Para além da anterioridade e da base de cálculo: o que mais a LC 190 pode ter feito?
Fabio Luiz Gomes
Rodrigo Tomiello da Silva
Paulo Henrique Garcia D’Angioli
José Guilherme Fontes de Azevedo Costa
Com o advento da Lei Complementar nº 190/2022 (LC 190)[1], publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 05/01/2022, foram promovidas as necessárias alterações na Lei Complementar nº 87/1996 (LC 87 ou “Lei Kandir”) para adaptá-la à previsão constitucional instituída pela Emenda Constitucional nº 87/15 (EC 87).
Tratava-se, como muito já se escreveu sobre o tema[2], de cumprimento de condição imposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para instituição do diferencial de alíquota nas operações interestaduais dirigidas a consumidores finais (sejam eles contribuintes ou não).
Diversas polêmicas surgiram, como a questão do respeito à anterioridade[3] e a aparente antinomia entre a LC 190 e o recente Convênio CONFAZ nº 236/2021[4] no que diz com a fixação da base de cálculo para o DIFAL – se simples ou dupla[5].
Essas questões, naturalmente, têm levado os contribuintes à justiça, e o chamado “manicômio tributário”[6] segue a todo vapor, agora já em sua faceta mais terrível: o da insegurança na busca da tutela jurisdicional que, pela falta de linearidade em suas decisões – ora favoráveis a uns, ora desfavoráveis a outros[7] –, pode gerar distorções concorrenciais de imensa monta.
Já tentamos ofertar nossas contribuições para as discussões sobre anterioridade da LC 190[8] e acerca da arbitrariedade no exercício da função jurisdicional (que não se confunde com a sagrada independência funcional diga-se)[9].
Nesta oportunidade, interessa-nos deflagrar conversas a respeito de se houve, com a LC 190, a alteração do conceito de “contribuinte de ICMS” desenhado pela jurisprudência do STF[10] e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para efeitos de aplicação do DIFAL, especialmente na tese repetitiva nº 261[11] e na súmula STJ nº 432[12].
A jurisprudência da Corte Superior caminhava mansamente na direção de que não bastava, para configuração de “contribuinte”, que dada pessoa jurídica tivesse um cadastro no sistema de ICMS estadual (inscrição estadual); era necessário averiguar se, de fato, havia a prática mercantil reiterada das hipóteses de incidência do ICMS[13].
A Constituição desta aspirante a República (CRFB/88), em seu artigo 155, §2º, XII, “a”, indica que, para o ICMS, “cabe à lei complementar definir seus contribuintes”. Por óbvio, não se trata de um cheque em branco; a definição deverá observar os aspectos naturais da matriz de incidência tributária.
Sob pena de desnaturar a hipótese de incidência e a elementos basilares de sujeição passiva fiscal, não podemos admitir a definição, como contribuinte de ICMS, contemplando alguém que não demonstre capacidade contributiva e/ou não pratique nem tenha qualquer conexão razoável e concreta com a prática efetiva do fato gerador do referido imposto.
Feito o disclosure, assumamos, neste momento e para fins do iminente debate, a plena viabilidade de uma lei complementar definir os contribuintes de ICMS. Partindo dessa premissa, temos que a LC 190 alterou a LC 87 (esta, a lei geral sobre ICMS à qual faz referência a regra constitucional).
Em seu artigo 4º, a LC 87/96, elenca os contribuintes de ICMS sob o caput de ser “qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”
A LC 190/22, ao trazer uma nova redação ao §2º do referido artigo, atende ao suscitado pelo STF e amplia/reestrutura, aparentemente consoante os moldes da EC 87/15[14], o conceito original e informa o seguinte acerca dos contribuintes de DIFAL em operações interestaduais a consumidores finais:
“§ 2º É ainda contribuinte do imposto nas operações ou prestações que destinem mercadorias, bens e serviços a consumidor final domiciliado ou estabelecido em outro Estado, em relação à diferença entre a alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual:
I – o destinatário da mercadoria, bem ou serviço, na hipótese de contribuinte do imposto;
II – o remetente da mercadoria ou bem ou o prestador de serviço, na hipótese de o destinatário não ser contribuinte do imposto.”
Com a reconstrução desse conceito e a necessidade de tratamento integral ao tema DIFAL, foi ainda editado o Convênio CONFAZ 236/21. Ao cabo, cada unidade federativa (UF) deve disciplinar, por lei própria, a questão. Entende-se, majoritariamente, que apenas a construção final desse bloco permitirá a legítima cobrança do DIFAL introduzido pela EC 87/15.
Com tamanhas alterações normativas, é – lamentavelmente – justo presumir que poderá se reinstalar toda a discussão que outrora havia sido pacificada no STJ e no STF: quais os requisitos, além dos normativos de cada UF, para que se configure dada pessoa como contribuinte de ICMS?
Será possível, nessa circunstância de tão profundas modificações, que cada UF legisle sobre o tema a seu bel prazer e, eventualmente, entender que para ser contribuinte basta a inscrição estadual, como parece indicar a cláusula sexta do Convênio 236/21?
“Cláusula sexta A critério da unidade federada de destino e conforme dispuser a sua legislação tributária, pode ser exigida ou concedida ao contribuinte localizado na unidade federada de origem inscrição no Cadastro de Contribuintes do ICMS.”
Essa redação, nos parece, viabiliza que de modo unilateral cada UF de destino possa gerar o problema original e, pela via da exigência de cadastro estadual, colocar novamente em xeque se esse cadastro bastaria à qualificação como contribuinte, ainda que na UF de origem a pessoa em questão não seja considerada como tal.
Aqui, soaria fundamental, e preferencialmente instituídos em Convênio CONFAZ, que se construíssem critérios objetivos e lineares para tanto. O primeiro deles, em apoio à segurança jurídica, seria o de que uma determinada pessoa não pode – como no conhecido caso das empresas de construção civil – ser considerada contribuinte pela UF “A”, mas não o ser pela UF “B”.
Assentada essa base, outros elementos de objetividade seriam muito bem-vindos para evitar que toda a discussão se dê tendo como paradigma apenas a jurisprudência correlata às empresas de construção civil.
É certo que a resposta outrora dada pelo STF e STJ ao tema considerava um arcabouço constitucional diferente[15] e um bloco de qualificação de contribuinte gramaticalmente diverso do que se avizinha, mas a leitura conferida parte de elementos de realidade e de adequação à regra matriz de incidência do imposto – que, materialmente, entendemos seguem hígidos; não sofreram alteração substancial.
Compreendemos, portanto, que (i) o entendimento do STJ deve prevalecer, pois se ampara em elementos da regra matriz de incidência tributária e (ii) certamente, sob o pálio da cláusula sexta do Convênio, poderá a ocorrer uma nova onda conflitos federativos em que uma UF considera o mesmo perfil de pessoa contribuinte em seu território e não contribuinte no território de outra UF.
Temos que a extensão subjetiva de contribuinte para pagamento de ICMS envolve inexoravelmente três conceitos: “operação”, “circulação” e “mercadoria”, e possui como elemento de interseção os seguintes requisitos: habitualidade e intento lucrativo.
Neste sentido, a projeção é que de um lado tenhamos um alienante praticando atividade mercantil e do outro haja um adquirente, em conjunto coordenados de atos dentro inseridos no contexto de um circuito econômico, por ser um tributo plurifásico.
Esse delineamento jurisprudencial, como dito, parte da própria Constituição quando estabelece que se trata, o ICMS, de um imposto sobre circulação, dado que esse conceito é fixado no direito empresarial. Em uma análise interpretativa semiológica sobre o destinatário padrão-contribuinte, o legislador ordinário não pode fugir aos conceitos estabelecidos na CRFB/88.
Essa bilaterialidade legislador-contribuinte em relação aos conceitos impõe o dever de coadjuvação, isto é, não haver qualquer alteração conceitual constitucional por parte do legislador ordinário, sob pena de contrariedade ao princípio da confiança. A obediência à lógica constitucional se impõe na medida em que se trata aqui de conjunto de normas oriundo do poder constituinte originário, que fixa limites materiais ao legislador derivado e aos infraconstitucionais. Afinal, os textos ainda dizem algo, pois não?
Foi nesse sentido que caminhou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, ao exigir os requisitos da habitualidade e onerosidade para conceituar o contribuinte de ICMS. No caso vertente, caso se tente extrair ideia diversa de uma legislação infraconstitucional, tal leitura se mostraria incuravelmente inconstitucional.
Entre tantos problemas, dúvidas e desafios trazidos pela LC 190/22, chamamos atenção a esse risco acerca da própria condição de contribuinte, eminentemente para pessoas jurídicas que tenham cadastros estaduais por motivos – muitas vezes – apenas procedimentais/instrumentais.
Se fossem verdadeiros os argumentos das autoridades fiscais estaduais[16], nascidos da inconformidade com a não conversão do PLP 32/21 até 31/12/2021, apontando que a EC 87/15 promoveu apenas uma repartição de receita tributária[17], a solução seria verdadeiramente mais simples.
As palavras “e se” ganham um contorno pueril, haja vista a necessidade de se viver em apenas uma realidade e tratar dos problemas efetivamente existentes. Mas, ao abrirmos essa porta, a curiosidade nos estimula a seguir.
Em primeiro lugar: considerando a estrutura da EC 87/15 e o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5469/DF e no Tema de Repercussão Geral (TRG) nº 1093, seria possível demandar da LC 190 alguma regulamentação dando tratamento apenas financeiro, isto é, de repartição de receita entre as UFs?
Parece-nos inexoravelmente negativa a resposta, na medida em que o STF, ao conhecer do tema, entendeu que a EC 87/15 trabalhou no plano tributário (isto é, entre contribuintes e UFs), e não apenas no plano financeiro (ou seja, entre UFs), gerando uma nova relação entre o não contribuinte e a UF de destino.
Da mesma forma, e ainda ancorados no decidido pelo STF, se não podemos conviver com uma leitura diferente da EC, por princípio normativo hierárquico simples certamente não podemos aceitar que convênios, lei complementar federal ou lei de cada UF trate do tema como se fosse apenas uma repartição de receitas.
O único “e se” normativamente admissível, portanto, seria a EC 87/15 trazer consigo uma carga axiológica nuclear totalmente diversa, estatuindo – como fez em seu artigo 2º, acrescendo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) – um artigo 99 com teor meramente financeiro.
Para o argumento dos fiscos ser verdadeiro, a EC não poderia promover a alteração da sujeição ativa e passiva de ICMS como fez; deveria manter intacta a norma original e tão somente dispor quanto ao compartilhamento das receitas quando de operações interestaduais destinadas a consumidores finais – fossem eles contribuintes ou não.
Nossa pretensão, ao trabalhar nesse cenário hipotético, é reforçar a inadequação total dos argumentos das Secretarias Estaduais de Fazenda. Reforçamos e insistimos, que textos dizem algo e não cabe a intérpretes ocasionais fixar novos sentidos às palavras em um mesmo contexto.
Evitemos, pois o efeito Humpty Dumpty, pois se regressarmos à essência do Direito Tributário, perceberemos, sem maior esforço, que as limitações ao poder de tributar são originadas e mantidas como direitos e garantias fundamentais a serem exercidas contra o arbítrio e o abuso de poder estatal. A fixação livre do sentido pelo intérprete, seja autêntico ou não, é a queda da primeira barricada contra o despotismo, atentemo-nos, pois.
Se queremos tornar o Brasil um país sério, devemos trabalhar da base para o ápice; a lição número um está em irrigar a responsabilidade política e gerar coordenação hábil e eficiente de todos os poderes e entes da Federação para dar nascimento a normas que sejam efetivamente cumpridas.
Sem isso, seguiremos sendo este país pouco apegado à retidão e à boa técnica; uma terra das oportunidades… mas apenas para os oportunistas
FABIO LUIZ GOMES. Mestre e Doutorando em Direito Público, Advogado Corporativo com atuação nos Tribunais Superiores. Autor, Co-autor, Prefaciador de diversas obras jurídicas.
Rodrigo Tomiello da Silva
Paulo Henrique Garcia D’Angioli
José Guilherme Fontes de Azevedo Costa
[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp190.htm
[2] https://www.migalhas.com.br/depeso/357455/sem-a-publicacao-de-lc-em-2021-difal-fica-para-2023
[3] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/difal-de-icms-regra-valeria-2022-04012022
[4] https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2021/cv236_21
[5] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/difal-de-icms-empresas-planejam-ir-a-justica-contra-a-cobranca-em-2022-07012022
[6] https://www.conjur.com.br/2022-jan-12/fernandes-icms-difal-manicomio-juridico-tributario-brasileiro
[7] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/empresas-conseguem-no-tjsp-direito-a-nao-recolher-difal-do-icms-de-imediato-12012022
[8] https://www.migalhas.com.br/depeso/357698/por-que-o-difal-nao-pode-ser-cobrado-pelas-ufs-de-destino-em-2022
[9] https://www.conjur.com.br/2022-jan-06/opiniao-boate-kiss-temas-tributarios-quem-guarda-guardiao
[10] RE 559.936 AgR / CE – Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI – Julgamento: 09/11/2010 – Publicação: 25/11/2010 – Órgão julgador: Primeira Turma
EMENTA: TRIBUTÁRIO. ICMS. AQUISIÇÃO DE MATERIAL. EMPRESA DA CONSTRUÇÃO CIVIL. EMPREGO EM OBRA. INSUMOS. DIFERENCIAL DE ALÍQUOTA. COBRANÇA. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. I – As empresas da construção civil – por serem, em regra, contribuintes do ISS – que adquirirem materiais em Estado com alíquotas de ICMS mais favoráveis, ao empregarem essas mercadorias como insumos em suas obras, não estão obrigadas a satisfazer a diferença da alíquota maior do Estado destinatário. Precedentes. II – Agravo regimental improvido.
A Turma negou provimento ao agravo regimental no recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski.
[11] “As empresas de construção civil não estão obrigadas a pagar ICMS sobre mercadorias adquiridas como insumos em operações interestaduais.” https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&sg_classe=REsp&num_processo_classe=1135489
[12] https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2154491/nova-sumula-432-do-stj-dispoe-que-as-empresas-de-construcao-civil-nao-estao-obrigadas-a-pagar-icms-sobre-insumos-adquiridos-em-operacoes-interestaduais
[13] https://www.conjur.com.br/2011-mai-29/construtoras-nao-pagar-icms-insumos-obras-terceiros
[14] https://taxpratico.com.br/pagina/lc-190-2022-regulamenta-cobranca-do-difal-nao-contribuinte
[15] REsp 1.851.300/RJ – Relator: Min. Francisco Falcão – Julgamento: 02/03/2020 – Publicação: 04/03/2020 – Decisão monocrática
REsp 1.135.489/AL – Relator: Min. Luiz Fux – Julgamento: 09/12/2009 – Publicação: 01/02/2010 – 1ª Seção
[16] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/anterioridades-difal-de-icms-muito-barulho-por-nada-25012022
[17] http://www.sefaz.am.gov.br/noticias/ExibeNoticia.asp?codnoticia=25311