CADE e Banco Central na defesa da concorrência do mercado financeiro

Leandro Oliveira Leite

O mercado bancário brasileiro tem passado por mudanças importantes nos últimos anos, impulsionadas principalmente pelo desenvolvimento de novas tecnologias e modelos de negócios. Nesse contexto, o PIX, a segmentação financeira, os bancos digitais, o WhatsApp Pay, o Open banking e a Autonomia do Banco Central do Brasil (BCB) são alguns exemplos de iniciativas que contribuíram para tornar o mercado bancário mais eficiente.

A colaboração entre o Banco Central e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) é essencial para garantir um mercado financeiro saudável e competitivo. As responsabilidades complementares de ambas as autarquias permitem uma supervisão mais eficaz do mercado financeiro e uma resposta mais ágil a possíveis problemas de concorrência. A colaboração também ajuda a promover a inovação e a entrada de novas empresas no mercado financeiro, o que beneficia os consumidores.

Enquanto o Banco Central tem competência em supervisionar e regular o Sistema Financeiro Nacional (SFN), o CADE é responsável por garantir que as empresas do setor financeiro cumpram as leis antitruste e promovam a concorrência saudável, sendo responsável por investigar e punir as empresas que violam as leis de defesa da concorrência. Isso inclui o combate a práticas anticompetitivas no mercado financeiro, como acordos de fixação de preços ou ações para limitar a entrada de novas empresas. O CADE também pode avaliar previamente as fusões e aquisições do setor e tomar medidas preventivas quando necessárias.

O Banco Central, por sua vez, possui competências complementares ao CADE na medida em que é responsável por monitorar e regulamentar a entrada de novas empresas no mercado financeiro, principalmente no caso das fintechs. O termo em inglês Fintech vem da junção das palavras financeiro e tecnologia, se tratando da tecnologia e inovação aplicadas na solução de serviços financeiros e que competem diretamente com o modelo tradicional ainda prevalente do setor. Deste modo, empresas startups que buscam operar e aperfeiçoar serviços financeiros através de soluções tecnológicas são consideradas empresas fintech.

De uma forma geral, as fintechs fazem uso de tecnologias como Inteligência Artificial, Computação em Nuvem e Big Data para criar um ambiente totalmente digital e automatizado, distribuído para seus clientes nos diversos canais digitais existentes, sobretudo smartphones. Isto permite que as empresas trabalhem de maneira remota, sem a necessidade de agências físicas ou mesmo de operadores humanos, como é o caso do atendimento operado por bots.

Trabalhando na fronteira da inovação, o CADE tem atuado na melhor eficiência do mercado com o uso das tecnologias e o Banco Central tem criados incentivos para promover a concorrência, seja com (i) a segmentação regulatória financeira, (ii) o Sandbox Regulatório e (iii) o Laboratório de Inovações Financeiras Tecnológicas (LIFT). Este último tem-se oferecido um ambiente tecnológico controlado para que as empresas testem novas ideias e produtos financeiros. Isso permitiu que novas empresas concorram com os bancos tradicionais e tragam inovação e benefícios para os consumidores.

A segmentação financeira instituída pelo Banco Central, por sua vez, é uma classificação das instituições financeiras em cinco categorias (S1 a S5), de acordo com sua complexidade operacional. Essa classificação é utilizada pelo Banco Central para atender às exigências regulatórias às características específicas de cada instituição. Esse modelo tem permitido que os bancos mantenham produtos e serviços mais adequados às necessidades de cada segmento, ou seja, quanto maior for a instituição financeira maiores serão as exigências normativas, tratando os desiguais na exata medida de suas desigualdades normativas.

Corroborando com este entendimento, o Sandbox Regulatório é um ambiente controlado criado pelo Banco Central para permitir que as empresas testem novos produtos e serviços financeiros, sem estar sujeitos a todos os requisitos regulatórios de forma imediata, desde que cumprem com requisitos mínimos de segurança e proteção ao consumidor. Nesse sentido, o Sandbox Regulatório do Banco Central tem se mostrado uma importante ferramenta para a concorrência, uma vez que permite que novas empresas entrem no mercado e aumentem a competição entre as instituições financeiras.

Ao fomentar a inovação no mercado bancário, o programa contribui para a diversificação dos produtos e serviços oferecidos pelas instituições financeiras, bem como para a redução dos custos e melhoria da eficiência no setor. Isso traz benefícios tanto para os consumidores, que têm acesso a produtos e serviços mais adequados às suas necessidades, quanto para as empresas, que conseguem se diferenciar no mercado e conquistar novos clientes. Além disso, aumenta a pressão competitiva sobre as instituições financeiras tradicionais, inibindo a possibilidade de práticas anticompetitivas, como a formação de cartel ou a criação de barreiras à entrada de novas empresas.

Outra inovação importante no mercado bancário foi o PIX (pagamento instantâneo brasileiro), em que permitiu a transferência imediata de dinheiro entre bancos e instituições financeiras em tempo real e sem custo para o usuário final, eliminando a necessidade de intermediários e atendendo os custos e tempo das transações financeiras. Com isso, o PIX trouxe maior eficiência ao mercado bancário e caiu no gosto popular.

Estas inovações têm contribuído para a extensão do acesso aos serviços financeiros, bem como para a redução dos custos de transação no mercado bancário, uma vez que elimina a necessidade de intermediários e torna as transações financeiras mais rápidas e seguras. Uma das principais vantagens apontadas pelo modelo é a maior acessibilidade e praticidade por parte dos clientes, promovidas pela difusão do produto em smartphones.

O WhatsApp Pay, por exemplo, integrado ao PIX, permite que as pessoas façam pagamentos e transferências de dinheiro diretamente pelo aplicativo de mensagens, sem a necessidade de baixar um aplicativo bancário separado. Apesar de inovações polêmicas, como no caso do WhatsApp Pay, o Banco Central e o CADE têm atuado em conjunto para monitorar e garantir a melhor concorrência no mercado de pagamentos, tornando o processo mais fácil e conveniente para os usuários, garantindo a eficiência em menos cliques.

O Open banking é outra sacada do regulador que permitiu que os clientes compartilhem seus dados bancários com outras instituições financeiras, o que facilita a criação de produtos financeiros personalizados e adaptados às necessidades de cada cliente. Com isso, o mercado bancário se torna mais eficiente ao oferecer produtos e serviços que atendam melhor às necessidades dos clientes, avaliando-o melhor e reduzindo as taxas do crédito. O Open Banking é um conjunto de tecnologias e padrões que permitem o compartilhamento de dados financeiros entre instituições, de forma segura e padronizada.

Por fim, assim tão importante quanto a função judicante do CADE de entidade independente – a exemplo das agências reguladoras, a recente autonomia do Banco Central permitiu que possa atuar de forma mais eficiente na condução da política monetária e cambial do país, garantindo a estabilidade do sistema financeiro e a manutenção da estrutura da livre concorrência. Isso contribui para a eficiência do mercado bancário, criando um ambiente de estabilidade e confiança, bem como favorece a concorrência e o desenvolvimento do setor.

Em resumo, todas essas iniciativas têm em comum o objetivo de tornar o mercado financeiro mais eficiente, mais acessível e mais inovador, desejável para a promoção da concorrência e para o benefício dos consumidores. Tanto o Banco Central quanto o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), ilhas de excelência no serviço público, têm papéis importantes na promoção da concorrência no Sistema Financeiro Nacional (SFN). Esses avanços até aqui, com o uso consciente de tecnologias para tornar os serviços financeiros mais acessíveis e mais baratos, tem contribuído para aumentar a previsibilidade, confiança e a transparência das políticas públicas, o que tem efeitos de externalidades positivas sobre a economia como um todo.

Bibliografia:

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Leandro Oliveira Leite. Servidor público federal, analista do Banco Central do Brasil (BCB), atualmente trabalhando no CADE na área de condutas unilaterais, possui graduações em Administração, Segurança Pública e Gestão do Agronegócio e especialização em Contabilidade Pública. Tem experiência na parte de supervisão do sistema financeiro e cooperativismo pelo BCB, bem como, já atuou com assessor técnico na Casa Civil.


Obs. Este artigo foi escrito no curso de defesa da concorrência da WebAdvocacy ofertado no primeiro semestre de 2023 e não reflete a opinião pessoal do autor.

É mesmo necessário regular plataformas digitais? Por quê? Como? Por quem?

Lucia Helena Salgado & Bianca Mollicone

Plataformas digitais são empresas de tecnologia que operam como intermediários entre ofertantes e demandantes, em mercados de dois ou múltiplos lados. Como desenho de negócios, não são uma inovação da era digital; veículos de comunicação (jornais) e de meios de pagamento (cartões de crédito) são exemplos mais antigos e conspícuos de mecanismos facilitadores e multiplicadores de transações entre compradores e vendedores. Nem mesmo a aparente gratuidade de serviços de redes sociais ou busca é uma invenção das plataformas digitais: basta recordar o exemplo do rádio e tv aberta, remunerados pela propaganda.

O que há de disruptivo na economia de plataformas é algo de dupla dimensão: de um lado o tratamento de dados dos usuários – coleta e análise crescente por poderosas ferramentas de inteligência artificial, utilizados como fonte de geração de valor (monetização); de outro lado a amplitude planetária do fenômeno, capaz de influenciar os rumos da economia e sociedade nas mais diversas jurisdições. As grandes empresas de tecnologia souberam aplicar resultados de décadas de pesquisa em ciência básica – a internet, o gps, a transmissão de dados por satélites e por fibras óticas – em produtos e serviços. A economia do conhecimento e da informação, potencialmente geradora de bens públicos e bem-estar, deu lugar neste século a tecnologias proprietárias, incorporadas ao modelo de negócios em plataformas, dando origem à concentração de poder econômico até então jamais vista na história humana.

A dominância exercida hoje pelas plataformas tecnológicas reproduz em escala superior o movimento de centralização e concentração de capital do final do século XIX e início do século XX, protagonizado pelas indústrias mais dinâmicas naquele período, formando trustes e cartéis: energia, metalurgia, siderurgia, ferrovias. Nos Estados Unidos, epicentro desse processo, as transformações do ambiente econômico geraram desconfiança e revolta nos mais diferentes segmentos entre empresários, trabalhadores e consumidores, traduzindo-se em ácidas críticas, nas ruas e nos meios de comunicação, aos riscos à democracia e aos princípios formadores daquela sociedade impostos pela monopolização de indústrias.

O mal-estar provocado pelo visível desequilíbrio de forças na sociedade em favor dos segmentos mais avançados e concentrados da indústria canalizou-se no Congresso norte-americano para a legislação que gerou as inovações institucionais que hoje tão bem conhecemos. Da mesma forma que a demanda social por uma resposta política à concentração de poder econômico naquele momento deu origem ao antitruste e à regulação de serviços de utilidade pública, em diversas jurisdições hoje (tendo a União Europeia à frente), estuda-se e debate-se o que fazer para frear a dominação exercida pelas plataformas digitais.

A União Europeia (UE) promulgou recentemente duas leis regulando serviços digitais. O Digital Services Act (DSA), cujas regras para operação de plataformas entraram em vigor em novembro de 2022, determinando às empresas digitais o envio de dados em fevereiro deste ano. Com base neles, a Comissão Europeia adotou, em 25 de abril de 2023, as primeiras decisões de designação previstas no DSA, apontando dezessete plataformas[1] como “Very Large Online Platforms” (VLOPs) e duas como “Very Large Online Search Engines” (VLOSEs), que atingem pelo menos 45 milhões de usuários ativos mensais. A partir da designação, essas plataformas e mecanismos de busca terão quatro meses para estar em conformidade com as novas obrigações, o que deverá ocorrer até setembro de 2023.  Empresas e Estados nacionais têm prazo para adaptação às regras até fevereiro de 2024.

O DSA, embora tenha um escopo bem mais amplo, serviu de inspiração ao PL 2.630/2020 (“PL das Fake News”). O PL busca estabelecer regras para a geração e divulgação de conteúdo pelas plataformas, responsabilizando-as solidariamente pelo conteúdo veiculado em caso de distribuição por meio de publicidade ou do descumprimento do dever de cuidado trazido pelo novo texto do Projeto.

A segunda lei é o Digital Market Act (DMA), que entrou em vigor na EU em 1º de maio deste ano, estabelecendo ex-ante as condutas proibidas às denominadas Gatekeepers. O DMA define regras de conduta (“do’s and dont’s”) buscando impedir, antes que ocorram, abusos de posição dominante. Seguindo os debates e estudos travados desde 2019, a lei cria uma mescla de antitruste e regulação assimétrica, ao estabelecer a proteção da concorrência – com a intenção de preservar a contestabilidade e o potencial de inovação de novos entrantes, impedindo práticas de fechamento de mercado e predação de rivais, garantindo o acesso justo (fair access) aos mercados existentes (multi-homming) e mercados adjacentes.

O DMA inspirou o Projeto de Lei 2768, proposto em novembro de 2022 no Brasil, visando a regulação, fiscalização e sanção das plataformas digitais, delegando essa tarefa à Agência Nacional de Telecomunicações. O projeto mira nas plataformas consideradas detentoras de poder de controle de acesso essencial, assim definidas como aquelas que auferirem receita operacional anual igual ou superior a R$ 70 milhões com a oferta de serviços ao público brasileiro, nos termos de regulamentação da ANATEL.

Na agenda de regulação das plataformas digitais em todo o mundo estão ainda estudos sobre leis que visam definir regras para o uso de inteligência artificial (IA). Na UE, pioneira nessa iniciativa, foi proposto, em abril de 2021, o AI Act, cuja aprovação avançou  mais um passo em 11 de maio último. As regras seguem uma abordagem baseada no risco, estabelecendo obrigações escalonadas para provedores e usuários, com base no nível de risco que a IA pode gerar. Sistemas de IA com um nível inaceitável de risco para a segurança das pessoas são estritamente proibidos.

Novamente com inspiração na UE, o presidente do Senado brasileiro protocolou, no dia 03.05.23, o Projeto de Lei 2338/23, que cria o marco regulatório da Inteligência Artificial no país. O projeto prevê maior transparência sobre a utilização e o funcionamento dos sistemas de IA e o direito a explicação. Assim como no AI Act europeu, os sistemas de IA também serão categorizados pelo nível de risco.

O exemplo europeu é inspirador: após profundo debate e análise, incluindo consultas públicas, dos problemas levantados pelo surgimento das plataformas digitais e a intensa concentração de poder econômico, formou-se consenso em torno da complexidade das questões a serem enfrentadas. Foram identificadas as três principais fontes de danos à sociedade geradas pelo modelo de negócio das plataformas: a) a rentabilização via propaganda e posicionamento em resultados de busca do tempo de atenção capturada do usuário, por meio de táticas de mobilização de emoções e filtragem de informações (bem conhecidas pela economia comportamental); b) condutas exclusionárias impulsionadas pelas externalidades de rede diretas e indiretas presentes nos mercados digitais; c) riscos para a coesão e mesmo convivência social advindos da utilização ilimitada e opaca de inteligência artificial. Para o enfrentamento de cada dimensão de riscos vêm sendo definidas e postas em prática regras visando a proteção da privacidade, da concorrência, da coesão e da convivência social, de modo a preservar os benefícios gerados pelas inovações tecnológicas ao tempo em que se mitigam danos ao bem-estar.

No Brasil tampouco estamos distantes de inovar institucionalmente, estabelecendo regras de conduta e mecanismos de monitoração e cumprimento da legislação por plataformas digitais, na mesma direção do que se vem construindo na União Europeia, como visto, e do mesmo modo no Canadá, na Austrália e países nórdicos.

A economia digital, com estratégias focadas no uso intensivo de dados e inteligência artificial, tem trazido desafios significativos nas esferas da proteção de dados, defesa do consumidor e defesa da concorrência. Certamente uma futura entidade de supervisão deveria aliar competências nessas áreas, que já possuem legislação e órgãos reguladores próprios no Brasil.  Temos dois Projeto de Lei em tramitação na Câmara de Deputados tratando de pontos levantados no DSA e DMA europeus. Contudo, para seguirmos avançando precisamos inovar no desenho institucional.

O aparato regulatório e de proteção da concorrência e do consumidor não tem se mostrado (aqui como em outras jurisdições), isoladamente, suficiente para estabelecer com clareza limites e obrigações para as empresas com posições dominantes nos mercados digitais.

Conferir autoridade para aplicar as leis que virão resultar dos Projetos de Lei 2630/2020 e 2768/2022 a um dos entes públicos já existentes pode estar longe de configurar uma solução inteligente, visto que há “n” dimensões da economia digital a serem tratadas, sendo que cada uma delas ultrapassa tanto competência como expertise dos entes públicos federais aqui referidos. Tampouco faz sentido criar uma autoridade regulatória específica quando várias das dimensões dos problemas gerados pela economia digital tangenciam ou são passiveis de tratamento pelas autoridades já existentes.

A solução institucional que propomos requer a mobilização transversal da capacidade técnica, ferramental e procedimental já em operação transferida para um ente destacado composto por conjunto de técnicos e gestores atuantes nas agências reguladoras, no CADE, SENACON e ANPD (sem excluir outros agentes públicos interessados e futuros concursados) a serem convocados para treinamento e capacitação nos fundamentos técnicos necessários para a compreensão dos mecanismos em uso na economia digital e respectivos impactos.

Esse núcleo de técnicos (experiente em regulação e/ou defesa da concorrência, do consumidor e proteção de dados e capacitado, pela nova iniciativa, em ciência de dados, ciência comportamental e até ciência da computação) seria responsável pela análise de denúncias e acompanhamento sistemático de mercados. As notas técnicas preparadas à forma de parecer seriam encaminhadas a um colegiado composto por representantes das autoridades (ANPD, ANATEL, CADE, SENACON e eventualente do BACEN, tendo em vista o avanço das plataformas nos serviços financeiros), representante do Ministério Público (direitos difusos), representante de entidade de defesa dos consumidores e representante de instituto de estudos de mercados digitais, sem fins lucrativos. Esse corpo de representantes, da Sociedade e do Estado, decidiria o encaminhamento de providências como determinar ordem de fazer ou não fazer que, caso descumprida, importaria em remessa à autoridade indicada pelo colegiado (conforme tipo de infração), sugerindo a imposição de penalidade, assim como denúncia fundamentada ao MPF, tudo com ampla ciência da Sociedade.

Esse desenho institucional inovador – que não importaria em aumento da máquina estatal nem aumento expressivo de gastos de custeio (visto que os representantes da sociedade participariam das sessões do colegiado sem remuneração, recebendo apenas eventual cobertura de custos de deslocamento) – daria conta de aplicar uma “Lei das Plataformas Digitais”, que comportaria medidas como as previstas no PL 2768/2022,  equivalentes às definidas no DMA europeu, que definem ex-ante o código de conduta das plataformas detentoras de poder de controle de acesso essencial, de modo a proteger a concorrência e o consumidor na era digital, sem prejuízo à inovação.


[1] https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/dsa-vlops

Lucia Helena Salgado. Professora Títular da Faculdade de Ciências Econômicas, Programa de Pós Graduação em Ciências Econômicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Université de Toulouse I, Capitole – Toulouse School of Economics (TSE) 2012-2013 (apoio CAPES). Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professora visitante Toulouse School of Economics, Master 2 ECL – Economics and Competition Law, (fev. mar. 2014); foi pesquisadora visitante e doutoranda em intercâmbio na Universidade da Califórnia, Berkeley (1994-1996); mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e bacharel em Economia pela UFRJ. Foi membro do grupo de trabalho que deu origem à lei brasileira de defesa da concorrência e conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) por dois mandatos, de 1996 a 2000. Foi Coordenadora de Estudos de Regulação e Mercados da Diretoria de Estudos e Políticas de Estado, Instituições e Democracia do IPEA de 2008 a 2013. Atualmente, é Professora visitante do curso de Pós-Graduação em Gestão da Inovação do Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação do Instituto de Geociências da Unicamp desde 2006; é membro da equipe de pesquisa do NECTAR/ITA (Núcleo de Economia dos Transportes, Antitruste e Regulação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Tem coordenado grupos de pesquisa em escala nacional e internacional desde 1994 em Organização Industrial, Regulação Econômica, Mecanismos de Governança e Direito e Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: instrumentos regulatórios e desenho de mecanismos, economia antitruste, propriedade intelectual e concorrência e nova economia institucional. Coordena o curso de pós graduação lato sensu em Direito e Economia da Regulação e da Concorrência, oferecido pela UERJ.

Bianca Mollicone. Doutoranda em Direito pela USP, com pesquisa na área de concorrência e regulação de IA, Mestre em Administração pela UFBA, com pesquisa na área de competitividade e inovação, Economista pela UFBA. Pós-graduada em Gestão Empresarial pela FGV/RJ e em Direito Tributário pelo IBET. Formação complementar em Negociação pelo Program on Negotiation da Harvard Law School e em Law & Economics pela Law School da Universidade de Chicago. Professora convidada dos cursos de Direito e Economia e Proteção de Dados da Faculdade Baiana de Direito. Coordenadora do Legal Grounds Institute. Diretora Acadêmica da Associação Brasileira de Direito e Economia – ABDE. Membra da Comissão Juridica do IBGC. Sócia responsável pela área de Proteção de Dados e Compliance do Pessoa e Pessoa Advogados.

O Novo paradigma desenvolvimentista: produtivismo.

Marco Aurélio Bittencourt

Dani Rodrik, economista colocado no topo junto àqueles que contribuem para questões de políticas públicas relevantes para o desenvolvimento  de países com baixa renda per capita, traz agora uma visão resumida para os tempos atuais: o paradigma neoliberal encontrou seu limite e só aprofunda problemas de política econômica. Em seu lugar propõe um novo paradigma: produtivismo. Do que se trata?

Em suas próprias palavras, diz que “uma abordagem que prioriza a disseminação de oportunidades econômicas produtivas em todas as regiões da economia e segmentos da força de trabalho …. enfatiza a produção e o investimento sobre o financiamento e a revitalização das comunidades locais sobre a globalização, trabalhando no lado da oferta da economia para criar boas oportunidades de empregos produtivos para todos”.

Ele põe ênfase nos principais problemas econômicos como pobreza, desigualdade, exclusão e insegurança que são reproduzidos e reforçados diariamente no curso da produção, como um subproduto imediato das decisões de emprego, investimento e inovação das empresas, ou seja, essas decisões estão repletas de externalidades para a sociedade.

E nesse compasso produtivo de efeitos colaterais temos dois lados: externalidades negativas e positivas que podem ser reforçadas por políticas públicas. Rodrik vai se ater as externalidades positivas pela geração de “bons empregos.” 

Segundo Rodrik, “Os formuladores de políticas em nações avançadas estão agora lidando com as mesmas questões que há muito preocupam os formuladores de políticas de desenvolvimento: como atrair investimentos, criar empregos, aumentar as habilidades, estimular o empreendedorismo, melhorar o acesso ao crédito e à tecnologia – em suma, como fechar a lacuna com as partes mais avançadas e produtivas da economia nacional?”

Certamente, nossas mazelas têm um pé nas externalidades negativas das próprias políticas públicas. A dificuldade de se identificar a tempo tais eventos perversos, talvez justifique em parte tal omissão corretiva. Mas sobram outras questões, principalmente a mentalidade escravagista. Mas isso não foi assunto tratado por Rodrik em seu artigo sobre o produtivismo – on production 2023.

Essa indagação de como fechar a lacuna entre os setores produtivos tem que primeiro desvendar o padrão produtivo atual que pode ser refletido pelo gráfico abaixo (Parkin, economics).

O Brasil se aproxima quantitativamente do padrão americano, conforme se depreende do gráfico abaixo (IBGE).

O Capital humano acompanha essa estrutura produtiva. Para o padrão americano, temos a seguinte estimativa :

Para o padrão brasileiro, temos a seguinte configuração para o capital humano:

Uma análise mais aprofundada poderia revelar onde se encontram os mais qualificados. Certamente em serviços , por conta da participação governamental e da importância do segmento saúde, teremos fatia importante. Resta o setor financeiro e aqueles ramos de alta tecnologia. A indústria ocuparia outra faixa e agricultura uma faixa provavelmente pequena.

É essa estrutura produtiva nacional que me faz crer que a reforma do ensino médio está no caminho correto, privilegiando o setor serviços que demandam capital humano na faixa do ensino médio e superior incompleto. Mas chama atenção a faixa dos que detêm pouca qualificação o que demandaria política educacional específica.

As políticas públicas sugeridas por Rodrik devem necessariamente observar o padrão produtivo estampado nos gráficos acima. O trabalho recente do banco mundial – Equilíbrio Delicado para a Amazônia Legal Brasileira – Um Memorando Econômico – é uma tentativa nessa direção de Rodrik. Mas certamente o estímulo ao pleno funcionamento de instituições que promovam uma economia competitiva também deve entrar no rol de políticas públicas relevantes para abrir espaço para novas oportunidades de negócios.

Algumas dúvidas frequentes de pequenos negócios sobre concorrência

Fernando de Magalhães Furlan

Estudos têm demonstrado que a maioria das MPMEs tem um conhecimento muito limitado de seus direitos e obrigações em relação às leis de concorrência, e ainda menos inclinação para utilizá-los em seu benefício, a menos que seja assistida por uma associação comercial ou organismo semelhante[1].

Isso também se aplica quando uma MPME é vítima de uma violação da lei de concorrência por outra empresa. Muitas sequer têm ciência de tais violações ou conhecimento das medidas corretivas disponíveis. Além disso, o sistema legal na maioria dos países é lento, caro de utilizar e raramente oferece um resultado comercialmente viável. Consequentemente, em questões de concorrência, as pequenas empresas estão efetivamente tendo o acesso negado à justiça e a políticas públicas econômicas eficazes[2].

Para as economias em desenvolvimento, onde o conhecimento das leis e políticas de concorrência pode ser limitado, as associações representativas têm um papel fundamental a desempenhar, tanto educando suas MPMEs sobre a existência de leis de concorrência, quanto auxiliando no seu cumprimento e na sua aplicação[3].

Apesar de se reconhecer que, muitas vezes, associações podem ser instrumentos para, por exemplo, a formação de cartéis “inocentes” envolvendo MPMEs[4], também deve-se considerar que a colaboração empresarial lícita pode resultar em melhor acesso a mercados.

A pesquisa empírica constata[5] que os laços horizontais permitem o uso coletivo de recursos, bem como a inovação conjunta de produtos e fornecem um meio de contornar a limitação de escala e infraestrutura[6]. Da mesma forma, os laços verticais podem fornecer maneiras eficazes de atualizar empresas nacionais, facilitando a transferência de tecnologia, conhecimento e habilidades, melhorando as práticas de negócios e de gestão e facilitando o acesso a mercados[7].

As associações empresariais de MPMEs, portanto, têm um papel essencial de conscientização e compliance em relação aos mecanismos disponíveis nas leis de concorrência para isentar ou autorizar condutas. É natural que as MPMEs, individualmente, tenham receio de represálias ou de danos à reputação com fornecedores e consumidores, sendo crucial a representação por meio de associações.

São muitas e frequentes as dúvidas dos pequenos negócios em relação ao cumprimento da legislação antitruste e do seu próprio papel no mercado e seus direitos. Abaixo tentamos reunir brevemente algumas das dúvidas mais frequentes das MPMEs quanto à defesa da concorrência.

Potenciais condutas anticompetitivas no relacionamento com fornecedores

a. Recusa de contratação/fornecimento

Em geral, um vendedor tem o direito de escolher seus parceiros de negócios. A recusa de uma empresa em negociar com qualquer outra empresa é lícita, desde que a recusa não seja produto de um acordo anticompetitivo com outras empresas ou parte de uma estratégia predatória ou excludente para adquirir ou manter um monopólio.

Pergunta: Sou proprietário de uma pequena loja de roupas e o fabricante de uma linha popular de roupas recentemente me deixou como outlet (loja de preços com descontos). Tenho certeza de que foi porque meus concorrentes reclamaram que eu vendo abaixo do preço sugerido. A explicação foi a política do fabricante: seus produtos não devem ser vendidos abaixo do preço de varejo sugerido, e os revendedores que não cumprirem estão sujeitos à rescisão. É legal que o fabricante me corte?

Resposta: Sim. Um fabricante pode ter uma política de que seus revendedores devem vender um produto acima de um determinado preço mínimo e encerrar um revendedor que não honre essa política. Os fabricantes podem optar por adotar esse tipo de política porque incentiva os revendedores a fornecer atendimento completo ao cliente e impede que outros revendedores, que podem não fornecer o serviço completo, retirem clientes e “peguem carona” nos serviços prestados por outros revendedores. No entanto, pode ser ilegal que o fabricante o abandone se ele tiver um acordo com seus concorrentes para cortá-lo para ajudar a manter um preço com o qual eles concordaram.

Vale destacar que a prática de fixação de preços de revenda – em diferentes modalidades, como preço sugerido, preço mínimo de revenda, preço máximo de revenda etc. – é vista com reservas por autoridades de defesa da concorrência em diferentes jurisdições, como Estados Unidos da América, Reino Unido, União Europeia e, inclusive, Brasil – sendo que em sua análise os possíveis benefícios decorrentes desse tipo de política alegados pelas empresas devem ser claramente demonstrados.

b. Contratos de exigência ou negociação exclusiva

Contratos exclusivos de negociação ou de requisitos entre fabricantes e varejistas são comuns e geralmente são legais. Em termos simples, um contrato de negociação exclusiva impede um distribuidor de vender os produtos de um fabricante diferente, e um contrato de requisitos impede um fabricante de comprar insumos de um fornecedor diferente. Esses arranjos são julgados sob um padrão de regra de razão, que equilibra quaisquer efeitos pró-competitivos e anticompetitivos.

Contratos de negociação exclusiva podem ser benéficos porque incentivam o suporte de marketing para a marca do fabricante. Ao se tornar um especialista em produtos de um fabricante, o revendedor é incentivado a se especializar na promoção da marca desse fabricante. Isso pode incluir a oferta de serviços ou comodidades especiais que custam dinheiro, como uma loja atraente, vendedores treinados, horário comercial longo, estoque de produtos à mão ou serviço rápido de garantia. Mas os custos de fornecer algumas dessas comodidades – que são oferecidas aos consumidores antes do produto ser vendido e podem não ser recuperados se o consumidor sair sem comprar nada – podem ser difíceis de repassar aos clientes na forma de um preço de varejo mais alto. Por exemplo, o consumidor pode pegar uma “carona” nos valiosos serviços oferecidos por um varejista e, em seguida, comprar o mesmo produto a um preço mais baixo de outro varejista que não oferece comodidades de alto custo, como um armazém de desconto ou um serviço online. Se o varejista de serviço completo perder vendas suficientes dessa maneira, poderá eventualmente parar de oferecer os serviços. Se esses serviços fossem genuinamente úteis, no sentido de que o produto mais os serviços juntos resultaram em vendas maiores para o fabricante do que o produto sozinho teria, há uma perda tanto para o fabricante quanto para o consumidor. Como resultado, a lei antitruste não veda a priori restrições verticais não relacionadas a preços, como contratos de negociação exclusiva que visam a incentivar os varejistas a fornecer serviços extras.

Por outro lado, um fabricante com poder de mercado pode potencialmente usar esses tipos de arranjos verticais para impedir que concorrentes menores tenham sucesso no mercado. Por exemplo, contratos exclusivos podem ser usados ​​para negar a um concorrente o acesso a varejistas ou distribuidores sem os quais o concorrente não pode realizar vendas suficientes para ser viável.

Em algumas situações, a negociação exclusiva pode ser usada pelos fabricantes para reduzir a concorrência entre eles.

Pergunta: Sou um pequeno fabricante de monitores de tela plana de alta qualidade. Eu gostaria de colocar meus produtos em um grande varejista, mas a empresa diz que tem um acordo para vender Resposta: Acordos de distribuição exclusiva como este não são proibidos pela lei antitruste. Embora o varejista seja impedido de vender monitores de tela plana concorrentes, esse pode ser o tipo de produto que requer um certo nível de conhecimento e serviço para vender. Por exemplo, se o fabricante investe no treinamento da equipe de vendas do varejista sobre a operação e os atributos do produto, pode razoavelmente exigir que o varejista se comprometa a vender apenas sua marca de monitores. Este nível de serviço pode beneficiar os compradores de produtos eletrônicos sofisticados. As leis antitruste provavelmente não interferirão nesse tipo de acordo exclusivo, a menos que se observem efeitos líquidos claramente negativos à concorrência, acarretando prejuízos aos consumidores, como por exemplo, restrição das possibilidades de escolha do consumidor (em relação à variedade de produtos e de ofertantes) e aumentos de preços.

c. Requisitos impostos pelo fabricante

A imposição de preço razoável, território e restrições de clientes aos revendedores são legais. Os requisitos impostos pelo fabricante podem beneficiar os consumidores ao aumentar a concorrência entre diferentes marcas (concorrência intermarcas) e ao mesmo tempo reduzir a concorrência entre revendedores da mesma marca (concorrência intramarcas). Por exemplo, um acordo entre um fabricante e um revendedor para estabelecer preços máximos (ou “teto”) impede os revendedores de cobrar um preço não competitivo. Ou um acordo para definir preços mínimos (ou “pisos”) ou para limitar territórios pode incentivar os revendedores a fornecer um nível de serviço que o fabricante deseja oferecer aos consumidores quando eles compram o produto. Esses benefícios devem ser ponderados em relação a qualquer redução na concorrência das restrições.

Em regra, todos os programas de preços verticais (máximos ou mínimos) impostos pelo fabricante devem ser avaliados usando uma abordagem da regra da razão. Pois, “na ausência de restrições verticais de preços, os serviços de varejo que aumentam a concorrência entre marcas podem ser mal fornecidos. Isso ocorre porque os varejistas com descontos podem pegar carona nos varejistas que fornecem serviços.

Se um fabricante, por si só, adota uma política relativa a um nível de preços desejado, lhe é permitido que negocie apenas com varejistas que concordem com essa política. Um fabricante também pode deixar de negociar com um varejista que não segue sua política de preços de revenda. Ou seja, um fabricante pode implementar uma política de revendedor em uma base de “pegar ou largar”.

As limitações sobre como ou onde um revendedor pode vender um produto (ou seja, restrições de cliente ou território) são geralmente legais — se forem impostas por um fabricante agindo por conta própria (não em conluio). Esses acordos podem resultar em melhores esforços de vendas e atendimento na área atribuída do revendedor e, consequentemente, maior concorrência com outras marcas.

Podem surgir questões antitruste se um fabricante concordar com fabricantes concorrentes em impor restrições de preço ou não na cadeia de suprimentos (ou seja, ao lidar com fornecedores ou revendedores), ou se fornecedores ou revendedores agirem em conjunto para induzir um fabricante a implementar tais restrições. Novamente, a distinção crítica é entre uma decisão unilateral de impor uma restrição (legal) e um acordo coletivo entre concorrentes para fazer o mesmo (ilegal). Por exemplo, um grupo de revendedores de automóveis ameaçou não vender uma marca de automóveis, a menos que o fabricante alocasse carros novos com base nas vendas feitas aos clientes no território de cada revendedor. A autoridade antitruste considerou as ações dos revendedores irracionais e projetadas principalmente para impedir que um revendedor vendesse a preços baixos “sem pechincha” e via Internet para clientes em todo o país.

Determinar se uma restrição é “vertical” ou “horizontal” pode ser confuso em alguns mercados, particularmente onde alguns fabricantes operam em muitos níveis diferentes e podem até fornecer insumos importantes para seus concorrentes. O rótulo não é tão importante quanto o efeito: a restrição reduz excessivamente a concorrência entre os concorrentes em algum nível? A contenção vertical é produto de um acordo entre concorrentes? E rotular um acordo como um arranjo vertical não o salvará do escrutínio antitruste quando houver evidência de efeitos horizontais anticompetitivos.

Pergunta: Um dos meus fornecedores marca seus produtos com um preço de varejo sugerido pelo fabricante. Tenho que cobrar este preço?

Resposta: A palavra-chave é “sugerida”. Um revendedor é livre para definir o preço de varejo dos produtos que vende. Um revendedor pode definir o preço no de acordo com o valor sugerido pelo fabricante ou em um preço diferente, desde que o revendedor tome essa decisão por conta própria. No entanto, o fabricante também pode decidir não usar distribuidores que não adiram ao seu preço sugerido.

Pergunta: Sou um fabricante e ocasionalmente recebo reclamações de revendedores sobre os preços de varejo que outros revendedores estão cobrando pelos meus produtos. O que devo dizer a eles?

Resposta: Os concorrentes em cada nível da cadeia de suprimentos devem definir os preços de forma independente. Isso significa que os fabricantes não podem concordar com os preços no atacado e os revendedores não podem concordar com os preços no varejo. No entanto, um fabricante pode ouvir seus revendedores e agir por conta própria em resposta ao que aprende com eles.

Muitos casos antitruste privados envolvem um fabricante cortando um revendedor com desconto. Muitas vezes, há evidências de que o fabricante recebeu reclamações de revendedores concorrentes antes de encerrar o contrato com o vendedor que oferece descontos. Esta evidência por si só não é suficiente para mostrar uma violação; o fabricante tem o direito de tentar manter seus revendedores satisfeitos com sua afiliação. Questões legais podem surgir se parecer que os revendedores concordaram em ameaçar um boicote ou pressionar coletivamente o fabricante a agir.

Pergunta: Gostaria de vender os produtos de um determinado fabricante, mas a empresa já possui um revendedor franqueado na minha região. Isso não é uma restrição à concorrência?

Resposta: Um fabricante pode decidir quantos distribuidores terá e quem serão. Do ponto de vista da concorrência, um fabricante pode decidir que usará apenas revendedores franqueados com territórios exclusivos para competir com maior sucesso com outros fabricantes. Ou pode decidir que usará revendedores diferentes para atingir grupos de clientes específicos.

Há prós e contras em ser um revendedor franqueado. Ao concordar em ser um revendedor franqueado, você provavelmente terá que cumprir os requisitos do fabricante para vender o produto, como horário de funcionamento, padrões de limpeza e similares. Essas restrições são vistas como limites razoáveis ​​sobre como você administra seus negócios em troca de negociar com uma marca estabelecida que os consumidores associam a um certo nível de qualidade ou serviço. Por exemplo, um cervejeiro pode exigir que todas as lojas de varejo armazenem sua cerveja a uma certa temperatura para preservar sua qualidade, porque os consumidores provavelmente culparão a má qualidade do fabricante – reduzindo assim as vendas em todos os pontos de venda – em vez de culpar o método inadequado de armazenamento do varejista.

Pergunta: Meu fornecedor oferece um programa de publicidade cooperativa, mas não posso participar se anunciar um preço abaixo do preço mínimo anunciado do fornecedor. Acho isso injusto.

Resposta: É permitido que um fabricante tenha uma margem de manobra considerável para definir os termos da publicidade que ele ajuda a pagar. O fabricante oferece esses programas promocionais para competir melhor com os produtos de outros fabricantes. Existem situações limitadas em que esses programas podem ter um efeito irracional nos níveis de preços. Por exemplo, uma determinada autoridade antitruste contestou as políticas de preço mínimo anunciado de cinco grandes distribuidores de música pré-gravada porque as políticas não eram razoáveis ​​em seu alcance: proibiam anúncios com preços com desconto, mesmo que o varejista pagasse pelos anúncios com seu próprio dinheiro; aplicavam-se à publicidade na loja; e uma única violação exigia que o varejista perdesse os fundos de todas as suas lojas por até 90 dias. Essas políticas, em vigor para mais de 85% das vendas do mercado, não eram razoáveis ​​e impediam os varejistas de informar aos consumidores sobre descontos em discos e CDs.

Pergunta: Sou prestador de serviços de saúde e quero ingressar em um novo grupo de seguros para prestar serviços a um grande empregador em minha cidade. Meu contrato com outro grupo de seguros exige que eu dê a eles o menor preço pelos meus serviços. Se eu aderir ao novo grupo, terei que baixar meus preços para o outro grupo de seguros?

Resposta: Essas cláusulas, chamadas de “cláusulas de nação mais favorecida (MFN)”, são bastante comuns. Geralmente, uma MFN promete que uma parte do acordo tratará a outra parte pelo menos tão bem quanto trata as outras. Na maioria das circunstâncias, as MFNs são uma forma legítima de reduzir os riscos. Em algumas circunstâncias, no entanto, as MFNs podem limitar de forma irracional a oferta de descontos direcionados e criar um preço industrial de fato. Uma determinada autoridade antitruste contestou uma cláusula MFN usada por uma rede de farmácias em contratos individuais com suas farmácias-membro que as desencorajava a oferecer descontos nas taxas de reembolso. A rede era um grupo de mais de 95 por cento das farmácias concorrentes no mercado relevante. A MFN desencorajou qualquer farmácia individual de oferecer preços mais baixos para outro plano porque quaisquer descontos teriam que ser aplicados a todas as suas outras vendas por meio da rede.


[1] Schaper, M. (2016) “Small Business, The Law and Access to Justice: Issues and Challenges” in Clark, D.; McKeown, T. & Battisti, M. (eds) (2016) Rhetoric and Reality: Building Vibrant and Sustainable Entrepreneurial Ecosystems, Melbourne: Tilde Press, pp.21-35.  Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[2] Australian Small Business & Family Enterprise Ombudsman (2018) Access to Justice: Where Do Small Businesses Go? Canberra: ASBFEO; Burgess, R. (2016) “SMEs and Private Enforcement of Competition Law: Achieving Redress” Global Competition Law Review, No. 3, pp.85-88. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[3] Burgess, R. Trade Associations: Competition Law Advocates or Offenders? in Schaper, M. and Lee, C. (eds) (2016) Competition law, Regulation and SMEs in the Asia-Pacific: Understanding the Small Business Perspective, Singapore: ISEAS – Yusof Ishak Institute. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[4] How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[5] Mesquita, L. & Lazzarini, S. (2009) Horizontal and vertical relationships in developing economies: Implications for SMEs’ access to global markets in New Frontiers in Entrepreneurship, Springer, pp. 31–66. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[6] Markusen, A. (1996) Sticky Places in Slippery Space: A Typology of Industrial Districts. Economic Geography, Vol 72, No.3, pp. 293-313. Apud “How COVID-19 Affects MSME Access To Markets and Competitive Capability: A Review of Key Issues and Recommendations for Future Action”. UNCTAD, 2020.

[7] UNCTAD (2008) Creating business linkages https://unctad.org/en/Docs/diaeed20091_en.pdf (accessed on 28 June 2020).

Discriminação como infração. A propósito de um painel instigante mas enigmático

Mauro Grinberg

Durante o recente Antitrust Spring Meeting, da Section of Antitrust Law da American Bar Association, que ocorreu nos dias 29 a 31 de março em Washington DC, um dos painéis chamou a atenção para a (talvez tentativa de) revigoração do Robinson-Patman Act (RPA) de 1936, diploma destinado originariamente a proteger os pequenos empresários num período de recessão pelo qual os Estados Unidos então passavam. Com o passar do tempo, o objetivo, ao mesmo tempo que ampliado, perdeu seu vigor. 

O que se procura aqui é traçar o paralelo entre os direitos norte-americano e brasileiro, uma vez que em ambos a discriminação – o tema possivelmente mais importante do RPA – constitui infração não só nos dois países como em todo o mundo ocidental.

Para exemplificar, uma rede de lojas de departamentos normalmente consegue um preço substancialmente mais baixo do que pequenos comerciantes de bairros, já que fazem suas aquisições em quantidades muito grandes. Mas nada é tão simples assim. É importante entender que a grande loja de departamentos pode vender por preço mais baixo mas, por outro lado, o pequeno comerciante de bairro precisa sobreviver para manter a concorrência. As linhas divisórias aqui são tênues.

A conta que um cliente normal deve fazer – e aqui a constatação é prosaica, despida de considerações jurídicas e econômicas sofisticadas – diz respeito aos custos de transporte e de tempo (e talvez até entrem valores emocionais) que precisam ser gastos para procurar um produto mais barato, em vez de recorrer ao comerciante vizinho.

O problema se torna mais gritante quando tratamos de estabelecimentos comerciais em ambientes praticamente encapsulados, como aeroportos, rodoviárias, escolas, etc., em que não ocorre a pressão da concorrência e a procura de outros pontos de venda se torna praticamente inviável. As pessoas não saem, por exemplo, de um aeroporto para tomar um café, comprar uma revista ou (como ocorria antigamente) ter seus sapatos engraxados.

A verdade é que a discussão norte-americana tem andamento de forma um pouco confusa, mesmo sem definir os produtos, que podem ser uniformes ou diferenciados, daí dependendo as conclusões que se pode tirar. É claro que produtos uniformes têm nos preços o seu maior trunfo para a escolha do cliente e produtos diferenciados têm outros atributos para exibir e oferecer, aí entrando prestigio de marcas, gostos pessoais e possivelmente fatores afetivos (“minha mãe usava este produto”). Aqui entra a questão da substitutibilidade dos produtos uniformes e que, nos produtos diferenciados, depende de fatores diversos, como gosto, utilidade, adaptabilidade, etc.

Esse tipo de infração nos leva ainda a uma enorme dificuldade probatória, partindo-se da constatação de que ninguém pode ser condenado sem prova convincente e cabal da infração. Por exemplo, como provar que um determinado medicamento pode substituir outro? No Brasil, com a possibilidade de uso de medicamentos genéricos e/ou similares, essa dúvida se tornou menos aguda; mas ainda assim existe a possibilidade de uso off label de determinados medicamentos. Ou como demonstrar que um determinado alimento contém mais proteínas do que outro? A pergunta é importante porque precisamos sempre definir o mercado relevante, nas suas vertentes tanto material quanto geográfica, acrescentando-se aqui a (por vezes não menos importante) vertente temporal.

Os operadores do direito concorrencial conhecem bem as dificuldades da definição do mercado relevante, sabendo que delas não podem fugir e que elas tornam difícil (embora não impossível) o andamento de um processo administrativo ou judicial para tal punição. É preciso definir quais produtos concorrem pela vontade do adquirente (mercado relevante material) e até onde um adquirente pode ir para comprar um produto de outro fornecedor (mercado relevante geográfico).

Como aferir a vontade do consumidor de sair de sua zona de conforto para adquirir um produto concorrente daquele ao qual está habituado ou de marca para ele desconhecida em favor de determinado ganho que pode ter? Sabemos que há produtos tão tradicionais que suas marcas passam a designar os próprios produtos. A marca, nesses casos, independentemente do produto (é bom? é seguro? satifaz plenamente? etc.) passa então a constituir a zona de conforto do adquirente (comprando desta marca, dá tudo certo…). Na verdade, a intersecção do direito concorrencial com o direito de marcas constitui, desde o caso Colgate/Kolynos, um campo fértil a ser explorado.

Como aferir a vontade do consumidor de sair de uma região para se dirigir a outra com a finalidade de obter um produto melhor e/ou um preço menor? Todas as formulações econômicas esbarram em algo sutil, talvez até psicológico, que fica em torno da vontade. Quando se trata de produto homogêneo, essa vontade pode ser mais clara, tomando-se o exemplo dos postos de combustível: até onde um motorista se desloca para encontrar um produto mais barato (deixamos de tratar aqui das possíveis adulterações, matéria que às vezes aparece no noticiário criminal)? Nem o direito nem a economia podem fornecer respostas precisas; podem, quando muito, tratar de probabilidades, eventualmente altas.

Dito tudo isso, o grande desafio das autoridades concorrenciais é o de definir se e quando ocorre uma infração. Se concordamos em que uma indústria pode conceder descontos em função de quantidades compradas, como definir qual o limite desse desconto? Ou seja, a partir de qual porcentagem o desconto deixa de ser legítimo e passa a constituir uma infração, prejudicando a concorrência? Ou qual o preço que um concorrente verticalizado (indústria – distribuição – varejo) pode cobrar de seus adquirentes não verticalizados (sobretudo em se tratando de produto essencial em que não existam outros produtores e/ou distribuidores)? Qual o preço legítimo, acima do qual tem-se eliminação total ou parcial da concorrência?

As respostas a estas (e tantas outras) dúvidas, às quais as autoridades concorrenciais devem responder, certamente colocam tais autoridades quase na posição de legisladores. Assim, é a jurisprudência que vai ter que responder sobre a legitimidade de determinados comportamentos empresariais. Mas aí entra mais uma das várias faces do problema: o princípio da não surpresa, já constante da nossa legislação. O empresário não pode ser surpreendido ao ver caracterizado como infração uma conduta por ele praticada desde sempre e que ele, de boa-fé, considerava legal.

O dilema da autoridade aqui é: como fazer as advertências prévias ao mercado sem assumir o papel explícito de legislador e ao mesmo tempo deixar claro o que constitui infração? A autoridade tem à sua disposição um arsenal normativo (portarias, instruções normativas, resoluções) que p.ode usar para tanto, assim satisfazendo o princípio da não surpresa. Mas resulta obvio que há pontos sobre os quais não é possível fazer previsões exatas (por exemplo, a porcentagem de desconto). Mas o mercado tem que ser advertido de alguma forma.

Acrescente-se que estamos em uma quadra de aplicação do princípio da razoabilidade, que pode ser alterada de acordo não apenas com o mercado relevante mas com as próprias condições de mercado (este contempla sucessivamente períodos de crise e de escassez com períodos de euforia e abundância).

É extremamente salutar que este tipo de infração esteja novamente na mira das autoridades concorrenciais mas devemos ter em mente que este simples fato não elimina a perplexidade ante as dificuldades antevistas.

Mauro Grinberg foi Conselheiro do Cade, Procurador da Fazenda Nacional e Presidente do Ibrac (do qual é hoje Conselheiro). É advogado especialista em Direito Concorrencial, sócio fundador de Grinberg Cordovil Advogados

Direito de apresentar alegações finais no PA

Arthur Villamil Martins

O processo administrativo para imposição de sanções por infração da ordem econômica (PA) previsto nos art. 69 e seguintes da Lei 12.529/2011 é tipicamente um processo de natureza punitiva e, portanto, deve se orientar pelos princípios inerentes ao devido processo, assegurando aos representados a garantia de ampla defesa e o exercício pleno do contraditório.

As alegações finais estão previstas no art. 76 da Lei de Defesa da Concorrência (LDC). Esse dispositivo legal foi redigido de modo pouco claro – talvez por deficiente técnica legislativa consistente em aglutinar em uma mesma frase questões distintas – deixando margem para questionamentos acerca da efetiva existência do direito de apresentação de alegações finais pelos representados.

O exame da sequência dos dispositivos legais que disciplinam o processo administrativo ajuda a lançar luz sobre a questão. O art. 74 da LDC trata da remessa do PA ao Tribunal, depois que a Superintendência-Geral tiver concluído a instrução processual e opinado, em relatório circunstanciado, pela condenação dos representados ou pelo arquivamento do processo. O art. 75 dispõe que o Presidente do CADE realizará a distribuição do processo ao Relator por sorteio. O art. 76, caput, trata da possibilidade de o Conselheiro Relator determinar (ou não) a realização de diligências complementares antes do julgamento. Já o parágrafo único do art. 76 dispõe que o Conselheiro Relator poderá ordenar novas diligências, caso entenda necessário, e que depois de realizadas as novas diligências dará vista aos representados para apresentação de alegações finais. Eis a disposição literal da lei:

Art. 76. O Conselheiro-Relator poderá determinar diligências, em despacho fundamentado, podendo, a seu critério, solicitar que a Superintendência-Geral as realize, no prazo assinado.

Parágrafo único. Após a conclusão das diligências determinadas na forma deste artigo, o Conselheiro-Relator notificará o representado para, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, apresentar alegações finais.

Da literalidade do parágrafo único exsurge a seguinte dúvida: o Relator somente deve oportunizar a apresentação de alegações finais quando tiver realizado novas diligências ou deve sempre, independente da realização de novas diligências, franquear a oportunidade de apresentar alegações finais aos representados? Muito embora a lógica processual pareça apontar para a necessidade de sempre oportunizar aos representados a apresentação de alegações finais, essa questão é controversa.

O tema já foi objeto de apreciação pelo Poder Judiciário. Na ação anulatória de autos nº 0013987-53.2015.4.01.3803, o Juízo da 3ª Vara Federal da Seção Judiciária de Uberlândia/MG acolheu a arguição de cerceamento de defesa e declarou a nulidade do julgamento do PA Nº 08700.000649/201378, por não ter sido oportunizado aos representados a apresentação de alegações finais antes do julgamento do Tribunal. Já na ação anulatória nº 0013976-24.2015.4.01.3803, o Juízo da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária de Uberlândia/MG rejeitou a alegação de nulidade do julgamento, acolhendo as alegações do CADE no sentido de que somente seria necessário abrir prazo para alegações finais quando forem realizadas novas diligências pelo Relator. Ambas as sentenças foram apeladas e se encontram pendentes de julgamento no Tribunal Regional da Sexta Região.

Como se vê, a questão é controvertida no âmbito do CADE e do Judiciário. Porém, em nossa visão, com a devida vênia e respeito aos que se posicionam em sentido contrário, a questão não é de difícil solução.

O PA é um processo de natureza exclusivamente punitiva e, ademais, também se reveste de certas nuances inquisitivas. Logo, indispensável que se lhe apliquem os princípios e as garantias processuais inerentes ao direito processual sancionador, dentre os quais, o direito do representado de falar por último (falar depois da acusão), antes do julgamento pelo Tribunal.

Da leitura atenta do Capítulo IV da LDC verifica-se que PA tem seis etapas bem definidas até ser remetido ao Tribunal para julgamento: i) O representado é intimado para apresentar defesa no prazo de 30 dias (art. 70); ii) A Superintendência-Geral analisa a defesa e determina a realização de provas (pela letra fria do art. 72 a SG teria uma espécie de prerrogativa de “determinar as provas que entende pertinentes” – nuance tipicamente inquisitorial); iii) As provas são colhidas; iv) O representado é intimado para apresentar, em cinco dias, o que o art. 73 chamou de “novas alegações”, cuja função nos parece ser principalmente reavivar os pontos da defesa em face das provas produzidas no PA; v) A SG encerra a instrução e em seguida apresenta suas conclusões, opinando pela condenação do representado ou pelo arquivamento do processo (art. 74); vi) O PA é remetido ao Tribunal e o Relator poderá determinar novas diligências ou requerer a inclusão do feito na pauta de julgamento.

Do exame do fluxo processual do PA previsto na LDC verifica-se que a última oportunidade de fala do representado teria sido nas “novas alegações” previstas no art. 73 da LDC. Depois disso, a SG, que exerce nitidamente função acusatória, irá falar nos autos, opinando pela condenação ou pelo arquivamento do caso (art. 74). Em seguida, o feito é remetido ao Tribunal e, caso o Relator não determine a realização de novas diligências, se ele não oportunizar ao representado a apresentação de alegações finais isso significa que o acusado não terá qualquer direito de defesa escrita perante o Tribunal. Pior ainda, a acusação (SG) terá sido a última a falar nos autos, pervertendo, por óbvio, a garantia processual de que a defesa deve falar por último.

Por fim, para que não restem dúvidas acerca da necessidade de sempre se oportunizar aos representados o direito de apresentar alegações finais escritas perante o Tribunal, como fala final da defesa, note-se que o art. 77 da LDC determina que “No prazo de 15 (quinze) dias úteis contado da data de recebimento das alegações finais, o Conselheiro-Relator solicitará a inclusão do processo em pauta para julgamento.” Ou seja, o feito somente estará maduro para julgamento depois que a defesa tiver tido a oportunidade de apresentar as alegações finais, independentemente da realização (ou não) de novas diligências pelo Relator.

É necessário que o CADE esteja atento para a boa aplicação dos princípios que norteiam o devido processo administrativo disciplinar, não apenas para evitar nulidades processuais desnecessárias, mas, acima de tudo, para assegurar um julgamento justo e equilibrado, o que somente se pode obter quando se assegura às partes (acusação e defesa) simétrica paridade de armas. Uma das formas mais comezinhas de paridade de armas no devido processo é a definição do momento de manifestação das partes: a acusação fala primeiro e a última palavra antes do julgamento é sempre do acusado, jamais do acusador.

Ônibus elétricos em São Paulo são a melhor escolha?

Felipe Lima Meneguin & Fernando B. Meneguin

Conforme divulgado na mídia[1], a prefeitura de São Paulo anunciou que substituirá parte da frota atual de ônibus por veículos elétricos. A meta é que, até o final de 2024, o município tenha 2,6 mil ônibus elétricos rodando, o que representa 20% da frota que hoje circula na cidade de São Paulo.

O senso comum enquadra essa medida como uma iniciativa louvável; no entanto, uma avaliação técnica deve estar permeada de evidências concretas para permitir a conclusão de ter havido ou não ganhos de bem-estar social; há que se comparar todos os custos envolvidos, incluindo custos de oportunidade, entre as várias opções que poderiam ser escolhidas.

No caso da adoção de veículos elétricos, podem-se trazer alguns dados simples que demonstram o tamanho do gasto e, consequentemente, a necessidade de criteriosa avaliação. Conforme informação da Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade[2], somando os custos de adaptação de infraestrutura – afinal, é necessário todo um suporte específico para recarregar os veículos –, com o custo dos novos veículos, o governo gastaria R$ 8 bilhões. Para se ter ideia relativa desse investimento, a Prefeitura de São Paulo destinou em 2023 para a função transporte 8,5% de seu orçamento, o que significa R$ 8,16 bilhões[3]. Dada essa restrição orçamentária relevante, o trade-off existente entre gastar com ônibus e gastar com outros modais – em especial, com linhas de metrô e trens –, torna-se consideravelmente relevante.

Assim, para verificar a racionalidade econômica da aquisição dos ônibus elétricos, o presente artigo propõe a realização de um exercício simples baseado na análise de custo-benefício para comparar os dois principais modais “verdes” da cidade de São Paulo, isto é, os ônibus elétricos e os tradicionais trens e metrôs.

Na literatura econômica, o debate ônibus versus metrô não possui um vencedor claro; existem trabalhos empíricos que defendem o primeiro meio em detrimento do segundo e vice-versa. Dada essa controvérsia ainda em aberto, é preciso se valer de características específicas inerentes à cidade de São Paulo.

De acordo com estudo sobre mobilidade urbana conduzido pela organização da sociedade civil Rede Nossa São Paulo[4], o tempo médio gasto para se locomover na cidade em 2022, considerando deslocamento de ida e volta para a realização de todas as atividades diárias, foi de 2h19min para quem usa carro e 2h23 para usuários de transporte público. Dentre os transportes públicos, os ônibus levam ampla vantagem em relação ao modal ferroviário no quesito aderência (33% versus 11%).  Por fim, hoje, São Paulo é a segunda cidade em termos de taxa de engarrafamento do país, perdendo somente para Belo Horizonte, de acordo com o Global Traffic Scorecard[5].

Frente a essas considerações iniciais, é plausível se afirmar que o modal terrestre apresenta sinais de sobrecarga evidentes – o gap praticamente inexistente entre carros e transportes públicos, pouco usual para a maioria das metrópoles, é um indicador bastante forte nesse sentido. A baixa penetração dos metrôs e trens no universo total dos meios de transporte também é algo que demanda atenção. 

A fim de se analisar empiricamente a questão da subpenetração dos metrôs e trens, construiu-se uma série de tempo da média mensal de usuários da linha amarela de 2018 até 2022 usando tabelas fornecidas em relatórios da ViaQuatro[6] – empresa responsável pela administração da linha. A partir dessa série, foi possível mensurar o efeito da inauguração de uma nova estação – no caso, das estações São Paulo-Morumbi e Vila Sônia-, em termos de novos passageiros. Em menos de três meses de operação, as novas estações atraíram, respectivamente, em torno de 26 e 34 mil passageiros diários, sem que isso afetasse a movimentação em outras estações anexas, como Butantã e Pinheiros.

No final de 2022, as duas estações, somadas, representaram um acréscimo mensal de 1,3 milhão de passageiros. Podemos inferir, portanto, que existe uma certa demanda pelo modal ferroviário ainda não atendida, especialmente em regiões mais distantes do centro. De fato, quanto maior a distância do centro, maior a preferência por trens e metrôs: na zona leste, por exemplo, 11% responderam que utilizavam o metrô/trem todos os dias, enquanto no centro, esse número foi de 4%, conforme estudo da Rede Nossa São Paulo.

Em termos de custos para o Estado, no ano de 2022, o governo gastou cerca de R$ 829 milhões com subsídios ao sistema de metrô[7], ao passo que gastou mais de R$ 5 bilhões com subsídios para o transporte coletivo viário[8].  Assim, ponderando por número de passageiros, o primeiro se mostra quase três vezes mais cost-efficient que o segundo, uma vez implementado.

 Por outro lado, comparando de maneira bem simples os custos fixos iniciais da nova frota elétrica com novas estações, os ônibus saem na frente: assumindo uma média de 200 passageiros em um ônibus por dia – consoante a valores da Associação Nacional de Transportes[9] –, 2600 ônibus movimentariam mais de 11 milhões de pessoas por mês. Com esse mesmo investimento (R$ 8 bilhões) – e assumindo o valor observado para as estações Vila Sônia e São Paulo-Morumbi[10] –, seria possível movimentar cerca de 5,2 milhões de pessoas/mês com novas estações.

Vale ressaltar, no entanto, que o projeto da frota elétrica almeja não adicionar, mas substituir a frota atual. Dentro do panorama já descrito de alto tráfego, adicionar mais ônibus sem a construção de novas vias preferenciais poderia ser contra produtivo, especialmente dado que o ganho marginal de novos usuários seria baixo. Além disso, o número estimado para as estações está viesado para baixo; afinal, há notáveis ganhos de escala conforme as linhas se ampliam, além de existir um forte efeito substituição com outros modais.

Em síntese, ainda que não seja possível chegar a uma conclusão definitiva, é possível delinear argumentos consistentes para, no mínimo, promover uma reflexão sobre a nova política da prefeitura de São Paulo. Se o intuito era se adequar às novas tendências urbanas com enfoque na sustentabilidade, seria mais interessante focar no ainda subpenetrado modal ferroviário, extremamente eficiente não só no transporte de passageiros, mas também na redução de níveis de CO2 na atmosfera. Alternativamente (ou até adicionalmente), soluções como o BRT – Bus Rapid Transit-, ônibus que opera em faixas completamente segregadas das pistas convencionais, também poderiam se apresentar como mais eficiente.


[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/meio-ambiente/audio/2023-01/sao-paulo-quer-20-da-frota-de-onibus-sendo-eletrica-ate-2024

[2] https://www.investe.sp.gov.br/noticia/prefeitura-de-sp-fecha-parceria-com-enel-em-projeto-de-r-8-bilhoes-para-onibus-eletricos-1/

[3]https://orcamento.sf.prefeitura.sp.gov.br/orcamento/uploads/2023/CADERNO%20OR%C3%87AMENTO%20LOA%202023.pdf

[4] https://www.nossasaopaulo.org.br/wp-content/uploads/2019/01/211404_Viver-em-Sao-Paulo_Tematica-2-Mobilidade-v1.pdf

[5] https://inrix.com/scorecard/

[6] https://www.viaquatro.com.br/linha-4-amarela/passageiros-transportados

[7] https://www.metrocptm.com.br/operacao-do-metro-de-sao-paulo-gerou-economia-de-r-85-bilhoes-em-2021/

[8] https://www.estadao.com.br/sao-paulo/valor-pago-pela-prefeitura-de-sp-a-empresas-de-onibus-e-recorde-governo-ja-banca-metade-da-tarifa

[9] https://ntu.org.br/novo/

[10] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/12/17/estacao-vila-sonia-da-linha-4-amarela-e-inaugurada.ghtml


Graduando em Economia na FEA/USP. Vice-Presidente da Liga de Mercado Financeiro FEA/USP. Estagiário na área de Macro Research do Bradesco BBI.

Mestre e Doutor em Economia pela Universidade de Brasília. Pós-doutor em Análise Econômica do Direito pela Universidade de Califórnia – Berkeley. Líder do Grupo de Estudos em Direito e Economia – GEDE/UnB-IDP. Professor do Mestrado do IDP e da AMBRA University.

Um feliz dia das mães em 2023? Devolução do IR retroativo sobre valores das pensões alimentícias recebidas e Recomendação CNJ nº 128/2022: motivos para comemorar.

Vanessa Vilela Berbel

Escrevo esta coluna para lhe dizer que, do ano passado para cá, avançamos no judiciário brasileiro em relação à pauta da mulher. Lembra-se de que, neste mesmo período do ano anterior, escrevi sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5422, que estava aguardando alguns dos onze detentores de reputação ilibada e notável saber jurídico do nosso STF ter um tempinho para olhar a causa das mães que pagavam imposto de renda sobre a pensão de seus filhos e filhas? Pois bem,  não bastasse arcar com a maior parte das responsabilidade dos cuidados, ainda passavam por mais essa…nada bom. Enfim, essa luta se foi, julgada, em 23/08/2022, favoravelmente às mulheres.

É, de fato não precisava uma decisão judicial arrastar por tanto tempo essa discussão se houve a mínima sensibilidade institucional do órgão arrecadador. Será mesmo que a própria Receita Federal não poderia ter resolvido uma questão tão banal, que agudizava a desigualdade entre homens e mulheres deste país, por meio de um instrumento administrativo? Para mim sempre pareceu bem óbvio que alimentos ou pensão alimentícia oriundos do direito de família não se configuram como renda nem proventos de qualquer natureza do credor dos alimentos, mas montante retirado dos acréscimos patrimoniais recebidos pelo alimentante para ser dado ao alimentado. No julgamento da ADI, o ministro Luís Roberto Barroso recordou que a tributação não pode aprofundar as desigualdades de gênero. Assim, sendo certo que o dever de cuidado é atribuído primordialmente às mulheres, fazê-las ainda pagar, como se renda fosse, os valores destinados pelo genitor à manutenção da prole, enquanto o pagador (em regra, o pai) poderia abater da base de cálculo de seu imposto a integralidade desses valores, era de fato anacrônico. Agora resta saber quem reparará o dano e restituirá os mais de 6 bilhões injustamente expropriados destas mulheres, visto ter Tribunal negado o pedido da União para que a decisão não tivesse efeito retroativo.

Justamente para se evitar essas distorções causadas pela legislação e interpretações oficiais é que a Ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conclamou todos a revisarem práticas e políticas que reproduzam a desigualdade entre homens e mulheres na sociedade e, em especial, no Poder Judiciário.

Esforços coletivos ainda são necessários para reafirmar o direito das mulheres à igualdade de tratamento, tornando concreta a chamada “imparcialidade” e “neutralidade”, corrompidas por padrões discriminatórios insculpidos nos desenhos institucionais.

Neste aspecto, no âmbito do Poder Judiciário, foi elaborada a Recomendação 128/2022, que orienta os órgãos do Poder Judiciário a adotarem o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, visando avançar na efetivação da igualdade e nas políticas de equidade. Dentre as orientações dispostas em suas 132 páginas, evidencia-se a convocação a se desmistificar a neutralidade do direito, comprometida em razão da involuntária e inconsciente reprodução de estereótipos forjados pela nossa peculiar e desigual construção social. Ideais de neutralidade, imparcialidade e objetividade, tão caros ao direito liberal, dependem da correção destas distorções para seu império.

O que de fato nada tem de neutro é o Protocolo. Navegando entre Ideologia e Utopia[1], adota uma perspectiva valorativa clara, que não lhe eximirá de críticas dos opositores. Porém, ainda que você discorde destas posições, não poderá desprezar as contribuições da Segunda Parte do documento, que serve como um “guia para magistrados e magistradas”, um ferramental para auxiliar os julgadores a “interpretar o direito de maneira não abstrata, atenta à realidade, buscando identificar e desmantelar desigualdades estruturais”. Uma metodologia para que os julgadores se atentem ao contexto no qual o conflito está inserido, o que, diante de sentenças pré-prontas (quem nunca recebeu uma destas, escrita no cabeçalho “Modelo X”), julgamentos televisionados e pressões por produtividade é, independentemente da posição política, muito bem vindo.

Talvez você se questione se de fato isso seria necessário. Digo-lhe que sim. Notícia de 12 de abril de 2023, site Migalhas: ”Após negativa, advogada grávida de 9 meses terá audiência remarcada: em 1º grau o pedido foi negado sob o argumento de que a advogada já sabia do seu impedimento para a prestação dos serviços.” A funesta decisão de primeira instância[2] denegatória do pedido de adiamento, proferida, pasme, pela Excelentíssima Senhora Juíza Substituta da 17ª Vara do Trabalho da Comarca de Fortaleza, afirmou, ainda, que: “o pedido beira a litigância de má fé, no sentido de trazer uma oposição ao andamento do processo criada pela própria parte ao buscar profissional que não poderia estar presente à audiência”. Certamente essa julgadora é um dos que precisam seguir a Recomendação 128/2022.

É por isso que, neste dia das mães, desejo às nossas leitoras uma dia mais feliz do que o de 2022 e menos feliz do que o de 2024.


[1] alusão à obra de  Karl Mannheim, cuja noção de ideologia corresponde a um conjunto de representações que se orientam para a estabilização da ordem estabelecida, enquanto, por Utopia, entende-se a aspiração de outra realidade ainda inexistente, e,portanto, t subversiva da ordem vigente.

[2] processo nº 0000087-79.2023.5.07.0017

Compliance: fazer a coisa certa ou se submeter à caça às bruxas?

José Américo Azevedo

Encabeça-se este breve artigo subvertendo os cânones acadêmicos ao citar uma frase extraída de um artigo publicado sem indicar sua fonte, mesmo porque seu conteúdo demonstra um conceito muito comum entre aqueles que se dispõem a singrar os recônditos mares do Compliance. O contexto e o motivo desse estreitado deslize será compreendido – e perdoado, espera-se – com a leitura do texto.

Eis a aludida máxima: “O conceito e o próprio surgimento do Compliance encontram-se entrelaçados aos atos de corrupção identificados e desvendados em todo o mundo”.

A ideia pré-concebida de que a implantação de um programa de Compliance tem como objetivo combater a corrupção intrínseca, assemelha-se à metáfora de uma pessoa que somente vai ao médico porque, necessariamente, está doente.

É preferível a ideia de ir ao médico para fazer um checkup, ou seja, de maneira preventiva, de forma que se possa adotar os melhores comportamentos a fim de não atrair uma verdadeira doença.

Sem embargo à modesta digressão, comecemos nossa exposição.

*   *   *

Não há dúvida que a utilização exacerbada da expressão Compliance nos dias atuais deveu-se, em grande medida, à demonstração do desmonte das estruturas de governança corporativa nas grandes empresas do país, especialmente do setor de construção pesada, nas duas primeiras décadas deste século.

A importação do anglicismo Compliance, no entanto, aportou em terras nacionais de forma exagerada, e porque não dizer, deturpada. Do inglês to comply, cuja tradução mais precisa se aproxima da ideia de “conformação”, traz o conceito de ajustar, moldar, os procedimentos empresariais para atendimento àquilo que está pactuado, contratado, dentro das melhores práticas. Por outro lado, paradoxalmente, Compliance, no Brasil, passou a ter uma concepção de rigidez, de inflexibilidade perante as regras estabelecidas em abstrato, ou seja, de forma genérica e ampliada, sem levar em consideração as particularidades de cada caso. Neste sentido, Robert Alexy, sabiamente, baliza que “a realidade não é parte da norma jurídica, apesar de condicionar sua compreensão[1].

Por sua vez, a legislação pátria optou por utilizar a expressão “integridade” para se referir às obrigações que a Administração Pública e as empresas têm que cumprir para o alcance de um ambiente corporativo saudável, deixando de lado, o termo “conformidade”, talvez mais apropriado aos objetivos ambicionados.

Não se trata de uma questão etimológica ou semântica, mas antes, porém, da exegese de cada palavra, uma vez que a lei, per se, depende da extração de seu significado. Para Inocêncio Mártires Coelho, “a interpretação das normas é um conjunto de métodos e princípios, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios e premissas – filosóficas, metodológicas, epistemológicas – diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares, a confirmar o assinalado caráter unitário da atividade interpretativa[2].

Condensa-se, da análise proposta, que para uma interpretação mais assertiva do texto normativo, importante se faz a correta opção vernacular, de forma a se sugar o verdadeiro sentido pretendido.

Partindo-se dessa premissa, é possível buscar sutis diferenças entre as expressões, na maior parte das vezes utilizadas como sinônimas, obnubilando a real compreensão dos propósitos almejados.

Assim, para Bruna Pfaffenzeller, por Compliance compreende-se o conjunto de práticas e disciplinas adotadas pelas pessoas jurídicas no intuito de alinhar o seu comportamento coorporativo à observância das normas legais e das políticas governamentais aplicáveis ao setor de atuação, prevenindo e detectando ilícitos, a partir da criação de estruturas internas e procedimentos de integridade, auditoria e incentivos à comunicação de irregularidades, que forneçam um diagnóstico e elaborem um prognóstico das condutas e de seus colaboradores, com a aplicação efetiva de códigos de ética no respectivo âmbito interno[3]. Ou seja, possui uma abordagem mais abrangente – um gênero – do universo de governança corporativa.

A expressão escolhida pelos legisladores (basta observar as Leis 12.846/2013, 13.303/2016 e 14.133/2021, dentre outras) foi “integridade”, quer na elaboração de programas, na criação de códigos, ou mesmo na verificação de procedimentos que atinjam essa finalidade. No dicionário Oxford da Língua Portuguesa, pode ser obtida a definição de integridade como a “característica ou estado daquilo que se apresenta ileso, intato, que não foi atingido ou agredido”. É possível observar que a busca pela integridade pressupõe um ambiente não íntegro, ou seja, atingido, agredido, corrompido. Parte-se para uma ideia de intervenção corretiva, uma vez que, de acordo com o termo, empenha-se em corrigir aquilo que está, de alguma forma, inadequado.

E, ainda, pode-se optar pelo vocábulo “conformidade”, que na acepção do mesmo dicionário significa “ato ou efeito de se conformar, de aceitar, de se pôr de acordo; conformação, concordância”, é dizer, não há, ainda, qualquer mácula aos procedimentos em curso.

Nesse viés analítico, traz o Ministro do STJ Benedito Gonçalves em parceria com Renato Grilo, importantes reflexões, como se observa:

“Conformar-se” é um estado de sujeição ou de movimentação entre balizas ou limites: um organismo passa a agir heteronormativamente, ou seja, abandona sua autonormatividade.

(…)

a liberdade do Administrador Público encontra-se submetida ao princípio da juridicidade.

(…)

Ao agente econômico privado não se permite mais um campo de liberdade tão amplo quanto o vazio da legalidade estrita, ou seja, não mais se concebe a liberdade de agir do organismo privado limitada apenas pelas disposições legais expressas.

(…)

a instituição de um sistema interno de gestão de controle ou de conformidade, portanto, não deve se apegar apenas ao cumprimento das regras e disposições legais, mas também à aplicabilidade da força normativa constitucional, seja dentro de uma empresa privada ou pública, seja no ambiente interno da Administração Pública. [4]

Importante constatar que, embora aludam à implantação da gestão interna de conformidade, em qualquer momento os autores deixam de visar à necessária atenção aos preceitos normativos, constitucionais e legais. O que impende destacar, é que este ambiente será criado de maneira preventiva, fazendo com que as sanções previstas para condutas antiéticas sejam aplicadas em caso de necessidade, porém sem que haja uma circunstância que autorize um olhar previamente repressor para as organizações públicas e privadas.

Cabe repisar que não se trata de perfeccionismo etimológico ou semântico, mas da adequação das ações impingidas aos agentes privados em relação à execução das práticas corporativas desejáveis, especialmente nas relações com a Administração Pública, onde a máxima do pacta sunt servanda é mitigada pelas questões obrigacionais impostas ao setor público.

Importante alerta é feito por Rafael Oliveira e Jéssica Acocella, em relação às contratações pela Administração Pública:

Todavia, o sentido da Lei 8.666/1993 [cujo texto foi repetido na Lei 14.133/2021] adquiriu novos e ampliados contornos com a inclusão expressa, pela referida lei, da promoção do desenvolvimento nacional sustentável como um dos objetivos da licitação. Consequentemente, a proposta mais vantajosa para a Administração Pública deixaria de ser aquela que demonstrasse ter a melhor relação direta “custo-benefício” pelo aspecto estritamente financeiro, passando a ser a que também possa propiciar, mesmo que a longo prazo, benefícios sociais, ambientais e econômicos duradouros para o pais.

Assim, na instauração dos processos de contratação pública, cabe ao gestor público sempre avaliar a possibilidade de adoção de critérios social, ambiental e economicamente sustentáveis, reflexão fundamental quando se considera a escala das aquisições governamentais, o poder de compra do poder público e o efeito cascata que uma licitação produz sobre o mercado envolvido, multiplicando investimentos e criando um ambiente socialmente favorável na direção desejada.

Os procedimentos licitatórios no âmbito da Administração Pública têm, portanto, representado crescentemente um terreno fértil, e ainda não integralmente explorado, para novas vertentes regulatórias, as quais, ao integrarem considerações extraeconômicas em todos os estágios da contratação administrativa, visam à cooperação voluntária dos agentes econômicos envolvidos, relegando-se à coerção papel secundário.

(…)

Salomão Filho esclarece que o aparecimento ou não da cooperação é função direta da existência de condições (e instituições) que permitam seu desenvolvimento. Acrescenta que as instituições requeridas pela cooperação devem ser as estritamente necessárias para criar as condições de seu aparecimento. E, uma vez criadas tais condições, o cumprimento das decisões públicas vai se fazer de forma natural e não coercitiva.

(…)

A maior vantagem revelar-se-á quando a Administração assumir o dever de realizar a prestação menos onerosa e o particular se obrigar a realizar a melhor e mais completa prestação. [5]

(grifos nossos)

O ponto nevrálgico da questão reside no paradigma da relação público-privada nas contratações de serviços. Parte-se, atualmente, da premissa da ilicitude, do descumprimento contratual, da obtenção de vantagens não devidas. Por este motivo, o Compliance adquiriu feições inquisitórias, de verdadeira “caça às bruxas”, colocando o ente privado na berlinda das relações interpartes.

Há que se compreender que o Compliance é gênero, ou seja, abarca todas as ações de prevenção, detecção e resposta a violações de conformidade, bem como a promoção de uma cultura ética e de conformidade dentro da organização, além de incluir outros aspectos, como, por exemplo, a prevenção de corrupção e de fraudes.

A gestão de conformidade, por sua vez, é espécie, se limitando a harmonizar a relação corporativa aos princípios estabelecidos. Dessa forma, sendo bem realizada esta etapa, não existirá risco à integridade, tampouco necessidades sancionatórias, uma vez que a relação estará regida pelas boas práticas contratuais e comerciais.

Os papeis do Estado e dos particulares nas relações sinalagmáticas, são objeto de consideração não só entre as partes, mas, ainda, ao fim e ao cabo dos legisladores, como pode ser observado em diversos projetos de lei sobre o assunto. Sublinhando o PL 46/2022[6], que institui uma lei de defesa do empreendedor, com normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica, podem ser extraídos excertos apropriados ao tema, como se nota:

Artigo 3º- São princípios que norteiam o disposto nesta Lei:

(…)

II – a presunção de boa-fé do empreendedor perante o poder público;

(…)

Artigo 4º- São deveres da Administração Pública nas três esferas de Poder, Federal, Estadual e Municipal para garantia da livre iniciativa:

(…)

XI – exercer a fiscalização punitiva somente após o descumprimento da fiscalização orientadora, qualquer que seja o órgão fiscalizador, salvo no caso de situações de iminente dano público, dolo, má-fé e em situações devidamente fundamentadas pela Administração Pública;

(…)

Artigo 5º- São direitos dos empreendedores:

I – ter o Poder Público como um facilitador da atividade econômica;

Há que se observar a busca por um ambiente colaborativo entre contratante e contratado, pautado no princípio da boa-fé, e fundamentada nos objetivos comuns de obtenção da melhor prestação de serviços para a Administração Pública.

É preciso ficar atento para que novas exigências visando ao alcance da integridade não se tornem mero formalismo, a ser cumprido pelos entes privados somente para se desincumbir da obrigação. Uma das causas para isso, segundo Fernanda Schramm, se deve ao fato de que “a ampla discricionariedade dos agentes públicos no curso da execução dos contratos, aliada à falta de penalização efetiva nos casos de inadimplemento do Poder Público, contribui para consolidar uma sistemática em que os contratados acabam muitas vezes cedendo, inclusive por falta de opção, às exigências que lhe são impostas[7].

Para Thiago Marrara, “falar de integridade estatal é essencial, na medida em que, pelo exemplo ético, a conduta do Estado pode influenciar os agentes econômicos a se moverem em direção a boas práticas[8]. Na mesma linha, porém em sentido inverso, Flávio Cabral define o conceito de ativismo de contas para os Tribunais de Contas, porém o conceito deve ser ampliado para todo agente público, como pode se perceber:

Ativismo de contas pode ser conceituado como o comportamento dos Tribunais de Contas que, a pretexto de se mostrarem proativos ou de serem encarados como concretizadores de direitos fundamentais ou controladores de políticas públicas, acabam por exercer suas atribuições em desconformidade com o que permite o texto constitucional e infraconstitucional, demonstrando a subjetividade na tomada de decisões por seus membros. [9]

Como consequência, é possível observar, especialmente no âmbito federal, o crescente número de processos de apuração de responsabilidade instaurados pela Administração, tornando desequilibrada a relação público-privada, em prejuízo, evidentemente, do elo mais fraco, ou seja, os entes privados.

Mesmo em relações firmadas entre particulares reguladas pelo Estado como, por exemplo, na área concorrencial, é possível observar uma contundente interferência estatal na dinâmica de mercado. Nessa perspectiva, importam as práticas adotadas nas relações comerciais estabelecidas com outras entidades privadas, mas que devem, por força de lei, serem submetidas à regulação estatal. Entende-se que é necessário existir uma visada aos interesses públicos por parte do agente regulador, mas a força regulatória deve ser extremamente bem dimensionada, de forma a não impactar negativamente nas relações comerciais de particulares.

Por fim, entende-se necessária uma mudança paradigmática, privilegiando, nas relações comerciais, a primazia da boa-fé entre as partes e garantindo segurança jurídica, de maneira que, primeiramente, possa se executar a gestão de conformidade contratual. Caso observado riscos ou ações comprometedoras à integridade da relação, deve se migrar para o Compliance na concepção de averiguação de atividades ilícitas, respeitando-se o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, ensejando, inclusive, se necessário, atitudes sancionatórias para o inadimplente, seja público ou privado.


[1] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. ps. 80-84.

[2] COELHO, Inocêncio Mártires. A hermenêutica constitucional como teoria do conhecimento do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2019. p. 41.

[3] PFAFFENZELLER, Bruna. No rastro da corrupção praticada por pessoas jurídicas: da lei 12.846/2013 ao projeto de novo código penal. In: VITORELLI, Edilson (Org.). Temas atuais do Ministério Público Federal. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 897.

[4] GONÇALVES, Benedito; GRILO, Renato Cesar Guedes. A utilização dos instrumentos de compliance para a realização do princípio da moralidade administrativa. In: DAL POZZO, Augusto Neves; MARTINS, Ricardo Marcondes (Coord.). Compliance no direito administrativo. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. ps. 41-53.

[5] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; ACOCELLA, Jéssica. A exigência de compliance e programa de integridade nas contratações públicas: os estados-membros na vanguarda. In: DAL POZZO, Augusto Neves; MARTINS, Ricardo Marcondes (Coord.). Compliance no direito administrativo. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 133.

[6] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2313835. Consultado em 24.04.2023.

[7] SCHRAMM, Fernanda Santos. Compliance nas contratações públicas. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 76.

[8] MARRARA, Thiago. Quem precisa de programas de integridade (Compliance)? In: CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana (Coord.). Compliance: perspectivas e desafios dos programas de conformidade. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 293.

[9] CABRAL, Flávio Garcia. O ativismo de contas no Tribunal de Contas da União – TCU. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Direito, Curitiba/PR, 2019. p. 95.

Revenda de Veículos Automotores por Locadoras com Isenção de ICMS

César Mattos

  1. Introdução

Os Estados tendem a oferecer reduções ou mesmo isenções do ICMS para bens de capital em geral como forma de atrair investimentos, o que faz parte da chamada “guerra fiscal”.

O artigo 15 da Lei nº 6.729, de 28 de novembro de 1979 (Lei Ferrari), define que montadoras de veículos podem vender diretamente para locadoras de veículos. E como nesse caso específico, o veículo funcionará como um bem de capital para a locadora, é usual os estados concederem reduções do ICMS para estas operações. Diferente da venda do veículo para consumidores finais, para o qual o veículo em geral, funcionará como um bem de consumo.

O Estado de São Paulo, por exemplo, oferece desconto de 90% do ICMS na venda do veículo da montadora para a locadora[1]. Isso naturalmente torna o preço do veículo vendido pela montadora à locadora menor do que seria caso não houvesse o desconto.

No entanto, sabemos que o repasse da redução do ICMS ao preço que a montadora cobra da locadora não é integral, cabendo uma análise de incidência de tributos que depende das elasticidades da oferta e da demanda e do poder de mercado de cada um desses agentes (montadora e locadora), um em relação ao outro. Quanto maior o poder de mercado da montadora em relação à locadora, menor será o repasse da redução do ICMS para a redução de preços resultante do desconto do ICMS.

Na próxima seção avaliamos o incentivo à arbitragem tributária na revenda de veículos por locadoras. A terceira seção explica a transformação fundamental da perspectiva tributária do veículo de bem de capital para bem de consumo na revenda por locadoras. A quarta seção apresenta o papel proeminente da venda de veículos por locadoras. A quinta seção discute esta isenção e a possível contradição entre o incentivo ao fluxo de investimento e o incentivo ao incremento no estoque de capital. A sexta seção conclui.

II) Redução e Isenção do ICMS, Incentivo à Arbitragem Tributária e o Convênio Confaz 64/2006

O problema de os Estados oferecerem descontos do ICMS tão significativos para as locadoras pode fazer com que estas últimas vejam a compra do veículo não só como um “bem de capital” para os serviços de locações (o negócio presumido das locadoras). É possível que as locadoras passem a ver a aquisição de veículos também como uma possibilidade de realizar arbitragem tributária entre o preço menor pago à montadora e o preço maior que os consumidores finais pagam pelo automóvel em função do ICMS.

Uma das formas de resolver este problema de possível “arbitragem tributária” foi realizada no Convênio ICMS nº 64 de 07/07/2006 do Confaz[2]. Sua cláusula primeira define que se o veículo for vendido antes de 12 (doze) meses da data da aquisição junto à montadora, deverá ser efetuado o recolhimento do ICMS em favor do estado do domicílio do adquirente. Ademais, a cláusula segunda do mesmo Convênio define que a base de cálculo do imposto será o preço de venda ao público sugerido pela montadora. Como esta base de incidência, o preço sugerido do seminovo, será menor que a base de incidência representada pelo preço do veículo novo, o valor do ICMS pago pelas locadoras na revenda é inferior na medida da diferença de preços do novo/seminovo.

Essa regra de isenção de ICMS apenas após um ano estabelecida pelo Confaz certamente inibe, mas possivelmente não elimina, os incentivos para a arbitragem tributária.

III)A Contestação da Regra de Não Isenção e a Decisão do Supremo Tribunal Federal(STF) pela Constitucionalidade: A Tese da Transformação Fundamental (TF)

A regra de não isenção por um ano do Convênio 64/2006 do Confaz foi desafiada pela Localiza no Recurso Extraordinário 1.025.986 Pernambuco[3]. A locadora entendeu que seria inconstitucional o Estado de Pernambuco cobrar ICMS pela venda do carro seminovo pelas locadoras mesmo antes de um ano da aquisição do veículo.

Conforme o voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes no STF, a tese da Localiza é de que “as vendas de veículos usados realizadas pela impetrante (locadora de automóveis) consubstanciam alienação de ativo fixo e não de mercadorias, pelo que tais vendas não se sujeitariam à tributação pelo ICMS”.

A réplica do Ministro foi bastante simples e, principalmente, correta. Reconhece que “a venda de bens oriundos do ativo fixo não configura operação de circulação de mercadorias”. Acrescenta, no entanto, que “essa regra…. deriva não da circunstância de que tais bens tenham integrado ou sejam oriundos do ativo fixo, e sim da circunstância de não terem eles a destinação mercantil que subjaz inerente ao conceito de mercadoria”. Assim, se o ativo for “reinserido na circulação depois de período fora do comércio”, deixa de ser bem de capital e, portanto, volta a ser devido o ICMS.

Assim, na venda do veículo pela locadora é como que se o produto passasse por uma “transformação fundamental” (TF) do ponto de vista da legislação do ICMS: de ativo ou bem de capital para mercadoria ou bem final. Daí em sua alienação a posteriori, a incidência do ICMS se faz considerando o veículo como o bem de consumo que se tornou e não como o bem de capital que já foi.

Um parêntesis aqui é importante. Apesar de não abordado no voto do ministro, pelo mesmo argumento levantado da TF, seria possível distinguir quando a locadora vende para outra locadora, mantendo a característica de “bem de capital” ou para outros consumidores em que a TF, de fato acontece. Assim, seria cabível manter a isenção do ICMS a qualquer tempo para vendas de veículos de locadoras para outras locadoras já que a TF não ocorre e a característica de bem de capital do veículo é mantida.

Na verdade, esta ressalva pode ir bem além. Por exemplo, por que um motorista de aplicativo que usa seu veículo para gerar o serviço de transporte de passageiros e, portanto, receitas, também não pode ser considerado “bem de capital” tal como o é para as locadoras? Outras atividades em que o veículo entra na “função de produção” de autônomos poderiam teoricamente indicar que a natureza do veículo também é de “bem de capital”, o mesmo princípio usado para os veículos de locadoras. O problema de aplicação mais genérica do princípio seria naturalmente a complexificação da regra e a maior possibilidade de fraude para pagar menos impostos.

Voltando à questão principal, o Ministro, contrariamente à pretensão da Localiza, definiu a tese de que “É constitucional o Convênio CONFAZ n.64/2006 ao prever recolhimento da diferença de ICMS quando da revenda de veículo por locadora em prazo inferior a 12 meses”. Ou seja, o Convênio CONFAZ nº 64/2006 não pode ser considerado inconstitucional.

Note-se que isso ocorreria provavelmente também com várias outras regras que considerassem a TF do veículo de bem de capital para bem de consumo para locadoras, eventualmente adotadas pelo CONFAZ ou mesmo por lei aprovada no Congresso. Ou seja, poderia valer para um prazo de não isenção de seis meses ou de dois anos, por exemplo. Assim, de uma forma mais genérica, o STF sinalizou que não deverá ser inconstitucional, portanto, o Confaz ou uma lei estabelecerem prazos para a não isenção. Ou mesmo para não haver isenção alguma na revenda.

  1. Incentivo à Arbitragem Tributária e o Prazo de Não Isenção do ICMS de um Ano

Como destaca artigo do site trademap[4] de junho de 2022 “as locadoras são consideradas prestadoras de serviço, já que o core business é o aluguel dos carros. Mas, como elas já compram os carros das montadoras com 20% a 35% de desconto em barganha volumosa, surge a oportunidade de revender esses veículos de forma vantajosa”. A mesma matéria mostra o percentual da venda de veículos seminovos em três importantes locadoras de automóvel no Brasil.

Fonte: trademap

Note que o percentual da venda de seminovos na receita total de Localiza, Movida e Unidas está entre 38,3% e 49,5%, números expressivos.

A matéria também informa que no primeiro trimestre de 2022, a Movida reportou um crescimento de 253,2% na receita bruta da operação de seminovos, para R$ 981,5 milhões. No mesmo período, o número de carros vendidos saltou 184,3%, atingindo a marca de 15.225 negócios.

Conforme ainda a matéria da trademap, o veículo da Movida é vendido com uma idade média de 14 meses.

Ou seja, a relevância da venda de veículos é grande no negócio das locadoras e está aumentando. Isso pode ser um indicador de que o período de não isenção de um ano ainda seja insuficiente para reduzir o incentivo à arbitragem tributária. E esta arbitragem compromete o principal objetivo da política: incentivar investimentos.

  • Contradição entre Funções Objetivo: Fluxo de Investimento X Estoque de Capital 

Como já destacado, o principal objetivo dos estados em relação à isenção do ICMS é fomentar investimentos.

Não há dúvida que reduzir o incentivo à arbitragem aumentando o período de não isenção do ICMS para mais de um ano também reduz o incentivo a este investimento específico que é a aquisição de veículos por locadoras para o objetivo de locação.

No entanto, dada a TF, pode-se questionar o próprio mérito do objetivo “incentivar investimentos” neste caso. O que há de importante nesse incentivo a investimentos, ao final e ao cabo, é o incremento da capacidade de produzir bens e serviços pelo incremento do estoque de bens de capital na economia.

No caso em tela, no entanto, estamos discutindo a própria redução do período em que veículos funcionam como bens de capital e, portanto que integram o estoque de bens de capital na economia. Quando os veículos são revendidos para consumidores finais, de fato, acontece um “desinvestimento” da locadora, reduzindo aquele estoque de capital.

Ou seja, ao estimular o investimento em veículos mantendo a isenção parcial do ICMS por período inferior a um ano, teríamos também uma redução da vida útil deste capital, o que tem o efeito oposto ao desejado que é reduzir o estoque de capital da economia.

Sendo assim, como o período de isenção afeta as duas variáveis, o investimento e o desinvestimento neste tipo de bem de capital específico, os veículos de locadoras, cabe ter como objetivo ampliar o “investimento líquido” para um dado período de tempo, o que seria dado pela diferença entre a aquisição e a venda dos veículos pelas locadoras. Com esta métrica, o ganho da política pública de reduzir o ICMS para veículos revendidos por locadoras se reduz bastante.

  • Conclusões

Mesmo em uma regra em que não houvesse qualquer isenção do ICMS com muito tempo de uso do veículo nas locadoras (por exemplo, cinco anos), permanece havendo ainda incentivo na aquisição de veículos bens de capital pelas locadoras por meio do desconto de 90% de ICMS (referência São Paulo) dado que a alíquota incidirá em um preço do automóvel muito menor e ainda mais longe no tempo. E com um agravante: dado haver uma quilometragem média maior dos veículos de locadoras, gerando uma depreciação real maior do veículo, o preço desses usados específicos tendem a ser bem menores, reduzindo a base de incidência do ICMS na hipótese de inexistência de isenção. Ou seja, o incentivo inicial da isenção na compra

Além do tempo mínimo para a venda com isenção, outras regras são plausíveis para o mesmo objetivo de desincentivar a arbitragem tributária. Por exemplo, é possível escalonar a isenção do ICMS das locadoras conforme o tempo. Ou seja, não é necessário ter uma solução de um período de tempo fixo (hoje de um ano) em que para mais a isenção é completa e para menos não há isenção alguma. A não isenção pode ser mais gradual.

No entanto, a virtude da regra atual é sua grande simplicidade: até um determinado período (de um ano como atualmente ou qualquer outro período fixo), não tem isenção alguma e após este período isenção total. Tratando-se do ICMS, simplicidade é algo muito relevante e, portanto, complexificar a regra com escalonamentos não deve ser uma boa ideia.

Com base na premissa de reduzir o incentivo para a arbitragem tributária e manter a simplicidade da regra, seria interessante ampliar o prazo de não isenção de um para dois anos ou mais, não sendo impensável que simplesmente se acabe com a isenção do ICMS para a revenda de veículos de locadoras, dada a TF bem identificada pelo STF. De outro lado, caberia também manter a redução do ICMS para a revenda de veículos entre locadoras, inclusive sem prazo algum dado que a TF não se observa e o automóvel se mantém como bem de capital.


[1] Ver art. 1º inciso IV do DECRETO Nº 66.391, DE 28 DE DEZEMBRO DE 2021 do Estado de São Paulo que altera o Regulamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – RICMS do Estado de São Paulo. https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/Decreto-66391-de-2021.aspx

[2] https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=16085

[3] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344342941&ext=.pdf

[4] https://trademap.com.br/agencia/analises-e-relatorios/icms-locadoras-localiza-rent3-movida-movi3#:~:text=Isso%20porque%20as%20locadoras%20de,ap%C3%B3s%2012%20meses%20de%20uso.