Elvino de Carvalho Mendonça & Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça

Pensar nunca foi uma tarefa fácil. Temos sempre escrito e feito menção incansável ao ensinamento de Albert Camus no sentido de que “[p]ensar é reaprender a ver, a ser atento, a dirigir a própria consciência, é fazer de cada ideia e de cada imagem, à maneira de Proust, um lugar privilegiado,”[1]de tal modo que toda vez que se identifica rupturas paradigmáticas que modificam totalmente a forma como a humanidade se vê no mundo, há um inegável impacto na sociedade, na economia e, também nas leis que compõem os ordenamentos jurídicos. Assim, tem ocorrido com o conceito de mercado relevante que foi elaborado no âmbito da teoria antitruste sob o prisma de uma economia analógica, bastante diferente da realidade econômica (digital) como a que vivemos hoje.

Diante dessa nova economia digital, muitos dos pilares do direito antitruste precisam ser repensados e analisados, de modo a verificar se as estruturas legais que existem hoje, criadas no âmbito de uma economia analógica, são suficientes e eficazes para lidar com os novos tempos.

Para relembrar, o mercado relevante é um conceito que envolve duas dimensões: dimensão produto e dimensão geográfica. A dimensão produto está associada com a substitutibilidade entre os bens e a dimensão geográfica é representada pelo locus geográfico onde a concorrência se dá.

Estas duas dimensões são clássicas e são muito bem aplicadas para bens e serviços maduros que são negociados em ambientes não influenciados diretamente pela economia digital. O exemplo clássico que vem à mente é o do cimento que, segundo a jurisprudência do CADE, tem a sua dimensão produto como sendo o próprio cimento não havendo substitutos, e tem como dimensão geográfica o raio de 500 km a partir da cimenteira.

No entanto, o que acontece quando a economia não é mais só física? Quais são os pilares que sustentam uma economia digital e como o direito antitruste deve se posicionar diante de uma economia mista – física e digital? Pensemos.

Atualmente, a economia digital está inserida em todos os mercados de produtos físicos existentes, e nos mercados de produtos da nova economia, que são produtos definidos por mudanças rápidas e contrastes acentuados[2], conforme definição apresentada por Charles Alexander[3].

A economia digital atua produzindo bens e serviços totalmente digitais e viabilizando a comercialização dos produtos físicos em lugares que não eram economicamente viáveis. Três situações distintas podem acontecer: (i) mercados de produtos físicos sem substitutos digitais; (ii) mercados de produtos físicos com substitutos digitais; e (iii) mercados de produtos somente digitais.

Adicionalmente, os produtos digitais e físicos podem ser vendidos por meio de: (i) plataformas digitais com centro de distribuição; (ii) plataformas digitais de produtos digitais; (iii) lojas físicas de venda de produtos digitais; e (iv) lojas físicas de vendas de produtos físicos.

No mercado de bens físicos que não encontram substitutos digitais, como é o caso de bens de engenharia pesada, as dimensões produto e geográfica dos seus mercados relevantes pouco se alteram, pois, ainda que o acesso à informação de novos produtos tenha se ampliado para os consumidores com a revolução digital, se este desenvolvimento não for capaz de reduzir os custos de transporte e/ou de internalização de forma significativa, não é o fato do consumidor identificar outras marcas de produtos em outras localidades que garantirá que este produto seja um substituto efetivo. Nesse caso, o custo do transporte da mercadoria é um fator determinante para a definição do mercado relevante.

No mercado em que os produtos físicos possuem substitutos digitais, o advento da economia digital pode afetar a dimensão produto quando os produtos da economia digital são substitutos dos produtos físicos tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta e, também podem afetar a dimensão geográfica quando o consumidor tem a possibilidade de consumir os dois bens em um determinado locus geográfico.

Diz-se que os produtos digitais e físicos são substitutos pelo lado da demanda quando o consumidor é indiferente entre consumir um ou outro bem. (ex. este é o caso do livro e do e-book) e se diz que os produtos digitais e físicos são substitutos pelo lado da oferta quando a empresa consegue intercambiar a produção de um bem pelo outro sem que isso se torne economicamente inviável.  Os produtos digitais e físicos serão consumidos dentro do mesmo locus geográfico sempre que o custo do consumidor para consumir um ou outro bem não inviabilize a demanda do consumidor pelo bem.

Define-se a dimensão geográfica dos produtos físicos como sendo o raio em que o consumidor está disposto a se deslocar a partir da sua origem para adquirir o bem. Vale mencionar que a disposição a se deslocar do consumidor está associada com o custo para a realização desta aquisição.

A dimensão geográfica dos produtos digitais, no entanto, não envolve qualquer raio para aquisição, pois o consumidor precisa apenas adquirir o produto instantaneamente em seu computador ou smartphone.

Portanto, para produtos físicos que tenham substitutos digitais, a economia digital ampliou as dimensões produto e geográfica, chegando o produto físico, em alguns casos, a ser eliminado do mercado. O mercado de formulários e darfs físicos é um exemplo de como um produto físico foi extinto em detrimento de um substituto digital. Isto aconteceu para todos os serviços públicos que exigem pagamentos e atestados públicos. Para estes mercados, a dimensão geográfica perdeu a sua efetividade, pois passou a ser todo o mundo onde houver internet e equipamentos eletrônicos que permitam a sua conexão.

Por fim, no mercado de produtos digitais que não encontram produtos físicos como substitutos, a única dimensão do mercado relevante que faz sentido analisar é a dimensão produto.

No limite, o que se verifica é que o avanço da economia digital tem tornado sem eficácia a análise da dimensão geográfica do mercado relevante quando os produtos digitais encontram ou não substitutos físicos.

No entanto, para os produtos físicos que não encontram substitutos na economia digital, as dimensões produto e geográficas continuam relevantes e as suas alterações dependerão do diferencial de desenvolvimento digital existente entre as regiões do mundo. Se os ganhos da economia digital em termos de custo afetarem igualmente todos os mercados físicos no mundo, as dimensões não se alteram, pois “pau que dá em Chico dá em Francisco”. No entanto, se a economia digital afetar mais algumas localidades do que outras, os mercados relevantes daquelas localidades em que se apropriarem menos do ganho digital tenderá a se ampliar comparativamente com as demais regiões.

A lição que fica é a de que em uma economia mista – analógica e digital – é inquestionável que as autoridades antitrustes do mundo devam avaliar em que mercado o produto, objeto de avaliação, está inserido (puramente físico, físico e digital ou puramente digital) e, conforme a sua substituibilidade, adotar um dos critérios, adequando os seus conceitos diante da nova realidade digital que se impõe. O direito antitruste não pode fechar seus olhos para as transformações sociais (novo paradigma da tecnologia da informação), sob pena de se perder a própria essência do que se busca proteger. Estejamos atentos!


[1] CAMUS, Albert. O mito de sísifo. Tradução de Ari Roitman. 9.ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017, p. 38.

[2] “Yet even as the lights are dimming in some old-line industries, technology is spawning boundless opportunities in such esoteric fields as microelectronics, lasers, fiber optics and genetic engineering.” [ALEXANDER, 1983].

[3] ALEXANDER, Charles P. The new economy. Time. May 30, 1983. Disponível em: The New Economy – TIME.

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