Artigos de opinião

O mercado de distribuição de produtos de investimento no Brasil segundo a Superintendência Geral do CADE e a nova oportunidade de análise do setor pelo Tribunal após 6 anos do AC Itaú/XP

Polyanna Vilanova e Henrique Muniz

O mercado de distribuição de produtos de investimento no Brasil vem sofrendo constantes alterações nos últimos anos e, como se sabe, a análise de definição de mercado relevante do Conselho Administrativo de Defesa da Econômica (CADE) precisa estar sempre em linha com as mudanças do mercado, não sendo plausível que, alterando-se a dinâmica competitiva, o entendimento do órgão antitruste não acompanhe as consequências dessa transformação.

Nesse sentido, é necessário avaliar a evolução histórica desse setor com o surgimento das plataformas abertas como a XP Investimentos S.A. (“XP”) e com a tendência de crescente desintermediação bancária de varejo na distribuição de produtos financeiros, bem como os fundamentos da definição de mercado relevante adotada pelo Tribunal Administrativo do CADE na operação entre Itaú e XP em 2018, caso paradigmático na jurisprudência da autarquia.

Muito embora o entendimento firmado pelo Tribunal do CADE seja referenciado em todas as operações analisadas pelo CADE após o AC Itaú/XP, a partir da análise das principais decisões sobre o mercado, verifica-se a ausência de discussão mais profunda sobre a definição do mercado relevante, assim como diversos questionamentos em aberto, tais como, sobre as mudanças no “grau de abertura” atual de bancos e corretoras e a necessidade de segmentação do mercado entre plataformas abertas e fechadas.

Agora, passados mais de 6 anos do último julgamento sobre esse mercado, o Tribunal poderá, mediante possível (e necessária) avocação de inquérito administrativo, avaliar a atual dinâmica competitiva do mercado e dar respostas aos diversos questionamentos concorrenciais que pairam sobre o setor, conforme será demonstrado a seguir. 

A evolução histórica do mercado financeiro/de investimentos no Brasil

Historicamente, a estrutura do mercado financeiro brasileiro era composta por poucos bancos comerciais que ofertavam produtos desenvolvidos internamente, atuando por meio de um modelo verticalizado e cativo. Contudo, ocorreram mudanças estruturais nesse mercado, principalmente na última década, que alteraram a dinâmica competitiva do mercado e o entendimento do CADE na definição dos mercados relevantes do setor financeiro/de investimentos.

Inicialmente, até o julgamento do Ato de Concentração (AC) nº 08700.010790/2015-41 (Bradesco/HSBC), o CADE definia os mercados relevantes de produtos e serviços financeiros de maneira integrada, com exceção de alguns poucos serviços, como seguros.

A título ilustrativo, no mercado de produtos de investimento, como CDB (Certificados de Depósito Bancário), fundos de investimentos e previdência privada, o CADE considerava que a “produção” e a comercialização de tais produtos compunham um só mercado. Isso porque os ofertantes desses produtos – instituições financeiras do sistema bancário – atuavam de forma integrada. Em outras palavras, essas instituições emitiam seus títulos (CDB, LCA, LCI, por exemplo), geriam seus próprios fundos de investimentos e planos de previdência e os comercializavam exclusivamente em suas respectivas redes de atendimento. Dessa forma, a oferta desses produtos era completamente integrada e cativa de cada instituição.

Essa foi a estrutura vigente no mercado financeiro brasileiro há décadas, com instituições de “arquitetura fechada”, que ofertavam apenas produtos desenvolvidos internamente.

Contudo, o surgimento de “plataformas abertas” de investimento, que distribuem uma gama diversificada de produtos financeiros de terceiros, alteraram a dinâmica da estrutura da oferta de serviços e produtos financeiros no Brasil (assim como ocorreu e ocorre em todo o mundo). Diante desse contexto, definições de mercado relevante usualmente adotadas em análises envolvendo o setor foram revisitadas pelo órgão antitruste.

No Ato de Concentração nº 08700.001642/2017-05 (Itaú/Citibank), foram indicados elementos que já apontavam as mudanças no setor. Nesse caso, o CADE decidiu pela separação dos mercados de gestão/administração de recursos de terceiros do mercado de distribuição de produtos de investimentos, bem como dos mercados de previdência privada e de distribuição de previdência privada.

Além disso, reconheceu que a distribuição de produtos de investimento poderia ser feita por meio de “i. plataformas fechadas, nas quais o distribuidor comercializa apenas cotas de fundos administrados por seu grupo econômico; ou ii. plataformas abertas, nas quais o distribuidor também comercializa cotas de fundos administrados por terceiros[1]”.

Já no âmbito da análise do Ato de Concentração nº 08700.004431/2017-16 (Itaú/XP), o Tribunal Administrativo do CADE (“Tribunal do CADE” ou “Tribunal”), em decisão paradigmática que é tomada como parâmetro em todas as análises do CADE nesse mercado, se aprofundou na definição desse mercado relevante e distinguiu com mais clareza as plataformas abertas das plataformas fechadas[2]. Segundo essa classificação, plataformas fechadas seriam aquelas nas quais apenas produtos de investimentos/financeiros administrados pelo grupo econômico do próprio distribuidor seriam comercializados; por outro lado, plataformas abertas comercializariam produtos de investimentos/financeiros administrados tanto pelo grupo econômico do distribuidor, quanto por terceiros.

Nesse sentido, as plataformas abertas permitem a interação entre diversos ofertantes de produtos financeiros (bancos de pequeno e médio porte, gestores independentes, empresas emissoras de títulos privados etc.) e os consumidores/investidores, que procuram produtos financeiros como opção de investimento. Esse modelo é essencialmente distinto da maneira tradicional de atuação do sistema bancário, marcado pela “arquitetura fechada” dos bancos tradicionais, de forma verticalizada e produtos cativos.

Segundo o voto do conselheiro Relator Paulo Burnier[3], esse novo modelo de distribuição de produtos e serviços financeiros tem efeitos pró-competitivos, uma vez que: (i) possibilita a competição entre diversos ofertantes em uma mesma plataforma (concorrência na plataforma); (ii) promove a concorrência entre as plataformas que estão surgindo e os bancos tradicionais; e (iii) reduz barreiras à entrada para novos ofertantes de produtos de investimento, que não precisam estruturar amplas e custosas redes de atendimento a clientes. Há ganhos, portanto, tanto do lado dos ofertantes, que conseguem reduzir os custos de distribuição de seus produtos, quanto do lado dos investidores, com um incremento significativo da competição no mercado.

Essa mudança no modelo tradicional deu-se, em parte, pelo surgimento da XP, reconhecida como pioneira (first mover) desse novo mercado, ao lançar a primeira e, ainda hoje, a principal plataforma aberta de distribuição de produtos financeiros no Brasil.

Esse movimento de migração dos investidores de varejo dos bancos tradicionais para plataformas abertas passou a ser denominado de “desbancarização”, contudo o mercado de plataformas abertas de distribuição de produtos de investimento é ainda incipiente, mas com significativo potencial no Brasil, tendo em vista a crescente desintermediação bancária de varejo na distribuição de produtos financeiros nos últimos anos.

Segundo estudo da Oliver Wyman publicado em 2019, “The Brazilian investment landscape: a new era for Brazilian investors[4], os bancos concentravam, ao final de 2016, cerca de 95% de todos os ativos de investimento do segmento de varejo no Brasil. Por outro lado, nos Estados Unidos, os canais independentes, como a plataforma aberta da XP, concentravam 87% dos investimentos, uma situação quase inversa. Entre 2016 e 2018, esse percentual, no mercado brasileiro, cresceu de 5% pata 7% e se espera que esse número continue a crescer nos próximos anos à medida que investidores continuam buscando consultoria independente, variedade de produtos e arquitetura aberta.

O estudo apontou que, embora alguns bancos brasileiros tenham aberto seu conjunto de produtos para fabricantes independentes, a oferta tem ficado historicamente aquém da demanda. Quando comparada aos mercados internacionais, a distribuição de investimentos no Brasil ainda é dominada por bancos, enquanto muitos dos mercados internacionais fizeram uma transição para outros canais de distribuição.

Tal dado nos leva a crer que o movimento do fluxo de investimentos saindo dos bancos de varejo para gestores independentes, como se observou e se tem observado em outros mercados pelo mundo, ainda gerará grandes transformações na dinâmica competitiva e uma tendência crescente de notificação de operações ou de investigações de condutas envolvendo o setor, ressaltando a importância da solidificação da jurisprudência do CADE nesse mercado a fim de garantir previsibilidade de segurança ao jurisdicionado.

As análises para definição do mercado relevante nos precedentes do CADE

Durante as discussões realizadas no âmbito do AC Itaú/XP, o foco da análise consistiu no novo modelo de prestação de serviços financeiros, em especial, na distribuição de produtos de investimento, por meio de plataformas abertas, capitaneado pela XP, em contraposição ao modelo tradicional de oferta de produtos e serviços pelos bancos tradicionais de arquitetura fechada.

Nesse sentido, o CADE enfrentou a discussão sobre incluir, ou não, bancos comerciais tradicionais no mercado relevante de distribuição de produtos de investimento. Sob o ponto de vista da demanda, concluiu-se que as empresas que operam no modelo de plataformas abertas exercem pressão competitiva sob os bancos comerciais, pela capacidade de ofertar produtos de diversos fornecedores para o consumidor final, antes limitado aos canais bancários tradicionais, acirrando a competição no mercado. Ou seja, bancos, corretoras e plataformas abertas ou fechadas, ofertam portfólio de produtos semelhantes para um mesmo público consumidor. [5]

Por outro lado, considerou-se que, sob o ponto de vista da oferta, a diferença entre bancos comerciais tradicionais e plataformas abertas é significativa: enquanto essas competem entre si pelos fornecedores dos produtos e serviços disponibilizados na plataforma, aquelas comercializam aquilo que é produzido internamente. Ou seja, para os gestores e emissores de produtos independentes, apenas as plataformas abertas constituem opção para a colocação e distribuição de seus produtos aos consumidores. Nesse sentido, os bancos comerciais competem com as plataformas abertas apenas pelos consumidores de um lado: a ponta demandante de serviços e produtos de investimentos, não competindo pela demanda dos ofertantes – emissores, gestores e demais agentes que desenvolvem produtos e serviços de investimentos. [6]

Nesse contexto, o Tribunal do CADE decidiu que, para a análise dos efeitos horizontais sob consumidores, bancos e plataformas abertas que atuam no mercado concorrem entre si. Contudo, para a análise de eventual poder de compra e efeitos verticais, deve-se considerar apenas as plataformas abertas, excluindo as empresas que atuam na oferta de produtos do próprio grupo econômico de maneira cativa.

Já no Ato de Concentração nº 08700.003000/2019-02 (Sulamerica/Órama), o Parecer SG nº 208/2019[7] reconheceu a distinção entre bancos tradicionais e plataformas abertas na definição de mercado relevante na dimensão produto estabelecida no caso Itaú/XP, contudo sugeriu que a definição fosse mantida em aberto nessas dimensões, visto que nos cenários abrangente ou restrito não se vislumbravam preocupações de ordem concorrencial em virtude das baixas participações de mercado das empresas. Dessa forma, a Superintendência-Geral do CADE (SG/CADE) definiu como mercado relevante na dimensão produto o mercado nacional de distribuição de produtos de investimento (sem segmentação).

O não aprofundamento da análise para segmentação se tornou prática recorrente em outras operações analisadas – sobretudo sob rito sumário e sem julgamento pelo Tribunal do CADE – pelo órgão de defesa da concorrência após esse entendimento firmado pela SG/CADE, seja pelos mesmos fundamentos levantados no AC Sulamerica/Órama, seja pela ausência de pacificação da questão da segmentação na jurisprudência do CADE com a consequente utilização dos cenários apresentados pelos requerentes a partir de dados sobre o mercado nacional de distribuição de produtos de investimento nas categorias de renda fixa, renda variável e operações híbridas de acordo com os rankings públicos disponibilizados pela Anbima.[8]

Entretanto, no Ato de Concentração nº 08700.001320/2022-15 (BTG/Elite Corretora), a SG/CADE chamou a atenção para as importantes modificações no mercado nos últimos anos após a operação Itaú/XP, que tratou, de forma inaugural, da segmentação entre plataformas abertas e fechadas e evidenciou o movimento de desbancarização presente no mercado. Na operação entre BTG e Elite, estabeleceu-se que a segmentação anteriormente utilizada no mercado relevante já não encontrava respaldo na nova realidade do setor trazida a partir dos chamados Agentes Autônomos de Investimento (AAIs), que criou pressão competitiva no modelo de private banking, modificando a segmentação anterior, que classificava o perfil das empresas ofertantes entre plataformas fechadas e abertas.

Em razão da mudança no modelo de negócio dos bancos e das plataformas abertas, a mera segregação já não seria capaz de descrever com exatidão o modus operandi atual de diversos participantes deste mercado, não havendo clareza sobre o “grau de abertura” das então plataformas fechadas de distribuição nem tampouco sobre a pressão competitiva que estas exercem com relação às plataformas abertas. Por esse motivo, a SG/CADE, reconhecendo a inexistência de jurisprudência pacificada no CADE a esse respeito, entendeu pela desnecessidade de aprofundar a análise para essa segmentação.[9]

Essa mudança estrutural do mercado ficou evidenciada na análise do Ato de Concentração nº 08700.001018/2022-67 (XP/Modal), em que as requerentes alegaram não ser necessária a segmentação do mercado, uma vez que distribuíam, sem distinção, produtos próprios e de terceiros, bem como sustentando que as empresas que atuam no modelo aberto não só competiriam entre si, como também estariam essencialmente competindo com players das plataformas fechadas. As requerentes exemplificaram, ainda, o caso de agentes tradicionalmente caracterizados como de arquitetura fechada (bancos), que passaram a comercializar uma série de produtos financeiros de terceiros.

Em contrapartida, a Acqua Vero Agente Autônomo de Investimentos Ltda. (“Acqua Vero”) juntou pedido de habilitação como terceira interessada, alegando, dentre outros, a necessidade de segmentação no mercado relevante de distribuição de produtos de investimentos entre arquitetura aberta e fechada, uma vez que “as plataformas fechadas não competiriam com as abertas no segundo lado (ofertantes que desenvolvem produtos/serviços de investimentos), pois, para os gestores e emissores de produtos independentes, apenas as abertas constituem opção para a colocação e distribuição de seus produtos aos consumidores[10]”. Alegaram, ainda, que haveria interesse das requerentes em diluir a concentração resultante da operação, adicionando-se as plataformas fechadas no denominador do cálculo e impedindo sequer a visualização de cenários, já que as requerentes teriam se negado a apresentar dados segmentados durante a instrução. Além disso, o poder de mercado da XP poderia ser decorrente da sua ampla rede de AAIs, o que geraria o potencial de impedir acesso a seus concorrentes ao canal de distribuição.

Contudo, a SG/CADE considerou o mercado como um todo sem segmentação para fins de análise de sobreposição horizontal (sob a ótica da demanda dos clientes/investidores). Para fins de integração vertical entre gestores de fundos de investimento e distribuidores de produtos de investimento (sob a ótica da oferta de produtos de investimento para os clientes/investidores), após teste de mercado para análise das atuais diferenças entre plataformas abertas e fechadas, foi mantida a segmentação do mercado em plataformas abertas e fechadas, seguindo o entendimento firmado no AC Itaú/XP, uma vez que os resultados do teste de mercado não forneceram conclusões robustas o suficiente para alterar o entendimento firmado anteriormente.[11]

No caso do Inquérito Administrativo nº 08700.006476/2022-92 (“IA XP”), instaurado em face da XP para investigar suposta prática de infrações à ordem econômica (condutas unilaterais) que potencialmente dificultaria o ingresso ou o desenvolvimento de empresas concorrentes no mercado de distribuição de produtos de investimentos, foi retomado o entendimento firmado no AC BTG/Elite Corretora no que se refere à definição do mercado relevante.

A SG/CADE reafirmou a evolução do mercado no sentido de um maior grau de abertura das instituições até então classificadas como fechadas, havendo uma aproximação entre modelos de negócios de bancos e corretoras: as instituições antes classificadas como plataformas fechadas passaram a disponibilizar, também, produtos de terceiros a seus clientes investidores; e as instituições antes classificadas como plataformas abertas passaram a disponibilizar, também, produtos próprios a seus clientes investidores. Foram destacados elementos comuns às distribuidoras de produtos de investimento, incluindo aquelas que, há pouco tempo, eram classificadas como de arquitetura fechada, tais como: a diversificação de produtos financeiros oferecidos, a redução de tarifas, o incremento da jornada digital e a oferta de consultoria para explicação individualizada sobre investimentos.[12]

Com isso, a SG/CADE entendeu que não seria necessário o aprofundamento na análise e na delimitação do mercado relevante para o deslinde da investigação. Isso porque, mesmo que se admitisse por hipótese que XP e instituições bancárias ora caracterizadas como “fechadas” não estariam num mesmo mercado relevante, não se poderia descartar a importância das mudanças do modelo de negócio das últimas nos anos recentes, tampouco a pressão competitiva que exerceriam sobre a XP, inclusive com capacidade de mitigar eventuais abusos de uma suposta posição dominante desta. Além disso, uma definição absolutamente precisa do mercado relevante e o consequente cálculo da participação de mercado da Representada seria dispensável para a formação do juízo de valor no caso concreto.

Em face do despacho de arquivamento, as empresas habilitadas como terceiras interessadas, Acqua Vero e EQI – Agentes Autônomos de Investimentos S/S (“EQI”), apresentaram recursos administrativos. No que se refere à questão da segmentação do mercado, ressalte-se o recurso da EQI[13], em que se frisou a necessidade de se delimitar especificamente o mercado relevante para a aferição da existência de posição dominante da XP e a consequente avaliação da potencialidade de fechamento de mercado das práticas investigadas, visto que a SG/CADE teria se baseado na premissa, adotada no AC XP/Modal, de que a evolução do mercado com a aproximação entre os modelos de negócio de bancos e corretoras acarretou o aumento da pressão competitiva entre esses agentes do mercado de distribuição de produtos de investimentos. Alegou, ainda, que, na própria operação que serviu de precedente para a SG/CADE, a premissa não foi confirmada com segurança em virtude da escassa instrução realizada com apenas um teste de mercado, diferentemente da operação Itaú/XP em que o Tribunal do CADE se manifestou no sentido de a diferença entre plataformas fechadas e aberta é decisiva.

A oportunidade de análise do mercado pelo Tribunal e a possível pacificação da jurisprudência sobre a definição do mercado relevante

Atualmente, o recurso encontra-se pendente de análise pelo Superintendente-Geral do CADE[14] e poderá ser objeto de avocação pelo Tribunal caso seja determinado o arquivamento do inquérito administrativo[15].

Ressalte-se que a última análise realizada pelo Tribunal acerca do mercado de distribuição de produtos de investimentos se deu em 2018, no julgamento do AC Itaú/XP. De lá para cá, (i) o mercado cresceu, como se vê, por exemplo, com o aumento do número de AAIs, do número de investidores e dos valores em produtos de investimento distribuídos; (ii) o modelo de negócio dos agentes do mercado e a dinâmica competitiva foram alteradas, o que se verifica, por exemplo, a partir das diversas operações notificadas ao CADE entre bancos e corretoras.

Diante disso, alguns questionamentos surgem a partir da leitura das decisões da SG/CADE e das manifestações dos agentes de mercado do setor nos casos acima relatados: a mera segregação entre plataformas abertas e fechadas ainda é capaz de descrever com exatidão o modus operandi atual de diversos participantes do mercado? Existe(m) outra(s) proxy(s) mais adequada(s) para o cálculo do martketshare dos agentes desse mercado, excluindo-se os rankings públicos da Anbima utilizados nos precedentes do CADE? A premissa de que a aproximação entre os modelos de negócio de bancos e corretoras acarretou o aumento da pressão competitiva entre esses agentes foi suficientemente confirmada pelo CADE?

Com uma possível avocação no caso IA XP, o Tribunal do CADE poderá analisar novamente o mercado de distribuição de produtos de investimento após 6 anos do julgamento da operação Itaú/XP, só que agora no contexto do controle de condutas. No caso em concreto, o Tribunal poderá avaliar, dentre outros, se a instrução realizada pela SG/CADE foi suficiente para aferir o suposto aumento da pressão competitiva entre os agentes do mercado de distribuição de produtos de investimentos com a alegada aproximação dos modelos de negócios de bancos e corretoras nos últimos anos após a operação Itaú/XP. Por outro lado, o Tribunal poderá oferecer as respostas dos questionamentos exemplificados acima, como também pacificar o entendimento do CADE sobre a definição de mercado relevante – de acordo com a atual dinâmica competitiva do mercado – a fim de dar previsibilidade às decisões da autarquia nesse mercado e segurança ao jurisdicionado.


[1] Vide Parecer SG/CADE nº 16/2017 (SEI 0361338) no Ato de Concentração nº 08700.001642/2017-05 (Itaú/Citibank).

[2] Além disso, o mercado de distribuição de produtos de investimento ficou restrito ao público-alvo de varejo, no qual se incluem tanto pessoas físicas quanto private banking, distinguindo-se do segmento de serviços e produtos voltados a clientes institucionais, formado por outras instituições financeiras, seguradoras, gestores de recursos e fundo de pensão, que costumam utilizar canais próprios não disponíveis ao segmento de varejo.

[3] Vide Voto do Conselheiro Relator Paulo Burnier (SEI 0454445) no julgamento do Ato de Concentração nº 08700.004431/2017-16 (Itaú/XP).

[4] Disponível em: https://www.oliverwyman.com/our-expertise/insights/2019/dec/the-brazilian-investment-landscape-a-new-era-for-brazilian-investors.html. Acesso em abr. 2024.

[5] Vide § 62 do voto do conselheiro Relator Paulo Burnier (SEI 0454445) no julgamento do Ato de Concentração nº 08700.004431/2017-16 (Itaú/XP).

[6] Vide § 64 do Voto do Conselheiro Relator Paulo Burnier (SEI 0454445) no julgamento do Ato de Concentração nº 08700.004431/2017-16 (Itaú/XP).

[7] SEI 0633587.

[8] Nesse mesmo sentido, tem-se os seguintes Atos de Concentração: AC nº 08700.001492/2024-51 (Safra/Guide); AC nº 08700.000639/2024-95 (Banco Master/Grupo Voiter); AC nº 08700.007301/2023-83 (BTG/Órama); AC nº 08700.002835/2023-13 (UBS Group/Credit Suisse); AC nº 08700.001998/2023-89 (XP/Grupo SVN); AC nº 08700.001372/2023-72 (BTG/Prisma); AC nº 08700.010053/2022-77 (Safra/Alfa); AC nº 08700.007209/2022-32 (Kartra/BV DTVM); AC nº 08700.002691/2022-14 (BTG/Absolute); AC nº 08700.002189/2022-11 (Galapagos/BS2 DTVM); AC nº 08700.001813/2022-55 (XP/Habitat); AC nº 08700.000371/2022-20 (BTG/Planner); AC nº 08700.007288/2021-09 (XP/Bluetrade); AC nº 08700.006035/2021-18 (XP/Faros); AC nº 08700.004365/2021-61 (XP/Singulare); AC nº 08700.004051/2021-68 (BRB/Genial); AC nº 08700.003781/2021-41 (Jive/XP); AC nº 08700.003458/2021-78 (BTG/Empiricus); AC nº 08700.002631/2021-11 (Safra/CA Indosuez); AC nº 08700.005876/2020-19 (BTG/Necton); AC nº 08700.004098/2019-15 (BTG/Ourinvest).

[9] Vide Parecer SG nº 113/2022 (SEI 1038449) no Ato de Concentração nº 08700.001320/2022-15 (BTG/Elite Corretora).

[10] SEI 1050410.

[11] Vide Parecer SG nº 14/2022 (SEI 1085907) no Ato de Concentração nº 08700.001018/2022-67 (XP/Modal).

[12] Vide Nota Técnica de Arquivamento nº 3/2024 (SEI 1362291) no Inquérito Administrativo nº 08700.006476/2022-92.

[13] Vide Recurso Administrativo da EQI (SEI 1366858).

[14] Conforme art. 144 do Regimento Interno do CADE: “Do despacho que ordenar o arquivamento do inquérito administrativo caberá recurso de qualquer interessado, no prazo de 5 (cinco) dias úteis a contar da ciência da decisão, ao Superintendente-Geral, que decidirá em última instância.”

[15] Conforme art. 144 do Regimento Interno do CADE: “No prazo de 15 (quinze) dias, após decisão final da Superintendência-Geral pelo arquivamento do procedimento preparatório ou do inquérito administrativo, o

Tribunal poderá, mediante provocação de um Conselheiro e em decisão fundamentada, avocar o inquérito administrativo ou procedimento preparatório de inquérito administrativo arquivado pela Superintendência-Geral.


  • Polyanna Vilanova é ex-conselheira do CADE e sócia no Vilanova Advocacia.
  • Henrique Muniz é advogado no escritório Vilanova Advocacia.

A revisão do TCC entre o Cade e o Petrobras e a concorrência no mercado de combustíveis

Rutelly Marques da Silva e Márcio de Oliveira Junior

Em junho de 2019, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Petrobras firmaram um Termo de Compromisso de Cessão de Prática (TCC)[1] com o objetivo de “propiciar condições concorrenciais, incentivando a entrada de novos agentes econômicos no mercado de refino” e suspender, desde que cumpridas as obrigações previstas no TCC, o Inquérito Administrativo que investigava condutas anticoncorrenciais da estatal no mercado de refino[2].

Em cumprimento ao TCC, a Petrobras vendeu três refinarias, entre elas Isaac Sabbá e Landulfo Alves (atualmente Refinarias do Amazonas e de Mataripe, respectivamente). Entretanto, em novembro de 2023, a Petrobras pediu ao Cade a renegociação do TCC[3] e posteriormente, em maio de 2024, propôs a readequação dos compromissos[4]. Desde 2023, quando a Petrobras pediu a renegociação do TCC, circulavam notícias na imprensa de que a estatal desejava revisar o TCC para deixar de vender refinarias e até mesmo recomprar as já vendidas. A Superintendência Geral do Cade, também em maio de 2024, recomendou ao Tribunal do Cade aceitar os novos termos[5], o que ocorreu com a homologação de despacho do Presidente do Cade em 22 de maio de 2024.

O movimento de revisão do TCC levantou questionamentos sobre possíveis retrocessos nas ações para fomentar a concorrência no setor de combustíveis. Entretanto, acreditamos que parte desses questionamentos pode ser respondida se observarmos que a concorrência no segmento de refino depende não somente da venda de refinarias, mas também da política de preços da Petrobras e da competição na exploração e produção de petróleo.

Vale observar que o TCC não determinou que a Petrobras vendesse todas as suas refinarias, nem estipulou obrigações para a estatal em relação à importação de petróleo e derivados ou à sua política de preços de combustíveis. Outro aspecto relevante é que, na época em que o TCC foi firmado e as refinarias começaram a ser vendidas, a política de preços de combustíveis da Petrobras seguia a paridade de importação. Ocorre que a estatal alterou essa política em 2023, o que, em associação com a concentração no segmento de exploração e produção de petróleo, impactou o TCC, tornando-o pouco efetivo para fomentar a concorrência no segmento de refino. Vejamos por que isso ocorreu.

As refinarias privadas não operam no segmento de exploração de petróleo, o que significa que devem adquirir petróleo para refino de petroleiras no mercado nacional ou internacional. No mercado nacional, a Petrobras ainda é a concessionária com maior participação na exploração (64,5% em 2023, pelo menos), seguida pela Shell (11,4% em 2023). Nesse cenário, a Petrobras tenderia a vender petróleo para as refinarias privadas com base no preço internacional, uma vez que as demais petroleiras não venderiam no mercado doméstico a um preço abaixo do internacional e eventual importação pelas refinarias privadas também ocorreria ao preço do mercado internacional.

O fato de as refinarias privadas comprarem petróleo com base nos preços internacionais leva à conclusão de que os combustíveis comercializados por elas também seguirão esses preços. Em outras palavras, os preços dos combustíveis das refinarias privadas obedecerão à lógica da paridade de importação, antiga política de preços da Petrobras.

Contudo, para as refinarias da Petrobras, a realidade pode ser diferente. Como a estatal[6] é verticalmente integrada, o preço do petróleo transacionado entre suas unidades de produção e de refino pode não ter como referência os preços internacionais, mas sim outro parâmetro mais alinhado com a política de preços de combustíveis que a estatal considera adequada para os objetivos do seu controlador, que pode implicar a defasagem dos preços dos combustíveis comercializados pela Petrobras em relação aos preços do mercado internacional.

Essa eventual defasagem impacta as refinarias privadas, principalmente em um cenário em que a Petrobras tem a capacidade de usar o lucro da exploração e produção doméstica de petróleo para subsidiar eventuais prejuízos que ela teria ao importar petróleo para refiná-lo no Brasil, onde o preço do combustível pode estar defasado em função da sua própria política de preços. Nesse caso, a Petrobras poderia cobrir uma possível margem operacional negativa na atividade de refino com uma margem positiva na exploração e produção de petróleo. A maior parte das refinarias privadas não tem essa opção, pois não é verticalizada.

Nesse contexto em que a Petrobras continuou verticalmente integrada após a celebração do TCC, com alta participação no mercado de exploração e produção de petróleo, a aquisição das suas refinarias por investidores privados tinha como base as seguintes premissas, de forma combinada ou isolada: (i) a política de preços da Petrobras seguiria a paridade de importação; (ii) a Petrobras venderia praticamente todas as suas refinarias antes de qualquer mudança na política de preços dos combustíveis ou as refinarias privadas não estariam nos mesmos mercados relevantes daquelas que a Petrobras manteria; e (iii) haveria instrumentos regulatórios para impedir a Petrobras de abusar de sua posição dominante no segmento de exploração e produção de petróleo.

Caso essas premissas não fossem observadas, o fomento à concorrência no mercado de refino por meio da entrada de investidores privados não verticalizados estaria em risco, pois a margem operacional das refinarias privadas ficaria vulnerável às mudanças na política de preços dos combustíveis e ao abuso de posição dominante pela Petrobras. Em outras palavras, nas hipóteses (i) de a Petrobras vender o petróleo para as refinarias privadas pelo preço internacional, porventura acima do preço transacionado entre suas unidades de exploração e de refino, e (ii) de o preço dos combustíveis no mercado doméstico estar defasado em relação ao preço internacional, a margem de lucro das refinarias privatizadas seria comprimida e elas eventualmente teriam prejuízos. Isso colocaria em risco o objetivo de mudar a estrutura do mercado de refino para fomentar a concorrência, um dos objetivos do TCC.

Portanto, dada a estrutura de mercado de exploração e produção de petróleo, a antiga política de preços da Petrobras de paridade de preços de importação era fundamental para fomentar a concorrência no mercado de refino. Como essa política foi alterada pela estatal, o TCC ficou vulnerável, pois a defasagem do preço do combustível doméstico em relação ao internacional aumenta o risco de compressão das margens das refinarias privadas. Com isso, a continuidade da expansão dessas refinarias, seja de forma orgânica ou por meio da aquisição das refinarias que estavam à venda pela Petrobras, ficaria prejudicada e poderia ocasionar a reversão da pequena mudança estrutural no mercado de refino gerada pelo TCC.

Uma evidência dessa dificuldade de expansão de refinarias privadas foi o fato relevante divulgado pela Petrobras em 22 de maio de 2024, quando ela afirmou ter enfrentado obstáculos “que impediram a conclusão da alienação das demais refinarias que constavam do objeto original do TCC”[7]. Em uma situação de risco como a apontada acima, era de se esperar que a Petrobras tivesse dificuldades para vender as refinarias, ou seja, o TCC perdeu efetividade.

Essa conclusão nos leva a outra questão relevante: era factível buscar implementar concorrência no refino sem alterar a estrutura de mercado na exploração de petróleo, reduzindo sua concentração? Como se depreende dos argumentos apresentados neste artigo, é pouco provável. Devido à concentração na exploração e produção, a dependência das refinarias privadas não verticalizadas da Petrobras como fornecedora de petróleo é alta. Portanto, dados os riscos apontados, seria preciso reduzir a concentração do mercado de exploração e produção para atenuar essa dependência. Com isso, o risco das refinarias privadas diminuiria, pois uma eventual decisão da Petrobras de “descolar” os preços domésticos dos internacionais para viabilizar a defasagem dos preços dos combustíveis no mercado doméstico teria menor impacto sobre elas. Sem a mitigação desse risco, é pouco provável que as refinarias privatizadas façam investimentos em expansão de capacidade de produção e que haja novas entradas no mercado de refino. Na verdade, pode ser interessante para as refinarias privatizadas até mesmo a sua revenda para a Petrobras.

Sem dúvida, a desconcentração na exploração de petróleo não é trivial, pois significa reduzir da participação da Petrobras no segmento provavelmente mais rentável da cadeia produtiva do petróleo. Além disso, é um processo demorado, que depende de mudanças na orientação do governo federal para a cadeia de produção de combustíveis.

Por fim, não estamos a discutir qual política de preços dos combustíveis é melhor ou mais justa para a sociedade brasileira, mas apenas ilustrando como a mudança dessa política, combinada com um mercado de exploração e produção de petróleo concentrado, afetou os efeitos concretos do TCC firmado entre o Cade e a Petrobras visando ao fomento da concorrência no mercado de refino.

Isso não significa, todavia, que a manutenção da estrutura de mercado de exploração e produção e a mudança da política de preços da estatal justificariam o encerramento do TCC. Mas a decisão envolvendo a revisão do TCC deveria considerar (i) os impactos da mudança da política de preços dos combustíveis, (ii) as limitações que a concentração na exploração e produção de petróleo representam para a concorrência no refino e (iii) a utilização de instrumentos estruturais e comportamentais que tornem mais fácil a detecção de eventual discriminação de preços pela Petrobras na venda de petróleo para as refinarias privadas vis-à-vis o preço do usado nas transações entre suas unidades de exploração e de refino.

O posicionamento externado pela Superintendência Geral e seguido pelo Tribunal do Cade considera alguns dos elementos abordados no parágrafo anterior. Quando o TCC foi firmado, as partes entenderam que a venda de refinarias que representavam cerca de 50% da capacidade doméstica de refino era suficiente para fomentar a concorrência no refino. Ainda, à época da celebração do TCC, a Petrobras adotava a paridade de preços de importação. Mas o abandono dessa política de preços em 2023 comprometeu a efetividade do TCC, ou seja, dificilmente investidores privados comprariam as cinco refinarias que ainda não tinham sido vendidas.

Dessa forma, considerando que a política de preços da Petrobras é parte de sua estratégia empresarial, que o Cade não poderia determinar qual deve ser a política de preços, que ele não poderia ampliar o escopo do TCC para desconcentrar o segmento de exploração e produção de Petróleo, a solução estrutural que constava no TCC ficou prejudicada, como reconheceu a Superintendência Geral do Cade. Desse modo, restaram as soluções comportamentais que constam na revisão do acordo.

Dado que o Cade não controla a estrutura de mercado no segmento de produção e a política de preços da Petrobras, não entendemos essas soluções como um completo retrocesso, pois elas podem ser úteis para proteger as refinarias privadas do abuso da Petrobras e assim garantir que a pequena mudança estrutural alcançada durante a vigência do TCC original seja preservada. No entanto, é pouco provável que a mudança estrutural no refino almejada quando o TCC foi firmado seja atingida.

Adicionalmente, a atual política de preços de combustíveis da Petrobras, que implica a defasagem dos preços domésticos em relação aos internacionais, gera incentivos para que ela discrimine as refinarias privadas. Como a Petrobras tem a capacidade para a discriminação devido à sua posição dominante no mercado de produção e exploração de petróleo, o monitoramento dos remédios para evitar abuso de posição dominante pela Petrobras deverá ser constante e, por isso, terá um custo alto para o Cade. Além disso, é preciso que os remédios comportamentais sejam detalhados e que as refinarias privadas, alvos de eventuais abusos, tenham acesso ao detalhamento, os acompanhem e possam informar eventuais descumprimentos ao Cade, ajudando-o no monitoramento.

Por último, é importante não permitir a recompra das Refinarias do Amazonas e de Mataripe pela Petrobras. Isso tem como base o entendimento da Superintendência Geral do Cade de que, devido à venda das refinarias ocorridas sob a vigência do TCC, “é esperado que haja movimentação dos agentes tanto demandantes como ofertantes de petróleo em razão do surgimento de uma demanda de petróleo externa à Petrobras” [8]. Essa afirmação parece decorrer principalmente da perspectiva de que, como as refinarias vendidas (do Amazonas e de Mataripe) representam cerca de 18% da capacidade de refino doméstica, sua demanda por petróleo pode gerar uma desconcentração no segmento de exploração e produção, o que teria efeitos positivos sobre a concorrência no segmento de refino. Nesse sentido, seria contraditório permitir sua recompra pela Petrobras, já que, seguindo o raciocínio da Superintendência Geral, o “surgimento de uma demanda de petróleo externa a Petrobras” seria perdido com a recompra.


[1] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOfbx5eD8vU7hfNPDc1HQ8Mo2wUUl_pMBwmHa9QywbQVDVJnIUCKbu0aQsg2fy2ggM6fjABy7XMTQWI3Q5i7QbJ . Acesso em 21 de maio de 2024.

[2] O Inquérito Administrativo está disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcfCo1Z24FrKe2wW9llyOv2ILUjTgBbLuIeOjayRJxADF . Acesso em 21 de maio de 2024.

[3] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddbIHxXqnEp9HJHDbUEq_kMJv1XP6ycA02Dqhkg_GgAbzyGOG2CTZiDQtoKdC4XX-ZJB2-a9AqOpl1yW5xIyYsce . Acesso em 21 de maio de 2024.

[4] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddbsEMDXhmFXjrK9B9of_6v0Pcn9U1pOhaRC_Y12vSbvvBS7dqtSgE4vcumXnc_VNPhBBVKzJhn6TTZTZg3O1g2B. Acesso em 21 de maio de 2024.

[5] Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddZD5N4hyRzhbTCQTPQH3wI-YDjommcMmKkhdqy6iDnU0r1lro_4dJBDslTz4m3h9pGc1W83bqFV-fh5OFehS51T. Acesso em 21 de maio de 2024.

[6] Apesar de a Petrobras ser uma empresa de capital aberto, a maioria de suas ações com direito a voto pertence ao Governo Federa, o que lhe confere controle sobre a empresa. Por isso, qualificamos a Petrobras como empresa estatal. Informação disponível em: https://www.investidorpetrobras.com.br/visao-geral/composicao-acionaria/ . Acesso em 25 de maio de 2024.

[7] Disponível em: https://www.investidorpetrobras.com.br/resultados-e-comunicados/comunicados-ao-mercado/ . Acesso em 23 de maio de 2024

[8] P. 3 da Nota Técnica nº 3/2024/UCD-CGAA4/CGAA4/SGA1/SG/CADE, disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddZD5N4hyRzhbTCQTPQH3wI-YDjommcMmKkhdqy6iDnU0r1lro_4dJBDslTz4m3h9pGc1W83bqFV-fh5OFehS51T. Acesso em 21 de maio de 2024.


  • Rutelly Marques da Silva e Marcio de Oliveira Júnior são Consultores Sêniores da Charles River Associates (www.crai.com). As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente dos autores e não refletem necessariamente as opiniões da instituição à qual estão vinculados.

Concorrer, Regular e Programar

Maxwell de Alencar Meneses

Falar algo inédito é muitas vezes uma grande dificuldade, especialmente em ambientes altamente competitivos. Essa dificuldade do ineditismo se intensifica ainda mais para alguém que não se encaixa rigidamente no domínio específico da Defesa da Concorrência. A exemplo deste autor, um “nem-nem” – nem economista, nem advogado, mas sim um cientista da computação.

Para preencher essa lacuna deixada por esse certo deslocamento, nada mais apropriado para um bom cientista do que observar ao redor, inclusive para cima. A prática da observação de objetos de estudo e comparação é parte fundamental da boa ciência, mesmo que, por vezes, essa abordagem esteja sendo desafiada pela ascensão de teorias desprovidas de evidências concretas, fundamentadas em opiniões midiáticas.

Soma-se a isso o fato de que, na Ciência da Computação, entre muitas coisas, estuda-se como representar computacionalmente o mundo. Por esse motivo, tende-se a se tornar observador de padrões repetitivos, no caso, inerentes à concorrência, que podem ser eventualmente convertidos em algoritmos.

Nesse olhar ao redor, um padrão repetitivo observado é o uso da lista tríplice, ou triplicidade, já mencionada no artigo  ‘O Bom, o Mau e o Feio‘ e agora outra vez reconhecido no livro ‘Comer, Rezar e Amar’, de Elizabeth Gilbert. Este livro vendeu milhões de cópias e foi adaptado para o cinema, obtendo êxito financeiro e sendo interpretado por ninguém menos que Julia Roberts. Algo tão bem-sucedido não deve passar despercebido, especialmente quando se trata de analisar a concorrência, considerando a significância dos negócios em um cenário tão disputado como o literário e cinematográfico.

Sendo assim, com este texto, propõe-se uma transmutação: uma correspondência biunívoca entre “Comer, Rezar e Amar” e sua versão hipotética parodiada, “Concorrer, Regular e Programar”. Pelo menos para fins de estudo, as viagens, tema da obra literária em questão, teoricamente teriam o poder de proporcionar uma perspectiva diferente sobre os objetos de estudo e sobre a vida, graças ao distanciamento ou à aproximação calculada e planejada desse mesmo objeto que elas podem proporcionar.

Um experimento compartilhado, que não retrata a opinião de nenhuma instituição em particular, nem tampouco a desse autor, sendo meramente um livre teste de hipóteses. Desse modo, utiliza-se da literatura como base para uma análise crítica, assim como, e apesar da análise de Posner, escrita em ‘Law and Literature’.

Concorrer | Comer

Iniciando a jornada pela dimensão do prazer de concorrer, lembra-se que muito se fala a respeito de casos e teorias sobre Defesa da Concorrência, mas nem tanto sobre o âmago do que é, enfim, o objeto dessa defesa: o que se pretende proteger; o que é concorrer? De acordo com o linguista Aldo Bizzocchi, “concorrer”, do latim concurrere, é literalmente “correr juntos” e referia-se à competição esportiva da corrida na Roma antiga[i].

Outro aspecto a se notar é que, em espanhol e outras línguas, o termo concorrência é representado pelo vocábulo competencia, sendo que, para nós brasileiros, o falso cognato competência remete diretamente à capacidade de vencer.

Mas como algo tão fundamental na hierarquia das necessidades humanas, como o alimento, poderia ser relacionado à ideia de concorrência? Em um primeiro momento, parecem ser ideias e conceitos distintos, mas não são. Como sabemos, a busca por alimento é ancestralmente o que moldou as relações humanas entre os caçadores-coletores, onde o homem[ii] ia caçar, competindo por alimento; às vezes ganhando na competição, outras vezes sendo o alimento de seus concorrentes.

De acordo com Darwin, que estudou essa dinâmica durante suas próprias viagens de descoberta, acabou percebendo que o concorrente mais adaptado prevalece. Por outro lado, Moshe ben Amram, em sua travessia pelo deserto e em sua obra denominada Torah, atribui ao homem a característica de ser superior por projeto. Tanto que, ao avaliar os potenciais concorrentes que poderiam compor uma joint venture com ele, a solução encontrada foi promover uma cisão fifty-fifty. A retirada de parte de suas capacidades produtivas, que até então estavam concentradas sob um único controle, formando assim um ser independente.

Portanto, o prazer de comer está intrinsecamente ligado aos instintos de sobrevivência de nossa espécie e, por que não dizer, aos instintos natos de concorrência e competência, que vêm de fábrica, “built-in”[iii] no nosso “firmware”[iv]. O cérebro associa um ao outro: comi porque venci! Daí surge o estímulo do prazer pelo ato de comer, instigando a competir novamente para experimentá-lo mais uma vez, pois, do contrário, seria a morte — a fonte fulcral de todos os medos e ansiedades humanas.

O ato de concorrer e de comer, se considerados como conceitos fundamentais relacionados às necessidades humanas e sendo estes inter-relacionáveis, suscitam a avaliação de como as ações de um Órgão de Defesa da Concorrência, como o Cade, podem ter exercido o papel de preservar ambos.

De fato, não são poucas as análises realizadas pelo Conselho nesse sentido, como, por exemplo, na avaliação do Ato de Concentração (AC) “Carguero”, quando analisou uma joint venture (JV) entre concorrentes nos mercados relacionados ao segmento de commodities agrícolas, que envolvia um software (programa) de intermediação de frete rodoviário, ou seja, uma plataforma digital.

Como esperado, a atuação da Defesa da Concorrência em setores como esse se mostra crucial para, se não garantir, em última instância, promover um ambiente concorrencial saudável capaz de mitigar condições que minem o acesso a alimentos, seja pela oferta ou pelos preços que possam ser deliberados por monopólios.

Também no mercado de commodities agrícolas, destaca-se o inédito AC (Cargill, ADM, LDC e SusteinIt), que envolve alguns dos mesmos grupos econômicos do AC Carguero. Eles formaram uma JV para criar uma plataforma de software multistakeholder, visando rastrear métricas de sustentabilidade nas cadeias de suprimentos alimentícios e agrícolas, como emissões de carbono, desmatamento, água, proteção infantil, trabalho forçado e diversidade, para atender à crescente demanda por informações detalhadas devido a regulamentações, legislações e exigências dos clientes.

O escrutínio desse caso pelo Cade envolveu a averiguação de riscos concorrenciais que poderiam eventualmente interferir na oferta de alimentos, práticas de greenwashing, troca de informações sensíveis, barreiras de entrada ou outras distorções de mercado. O Cade, felizmente, reconheceu seu papel de proteger a concorrência e não se envolver diretamente em questões sociais como a sustentabilidade.

Regular | Rezar

Como visto, as regulações estão causando preocupações nas empresas a ponto de elas construírem sistemas complexos para monitorar suas cadeias de fornecimento e poder dispor dessas informações aos seus demandantes.

Destaca-se que a regulação ocorre proficuamente também nos ambientes computacionais. As regras são amplamente aplicadas de forma semelhante ao mundo natural, com o objetivo de proteger os usuários. No entanto, ao fazer isso, consomem recursos computacionais. Quanto mais regras e proteções são implementadas, mais lentidão, geração de processos de monitoramento concorrentes e arquivos de controle ocorrem, tornando humanamente impossível verificar esses arquivos manualmente.

Cabe, portanto, à reflexão que, se o excesso de regulação pode prejudicar e até paralisar máquinas capazes de processar milhões de instruções por segundo, o que esse excesso pode gerar na condição humana, seja individual ou institucional?

No seu livro, Liz Gilbert relata como cruzou o mundo em busca de conhecer a Deus e encontrar guias espirituais. Ela descreve como se dedicou à repetição de mantras por horas a fio, buscando alguém ou algo que lhe indicasse o que seria o correto, uma regulação de qualidade.

Sentimento parecido foi percebido no saudoso cantor Cazuza, que cantava ou contava que precisava de uma ideologia para viver, expressando um desejo por um conjunto de princípios, crenças ou valores pelos quais valia a pena lutar, o que poderia ser uma filosofia de vida, uma visão política, uma causa social ou qualquer conjunto de ideias que desse significado e direção à sua existência. Já Caetano Veloso cantou em 1968, vivenciando o império da regulação do regime vigente na época, “É proibido proibir”, criticando o conformismo político da mídia.

Regulações que atrapalham até mesmo a regra que resume todas as outras, o amor, na declaração de Yeshua: “Ame o seu próximo como a si mesmo”, e que se manifesta na solidariedade ao próximo que sofre.

 O Cade, mesmo não sendo visto como um regulador propriamente dito, age de forma muito consciente nesse sentido. Não atua para embaraçar o mercado com um emaranhado de exigências, mas trabalha para tornar o ambiente concorrencial previsível, auscultando a sociedade e criando guias e decisões com o objetivo de orientar e sanar pontos não totalmente compreendidos pelo mercado.

Um exemplo disso são seus guias de análise, que publicam as regras utilizadas para suas avaliações de mercado. O baixo índice de reprovação de atos de concentração é um possível indicador de que as partes, já bem informadas, fazem um cálculo empresarial antecipando-se aos limites da bem compreendida jurisprudência do Conselho.

Programar | Amar

A viagem de Elizabeth, descrita em seu livro, se encerra na etapa do “Amar”, em que ela narra o relacionamento que tem com um empresário brasileiro na Indonésia. Nesse ato, é como se os dois se tornassem um só. Para comparar isso com “Programar”, além do sufixo da palavra, talvez seja necessário ter tido a experiência de um “relacionamento” com uma máquina computacional. Assim como em um relacionamento humano, é difícil e requer preparo e dedicação para entrar no mundo das máquinas e inserir seus pensamentos em forma de algoritmos, tornando-se, de certa forma, um só com esse ente.

Com base no conceito de amor expresso por Saulo de Tarso, aqui parafraseado, o amor é caracterizado por paciência, bondade, humildade, respeito, abnegação, autocontrole, perseverança, verdade, resiliência e durabilidade. Não seria difícil encontrar um profissional da área de programação que afirme que, devido ao grau de dificuldade, é necessário amar muito o que se faz para se manter nessa área.

Curiosamente, a primeira pessoa programadora foi a Condessa de Lovelace, filha única de Lord Byron, uma matemática e escritora. Ada Lovelace[v] utilizava uma estratégia que ela chamava de “ciência poética”[vi], integrando imaginação e ciência, o que inicialmente considerava um dever, mas que despertou nela alegria e paixão.

Essa abordagem a levou a explorar a Máquina Analítica, examinando como indivíduos e sociedade se relacionam com a tecnologia. Ada acreditava que intuição e imaginação eram fundamentais para aplicar conceitos matemáticos e científicos de forma eficaz, valorizando a metafísica tanto quanto a matemática para explorar “mundos invisíveis ao nosso redor”.  

As ideias de Ada demonstram a interrelação entre amar, programar e rezar, já desde a década de 1840.

De lá para cá, pode-se entender que nenhuma outra área do conhecimento humano evoluiu tanto e gerou tanta disrupção na sociedade, influenciando o binômio “Concorrer | Comer”, como vimos pelas plataformas digitais alvo de análise antitruste no Cade. A programação e seu efeito, o programa, tornaram-se um fator preponderante para a existência humana e, como tal, de fato requerem uma avaliação necessária em relação aos seus riscos concorrenciais.

Quanto a isso, o Cade vem diuturnamente cumprindo seu papel nesse sentido, seja apurando se o Google estaria privilegiando, nos resultados da busca orgânica, os seus próprios sites temáticos, como o Google Shopping, em detrimento de sites concorrentes, seja por meio de Inquéritos Administrativos, como o caso Google Android e caso Google News, em desfavor do Google, bem como o caso Jedi Blue, em desfavor do Google e da Meta, instaurados para apurar possíveis indícios de infração à ordem econômica verificados em cada um daqueles autos.

Além disso, o Cade está apurando suposto abuso de posição dominante por parte do Google e da Meta relacionado à utilização indevida das plataformas Google, YouTube, Facebook e Instagram para a realização de campanhas em desfavor do Projeto de Lei n° 2630 (“PL das Fake News”).

Concorrer | Regular | Programar ≡ (fogo, água e ar)

Neste ponto, cabe uma reflexão: uma expansão da mente no sentido de considerar que a programação não se restringe ao universo tecnológico. Muito antes disso, o próprio homem é uma máquina capaz de ser programada e tem sido. Não por acaso, vários recursos tecnológicos são criados mimetizando a máquina humana, e não o contrário.

Assim como a aviação e o voo foram concebidos por meio da observação dos pássaros, a computação utiliza a observação de habilidades humanas, como aprendizado, comandos, redes neurais, inteligência, lógica, raciocínio, memória e comunicação, além de objetos e recursos do cotidiano, como arquivos, pastas, programas, agenda e processos, entre outros.

Nesse sentido, vimos crescer uma programação do pensamento humano de modo homogêneo e dominante, com os mesmos comandos e instruções, percebidos por palavras de ordem e agendas unificadas que se tornam universais. Como observado em tantas outras questões que estão pululando na mente das pessoas sem saber ao certo por quê, sem averiguação de sua coerência com os fatos e com o debate cancelado, como quem expulsa um vírus de computador.

Algo que traz nuances de uma concorrência desleal de ideias, uma crença que lembra a religiosa em verdades absolutas e uma robotização programada das massas. O que faz pensar se uma das causas da pressa de regular a última fronteira da tecnologia humana, os avanços recentes no campo da inteligência artificial, teria algo a ver com manter o controle da programação vigente.

Portanto, o trinômio que intitula este artigo pode ser comparado às forças da natureza, como fogo, água e vento (ar), em termos de impacto na nossa sociedade. Sendo assim, seu domínio, de maneira desequilibrada por quem quer que seja, deve ser alvo de discussões e ponderações constantes, como a que aqui se faz. O objetivo não é necessariamente dizer o que está certo ou errado, mas fomentar uma visão crítica sobre a verdadeira natureza dessas questões e a utilização que tem sido dada a elas, antes que a distinção entre homem e máquina esmaeça a ponto de ocorrer a padronização irreversível da característica mais humana: sua individualidade e singularidade.


[i] Bizzocchi, A. (2018). Tag: concorrer. Fonte: DIÁRIO DE UM LINGUISTA: https://diariodeumlinguista.com/tag/concorrer/

[ii] LEOPOLDI, J. S. (2004). As relações de gênero entre os caçadores-coletores. Fonte: Portal de Periódicos da UFG: https://revistas.ufg.br/fcs/article/download/925/1171/5429

[iii] Essencialmente, “built-in” indica que algo está integrado ou embutido no sistema principal, em vez de ser uma adição opcional.

[iv] Firmware é um tipo de software que está incorporado em um dispositivo de hardware para controlar seu funcionamento. permanente no dispositivo, como uma memória flash, e é carregado durante a inicialização do dispositivo.

[v] Ada Lovelace. (2024, fevereiro 6). Wikipédia, a enciclopédia livre. Retrieved 13:43, fevereiro 6, 2024 from https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Ada_Lovelace&oldid=67438046.

[vi] Toole, B. A. (2010). Ada, the enchantress of numbers: Poetical science. Betty Alexandra Toole.


Maxwell de Alencar Meneses – cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


O que de fato é a causa central dos desequilíbrios Orçamentários?

Marco Aurélio Bittencourt

Os analistas econômicos, recorrentemente, cerram fileiras contra os avanços na política fiscal que se dirige aos mais pobres e aos mais humildes, tomando como fundamento as mexidas de xadrez que os políticos executam para tal fim. Pelo menos não falam em demagogia. Faço aqui uso do artigo do economista Marcos Mendes, intitulado “As vinculações de despesas são causa central do desequilíbrio fiscal crônico”. Ele faz as contas, mas olha para as árvores e a floresta continua na sombra.

O Autor afirma que uma das medidas essenciais para tirar o governo da rota do endividamento insustentável é a revisão das vinculações das despesas ao salário-mínimo (SM) ou ao crescimento da receita. Ele também argumenta que as vinculações das despesas são fator essencial de desequilíbrio fiscal e realiza um exercício hipotético para considerar a situação da manutenção dessas vinculações em termos monetários precisos. Se essas vinculações não fossem aplicadas, a despesa em 2024 poderia ser de R$ 131,6 bilhões mais baixa. Isso converteria déficit primário previsto de R$ 9,3 bilhões em um superávit de R$ 122,3 bilhões (1,1% do PIB).

Certamente, uma tungada de respeito que pretendiam aplicar ao populacho que é o beneficiário direto dessas medidas vinculativas. De fato, atingiria aposentados da previdência social, os mais pobres, e áreas como educação, saúde e segurança. O autor conclui que, com o passar do tempo, o custo fiscal das vinculações cresceria exponencialmente, especialmente nos casos da Previdência e da assistência social. Isso se deveria ao acúmulo de ganhos reais sucessivos do salário-mínimo, e do Fundeb, devido aos próximos aumentos da contribuição federal fixados na Constituição.

Evidentemente, mudanças atuais não podem ser a causa do déficit crônico que já existia antes dessas medidas vinculantes de 2023. No entanto, ele não culpa os juros da dívida pública por esse déficit crônico. O ponto é que existem dois itens preocupantes para o desequilíbrio fiscal: os juros da dívida pública e os gastos sociais. O principal fator determinante são os juros da dívida pública. Para demonstrar meu argumento, utilizo dados do orçamento público conforme os padrões da OCDE – COFOG, Painel do Orçamento Federal. Vamos agora analisar o padrão orçamentário em grandes números.

As tabelas 1 e 2 abaixo revelam o nosso padrão orçamentário. Considerando o ano de 2022, apenas quatro itens merecem destaque: 701 – Serviços públicos gerais (que inclui os juros da dívida pública), 710 – Proteção social, 709 – educação e 707 – Saúde, respectivamente com participação percentual em relação ao PIB de 13,6%, 12,4%, 1,9% e 1,8%. Em 2022, esses itens representaram aproximadamente 95% do total de gastos.                                

 Fonte: Painel do Orçamento Federal – COFOG

Duas observações são necessárias. Primeiro, os juros da dívida estão inclusos no item Serviços Públicos Gerais, com peso de quase 65%. Segundo, o item Proteção Social conta com orçamento próprio, sendo seu déficit o principal elemento impactante nos demais gastos públicos. Outro aspecto é que, dada as condicionantes do padrão orçamentário, sua gestão se configura como “eficiente” apenas no sentido de proceder ajustes sem mudar o status quo vigente; o que certamente não é motivo de comemoração. Isso reflete o jogo político em que o povo desempenha papel secundário.

A configuração temporal do padrão orçamentário é explicitada na tabela 3, que nos revela dois fatos. Primeiro, a magnitude elevada, comparativamente aos demais, dos itens Serviços Públicos Gerais e Proteção Social, com Saúde e Educação em patamares bem inferiores. O segundo fato de destaque está nos itens que sofrem os impactos desequilibradores que estão inclusos na categoria Demais Gastos. De fato, dada a estabilidade dessas outras proporções, esse último componente é o que mais contribui para ajustes relativos aos déficits orçamentários. Com efeito, se comparamos a posição inicial (2010) com a posição final (2022), vê-se que os valores aumentaram para os dois itens de maior peso, enquanto educação e saúde ficaram um pouco acima do que prevalecia inicialmente. A queda se deu no item Demais Gastos.

A dinâmica dos ajustes na rubrica Demais Gastos, em especial na que se classifica como assuntos econômicos, mostra um vigoroso deslocamento dessas despesas, com seu efeito deletério sobre as políticas públicas pertinentes a esses itens. Evidentemente como os cortes possíveis são lineares devido ao cumprimento dos normativos legais em situação de ajustes, todas as funções de governo são atingidas, exceto serviços Públicos Gerais e Proteção Social. Serviços Gerais conta com a proteção da Lei de Responsabilidade fiscal, enquanto Proteção Social possui orçamento próprio. Mas, dadas as considerações de equilíbrio orçamentário, os tópicos preocupantes são os serviços públicos gerais em seu item transações da dívida pública e o item proteção social que, contudo, está amparado por contribuições específicas, sendo apenas seu déficit relevante para detecção de elemento desequilibrador do orçamento.

É possível observar que os juros da dívida provocam o deslocamento dos demais gastos de forma robusta, conforme mostrado na tabela 4 abaixo. O deslocamento causado pelo pagamento dos juros ou do item Proteção Social provocam no orçamento pode ser inferido pela medida de impacto que considera apenas a variação anual desses dois itens. Considere as posições dos valores em 2010 e 2022. Depreende-se que despesas com juros e proteção social em relação aos gastos totais mantiveram sua proporção, com ligeira variação para o item Proteção Social. Como dito, em relação ao item Despesas Sociais, apenas o déficit previdenciário seria relevante. O TCU informa que o déficit cresceu, no período 2013 a 2022, 6,8% em média, chegando a 2023 em R$ 375,33 bilhões. Estimamos para fins de comparação prática que o déficit corresponda a 30% da rubrica Proteção Social. Então temos dois candidatos potenciais aos deslocamentos dos demais gastos. Conforme a tabela 4 abaixo, o valor médio do deslocamento dos juros é 3 vezes maior do que o do déficit previdenciário estimado.

O item juros, de fato, é o elemento crítico no deslocamento dos demais gastos. O fato de relevância é que o pagamento da rubrica juros sofre forte influência de um componente externo ao orçamento público: a política monetária/juros do Banco Central. Num cenário de aumento dos juros, o déficit público aumentaria sem mesmo ter aumentado os gastos públicos e o efeito reverso no caso de uma baixa dos juros tem se mostrado eventual e passageiro. Além disso, o ajuste desse item juros ajudaria a resolver de forma definitiva o problema do déficit previdenciário; o que não se daria se o ajuste fosse pelo déficit previdenciário. Mais importante ainda, o ajuste dessa conta de juros poderia ser administrado pelo tesouro (reestruturação da dívida) ou monetizado pelo Banco Central (compra de títulos públicos), enquanto o déficit previdenciário dependeria do crescimento da economia e possivelmente de ajustes no próprio sistema previdenciário. Por essas razões, os juros se apresentam como o elemento central no deslocamento dos demais itens orçamentários passíveis de ajustes. O gráfico abaixo mostra a correlação entre o pagamento de juros e o resultado primário do governo central.

A ilação básica é que qualquer reforma orçamentária deve levar em conta não apenas as regras de ajustamento, mas sobretudo equacionar o problema do endividamento público de forma definitiva. O efeito juros pode anular todo o esforço orçamentário de equilíbrio sem que se esteja promovendo gastos públicos adicionais. Esse é o ponto central: o consertamento orçamentário. Ele deve vir em primeiro lugar, pois fica claro que, se o item juros for reduzido adequadamente, as reformas tributárias poderiam caminhar na direção da tributação ótima ou no redirecionamento de gastos salutares ao crescimento.

Resta a questão da vinculação das despesas.  Segundo Mendes: “O custo fiscal das vinculações cresceria exponencialmente, em especial nos casos da Previdência e assistência, com o acúmulo de ganhos reais sucessivos do salário-mínimo, e do Fundeb, devido aos próximos aumentos da contribuição federal, fixados na Constituição”. Como disse alhures, o orçamento previdenciário conta com contribuições específicas e só o déficit da previdência é que captura tributos. Entretanto, contribuem para esse déficit previdenciário as benesses sociais que deveriam ser custeadas por tributos outros que não as contribuições previdenciárias, já que tais benesses não contaram com a respectiva contribuição previdenciária. Além disso, se tais gastos crescem exponencialmente, a receita líquida também deveria seguir essa tendência. Olhar o futuro é complicado. Fiquemos no presente e façamos o que tem que ser feito: o consertamento orçamentário definitivo!


MARCO AURÉLIO BITTENCOURT. Professor do Instituto Federal de Brasília – IFB , na área de gestão e negócios. Doutorado em Economia pela Unb.


Não olhe para cima: a tragédia do RS sob as lentes da economia comportamental

Lucia Helena Salgado

Faz tempo que a Ciência Política descreve o fenômeno do ciclo eleitoral e como ele afeta a tomada de decisão em política pública. Também não é de hoje que o modelo do indivíduo racional-maximizador construído a partir da filosofia política na economia política foi estendido para explicar o comportamento de agentes políticos no poder Legislativo ou no Executivo, como maximizadores de votos ou de orçamento, mas sempre guiados pelo interesse próprio.

Nessas leituras sobre as motivações das decisões políticas, não sobra espaço para a abstração do que no Direito ainda é denominado interesse público e que, antes da sistematização das ciências sociais, iniciada com o desgarramento da Economia de sua origem, a Filosofia Moral, denominava-se Bem Comum.

O modelo do indivíduo racional maximizador, tomando decisões – em todas as arenas, no mercado, no Estado, sobre todos os temas, privados e públicos – pareceu aderir bem às escolhas no mundo ocidental contemporâneo, até a eclosão de sucessivas crises e tragédias, como as provocadas por eventos climáticos, cada vez mais frequentes e severos, como o que desoladamente testemunhamos desenrolar-se no estado do Rio Grande do Sul.

Diante de uma calamidade de proporções apocalípticas como a que vive aquele estado, as reações e interpretações variam de acordo com o sistema de crenças e valores de cada um: seria uma fatalidade, evento inesperado e inevitável, ou um sinal do início das tribulações? Ou ainda evidência de governos ineptos, que desprezam o povo? Matérias jornalísticas, replicando a perspectiva individualista destacam as condutas virtuosas – dos cidadãos que agem de forma altruísta, salvando vidas – e condutas viciosas – dos especuladores, piratas, saqueadores e estupradores, que agindo de forma egoísta, exploram fragilidades.

A fora pela fala isolada, minoritária e sem eco, de cientistas e estudiosos de diversas áreas, pouca ênfase se dá às escolhas públicas que, cumulativamente, levaram ao estado de coisas que, de acordo com evidências trazidas à luz pela ciência, representam o novo normal, de eventos climáticos extremos mais frequentes e severos. Mesmo quando se identifica corretamente que a calamidade de proporções apocalípticas que se abateu sobre o Rio Grande do Sul é fruto de decisões humanas com consequências sobre o coletivo – políticas, portanto – se atribui à má índole de atores políticos, movidos pela cobiça.

O corolário dessa hipótese é que, uma vez afastados políticos corruptos e gananciosos, a sociedade retomaria seu curso, em paz e harmonia.

Não poderíamos estar mais enganados seguindo por aí. Faríamos melhor se revíssemos os parâmetros que usamos para avaliar as decisões humanas nas sociedades contemporâneas, as políticas entre elas.

Nós, humanos lançados nesse contexto, não funcionamos como quer o modelo utilitarista do indivíduo racional-maximizador. Não reproduzimos nem de longe, nem por similitude, um padrão de otimização seja nas decisões cotidianas, seja naquelas que definem nosso curso na vida. Nossa racionalidade é limitada, estamos sujeitos ao erro, ao engano, a ignorância e à incerteza – para não dizer das decisões alheias, sujeitas aos mesmos desvios que afastam desejos da realidade. Nossa capacidade de construir cenários, avaliar riscos e probabilidades, sopesar custos e resultados em escala intertemporal é construída com muito aprendizado, acumulando experiência a partir da constatação dos erros; nada disso é inato, não nascemos com um repertório que nos torne capazes de planejar e decidir de modo a garantir que nossos desejos se realizem.

Em uma frase, o comportamento humano, nos ensina a economia comportamental, é, quando muito intencionalmente racional, guiado por emoções e convenções sociais que nos oferecem atalhos para a decisão (heurísticas) e inexoravelmente sujeitos à incerteza, tornando nossa capacidade de errar… infinita.

Isso vale para todas as esferas da vida, mas se torna particularmente crítico quando se trata de decisões políticas, que afetam a coletividade por gerações, quando tais decisões geram consequências ao longo do tempo. Que catástrofes e misérias resultantes de decisões políticas, como a que acompanhamos à distância no Rio Grande do Sul – “simplificação” e “racionalização” da legislação ambiental, redução drástica de despesas federais e estaduais com manutenção de infraestruturas e prevenção de acidentes – ao menos despertem consciências para a necessidade de se rever radicalmente o modo de tomar decisões regulatórias.

Agentes políticos, lobistas, reguladores, governantes, legisladores, todos, como qualquer cidadão, estão sujeitos aos vieses que entortam até as melhores das intenções (e aprofundam dramaticamente os danos das más intenções). O que parece uma boa ideia hoje pode ter consequências desastrosas no futuro. O viés de otimismo, a visão de túnel e a inconsistência intertemporal nas decisões é ainda mais intensificado pela pressão da recorrência das eleições, que encurta o ciclo político, velho conhecido na análise de políticas públicas.  Precisamos reconhecer que as decisões dos agentes públicos, assim como as tomadas no mercado, embora racionalmente motivadas, podem implicar consequências desastrosas. Precisamos incorporar métodos de escolhas em políticas informados pela economia comportamental, métodos que envolvem contraposição de perspectivas, construção de cenários, avaliação e mensuração de riscos e consequências, revisão dinâmica de resultados e correção de rotas. Métodos que estão à disposição para quem se disponha a reconstruir o modo de se fazer política pública. É o que se denomina regulação sob risco e incerteza.

Precisamos começar a refletir coletivamente, em nossos grupos de WhatsApp, em nosso ambiente de trabalho, em comunidades de interesses comuns e com aqueles que escolhemos para nos representar sobre o que queremos como sociedade e o que queremos legar à próxima geração. Afinal, se chegamos até aqui como espécie, criando arte, literatura, ciência, desvendando os mistérios do cosmos e das partículas subatômicas, foi porque nossos antepassados se guiaram pelo ímpeto primeiro de sobrevivência da espécie. Que esse mesmo impulso nos faça, coletivamente, rever o modo de decidir em política.


Lucia Helena Salgado. Professora Títular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.


A importância da política antitruste em processos de reconstrução econômica

Cristina Ribas Vargas

Em meio ao rastro de devastação deixado pela enchente de 2024 no estado do Rio Grande do Sul, classificada como um evento climático extremo, que superou a traumática marca histórica da enchente de 1941, um pensamento permaneceu presente nos corações e mentes de gaúchos e brasileiros de outros estados que se irmanaram em uma tocante rede de solidariedade: reconstrução. O evento climático, cujos danos têm sido comparados àqueles provocados pelo furacão Katrina que atingiu Nova Orleans em 2005, deixou o estado gaúcho com mais de meio milhão de habitantes desalojados, o que significa que aproximadamente uma a cada vinte pessoas teve que sair de sua casa. Em meio a esse turbilhão o pensamento focado no processo de reconstrução ladrilha o caminho da esperança.

O processo de destruição criadora é dinâmico e implica no surgimento de uma nova estrutura econômica enquanto a anterior não desapareceu totalmente. O empresário inovador é o agente responsável por sucessivas ondas de inovações tecnológicas que resultam em aumentos de produtividade do capital e do trabalho, e uma importante condição para que estes ciclos de desenvolvimento ocorram é a disponibilidade do crédito acessível.  Quando essas condições não provêm da paz e da ação humana intencional, por vezes nasce da guerra ou mesmo de catástrofes naturais, ironicamente aproximando a teoria econômica da teoria da seleção natural de Charles Darwin, como inicialmente pretendido por Schumpeter.

A reconstrução do Japão após a II Guerra Mundial, por exemplo, passou por um processo de transformação em que tanto a política industrial quanto a reforma agrária foram induzidas a partir das políticas públicas pautadas na reconstrução. Reformas radicais foram promovidas, destacando-se a dissolução dos zaibatsu, grandes trustes verticalizados, cuja estrutura contemplava a instituição bancária responsável pelo financiamento das empresas do grupo; associado a uma reforma agrária que estruturou o campesinato em proprietários de pequenos lotes de terra produzindo alimentos que auxiliaram a manter positivo o saldo de uma balança comercial fortemente pressionada pela carência de recursos naturais e matérias primas como petróleo, carvão e minérios. O projeto sincrônico possibilitou que os investimentos fossem direcionados às indústrias química, elétrica e de bens de capital. Consequentemente o país pôde compensar o atraso técnico provocado pela guerra e ingressar em uma onda de progresso e crescimento. Os capitais foram disponibilizados pelo Estado Japonês, através de crédito ou incentivos fiscais, por grupos econômicos japoneses e por capitais norte-americanos, disponibilizados visando apoio frente as guerras da Coreia e do Vietnã.

Nesse sentido, Possas(1995) ressalta a necessidade de uma análise dinâmica do ambiente concorrencial, cuja conformação institucional pode produzir resultados positivos sobre o funcionamento dos mercados. Para Possas o arcabouço teórico que usualmente sustenta a política antitruste peca por adotar uma noção estática de concorrência.

“o estabelecimento de condicionantes institucionais sobre as formas como as empresas competem pode ter efeitos positivos sobre o funcionamento dos mercados, desde que sua construção não seja exclusivamente orientada por uma análise estática” (1995:5)

Uma análise dinâmica com fundamentos neo-schumpeterianos poderia fornecer instrumentos para essa análise, ao considerar a existência de rivalidade entre capitais, bem como, a introdução e a difusão de inovações. Nesse enfoque concorrência é “um processo de interação entre unidades econômicas voltadas à apropriação de lucros e à valorização dos ativos de capital.” Além disso, o elemento ativo de análise não é o mercado, mas a própria empresa. O mercado é o locus onde a empresa toma decisões e apropria ganhos.

“Nesse enfoque dinâmico a estrutura dos mercados é um dado relevante, mas não único nem imutável. Tanto pode condicionar, com maior ou menor intensidade, as condutas competitivas e as estratégias empresariais, como pode ser por estas modificada, de forma deliberada e possivelmente radical.” (1995:18)

A estrutura de mercado é endógena ao processo competitivo, e se conforma pela interação dinâmica no tempo entre estratégia empresarial e a própria estrutura de mercado. Como consequência a concorrência e a competitividade não nascem espontaneamente do mercado. Precisam ser incentivadas pela combinação da política econômica industrial e pela legislação antitruste. Observe-se que não se trata de enfraquecer empresas ou reduzir seu tamanho a fim de fortalecer a concorrência, pois é a eficiência técnica, produtiva e organizacional que assegura o ambiente competitivo.

No pós-guerra europeu foram políticas econômicas estruturadas e bem coordenadas que possibilitaram a prestação de serviços públicos, crescimento econômico e aumentos de produtividade nunca antes alcançados, e posteriormente repartidos e acessados por todas as classes sociais. Exemplos de caminhos para a reconstrução não nos faltam. Mas a integração em torno de um objetivo comum ainda é um desafio para o estado gaúcho e a economia brasileira.

Referências

KEYNES, J.M. A Grande crise e outros textos, Relógio D’Água editores, 2009.

POSSAS, Mario Luiz, FAGUNDES, Jorge, PONDÉ, João Luiz. Política antitruste: um enfoque Schumpeteriano, 1995. Disponível em https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/15265/1/MLPossas%3bJLSSFagundes%3bJLSPSouza.pdf.

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/13/enchente-afeta-1-a-cada-20-rs.htm#:~:text=538.245%20est%C3%A3o%20desalojadas%20no%20Rio,o%20%C3%BAltimo%20Censo%20do%20IBGE.

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/quase-90-das-cidades-do-rs-foram-atingidas-pelas-fortes-chuvas

https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/05/12/destruida-por-inundacoes-do-furacao-katrina-nova-orleans-traz-licoes-de-reconstrucao-para-o-rs.ghtml

Tendências e Desafios na Saúde Suplementar Brasileira: Análise Econômico-Financeira e Implicações Concorrenciais

Marcio de Oliveira Junior e Paulo Roque Khouri

Introdução

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) divulgou o Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar[1] no dia 18 de abril de 2024. Nele, verifica-se que o prejuízo operacional acumulado das Operadoras de Plano de Saúde (OPS) foi de R$ 18 bilhões de 2021 a 2023. O prejuízo operacional diminuiu em 2023, mas, segundo a ANS, as OPS tiveram um prejuízo operacional de R$ 5,92 bilhões na modalidade médico-hospitalar.

Esse prejuízo operacional preocupa e deverá ser enfrentado por meio de estratégias das OPS para aumentar suas receitas e diminuir seus custos, por exemplo, por meio da verticalização. Embora legítima, a verticalização pode ter impactos anticoncorrenciais. Por isso, é preciso que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a autoridade de concorrência brasileira, esteja atento para os impactos dessa estratégia. É preciso também que os provedores de serviços para as OPS colaborem com o Cade quando a autoridade de concorrência brasileira analisar os atos de concentração relativos a essas verticalizações.

A fim de fundamentar a perspectiva apresentada, será feita a seguir uma análise dos resultados do Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar. Essa análise será seguida pela discussão sobre a verticalização como estratégia a ser adotada pelas OPS para reverter o prejuízo operacional e sobre os possíveis impactos concorrenciais e sobre os consumidores associados.

Principais Resultados do Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar

Em primeiro lugar, o prejuízo operacional não significa que as OPS tenham tido resultado final negativo, pois as receitas financeiras são importantes para as OPS pela própria natureza do seu negócio, ou seja, elas recebem a contraprestação dos beneficiários (mensalidades) e há um intervalo de tempo até que as despesas assistenciais sejam pagas. Na modalidade médico-hospitalar, as receitas financeiras das OPS foram de R$ 11,15 bilhões em 2023, segundo a ANS, o que possibilitou a elas terem um resultado positivo em 2023.

No entanto, o resultado operacional é importante para a sustentabilidade das OPS, principalmente porque a taxa de juros tende a cair e, por isso, as receitas financeiras tendem a diminuir. A sustentabilidade das OPS é importante para o setor de saúde no Brasil. Corrobora essa afirmação o fato de, na modalidade médico-hospitalar, as despesas assistenciais (eventos indenizáveis) terem sido de R$ 239 bilhões em 2023, segundo a ANS. Para se ter uma ordem de grandeza, esse valor é maior do que a dotação orçamentária de R$ 232 bilhões planejada para o Ministério da Saúde para 2024[2].

Os dados do Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar da ANS permitem verificar que, na modalidade médico-hospitalar, 47,2% das OPS tiveram resultado operacional negativo em 2023. Adicionalmente, na mesma modalidade, a maior parte do prejuízo operacional em 2023 ficou concentrado em algumas OPS, como, por exemplo, Bradesco Saúde (-R$ 1,43 bilhão), Sul America (-R$ 454 milhões) e Amil (-R$ 2,80 bilhões)[3].

Como a receita financeira tende a cair devido à redução da taxa de juros, as OPS devem ajustar suas estratégias para reverter os prejuízos operacionais. Para isso, elas terão que alterar suas políticas em relação à contraprestação (mensalidades) e às despesas assistenciais.

Receitas com Contraprestação

Em relação às mensalidades, para a modalidade médico-hospitalar, segundo a ANS, a contraprestação per capita das grandes OPS no último trimestre de 2022 foi de R$ 337,37, valor que passou para R$ 387,44 no último trimestre de 2023, um reajuste de 14,84% em termos nominais. Como a variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) foi de 4,62%, houve um reajuste real de 9,77%. Em termos reais, vê-se no Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar que o valor per capita do quarto trimestre de 2023 é inferior ao do segundo semestre de 2020: R$ 425,26, quando ajustado pelo IPCA. Tomando-se esse valor como teto, as OPS teriam pouca margem para aumentar a mensalidade per capita em termos reais (cerca de 10%).

Despesas com Custo Assistencial

Em relação às despesas, matéria publicada no Valor Econômico em 15 de abril de 2024[4] traz uma série de possíveis estratégias das OPS para reduzir o custo assistencial. De acordo com a matéria do Valor, as OPS já começaram a desenhar e a comercializar planos de saúde mais restritos, ou seja, com rede referenciada menos ampla e com coparticipação e reembolso cobrindo uma parte limitada dos procedimentos médicos.

A mudança de estratégia em relação às despesas também pode ser notada pelo “Percentual de Eventos por Forma de Pagamento” que consta no Painel da ANS. Os pagamentos por procedimentos na modalidade médico-hospitalar (“fee-for-service”) passaram de 83,7% do total em 2019 para 64,8% em 2023 (não há grandes diferenças quando se considera o porte das OPS). Já os pagamentos por pacotes passaram de 3,8% do total em 2019 para 12% em 2023. O Rateio de Custo de Recursos Próprios passou de 6,9% do total em 2019 para 13,2% em 2023. Esses resultados mostram que as operadoras de saúde têm migrado seus modelos de pagamento para opções que permitem maior controle de custos e previsibilidade, como o pagamento por pacotes, em que se contrata um conjunto de procedimentos a um valor preestabelecido, e a internalização de serviços.

Verticalização e Impactos sobre a Concorrência

Uma das estratégias das OPS mencionada na matéria do Valor Econômico é a verticalização, que significa a integração entre agentes que atuam em diferentes etapas da cadeia de produção de serviços de saúde. De acordo com o documento Cadernos do Cade – Mercado de Saúde Complementar: Condutas[5], de 2021, “esse movimento tem se dado pela aquisição de administradoras de benefícios; serviços de medicina diagnóstica, o que inclui laboratórios; clínicas; centros médicos ambulatoriais e hospitais por operadoras de planos de saúde”.

Segundo o documento do Cade, a verticalização pode trazer algumas eficiências, como a “redução de custos de transação, melhor coordenação de serviços dentro da empresa, economias de escopo e o alinhamento de incentivos entre os elos da cadeia vertical, diminuindo os problemas decorrentes de assimetria de informação”. Entretanto, ainda de acordo com o documento do Cade, “considerando as características do mercado de saúde suplementar abordadas anteriormente – assimetria de informação, barreiras à entrada, tendência à concentração –, que facilitam o efetivo exercício do poder de mercado por uma empresa dominante, não se pode desconsiderar a possibilidade de efeitos concorrenciais negativos derivados de uma integração vertical nesse mercado”[6].

As eventuais verticalizações, cumpridos os limites de faturamento do art. 88 da Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529, de 2011) e da Portaria Interministerial nº 994, de 2012, devem ser notificadas ao Cade, que analisará potenciais eficiências e efeitos negativos da verticalização, considerando os impactos sobre os mercados relevantes envolvidos em cada transação.

Um desses efeitos negativos da integração vertical entre OPS e, principalmente, hospitais, é a possível alavancagem de poder de barganha das operadoras em relação aos agentes com os quais contratam, como médicos, laboratórios, clínicas, centros médicos ambulatoriais e hospitais.

O atual modelo de remuneração entre hospitais e planos de saúde ocorre principalmente pela maneira conhecida como “fee-for-service”, ou seja, hospitais, clínicas, laboratórios e médicos atendem um determinado paciente de acordo com suas necessidades e repassam para a operadora uma fatura detalhada de todos os recursos humanos e materiais utilizados durante a assistência. A remuneração desses prestadores de serviços segue tabelas que predefinem valores para cada procedimento ou material[7]. Esses valores pré-definidos são objeto de barganha entre as OPS e os prestadores de serviços.

Nessa barganha, o objetivo da OPS é fazer com que os preços constantes nas tabelas, pagos aos provedores de serviços, se aproximem o máximo possível daquilo que os economistas chamam de seu custo marginal. Já os prestadores, como hospitais e clínicas, tentarão cobrar um preço acima do custo marginal. Desse modo, quanto maior o poder de barganha dos agentes envolvidos nessa negociação, maior a parte do excedente gerado na transação que eles conseguirão apropriar. É por isso que as OPS têm incentivo para aumentar seu poder de barganha por meio da verticalização.

Para refletir como o processo de barganha entre OPS e prestadores de serviços ocorre, Kate Ho e Robin Lee usam um modelo chamado “Nash-in-Nash with Threat of Replacement”[8]. Nesse modelo, para aproximar o preço que paga aos prestadores de serviços de seus custos marginais e assim aumentar sua participação no excedente, uma OPS pode ameaçar retirá-los de sua rede referenciada e substituí-los por outros. Quanto mais crível for a ameaça de retirada da rede referenciada, maiores o poder de barganha da OPS e sua participação no excedente[9].

A credibilidade da ameaça de descredenciamento, que influencia o poder de barganha, depende da existência de prestadores de serviços substitutos dentro do mesmo mercado relevante onde atua o referenciado “ameaçado”, que está barganhando com a OPS. A verticalização dá à OPS esse substituto e, por isso, torna mais crível a ameaça de descredenciamento, aumentando seu poder de barganha.

Um exemplo hipotético ajuda a entender esse ponto: imagine que haja dois hospitais infantis A e B em um determinado mercado relevante em que uma OPS tenha posição dominante. Para levá-los a aceitar preços menores, a OPS com quem eles negociam ameaça descredenciá-los. A ameaça não seria crível, pois, dada a regulação, a OPS teria dificuldade para proceder ao descredenciamento por não haver um hospital infantil substituto naquele mesmo mercado relevante. Portanto, sua ameaça de descredenciar esses hospitais infantis é pouco crível. Consequentemente, a OPS não terá poder de barganha suficiente para aproximar o preço pago a esses hospitais de seus custos marginais e assim se apropriar de uma maior parte do excedente gerado nessas transações com os hospitais infantis.

Suponha agora que a OPS em questão adquira o hospital infantil B. Com isso, sua ameaça de descredenciar A fica crível, pois ela pode substituí-lo por B, que, após a verticalização, faz parte do seu grupo econômico. Nesse caso, A teria que aceitar preços menores para continuar na rede referenciada da OPS em questão. A OPS se apropriaria então de uma parte maior do excedente gerado na transação com o hospital A. Não é sem razão que, na matéria do Valor Econômico citada acima, menciona-se que uma das prioridades de uma OPS é “aumentar a verticalização, em especial, em praças como São Paulo e Rio, onde a rede própria de hospitais é menor”.

Por isso, verticalizações que alavanquem o poder de barganha das OPS devem ser objeto de atenção do Cade, pois há probabilidade de que, diante da menor remuneração aos prestadores de serviços decorrente do maior poder de barganha das OPS, os membros das redes referenciadas reajam reduzindo a qualidade dos seus serviços, com prejuízos para os consumidores[10] (trataremos dessa consequência negativa para os consumidores de forma mais detalhada a seguir).

As OPS poderiam argumentar que a alavancagem do poder de barganha pode se traduzir em redução de custos e que, por isso, seria uma eficiência da verticalização. Esse argumento, todavia, deve ser relativizado porque o exercício do poder de monopsônio[11] pode ser tão nocivo para a concorrência quanto o do poder de monopólio, sendo que uma eficiência não pode resultar de efeitos anticompetitivos. Foi o que decidiu a “The United States Court of Appeals for the District of Columbia Circuit” quando analisou um recurso do Departamento de Justiça dos EUA (DoJ) que decorreu de um argumento de duas OPS (Anthem e Cigna) que eram partes em ato de concentração e que argumentaram que a aquisição da Cigna pela Anthem levaria a uma redução dos valores pagos a provedores de serviços, como médicos e hospitais[12].

Verticalização, autonomia médica e consumidor.

Há, de fato, um aumento da inflação médica que pressiona os custos operacionais. Essa inflação decorre da flexibilização do rol de procedimentos de cobertura obrigatória e da inflação dos medicamentos, sobretudo de medicamentos de alto custo[13].

Entretanto, mesmo no modelo atual de produtos e serviços autorizados pela Lei nº 9.656, de 1998, os planos de saúde poderiam reduzir esse prejuízo operacional no médio prazo ampliando o número de consumidores com acesso aos seus serviços. Aumentando a escala, aumenta o mutualismo e todos ganham: operadoras, prestadores e consumidores. Em exposição sobre os problemas no setor, o Presidente da Associação Nacional dos Hospitais Privados, ANAHP, Antônio Britto, apontou a seguinte constatação: “temos que sair do patamar dos 50 milhões de usuários, estamos há muito tempo rodeando esse número. O que nos impede de termos 70 milhões se a maioria dos brasileiros quer ter um plano? Precisamos pensar nisso e agir”[14].

Não resta dúvida que o setor, incluindo aqui a própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), reguladora desse sistema, precisa pensar em oferecer ao mercado produtos e serviços mais flexíveis para atingir novos consumidores que desejam a contratação de um plano de saúde, mas que não conseguem fazê-lo devido à insuficiência de renda. Portanto, é necessário fazer ajustes na Lei dos Planos de Saúde; projetos nesse sentido estão em tramitação no Congresso há mais de dez anos. O atual modelo da oferta de planos de saúde previsto na Lei nº 9.656, de 1998, é muito rígido e acaba funcionando como uma grande barreira a entrada para consumidores que gostariam de ter acesso a serviços simples, como a marcação de consultas, um item importante para tratamento e prevenção dos problemas de saúde.

Entretanto, enquanto esse modelo rígido de oferta de planos de saúde imposto pela Lei nº 9.656, de 1998, vai sobrevivendo por aparelhos, com alto índice de judicialização, os fornecedores desse mercado, ao invés de esforçarem para buscar um novo marco legal, acabam por buscar aumentar seu poder de barganha, o que ocorre com a verticalização, espremendo a margem de ganho de agentes como as pequenas clínicas e os médicos profissionais liberais, os elos mais fracos da cadeia de produção dos serviços de saúde.

Do ponto de vista econômico, a verticalização da saúde e a busca por menores custos por parte das OPS, que, legitimamente, se preocupam a sustentabilidade do seu negócio podem deixar em segundo plano a qualidade dos serviços e o próprio interesse dos consumidores. Sob o olhar do ordenamento jurídico, entretanto, sobretudo em consonância com o que determina Lei nº 12.529, de 2011, algumas perguntas não estão sendo respondidas com a verticalização: i- como os consumidores, nos termos do artigo 88, II, da Lei 12529/2011, receberão parte relevante dos benefícios decorrentes da verticalização? e ii- nos termos do mesmo dispositivo, haverá queda na qualidade dos serviços ofertados aos consumidores?

Para que os consumidores se beneficiassem da verticalização, impõe-se não apenas, a médio prazo, uma redução no valor dos planos, como uma melhoria na qualidade dos serviços. Nessa última questão reside o grande problema da verticalização: o respeito à autonomia do médico e/ou do prestador, que, uma vez comprometida, pode sacrificar a qualidade dos serviços prestados. Com a verticalização, são criadas redes próprias de atendimento e pode haver um gradual esvaziamento dos hospitais credenciados, que não pertencem a um mesmo grupo econômico verticalizado, com o objetivo de garantir maior controle dos custos pelas OPS. Mas, nesse cenário, a autonomia dos prestadores de serviços, como hospitais e médicos, pode ser comprometida. Neste particular, na ânsia por redução de custos, reflexamente, reside um risco sério de afetação da qualidade do serviço, afetando diretamente o melhor interesse dos consumidores.

Conclusão

Há no Brasil aproximadamente 51 milhões de beneficiários de planos de assistência médica ofertados por Operadoras de Planos de Saúde[15], o que mostra sua importância para a assistência à saúde no Brasil e a necessidade de manter a higidez econômico-financeira das OPS.

Em nome dessa higidez, é esperado que as OPS adotem estratégias de redução de custos e que haja um movimento de verticalização, que exigirá atuação do Cade para garantir que a concorrência seja preservada, pois a manutenção da higidez econômico-financeira das OPS não significa isenção concorrencial para as estratégias que tenham como objetivo reverter perdas operacionais. Vale mencionar, nesse sentido, que segundo o documento Cadernos do Cade – Mercado de Saúde Complementar: Condutas, o mercado de saúde suplementar “possui certas características que impedem que o mecanismo de preços ajuste oferta e demanda, tais como falhas de mercado e externalidades, e outras que podem comprometer a livre concorrência entre os agentes: custos crescentes, barreiras à entrada, tendência à concentração e à integração vertical”. Por essas razões, o próprio documento do Cade reconhece que, mesmo que o setor de saúde suplementar fique ao encargo da iniciativa privada, ele deve ficar sob a supervisão do Estado, seja da agência reguladora ou do órgão de defesa da concorrência (ANS e Cade, respectivamente), que devem prezar pela livre concorrência e pela defesa do bem-estar dos consumidores.


[1] Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMjM4YTYyMDEtMmRjMS00NWFhLWFkMTEtMDk0YmMzZTk2YzZkIiwidCI6IjlkYmE0ODBjLTRmYTctNDJmNC1iYmEzLTBmYjEzNzVmYmU1ZiJ9 . Acesso em 20 de abril de 2024.

[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/Anexo/L14822-anexos.pdf . Acesso em 11 de maio de 2024.

[3] No Painel Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar da ANS, Bradesco Saúde e Sul America são classificadas na modalidade Seguradora Especializada em Saúde e a Amil na modalidade Medicina de Grupo. Também chama a atenção o prejuízo operacional de R$ 1,06 bilhão da Unimed-Rio, classificada na modalidade Cooperativa Médica.

[4] Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/04/15/com-custos-crescentes-os-planos-de-saude-devem-ficar-cada-vez-mais-limitados.ghtml . Acesso em 21 de abril de 2024.

[5] https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/cadernos-do-cade/Caderno-Saude-Suplementar_Condutas_Atualizado-VFinal.pdf. Acesso em 21 de abril de 2024.

[6] Cade (2021), apud Leandro, Tainá. Defesa da concorrência e saúde suplementar: a integração vertical entre planos de saúde e hospitais e seus efeitos no mercado. Dissertação (Mestrado em Economia). Universidade de Brasília, Brasília, 2010.

[7] Revista Visão Saúde, jan/mar-2017.

[8] Ho, Kate e Lee, Robin. Equilibrium Provider Networks: Bargaining and Exclusion in Health Care Markets. Chicago: Becker Friedman Institute for Research in Economics, Setembro de 2017 (Working Paper Series nº 2017-13).

[9] Há normas que regulam a substituição de prestadores de serviços. O art. 17 da Lei nº 9.656, de 1998, autoriza a substituição desde que por outro prestador equivalente. Para o caso de redimensionamento da rede hospitalar de uma OPS, o § 4º do art. 17 prevê a necessidade de autorização da ANS.

A substituição de prestadores de serviços não hospitalares é regulada pela Resolução Normativa (RN) nº 365, de 2014 da ANS. Por suposto, a substituição de um prestador de serviços deve ser feita por outro equivalente, que pode ser algum prestador já pertencente à rede da OPS, desde que comprovada a capacidade de atendimento. O art. 6º da RN estabelece as condições de equivalência. É interessante observar que, em relação ao critério geográfico, o inciso III do art. 6º fala em localização no mesmo município ou, em caso de indisponibilidade ou inexistência, localização em municípios limítrofes ou na mesma Região de Saúde. Esse dispositivo dá poder de barganha às OPS, pois aumenta suas opções externas quando negocia preços com os prestadores de serviços.

A substituição de entidades hospitalares e o redimensionamento da rede por redução são regulados pela Instrução Normativa nº 46, de 2014 da ANS. Segundo o inciso II do art. 2º, a substituição é a “troca de uma unidade hospitalar por outra equivalente que não se encontra na rede do produto”. Já de acordo com o inciso III do mesmo artigo, o redimensionamento por redução é a “supressão de um estabelecimento hospitalar da rede do produto, cabendo às unidades restantes a absorção da demanda”. A rede de hospitais pode ser própria ou contratualizada, de modo que, assim como no caso de prestadores de serviços não hospitalares, não há vedação para que um hospital contratado seja substituído por outro do grupo da OPS. Também não há vedação para o descredenciamento do hospital contratado e o consequente redimensionamento da rede, desde que o hospital do grupo da OPS tenha capacidade para absorver a demanda. Portanto, dada a regulação, a verticalização leva ao aumento do poder de barganha das OPS, pois, ao terem hospitais no mesmo grupo, elas terão opções externas adicionais para substituir ou redimensionar suas redes de hospitais. Esse raciocínio e essa conclusão também se aplicam aos prestadores de serviços de cuidados à saúde não hospitalares.

[10] As OPS poderiam argumentar que, como há concorrência entre elas, no caso de perda de qualidade da rede referenciada de uma OPS, os consumidores (beneficiários) poderiam desviar sua demanda para OPS concorrentes. No entanto, é sabido que há grande assimetria de informação na área de saúde. Por isso, os consumidores têm dificuldade de perceber as diferenças de qualidade entre hospitais e clínicas, por exemplo. Desse modo, na média, os consumidores não se aterão tanto ao descredenciamento de determinados provedores de serviços médico-hospitalares. Assim sendo, não se deve esperar que os consumidores migrem imediatamente para OPS concorrentes em função da substituição, por exemplo, de hospitais e clínicas referenciados, mesmo que os substitutos tenham qualidade inferior à dos que foram substituídos.

[11] De acordo com o dicionário da revista Concurrences, “Monopsony power describes the situation in which the supply side of a market is perfectly competitive, represented by an upward-sloping supply curve, and in which a sole buyer is present. The buyer will exercise its market power by withholding purchases (i.e., buying less) to decrease the purchasing price it pays for a good/service below the level that would emerge in a competitive market. The price is set by the buyer fixing a purchasing price it is willing to pay for the input, in a take-it or leave-it offer, or by refusing to negotiate on price. In such a setting, the monopsonist becomes a price-maker. This approach to buyer (monopsony) power is essentially the reverse or mirror image of monopoly power”. Disponível em: https://www.concurrences.com/en/dictionary/buyer-power#:~:text=Monopsony%20power%20describes%20the%20situation,a%20sole%20buyer%20is%20present. Acesso em 21 de abril de 2024.

[12] Ver Rose, Nancy e Sallet, Jonathan (2020). The Dichotomous Treatment of Efficiencies in Horizontal Mergers: Too Much? Too Little? Getting it Right. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3639184. Acesso em 21 de abril de 2024.

[13]. https://www.estadao.com.br/brasil/estadao-podcasts/a-crise-dos-planos-de-saude-e-como-isso-afeta-os-beneficiarios/

[14] https://www.jota.info/casa-jota/apos-crise-saude-suplementar-mira-em-ampliar-populacao-coberta-por-planos-22022024?non-beta=1 Veja esse exemplo do que poderia ser ampliado citado pelo próprio Presidente da ANAHP: O Consumidor poderia aderir a um plano ambulatorial com cobertura apenas para consultas e exames, por exemplo. “Quando você olha para os usuários do SUS, o principal gargalo está nas consultas e nos exames. Uma mamografia, por exemplo, pode demorar muitos meses para ser marcada. Poderíamos entrar nesse espaço, mas a comunicação de venda tem que ser muito bem-feita para que a pessoa saiba que esse plano não cobre tudo.’

[15] Disponível em: https://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Perfil_setor/sala-de-situacao.html . Acesso em 21 de abril de 2024.


Marcio de Oliveira Junior é Doutor em Economia, professor do Mestrado em Administração Pública do IDP e Consultor Sênior da Charles River Associates (www.crai.com).

Paulo Roque Khouri é Doutor em Direito, professor do IDP e Sócio do Roque Khouri & Pinheiro Advogados (https://khouriadvocacia.com.br).


Direito tributário não acompanha novos modelos de negócios

Fernando de Magalhães Furlan

O mundo dos negócios, como deve ser, é extremamente dinâmico e busca sempre inovadoras soluções.

Marketing multinível

O marketing multinível (MM), ou marketing de rede, é um desses novos modelos de vendas em que um distribuidor/revendedor recebe uma participação nos lucros obtidos por ele e por sua rede de distribuidores/revendedores a jusante. Assim, os ganhos podem vir de vendas diretas e/ou do recrutamento de novos distribuidores/revendedores.

O modelo de marketing multinível foi criado em 1941, por Carl Rehnborg, nos Estados Unidos da América e hoje está amplamente difundido no mundo e no Brasil. De acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Vendas Diretas (ABEVD)[1], em 2022, foram comercializados produtos e serviços por venda direta no país, que geraram um volume de negócios de R$ 45 bilhões. A força de vendas no Brasil tem cerca de 3,5 milhões de empreendedores, que atuam como revendedores diretos das empresas, seja em modelo de marketing multinível ou mononível[2].

As ações de marketing de uma empresa são de inúmeros tipos, como, por exemplo, a promoção de vendas. Ladeira e Santini nos ensinam que uma promoção de venda é:

Uma técnica de marketing que (…) pode ser entendida como um agregado de técnicas que almeja aumentar a performance em vendas pela geração de incentivos adicionais no consumo, usando uma perspectiva de curto prazo e imediata, dentro de um período predeterminado, promovendo maior velocidade e maior volume na compra de bens, afetando diretamente diferentes públicos[3].

E acrescentam:

Observando esse conceito, podemos identificar sete etapas importantes no mecanismo de execução de uma técnica de promoção de vendas: (a) incentivos adicionais, (b) perspectiva de curto prazo, (c) imediatismo, (d) período predeterminado, (e) maior velocidade, (f) maior volume, (g) diferentes públicos e (h) aumento da performance[4].

A promoção de vendas está inserida dentro das estratégias de merchandising, que dizem respeito às ações de curto e longo prazo, que têm como objetivo estabelecer uma identidade entre a marca e os consumidores[5].

Estímulos de curto prazo das estratégias de merchandising podem ser potencializados pelo uso de promoções. As promoções de vendas agem em um período de curto prazo, estimulando os clientes a consumirem imediatamente e sinalizam, dentro das estratégias de merchandising, que algo pode ser consumido rapidamente, com uma vantagem no ato da compra. Essa vantagem pode ser um desconto; o direito a cupom para concorrer a um bem de valor no final da promoção; um brinde etc.

Aqui, portanto, é necessário fazer uma distinção entre a promoção de vendas, definida pela doutrina e no contexto de uma ação de merchandising, ou seja, de curto prazo, temporária, com período predeterminado; e a promoção de vendas enquanto esforço contínuo de fomento às vendas, perene, constante, que envolve muito mais do que uma breve exposição/demonstração de produtos em pontos de venda, mas um conjunto de ações contínuas, que objetiva não somente o incremento das vendas, mas a boa e adequada informação ao distribuidor e ao consumidor, a boa gestão empresarial, dentre outros.

Universidades Corporativas Abertas (UCs)

O conceito de Universidade Corporativa (UC)[6], ferramenta de desenvolvimento profissional, responsável por criar e reproduzir conhecimento nas organizações e outros ambientes corporativos e profissionais. O principal objetivo de uma universidade corporativa é aprimorar os profissionais para promover o crescimento deles, dos negócios e da organização. A empresa aplica uma série de treinamentos e técnicas para desenvolver habilidades e comportamentos dos colaboradores.

Alguns projetos de universidade corporativa atingem tamanho sucesso que acabam se transformando em verdadeiras escolas de negócios, abertas ao público interessado em geral.

Para Ribeiro[7], o apoio que a área de treinamento ou UC pode prestar aos profissionais envolvidos é relevante. Palestras sobre cenários e perspectivas dos negócios e da economia; cursos sobre desenvolvimento de novos produtos, embalagens e canais de distribuição; treinamento em técnicas de gestão de centros de distribuição, gestão da cadeia de suprimentos (supply chain management) e varejo, marketing e logística são alguns exemplos com resultados diretos na performance dos profissionais e das empresas.

Fomento ao empreendedorismo

De acordo com Oliveira[8], há alguns fatores externos e, portanto, geralmente não controláveis, que podem apresentar determinado nível de influência – forte ou fraca, positiva ou negativa, de longa, média ou curta duração – no processo de desenvolvimento do empreendedorismo.

Entre eles estão os incentivos que facilitam o empreendedorismo, pois o empreendedor fica livre de uma série de problemas provocados pelos governos (burocracia, tributos elevados etc.). Infelizmente, esses incentivos são temporários e, algumas vezes, direcionados a determinados produtos e serviços, gerando uma série de dúvidas quanto ao futuro do empreendimento.

Desde logo é importante lembrar que a Livre Iniciativa, que nada mais é do que o empreendedorismo, ou a disposição de implementar novos negócios, é fundamento da República, consoante o artigo 1º da Constituição Federal, além de fundamento da Ordem Econômica, de acordo com o artigo 170, caput.

Além disso, o artigo 170, inciso IX estipula como princípio geral da atividade econômica o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.

Liberdade econômica

A chamada Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 2019) instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de livre mercado aos empreendedores nacionais.

Nela, especificamente em seu artigo 2º, estão listados princípios que a norteiam: (i) a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; (ii) a boa-fé do particular perante o poder público; (iii) a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e (iv) o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.

Adiante, em seu artigo 3º, a lei dispõe sobre os direitos de liberdade econômica, isto é, direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do país (…), dos quais destacamos:

(…)

III – definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda;

(…)

V – gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário;

VI – desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente, nos termos estabelecidos em regulamento, que disciplinará os requisitos para aferição da situação concreta, os procedimentos, o momento e as condições dos efeitos;

O artigo 4º trata das Garantias de Livre Iniciativa, estabelecendo ser dever da Administração Pública, entre outros, (…) evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: (…) IV – redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco; V – aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios; e (…) VII – introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas.

Por fim, o inciso IV, do artigo 3º da Lei, que estipula ser direito das empresas “desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado (…)”.

Decisões administrativas do Poder Executivo, suas interpretações, regulamentos e normativas devem estar atualizados e conseguir acompanhar o desenvolvimento tecnológico, fórmulas inovadoras, técnicas de última geração em performance, gestão/administração de negócios, enfim, uma miríade de ferramentas de desenvolvimento e atualização profissionais.

Afinal, como nos ensinam Anderle e Melo[9], “as mudanças do mercado e as exigências do mundo contemporâneo requerem modelos de negócios cada vez mais inovadores (…)”. Como reflexo jurídico dessa nova economia, os contribuintes diversificaram rapidamente as suas formas de organização produtivas e empresariais. Essas novas concepções de organização desenvolvidas pelas sociedades empresariais oferecem um desafio perene ao Direito e aos seus intérpretes para que ele possa se adaptar a esses novos métodos de estruturação.

Ao mesmo tempo em que a Constituição Federal indica predileção pela liberdade de organização (CF/88, art. 170, caput), permitindo que o empreendedor tenha autonomia para decidir, explorar sua atividade de forma efetiva e, consequentemente, se subordinar aos regimes jurídicos que recaem sobre essa opção, instaura-se no cenário jurisprudencial incertezas sobre a licitude dos meios adotados para a reorganização operacional e societária das empresas, em especial pela oposição dos legítimos interesses de economia fiscal dos contribuintes, de um lado, e dos interesses arrecadatórios da Fazenda Pública, de outro.


[1] Disponível em: https://www.abevd.org.br/dados-e-informacoes/. Acesso em: 23/01/2024.

[2] No marketing mononível os ganhos estão relacionados, exclusivamente, à venda dos produtos oferecidos.

[3] LADEIRA, Wagner et SANTINI, Fernando. Merchandising e promoção de vendas: como os conceitos modernos estão sendo aplicados no varejo físico e na Internet. São Paulo: Atlas, 2018, p. 85.

[4] Idem.

[5] Ibidem, p. 3.

[6] UC ou Universidade corporativa é uma instituição empresarial que faz parte da estratégia da área de Treinamento & Desenvolvimento das organizações. Ela converge a agenda de treinamentos e a formação contínua de todos os colaboradores aos interesses e objetivos estratégicos da empresa.

[7] RIBEIRO, Antonio de Lima. Gestão de Treinamento de pessoas. 1ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 17.

[8] OLIVEIRA, Djalma de Pinho Rebouças de. Empreendedorismo: vocação, capacitação e atuação direcionadas para o plano de negócios. São Paulo: Atlas, 2014, p.

[9] ANDERLE, Ricardo et al. Planejamento tributário na segregação de atividades. Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.ibet.com.br/wp-content/uploads/2023/06/Ricardo-Anderle-e-Naiara-Melo.pdf. Acesso em: 29/01/2024.


FERNANDO DE MAGALHÃES FURLAN. Antigo Secretario-Executivo do Ministério do Desenvolvi mento, Industria e Comercio Exterior (MDIC) e assessor especial da CAMEX. Foi presidente do Conselho de Administração do BNDES e da BNDESPAR. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE. Foi também diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. Atualmente e membro do grupo de especialistas do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL e consultor ad hoc de projetos de defesa da concorrência das Nações Unidas (UNCTAD). É professor de direito em Brasília e atua, como professor ou pesquisador, em universidades e institutos no Brasil e no exterior. É consultor externo ou membro não-governamental de organizações e institutos brasileiros e estrangeiros e consultorias. Graduado em Administração pela UDESC/ESAG e em Direito pela UnB, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela Universidade de Macau, China.


Inflação global em 2024: desafios e perspectivas para o Brasil

Leandro Oliveira Leite

O Comitê Federal de Mercado Aberto dos EUA (FOMC, na sigla em inglês)[1], do Federal Reserve, está programado para realizar sua próxima reunião de política monetária neste 1º de maio de 2024. O mercado aguarda ansioso, que acontece justamente no dia de folga do Ibovespa. Pode acontecer que o FOMC aumente a taxa de juros pela quinta vez em 2024, em um esforço para combater a alta inflação. Essa decisão terá implicações significativas para a economia global, incluindo o Brasil.

No cenário atual, a inflação global permanece elevada, impulsionada por diversos fatores, incluindo:

  • Aumento dos preços das commodities devido à guerra na Ucrânia e às sanções à Rússia;
  • Desafios nas cadeias de suprimentos globais;
  • Demanda reprimida por bens e serviços.

O FOMC já elevou a taxa de juros em 0,25% em cada uma das suas últimas quatro reuniões, levando a taxa dos fundos federais para uma faixa entre 0,75% e 1%. Um aumento da taxa de juros nos EUA pode levar a um aumento das taxas de juros no Brasil. Isso porque os investidores tendem a buscar ativos em países com taxas de juros mais altas, o que pode levar à valorização do dólar americano e à depreciação do real brasileiro.

Uma depreciação do Real pode encarecer as importações, o que pode contribuir para a inflação doméstica. Além disso, um aumento das taxas de juros pode desacelerar o crescimento econômico, pois torna o crédito mais caro para empresas e consumidores.

As perspectivas indicam que deve continuar aumentando a taxa de juros nos próximos meses, até que a inflação esteja sob controle. O cenário global permanece incerto, com riscos como a guerra na Ucrânia e a desaceleração da economia chinesa.

A decisão do FOMC terá um impacto significativo no mercado financeiro global, incluindo o mercado de ações, o mercado de títulos e o mercado de câmbio. É importante acompanhar os comunicados do FOMC e as análises de especialistas para entender as implicações das decisões de política monetária para a economia global e brasileira. A resposta do Banco Central do Brasil (BCB) dependerá da evolução da inflação doméstica e das condições da economia brasileira.

A próxima reunião de juros nos EUA será um evento crucial para a economia global. A decisão do comitê sobre a taxa de juros terá um impacto significativo no Brasil, afetando a inflação, o crescimento econômico e o mercado financeiro. É importante acompanhar os desenvolvimentos de perto e tomar decisões informadas com base em análises confiáveis.

O Fórum Econômico Mundial (FEM) já havia lançado um relatório[2] alertando para a persistência da pressão inflacionária na economia global em 2024. Apesar das projeções de moderação gradual, a inflação ainda deve representar um desafio significativo para muitos países, incluindo o Brasil.

A inflação global se configura como um dos principais desafios da economia mundial em 2024, e seus efeitos se fazem sentir de forma significativa no Brasil. O Relatório de Riscos Globais 2023 do Fórum Econômico Mundial (WEF) também aponta a inflação como um dos principais riscos globais para o presente ano e além. Diversos fatores contribuem para o aumento da inflação global, como:

  • Aumento dos preços das commodities: A guerra na Ucrânia, as sanções à Rússia e os gargalos nas cadeias de suprimentos globais pressionam os preços de commodities essenciais como energia, alimentos e metais;
  • Problemas na cadeia de suprimentos: A pandemia de COVID-19 causou interrupções nas cadeias de suprimentos globais, elevando custos e pressionando preços;
  • Flexibilização monetária: Políticas monetárias expansionistas, com baixas taxas de juros e programas de compra de ativos, podem ter contribuído para o aumento da inflação em alguns países.

O Brasil, como parte da economia global, não está imune aos efeitos da inflação internacional. Para mitigar os impactos da inflação global e garantir a estabilidade da economia brasileira, o BC e o governo federal têm adotado algumas medidas, como investir na modernização da infraestrutura, na otimização da logística e na diversificação das fontes de fornecimento para reduzir os gargalos nas cadeias de suprimentos e aliviar as pressões inflacionárias. Adicionalmente, o governo tem implementado políticas de apoio social para ajudar os grupos mais vulneráveis a lidar com os impactos da inflação, como programas de transferência de renda ou subsídios para alimentos e energia.

Segundo o relatório, as perspectivas para a inflação global em 2024 são de moderação gradual, com projeções de recuo para 4,8%, em comparação aos 5,9% de 2023 e 9,2% de 2022. No entanto, o ritmo da desaceleração e os níveis finais da inflação podem variar consideravelmente entre as diferentes regiões.

Já o recente Relatório Integrado do Banco Central do Brasil (RIG) 2023, publicado em dezembro de 2023, oferece uma análise abrangente da conjuntura econômica global e brasileira, com foco especial na questão da inflação.

A inflação global afetou o Brasil através do aumento dos preços das importações e do encarecimento do crédito externo. A inflação doméstica também foi pressionada por fatores internos, como:

  • Aumento dos custos de produção, incluindo energia e alimentos.
  • Desaceleração da atividade econômica, que reduziu a oferta de bens e serviços.
  • Expectativas inflacionárias elevadas, que podem alimentar um ciclo autorrealizável da inflação.

Os Relatórios de Riscos Globais do FEM e de Integrado do Banco Central do Brasil (RIG) 2023 oferecem uma visão abrangente da conjuntura econômica global e brasileira, com foco especial na questão da inflação. Tais relatórios destacam os desafios e as perspectivas para a economia brasileira em 2024 e reiteram o compromisso do BC com a estabilidade da economia e o crescimento sustentável.

No Brasil, as projeções do FMI indicam que a economia brasileira deve crescer 2,2% em 2024, alcançando a 8ª posição entre as maiores economias do mundo, bem como, as expectativas para a inflação no país são de 3,90% em 2024 e 3,50% em 2025, respectivamente.

Apesar das perspectivas positivas, o cenário global incerto e as vulnerabilidades domésticas requerem cautela e atenção contínua. O BC e o governo federal precisarão monitorar de perto a evolução da inflação e tomar medidas adicionais, caso necessário, para garantir a estabilidade da economia brasileira. A inflação global é um desafio complexo com múltiplas causas e exige soluções abrangentes que combinem políticas monetárias e fiscais.


[1] Esse comitê, vinculado ao Federal Reserve, exerce uma função vital na economia dos Estados Unidos por meio de suas decisões sobre as taxas de juros básicas.

[2] https://www.weforum.org/reports/global-risks-report-2023/


Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.