do Glossário STJ, que explica, de forma rápida e simples, o significado de expressões jurídicas utilizadas nos textos do noticiário. De acordo com o titular da Secretaria Judiciária do STJ, Augusto Gentil, no que concerne ao balcão virtual “a iniciativa representa dignidade para os usuários com deficiência, que passam a poder usufruir do serviço público e buscar informações sobre o próprio processo com independência e autonomia“. No mesmo sentido, entendemos que compreender aquilo que está ocorrendo no processo, ou, ainda, o que está sendo dito ou escrito, também é uma maneira de garantir a dignidade à população como um todo.

Desta maneira, a linguagem simples deverá estar em todos os documentos, comunicados e decisões proferidas pelo judiciário. Estas medidas, ao nosso ver, devem servir de norte para a simplificação da linguagem utilizada, também, em outras esferas, como a administrativa, na qual há autarquias especializadas, cujo uso da linguagem técnica, por vezes, afasta a compreensão por pessoas leigas, assim como por todos os operadores do direito.

As medidas para simplificação da linguagem, são fatores de empoderamento e inclusão social, reduzem as desigualdades, garantem igualdade de oportunidades, já que eliminam políticas e costumes que confrontam com estes objetivos. Além disso, o entendimento da tramitação do processo, gera a crença e a aproximação da população em relação ao Judiciário, fortalecendo a instituição. No mais, ainda, a compreensão das decisões, tanto judiciais, quanto administrativas, garante sua maior efetividade, na medida em que entendendo aquilo que foi decidido e a sua extensão, mais fácil será para a pessoa cumprir o comando nela emanado, ou discordar dele. Como cumprir ou obedecer, ou ainda, questionar aquilo que não se compreende?

Há de se considerar, que cada ciência possui sua própria terminologia, de modo a dar aos seus enunciados maior precisão e certeza. No entanto, este propósito pode também ser alcançado, com maior amplitude, optando-se por palavras de mais fácil compreensão, zelando, sempre, pelos seus significados, e mantendo-se, desta forma, seu caráter de instrumento de comunicação.

Bibliografia:

CNJ. Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. Disponível em:

https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf. Acesso 02.08.2024.

CNJ. Portaria Nº 351 de 04/12/2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5378#:~:text=I%20%E2%80%93%20simplifica%C3%A7%C3%A3o%20da%20linguagem%20nos,t%C3%A9cnicas%20indispens%C3%A1veis%20nos%20textos%20jur%C3%ADdicos. Acesso 02.08.2024.

SOUZA, José Barcelos de. Linguagem jurídica. Disponível em:

https://www.migalhas.com.br/depeso/12908/linguagem-juridica. Acesso em 02.08.2024.

STF. Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em:

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade. Acesso em 02.08.2024.

STJ. Notícias STJ: STJ na luta contra o juridiquês e por uma comunicação mais eficiente com a sociedade. Publicado 24.03.2024. Disponível em:

 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/24032024-STJ-na-luta-contra-o-juridiques-e-por-uma-comunicacao-mais-eficiente-com-a-sociedade.aspx. Acesso 02.08.2024.


[1] Instituto Nacional do Seguro Social.

[2] SOUZA, José Barcelos de. Linguagem jurídica. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/12908/linguagem-juridica . Acesso em 02.08.2024.

[3] In Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade . Acesso em 02.08.2024.

[4] “Todos os tribunais envolvidos assumem o compromisso de, sem negligenciar a boa técnica jurídica, estimular as juízas e os juízes e setores técnicos a: a. eliminar termos excessivamente formais e dispensáveis à compreensão do conteúdo a ser transmitido; b. adotar linguagem direta e concisa nos documentos, comunicados públicos, despachos, decisões, sentenças, votos e acórdãos; c. explicar, sempre que possível, o impacto da decisão ou do julgamento na vida de cada pessoa e da sociedade brasileira; d. utilizar versão resumida dos votos nas sessões de julgamento, sem prejuízo da juntada de versão ampliada nos processos judiciais; e. fomentar pronunciamentos objetivos e breves nos eventos organizados pelo Poder Judiciário; f. reformular protocolos de eventos, dispensando, sempre que possível, formalidades excessivas; g. utilizar linguagem acessível à pessoa com deficiência (Libras, audiodescrição e outras) e respeitosa à dignidade de toda a sociedade.” – In Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, pág. 4. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf . Acesso 02.08.2024.

[5] In Presidente do STF e do CNJ lança Pacto Nacional pela Linguagem Simples no Judiciário. Publicado 05.12.2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=521404&ori=1#:~:text=Selo%20Linguagem%20Simples&text=Sua%20finalidade%20%C3%A9%20reconhecer%20e,comunica%C3%A7%C3%A3o%20geral%20com%20a%20sociedade . Acesso em 02.08.2024.

[6] CNJ. Portaria Nº 351 de 04/12/2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5378#:~:text=I%20%E2%80%93%20simplifica%C3%A7%C3%A3o%20da%20linguagem%20nos,t%C3%A9cnicas%20indispens%C3%A1veis%20nos%20textos%20jur%C3%ADdicos. Acesso 02.08.2024.

[7] CNJ. Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, pág. 5 a 8. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pacto-nacional-do-judiciario-pela-linguagem-simples.pdf . Acesso 02.08.2024.

[8] In Notícias STJ: STJ na luta contra o juridiquês e por uma comunicação mais eficiente com a sociedade. Publicado 24.03.2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/24032024-STJ-na-luta-contra-o-juridiques-e-por-uma-comunicacao-mais-eficiente-com-a-sociedade.aspx . Acesso 02.08.2024.


Pedro Zanotta. Advogado em São Paulo, com especialidade em Direito Concorrencial, Regulatório e Minerário. Formado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, em 1976. Foi titular dos departamentos jurídicos da Bayer e da Holcim. Foi Presidente da Comissão de Estudos da Concorrência e Regulação Econômica – CECORE, da OAB/SP, de 2005 a 2009. Foi Presidente do Conselho e é Conselheiro do IBRAC. Autor de diversos artigos e publicações em matéria concorrencial. Sócio de BRZ Advogados.

Dayane Garcia Lopes Criscuolo. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Magistratura – EPM. Mestre em Cultura Jurídica pelas Universitat de Girona – UdG (Espanha), Università degli Studi di Genova – UniGE (Itália) e Universidad Austral de Chile – UAch (Chile). Aluna do Programa de Doutorado da Universidad de Buenos Aires – UBA (Argentina). Membro dos comitês de Mercados Digitais e Direito Concorrencial do Instituto Brasileiro de Concorrência, Relações de Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). Pesquisadora REDIPAL – Red de Investigadores Parlamentarios en Línea de la Cámara de Diputados de México. Autora de diversos artigos relacionados ao Direito da Concorrência, Direitos Humanos e questões de gênero.


Um conselho ao Conselho Federal de Medicina

Vanessa Vilela Berbel

Depois de sua desastrosa atuação durante a pandemia do Covid-19, o Conselho Federal de Medicina (CFM) investe, agora, nas pautas conservadoras, causando desconforto inclusive entre os membros da classe representada.

A Comissão Parlamentar de Inquérito do Covid-19 afirmou que a postura do CFM quanto à época era “temerária, criminosa e antiética”. Durante o período pandêmico, o CFM atuou para afastar qualquer condenação ética a médicos e médicas que prescreveram cloroquina e hidroxicloroquina, atuando inclusive para legitimar a prática, como se viu do Parecer nº 04/2020, no qual o Conselho estabeleceu critérios e condições para a prescrição dos medicamentos em pacientes com diagnóstico confirmado da doença. Essas atitudes, no mínimo irresponsáveis, levaram ao pedido de indiciamento do então presidente da entidade, Mauro Luiz de Britto Ribeiro.

Incansável em levar adiante sua pauta ideológica, o Conselho Federal de Medicina também colocou em sua página na internet uma enquete para aferir a opinião de médicos sobre a vacinação contra a Covid-19 em crianças, valendo-se de um relatório que pareceu mais desenhado para lançar dúvidas sobre a imunização e estimular a recusa paterna, do que para a coleta de opinião.

Não creio que a atuação do Conselho Federal de Medicina quanto aos direitos das mulheres nos últimos anos possa ter adjetivação menos severa do que a conferida pela CPI da Covid.

A desastrosa atuação do órgão nos últimos eventos vem gerando polêmica diária nos noticiários e suas investidas conservadoras não parecem recuar, fato que  o tornou um dos principais atores na “guerra santa” travada pelo chamado conservadorismo de extrema direita contra a garantia e proteção das liberdades femininas.

Vale ressaltar que o Conselho não é um sindicato, mas sim uma autarquia federal que tem como papel regular a aplicação do Código de Ética Médica e os registros de medicina. Ele tem uma natureza híbrida. É, ao mesmo tempo, uma entidade que zela por interesses de classe e uma autarquia com poderes normativos.

Contudo, em sua atividade regulatória, o CFM não tem como missão preservar a autonomia irrestrita do médico, mas sim balizá-la pela ciência e as boas práticas. Essa é a função da entidade: criar as molduras nas quais deve se inserir a autonomia profissional, forjadas na cientificidade e não na polarização política e ideológica.

A isenção ideológica que se deve ter na pauta regulatória não se evidencia em algumas das atividades  recentes do CFM, cuja expressiva parcela de membros é filiada a partidos políticos, conforme levantamento realizado em 08 de fevereiro de 2021 por Leonardo Martins, do Intercept[1].

Dos membros analisados pelo Intercept, 10 continuam ativos no Conselho e são filiados a partidos políticos majoritariamente de direita ou centro-direita, como PSL, DEM, Solidariedade, Podemos e Novo. Dentre os membros filiados a partidos políticos ainda ativos no CFM, tem-se:

Donizetti Dimer Giamberardino Filho – conselheiro federal pelo estado do Paraná e 1º vice-presidente – PV

Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti – conselheiro federal pelo estado de Alagoas e 3º vice-presidente – PSL

José Hiran da Silva Gallo – conselheiro federal pelo estado de Rondônia e tesoureiro – MDB

Salomão Rodrigues Filho – conselheiro federal pelo estado de Goiás e 2º tesoureiro – DEM

Florentino de Araújo Cardoso Filho – conselheiro federal pelo estado do Ceará – NOVO

Maria Teresa Renó Gonçalves – conselheira federal pelo estado do Amapá – Democracia Cristã

Júlio Cesar Vieira Braga – conselheiro federal pelo estado da Bahia  – NOVO

Jeancarlo Fernandes Cavalcante – conselheiro federal pelo estado do Rio Grande do Norte – Solidariedade

Ricardo Scandian de Melo – conselheiro federal pelo estado de Sergipe – NOVO

Estevam Rivello Alves – conselheiro federal pelo estado do Tocatins – Podemos

Atualmente, dos 28 Conselheiros do CFM, apenas 08 são mulheres, ou seja, menos de 30%. Aparentemente, nenhum negro, nenhum representante trans ou membro da comunidade LGBTQIA+. O grupo que hoje titulariza as cadeiras da entidade é majoritariamente branco e hétero, pertencente a uma classe econômica privilegiada.

Sem falar, ainda, de membros notoriamente polêmicos, como o ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente, tido como integrante da ala ideológica do governo de Jair Bolsonaro, que acumulava o cargo de conselheiro do CFM e de secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde.

Não à toa, foi ele, Raphael, o relator da Resolução do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, o Cremerj, de número 296/2019, que obrigava a notificação dos estupros atendidos por médicos aos órgãos policiais, dificultando o acesso de mulher que optam por não denunciar a agressão naquele momento. Vale lembrar que denunciar um estupro não é tão simples quanto parece; em muitos casos a vítima não possui condições de abrigamento, não conta com serviços públicos ou rede de apoio para que possa estar segura de eventuais investidas do agressor, muitas vezes seu pai, irmão ou membro familiar.

A posição ideológica de membros do Conselho filiados a partidos políticos ou declaradamente alinhados à pauta conservadora, acena como explicação plausível para algumas das posições retrógradas adotadas pela entidade no último biênio. Relembro alguns dos episódios mais marcantes de 2023-2024.

Em novembro de 2023, o CFM realizou o Simpósio “Violência Obstétrica”, no auditório das sua sede em Belo Horizonte, durante o qual, dentre outras questões polêmicas, condenou o uso termo por entender que, nas palavras do coordenador Victor Hugo, “estigmatiza procedimentos operatórios, discriminando a obstetrícia praticada por médicos”.

Na mesma linha, a coordenadora jurídica do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG), Vanessa Lima Andrade, afirmou que a expressão “violência obstétrica” é inadequada pois criminaliza o ato obstétrico, o que se contrapõe ao princípio jurídico da presunção de inocência. As falas, travestidas da discussão de nomenclatura, objetivam,  em verdade, reforçar a a postura histórica do CFM sobre o tema, que equipara a violência obstétrica à violência contra o obstetra. Em síntese, a mulher-paciente, de vítima, se torna a agressora.

Não se trata de negar o saber do profissional da medicina para prescrever o correto tratamento e método a ser empregado no parto. O que se questiona aqui é a postura do CFM de  usar o tema da violência obstétrica de forma enviesada, como um mote para a defesa irrestrita da autonomia do médico e, até, para o endosso de outras pautas conservadoras.

O tema da violência obstétrica já havia sido empregado pelo CFM de forma enviesada para a defesa do chamado “estatuto do embrião humano” em 2018, quando da edição do Parecer CFM nº 32/2018, referente ao Processo-consulta CFM nº 22/2018, no qual o órgão respondeu a uma consulta originária do CRM-DF sobre a suposta “proliferação” de leis sobre “violência obstétrica”.

Sobre o tema, Sérgio Rego, médico e pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) fez minuciosa analise do Parecer em artigo publicado em 28/12/2018 no site da Fiocruz. Longe do objetivo de discutir a atenção à parturiente, o documento surpreendeu, nas palavras de Rego, pelo “descompasso entre o que está sendo defendido neste Parecer e o que esperamos de uma instituição tão relevante como é o CFM, que se supõe esteja em sintonia com o seu tempo e as necessidades sociais representadas pelas mudanças contemporâneas”.[2]

Em 2024, novas polêmicas envolvem o CFM e os direitos das mulheres. Em abril, o CFM emitiu uma resolução que veta o uso de assistolia fetal em abortos resultantes de estupro após a 22ª semana de gravidez. A medida foi alvo de uma ação do PSOL no Supremo Tribunal Federal e foi suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes.

Há  pouco mais de um mês, o CFM volta a se envolver em polêmicas. Desta vez, José Hiran da Silva Gallo, presidente do Conselho de Federal de Medicina (CFM), após encontro com o Ministro Alexandre de Moraes, na saída do Supremo Tribunal Federal falou a jornalistas: “O procedimento da assistolia fetal é cruel para o feto. Nós viemos explicar para ele [Moraes] como é essa técnica. Essa técnica é feticídio”.

José Hiran já havia se envolvido em polêmica ao afirmar que a “autonomia da mulher” deve ser limitada quando se fala em aborto legal após a 22ª semana. “A autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós, de proteger”, foram as palavras do Presidente do CFM, como relembrou matéria da CartaCapital.[3]

O médico Arruda Bastos, coordenador da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), critica a série de posições do presidente do CFM, protagonizando a oposição ao conservadorismo que ele denominou de “resgate do Conselho”.

Trazemos esse tema para relembrar os leituras da indispensável atenção à eleição dos Conselheiros do CFM, que acontecerá em agosto e terá a capacidade de renovar, por meio da eleição, seus quadros. É fundamental que o órgão reflita a diversidade cultural e ideológica da sociedade brasileira, formada por pessoas que vão muito além das classes sociais atualmente representadas.

Contudo, com as barreiras de entrada ainda existentes para que um jovem ou uma jovem negra ou trans possa ter acesso aos cursos de medicina deste país, aparentemente a ausência de alinhamento do Conselho com as políticas públicas necessárias à melhoria da saúde e direitos das mulheres e meninas parece  ser uma realidade que perdurará.


[1] Leonardo Martins. https://www.intercept.com.br/2021/02/08/raphael-camara-secretario-de-pazuello-e-elo-entre-bolsonarismo-e-cfm/

[2] Rego, Sérgio. Violência obstétrica, 28/12/2018. In: https://agencia.fiocruz.br/violencia-obstetrica

[3] Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-podemos-aceitar-a-resposta-de-medicos-progressistas-ao-presidente-do-cfm/.


Vanessa Vilela Berbel. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (2006), mestrado em Filosofia Teoria Geral Direito pela Universidade de São Paulo (2012) e doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2018). Atualmente é professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, disciplina de Direito Civil. Atuou, durante os anos de 2022 a 2024, como servidora na Procuradoria Federal Especializada do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), colaborando com o enfrentamento às infrações à ordem econômica e com a proteção da defesa da concorrência. Coordenou, em nível nacional, a política pública de enfrentamento à violência contra a mulher, Ligue 180, ocupando cargo nível DAS 1.04 (2020 a 2022). Ex-professora adjunta do Instituto Federal do Paraná, Faculdade de Direito – Campus Palmas, tendo sido aprovada em primeiro lugar no concurso de provas e títulos. Possui experiência como advogada em escritório de expressão nacional e internacional. Autora de artigos, capítulos de livro e palestras. Suas pesquisas abordam os temas: desenvolvimento econômico, regulação, gênero e concorrência.


A Urgente Necessidade de Regulamentação da Lei 14.758/2023: Garantindo a Efetividade na Prevenção e Controle do Câncer

Andrey Vilas Boas de Freitas

Introdução

A Lei 14.758, publicada em 20 de dezembro de 2023, institui a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e o Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Câncer. Com um período de “vacatio legis” de 180 dias, esperava-se que a regulamentação da lei ocorresse até junho de 2024. No entanto, já se passaram 223 dias e ainda não há regulamentação efetiva por parte do Ministério da Saúde. Esse atraso compromete a implementação das políticas previstas e a garantia de atendimento adequado aos pacientes oncológicos no Brasil. Este artigo destaca os principais pontos da Lei 14.758 que necessitam de imediata regulamentação e a importância de flexibilidade na adaptação das normativas conforme as realidades locais.

  1. Da definição de critérios e procedimentos para otimizar a navegação dos pacientes

A “navegação do paciente” refere-se a um sistema de acompanhamento personalizado para pacientes com doenças complexas, como o câncer, com o objetivo de facilitar o acesso ao diagnóstico, tratamento e cuidados contínuos. O conceito foi desenvolvido para ajudar os pacientes a superarem as barreiras que dificultam a obtenção de cuidados médicos adequados e oportunos. Envolve a coordenação entre diferentes profissionais e serviços de saúde para garantir que o paciente receba cuidados contínuos e integrados. Isso pode incluir a organização de consultas com especialistas, a coordenação de tratamentos em diferentes locais e a comunicação entre os diferentes membros da equipe de saúde.

A regulamentação deve definir os critérios de seleção e capacitação dos navegadores de saúde[1], suas atribuições e responsabilidades, incluindo o acompanhamento do paciente desde o diagnóstico até o término do tratamento, além dos mecanismos de monitoramento e avaliação do programa para garantir sua eficiência e eficácia.

A ideia é de que os navegadores ajudem os pacientes a superarem barreiras que podem incluir dificuldades financeiras, problemas de transporte, falta de informação sobre a doença e o tratamento, barreiras linguísticas e culturais e obstáculos administrativos. Nesse sentido, sua ação envolve o fornecimento de informações sobre a doença, opções de tratamento e recursos de apoio disponíveis, ajudando os pacientes a tomarem decisões informadas sobre seu cuidado. Também cabe aos navegadores a oferta de suporte emocional e prático para ajudar os pacientes a lidarem com o impacto da doença.

Além disso, é papel dos navegadores o monitoramento do progresso do paciente ao longo do tratamento e a avaliação da eficácia do plano de cuidados, de modo a permitir a realização de ajustes conforme necessário. Essa atividade está centrada, portanto, na coleta de dados para identificar áreas de melhoria e garantir que o paciente esteja recebendo o melhor atendimento possível.

A navegação do paciente é uma abordagem essencial para melhorar a qualidade e a eficiência dos cuidados de saúde para pacientes com câncer. Ao fornecer suporte personalizado, superar barreiras, coordenar cuidados e monitorar o progresso, os navegadores de saúde ajudam a garantir que os pacientes recebam o tratamento adequado de maneira oportuna e eficaz. A implementação de um programa robusto de navegação do paciente, conforme previsto pela Lei 14.758/2023, é fundamental para alcançar os objetivos da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e melhorar a qualidade de vida dos pacientes oncológicos no Brasil.

Exemplos de Navegação do Paciente em Oncologia

Diagnóstico Rápido e Tratamento Inicial

Um paciente diagnosticado com câncer de mama pode ser designado a um navegador de saúde que ajuda a agendar rapidamente consultas com oncologistas, exames de imagem e biópsias. O navegador também pode ajudar o paciente a entender os resultados dos exames e discutir opções de tratamento.

Acesso a Tratamentos Especializados

Um paciente em uma área rural pode enfrentar dificuldades para acessar tratamentos especializados. O navegador pode organizar transporte para o paciente até um centro oncológico regional, coordenar consultas com especialistas e facilitar o uso de telemedicina para consultas de acompanhamento.

Suporte durante o Tratamento

Durante a quimioterapia, o navegador pode ajudar o paciente a gerenciar os efeitos colaterais, pode fornecer informações sobre nutrição e cuidados de suporte e mesmo organizar serviços de apoio, como aconselhamento psicológico ou grupos de apoio.

Transição para Cuidados Pós-Tratamento

Após o tratamento, o navegador pode ajudar o paciente a fazer a transição para os cuidados de sobrevivência, coordenando consultas de acompanhamento, exames regulares de monitoramento e programas de reabilitação.

  • Das fontes de financiamento

A implementação efetiva da Lei 14.758/2023 depende de um financiamento robusto e sustentável. A regulamentação das fontes de financiamento é crucial para garantir que os recursos necessários estejam disponíveis e sejam utilizados de forma eficiente e equitativa. A falta de clareza e transparência sobre as fontes de financiamento pode levar a desigualdades na distribuição de recursos, comprometendo a efetividade das políticas de prevenção e controle do câncer.

A regulamentação deve definir claramente as fontes de financiamento, que podem incluir orçamento federal, estadual e municipal, além de parcerias com a iniciativa privada e organizações não-governamentais. Isso assegura que todas as partes interessadas estejam cientes de suas responsabilidades e compromissos financeiros.

A regulamentação deve ainda estabelecer critérios claros e justos para a distribuição dos recursos financeiros. Isso pode incluir a avaliação das necessidades locais, considerando fatores como a incidência de câncer, a infraestrutura de saúde existente, a disponibilidade de profissionais qualificados e a capacidade de implementação das políticas.

Por exemplo, municípios com alta incidência de câncer e infraestrutura limitada devem receber mais recursos para desenvolver suas capacidades. Em contraste, grandes centros urbanos com recursos adequados podem focar em programas de inovação e aprimoramento da qualidade dos cuidados.

Importante destacar também a necessidade de a regulamentação incluir mecanismos de monitoramento e transparência para garantir que os recursos sejam utilizados de maneira eficaz e ética. Isso pode envolver auditorias regulares, relatórios públicos sobre a alocação e uso dos recursos, e a participação da sociedade civil no monitoramento das políticas de financiamento.

Uma via interessante seria estimular parcerias com o setor privado para complementar o financiamento público, trazendo investimentos adicionais e inovações tecnológicas para o sistema de saúde. Empresas farmacêuticas, por exemplo, podem colaborar em programas de acesso expandido a medicamentos oncológicos, enquanto organizações não-governamentais podem oferecer apoio logístico e educacional.

  • Dos protocolos clínicos

A uniformização dos tratamentos oncológicos é crucial para garantir a qualidade do atendimento. A regulamentação deve definir protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas baseadas em evidências científicas e estabelecer a obrigatoriedade da adoção desses protocolos por todas as unidades de saúde, públicas e privadas.

Além de garantir a qualidade, a adoção de protocolos clínicos facilita o atendimento de pacientes que, eventualmente, precisem se deslocar para municípios diferentes daqueles nos quais iniciaram seu tratamento.

Vale lembrar também que, para garantir a qualidade do atendimento, é fundamental investir na formação continuada dos profissionais de saúde. A regulamentação deve estabelecer programas de capacitação em oncologia para médicos, enfermeiros e demais profissionais envolvidos no cuidado dos pacientes, além de promover parcerias com universidades e instituições de ensino para o desenvolvimento de cursos e treinamentos especializados.

É preciso ainda buscar a estruturação de uma rede de assistência oncológica integrada e eficiente, abrangendo a definição de centros de referência em oncologia, garantindo acesso a tratamentos especializados, e a criação de mecanismos de regulação e encaminhamento de pacientes, evitando longas filas de espera e deslocamentos desnecessários.

  • Da necessária adaptação da política à diversidade regional e local

A diversidade regional do Brasil exige que a regulamentação da Lei 14.758/2023 seja flexível o suficiente para se adaptar às diferentes realidades locais. Municípios e estados possuem diferentes níveis de infraestrutura e disponibilidade de profissionais de saúde. A regulamentação deve permitir que cada local adapte as normativas conforme suas capacidades, garantindo a implementação eficiente da política em todo o território nacional.

Estimular parcerias entre governos locais, instituições de ensino, organizações não-governamentais e a iniciativa privada pode acelerar a implementação das políticas e melhorar a qualidade do atendimento. Incentivar o uso de tecnologias, como telemedicina e sistemas de informação em saúde, é fundamental para superar barreiras geográficas e otimizar o atendimento aos pacientes oncológicos.

A diversidade do sistema de saúde brasileiro torna imperativo que a regulamentação seja adaptável às necessidades e capacidades locais. Por exemplo, em grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, a infraestrutura de saúde é mais desenvolvida, com a presença de diversos hospitais especializados em oncologia, tecnologias avançadas e uma quantidade significativa de profissionais qualificados. Nesse contexto, a implementação dos programas previstos pela lei pode ser mais rápida e abrangente.

Por outro lado, em municípios menores e regiões mais remotas, como no interior do Amazonas ou no sertão nordestino, a realidade é bem diferente. A escassez de profissionais de saúde especializados, equipamentos médicos adequados e infraestrutura hospitalar torna a implementação da política de prevenção e controle do câncer um desafio muito maior. Nesses locais, a regulamentação deve permitir adaptações, como a utilização de telemedicina para consultas e acompanhamento de pacientes, parcerias com hospitais regionais para o encaminhamento de casos mais complexos e programas de capacitação específicos para profissionais de saúde locais.

Nos casos concretos em que existem dificuldades logísticas e de infraestrutura para oferecer tratamento oncológico adequado, a regulamentação flexível permitiria a criação de um sistema de navegação que integrasse a telemedicina para consultas iniciais e de acompanhamento, além de prever a realização de mutirões de saúde periódicos com equipes médicas especializadas que se deslocariam até a região para atendimento presencial e capacitação dos profissionais locais.

Outro aspecto crítico que necessita de regulamentação é a questão da oferta desigual de medicamentos oncológicos entre os diversos estados e municípios brasileiros pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo os medicamentos que já foram incorporados há anos ao sistema público não estão disponíveis de maneira uniforme em todo o país. Essa desigualdade no fornecimento compromete significativamente o tratamento de pacientes oncológicos, criando uma disparidade no acesso a terapias essenciais.

Por exemplo, medicamentos como o trastuzumabe, usado no tratamento do câncer de mama HER2 positivo, e o imatinibe, utilizado para tratar leucemias e tumores gastrointestinais, são amplamente reconhecidos e incorporados ao SUS. Contudo, pacientes em estados do Norte e Nordeste frequentemente enfrentam dificuldades para acessar esses medicamentos, diferentemente de pacientes em estados do Sudeste e Sul, onde a disponibilidade é mais regular.

A regulamentação precisa estabelecer mecanismos para garantir a distribuição equitativa de medicamentos oncológicos em todas as regiões do país. Isso pode incluir a criação de um sistema centralizado de gestão de estoques e distribuição, que leve em consideração as necessidades específicas de cada localidade, e a implementação de políticas que assegurem o reabastecimento constante dos medicamentos essenciais, evitando interrupções no tratamento. Experiências internacionais bem-sucedidas podem servir de referência e permitir a economia de tempo e de recursos na implementação das medidas necessárias.

Conclusão

A regulamentação da Lei 14.758/2023 é urgente para garantir a efetividade da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer e do Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Câncer. A definição clara das diretrizes de implementação, financiamento, protocolos clínicos, capacitação de profissionais e garantia de distribuição equitativa de medicamentos é essencial para que os pacientes oncológicos recebam o atendimento adequado e oportuno.

Além disso, a flexibilidade na regulamentação permitirá a adaptação das políticas às diferentes realidades locais, promovendo equidade no acesso aos serviços de saúde em todo o Brasil. É imperativo que o Ministério da Saúde agilize esse processo para garantir a plena implementação da lei e a melhoria da qualidade de vida dos pacientes oncológicos no País.


[1] Os navegadores de saúde, que podem ser profissionais da área médica, enfermeiros ou assistentes sociais, são designados para cada paciente para oferecer suporte contínuo. Eles ajudam a coordenar consultas, exames, tratamentos e outras necessidades do paciente ao longo do percurso de cuidado.


Andrey Vilas Boas de Freitas. Economista, advogado, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) desde 1996


Por que os juros altos são uma desgraça?

Marco Aurélio Bittencourt

Antes de tudo, é necessário definir o que são juros altos e como os juros nominais são estimados pelos agentes econômicos. Apelo para a equação de Fisher: taxa de juros nominal = taxa de juros real + inflação esperada,  . Você pode olhar essa equação da seguinte forma: você tem 100 reais hoje e sabe que pode comprar 10 pães. Aí você empresta esses 10 pães, ou se estiver no mundo nominal, a uma taxa de juros nominal, , por 5% ao período (qualquer período, mas temos que escolher um para que taxa e período sejam compatíveis. Escolho ano). Espero ganhar ½ pão ou 5 reais de juros mais o capital que investi. O que pode atrapalhar minha conta? A inflação esperada,  . Eu tenho que chutar uma . Chuto zero, porque a coisa no Brasil está preta, ou seja, não espero crescimento e assim todo mundo tem problema, inclusive os empresários que não se arriscam a aumentar o preço (o engraçado é que estamos vendo as embalagens dos produtos encolherem ou pesarem menos. Gosto do Chicabom. Hoje pago o mesmo preço, mas o picolé é a metade). Então a minha taxa de juros nominais,  coincide com a taxa de juros de real, . O que isso significa? Que posso voltar ao mercado e comprar meus dez pães e mais meio pão; o que era o que esperava. Foi o quanto quis ganhar por emprestar meus 100 reais.

Mas onde está o problema? Está na expectativa da inflação. Se o preço do pão mudar (para cima, inflação e para baixo, deflação) posso perder. Suponha que a inflação seja de 6%. Como ganhei 5 reais, tenho em caixa 105 reais. Mas vou agora comprar o pão por (1+0,06) *10= 10,6. Quantos pães agora posso comprar? Posso comprar 9,90 pães (105/10,6). O que aconteceu? Eu errei na previsão da inflação. Eu chutei que era zero, mas foi de 6%. Fiquei mais pobre, porque agora, além de retardar meu consumo, tenho uma quantidade de pães menor do que tinha antes de emprestar minha grana. Em termos de fórmulas: a minha taxa de juros nominal tem que corresponder a uma taxa de juros real mais uma expectativa de inflação. Se eu tivesse acertado, teria cobrado acertadamente  Teria um ganho bruto de (1+0,11) *100=111 e assim poderia comprar 111/10,6 = 10,47 pães. (não dá exatamente 5 pães a mais, por conta de aproximações que fiz com a fórmula).

Quais as implicações da nossa brincadeira. Primeiro, a taxa de juros real eu chutei. Vale lembrar que é uma variável não observável, mas pode ser inferida com pouca precisão, é certo. Por que pode ser aferida? Por conta da arbitragem planetária. Se alguém ganha acima do que os demais estão ganhando, há uma corrida em direção ao mercado lucrativo, fazendo com que a arbitragem produza seu efeito: os ganhos seriam iguais e assim uma taxa de juros real ficaria de fato inabalada. A razão da corrida? Chame do que você quiser. De inveja, de cobiça, seja lá o que você quiser chamar, mas a razão econômica é simples: se deixar passar a oportunidade, sou engolido pelo sistema capitalista. Então se alguém ganha acima dos demais, a turma vai ao mercado ganhador e investe aos montes até que a rentabilidade extra desapareça e a taxa de juros reais prevaleça em todos os negócios. Essa taxa de juros real pode ser mascarada por outra razão. A nossa segunda observação. Se há incerteza na economia, a taxa de juros real pode ser encoberta por esse fenômeno, de tal forma que tenho que calibrar mais minha taxa de juros nominal, supondo que as expectativas inflacionarias sejam conhecidas e dadas. Então se soma a incerteza à inflação esperada.

No caso do Brasil, nossas taxas de juros nominais são altas por conta da expectativa inflacionaria que é ajustada pelo Banco Central pelo cenário econômico no visor de sua tela prospectiva. Então, calibra-se a taxa de juros básica, na crença de que se ajustando essa taxa, as demais caminhariam em linha, com a esperança de que o deslocamento de todo o feixe de juros seja coerente com a taxa básica. Como provavelmente a calibração não está correta, a taxa de juros real da fórmula de Fisher é estimada de forma exagerada. O que faz a turma de empresários que precisam investir no seu próprio negócio? Vão comparar o que ganham investindo no seu negócio (a taxa de juros real que eles conhecem que está abaixo da que o Banco Central faz a turma crer que seja a verdadeira) com o ganho investindo no mercado financeiro. Se seu negócio é menos atrativo do que o financeiro, retardam o investimento no seu negócio. Como podem fazer isso? Usando as máquinas e os seus equipamentos por um tempo maior do que outra forma o fariam. Mas certamente seus custos vão aumentar e perderão competitividade. Como resolvem o problema? Alguém tem que ajudar essa turma tupiniquim, para não serem engolidos pela arbitragem planetária. Se ficam por muito tempo no mercado financeiro, de duas uma: ou os juros sobem mais ainda para compensar seus custos elevados ou alguma proteção explicita do governo está a postos (Estado, se a proteção é duradoura, ou seja, a proteção estaria incorporada ao modelo). A redução de custos vai ocorrer de forma exógena ao negócio – por redução salarial, modificação no câmbio, incentivo fiscal, etc. A consequência disso pode ser uma armadilha da qual não conseguimos nos libertar. Esse padrão é autofágico e em algum momento ele terá que ser corrigido e, pelo rastro histórico, continuará tudo como dantes, mas piorando para a turma do andar debaixo cada vez mais. Contudo, fácil ver a saída econômica. Só que o problema é político! Está tudo bem para os de sempre, não importa quem pague a conta.


Marco Aurélio Bittencourt. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


STF reconhece constitucionalidade da atual redação do art. 289 da Lei das S/A

Dispositivo consagra sistema híbrido de publicação: resumo em jornal físico e íntegra na internet

André Santa Cruz

Amanda Mesquita Souto

Bruno Camargo Silva

A Lei 13.818/2019 alterou a redação do art. 289 da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações – LSA), que trata das publicações das sociedades anônimas. Desde 1º de janeiro de 2022, data da entrada em vigor dessa lei, houve (i) a exclusão da publicação em Diários Oficiais e (ii) a simplificação da publicação em jornais de grande circulação (resumo na versão física e íntegra na versão eletrônica).

Essa mudança teve o objetivo de desburocratizar as publicações das sociedades anônimas, reduzindo o seu custo, mas nunca foi intenção do legislador suprimir a necessidade de publicação em jornal físico: a ideia foi simplificar tal publicação, que passou a ser resumida, mas acompanhada de outra publicação integral, esta em versão eletrônica.

Sempre defendemos que a Lei 13.818/2019 não eliminou a necessidade de publicações em jornais impressos. O que a lei criou foi um mecanismo de simplificação, redução de custos e aumento da transparência, por meio da combinação de uma publicação em meio impresso (versão resumida) com uma publicação em meio eletrônico (versão integral). Assim se garantiu, de um lado, a almejada redução de custos para as companhias e, de outro lado, a imprescindível difusão da informação para todos os interessados.

Essa interpretação foi a mesma exarada pela Presidência da República e pela Procuradoria Geral da República nos autos da ADIn 7.011, que questionava a constitucionalidade da Lei 13.818/2019.  Em que pese essa ação não ter sido julgada no mérito, visto que a Ministra relatora, Cármen Lúcia, negou seguimento à ação em razão da ilegitimidade ativa da parte autora, verificamos que não houve dúvidas, nas manifestações desses entes, sobre a publicação resumida determinada pela nova redação do art. 289 da LSA ter que ser realizada em jornal impresso.

O Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), no Manual de Registro de Sociedade Anônima (Anexo V da IN 81/2020), também consagrou essa interpretação, sempre deixando claro que, quando a LSA menciona “jornal de grande circulação”, está se referindo a um veículo impresso.

Outro argumento que reforça essa interpretação é o seguinte: quando o legislador quis realmente eliminar a necessidade de publicações de sociedades anônimas em meio físico (jornal impresso), ele o fez de maneira muito clara e direta, mas com um recorte bem específico. Referimo-nos à Lei Complementar 182/2021, conhecida como o Marco Legal das Startups, que alterou o art. 294 da LSA, possibilitando que a companhia fechada com receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões de reais) realize as publicações legais totalmente de forma eletrônica.

Por fim, no dia 4 de julho de 2024, foi publicado o acórdão do STF no julgamento da ADIn 7.194, que julgou improcedente a referida ação para declarar a constitucionalidade do art. 1º da Lei 13.818/2019, que deu a atual redação ao art. 289 da LSA.

No referido julgamento, o STF não apenas reconheceu a constitucionalidade da regra que dispensou as sociedades anônimas de publicarem atos societários e demonstrações financeiras em Diários Oficiais, mas também deixou claro que a correta interpretação da atual redação do art. 289 da LSA é a seguinte: publicação resumida em jornal de grande circulação na sua versão FÍSICA e publicação integral no portal eletrônico do mesmo jornal. A propósito, confira-se o item 2 da ementa do acórdão:

2. No intuito de se disponibilizarem as informações pertinentes às pessoas e entidades interessadas, embora dispensada a publicação em diário oficial, a norma manteve a obrigatoriedade de divulgação dos atos das sociedades anônimas em jornais de ampla circulação, tanto no formato FÍSICO, de forma resumida, quanto no formato eletrônico, na íntegra.

De acordo com o Ministro relator, Dias Toffoli, “a divulgação da íntegra dos atos societários na página da internet de jornais de grande circulação é medida que logra atingir grande número de pessoas interessadas e que se mostra acessível para o fim que se propõe. Ademais, a norma mantém a obrigatoriedade de divulgação dos atos societários na MÍDIA IMPRESSA, o que contempla a parcela da população que não costuma ou não consegue fazer uso de meios eletrônicos de acesso à informação”.

Vale ressaltar que o referido julgamento do STF se deu em sede de controle abstrato de constitucionalidade, que tem efeito vinculante e erga omnes.

Portanto, sem qualquer espaço para dúvidas, de acordo com a atual redação do art. 289 da LSA, simplificou-se a regra geral de publicidade legal das companhias brasileiras, adotando-se um sistema híbrido de publicação: resumo em jornal de grande circulação FÍSICO e, simultaneamente, íntegra no sítio eletrônico desse mesmo jornal na internet.


André Santa Cruz é advogado, sócio-fundador do escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia, doutor em Direito Comercial pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial do IESB-DF e ex-diretor do DREI.

Amanda Mesquita Souto é advogada associada no escritório Agi, Santa Cruz & Lopes Advocacia, pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV e ex-diretora do DREI.

Bruno Camargo Silva é advogado, sócio da Camargo Silva Consultoria. Professor de Direito Empresarial e Processual. Jornalista. Mestrando em Direito pela Universidad Europea Del Atlántico (Espanha). Especialista em Direito Processual pela PUC-MINAS.