Artigos de opinião

Normas sobre mudanças climáticas podem impedir o ingresso de produtos brasileiros na União Europeia

Fernanda Manzano Sayeg

Recentemente, foram publicados dois importantes Regulamentos na União Europeia no âmbito da nova política comercial de sustentabilidade do bloco, a saber: (i) o Regulamento UE n.º 2023/956, publicado em 16 de maio de 2023, que institui o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira – “CBAM”; e (ii) o Regulamento UE n.º 2023/1115, publicado em 9 de junho de 2023, que proíbe a comercialização, importação e exportação de determinados produtos derivados de áreas de desmatamento e/ou degradação ambiental nos países do bloco, também conhecido como “lei anti desmatamento”.

Tanto o CBAM quanto a lei anti desmatamento integram o “Green Deal”, conjunto de políticas da União Europeia apresentado em dezembro de 2019 que objetiva zerar as emissões de gases de efeito estufa nos países do bloco até 2050.

Embora o objetivo dessas medidas seja nobre, não há dúvidas que terão consequências econômicas avassaladoras para países como o Brasil, já que essas medidas poderão afetar as exportações brasileiras e de outros países para o mercado europeu.

O CBAM tem como objetivo diminuir as emissões de carbono pelos países da União Europeia. Para tanto, estabelece regras para as importações de mercadorias, com o objetivo de equiparar o tratamento dos produtos fabricados na União Europeia aos países com políticas ambientais menos rígidas, como o Brasil.

A União Europeia determinou que apenas as seguintes indústrias intensivas em energia estão sujeitas ao CBAM, a saber: cimento, ferro, aço, alumínio, fertilizantes, eletricidade e hidrogênio. Acredita-se que, progressivamente, novas indústrias serão incluídas nessa lista.

Para que os produtos importados ingressem na União Europeia, será necessário adquirir Certificados em uma plataforma estabelecida pelos países da União Europeia. Os preços desses certificados serão baseados no fechamento médio semanal das negociações das licenças de emissões (preço médio semanal do leilão de permissões do ETS, expresso em €/tonelada de CO2 emitido).

O CBAM não entrará em vigor imediatamente. Foi estabelecido um período de transição visando garantir uma transição mais efetiva e suave para o novo sistema. As obrigações de reportar informações sobre as emissões de carbono terá início em 1º de outubro de 2023, mas o pagamento das taxas de carbono (emissão dos Certificados) começará apenas em 1º de janeiro de 2026.

A partir de outubro deste ano, será necessário reportar apenas as emissões de gases de efeito estufa (GEE) incorporados em suas importações (emissões diretas e indiretas), sem a necessidade de realizar pagamentos ou ajustes financeiros. Ou seja, os exportadores deverão rastrear as emissões de carbono na cadeia produtiva de determinada mercadoria e calcular essa emissão, nos termos do regulamento europeu. No entanto, a partir de 2026, os importadores terão que declarar anualmente a quantidade de bens importados para a União Europeia no ano anterior e as emissões de GEE incorporadas a eles, além de entregar o número correspondente de certificados CBAM.

Uma grande questão que ainda está longe de ser resolvida é o funcionamento do sistema e as regras para o cálculo do carbono em produtos com emissão indireta (relacionadas às emissões produzidas pela eletricidade consumida na produção de determinado bem) serão oportunamente definidas pela Comissão Europeia.

Já a lei anti desmatamento foi apresentada como uma importante contribuição da União Europeia – que é essencialmente consumidora de commodities – para a interrupção do desmatamento global e da degradação florestal, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa e a perda de biodiversidade.

A legislação europeia determina que apenas poderão ingressar livremente nos países do bloco produtos originários de terras que não tenham sido desmatadas após 31 de dezembro de 2020, os quais serão denominados “produtos livres de desmatamento”.

Desse modo, produtos originários de áreas desmatadas terão sua comercialização proibida no bloco, incluindo aqueles que são fabricados a partir desses produtos.

As medidas de combate ao desmatamento devem incluir a criação de incentivos para uma transição para um uso mais sustentável dos recursos naturais, contribuindo para preservar mais florestas intactas, aumentando as oportunidades de mercado para produtos sustentáveis e eliminando a concorrência desleal de produtores não sustentáveis que exportam para o mercado comum europeu. Também será dada atenção à situação das comunidades locais e dos povos indígenas.

O próprio Regulamento UE n.º 2023/1115 traz algumas definições importantes, como os conceitos de desmatamento[1], floresta[2], plantações agrícolas[3] e degradação florestal[4]. A definição de “livre de desmatamento” é uma das maiores inovações da regulamentação, na medida em que é conceituada com base no parâmetro de que as commodities e produtos relevantes – incluindo aqueles usados ou contidos em produtos relevantes – foram produzidos em terras que não foram sujeitas a desmatamento ou degradação florestal após 31 de dezembro de 2020.  

Com relação às exportações, será estabelecido um sistema de benchmarking baseado em países com uma classificação escalonada que imporia tratamentos diferentes aos países, de acordo com critérios estabelecidos unilateralmente. A Comissão Europeia determinará o nível de risco dos países, que serão classificados como “risco alto”, “risco médio” ou “risco baixo” em razão do grau de desmatamento e degradação florestal, da expansão do uso de terras nas principais comodities e das tendências observadas, com base nos dados disponíveis, alertas de ONGs e outras de fontes internacionalmente reconhecidas.

Inicialmente, os seguintes produtos foram apontados como sendo presumidamente originários de áreas de desmatamento terão seu ingresso proibido na União Europeia: óleo de palma, madeira, café, cacau, carne bovina, borracha e soja. Produtos fabricados com tais commodities (pro exemplo, móveis, cosméticos e chocolates) também não poderão ser exportados para a União Europeia. A lista de commodities cuja entrada será proibida será revisada e atualizada regularmente, levando em consideração novos dados, como mudanças nos padrões de desmatamento.

A lei anti desmatamento entrará em vigor no dia 29 de junho de 2023. A proibição de importação e algumas obrigações de prestar informações terão início em 30 de dezembro de 2024 para as empresas em geral e em 30 de junho de 2025 para os operadores estabelecidos até 31 de dezembro de 2020 como micro e pequenas empresas, nos termos da Diretiva 2013/34/EU.

Esses dois regulamentos terão um grande impacto nas exportações brasileiras para a União Europeia, já que a pauta das exportações brasileiras para o bloco inclui várias das commodities mencionadas como proibidas. Estima-se que apenas a lei anti desmatamento tenha potencial de impactar em 80% das exportações do agronegócio brasileiro ou 40% do total das exportações para a UE, somando US$ 14,5 bilhões de vendas em 2021 para o bloco[5].

As empresas que utilizam em sua cadeia produtiva os commodities cuja entrada será proibida deverão demonstrar que os mesmos não são fabricados em áreas desmatadas ou com degradação ambiental. Empresas que já estão alinhadas com a agenda de compliance ambiental certamente terão maior facilidade de continuar exportando para a União Europeia.

As empresas que ainda não são sustentáveis devem adotar medidas para contribuir com as políticas públicas para evitar o desmatamento e a degradação florestal o mais rapidamente possível, além de mapear e registrar todos os insumos e todas as etapas de sua cadeia de produção.

Algumas restrições já foram, inclusive, anunciadas. Em 30 de maio, grandes bancos brasileiros anunciaram um protocolo de autorregulação para a concessão de crédito a frigoríficos e matadouros, com o objetivo de combater o desmatamento na Amazônia. A partir de 2025, os bancos passarão a exigir de seus clientes o rastreamento total da cadeia, para que seja comprovada a não aquisição de gado proveniente de áreas de desmatamento, tanto de fornecedores diretos quanto de fornecedores indiretos[6].

Não há dúvidas que esse processo será financeiramente oneroso e de difícil implementação. Não obstante, representará uma grande vantagem competitiva em relação aos concorrentes em outros países não conseguirem cumprir com as exigências estabelecidas na região europeia.


[1] Definido como “Conversão de florestas para uso agrícola, que tenha origem humana ou não”. Engloba as ideias de desmatamento ilegal, mas também de desmatamento legal.

[2] “Um terreno de uma extensão superior a 0,5 hectares, com árvores de mais de cinco metros de altura e um grau de cobertura arbórea de mais de 10 %, ou árvores que possam alcançar esses limiares in situ, excluindo as terras predominantemente consagradas a uso agrícola ou urbano”.

[3] “Terreno com povoamentos arbóreos integrados em sistemas de produção agrícola, nomeadamente plantações de árvores de frutos, plantações de palmeira-dendém ou olivais, e em sistemas agroflorestais, quando as culturas são plantadas sob coberto arbóreo. Incluem todas as plantações dos produtos de base em causa, com exceção da madeira; as plantações agrícolas estão excluídas da definição de floresta”.

[4] “Alterações estruturais da cobertura vegetal, sob a forma de conversão de Florestas primárias, ou de florestas em regeneração natural, em plantações florestais ou noutros terrenos arborizados; ou Florestas primárias em florestas plantadas”.

[5] Vide https://valor.globo.com/google/amp/opiniao/assis-moreira/coluna/brasil-critica-na-omc-medidas-unilaterais-da-uniao-europeia.ghtml.

[6] https://exame.com/esg/bancos-apertam-cerco-a-desmatamento-com-o-que-e-mais-importante-no-esg-criterio/?utm_source=crm&utm_medium=email&utm_campaign=newsletter-esg_conteudo-news_bancos-apertam-cerco-a-desmatamento-com-o-que-e-mais-importante-no-esg-criterio/&utm_term=n/a&utm_content=n/a.

Fake news: um problema antitruste ou regulatório?

Otávio Augusto de Oliveira Cruz Filho

Em seu artigo de 2017 para a Competition Policy International, Sally Hubbard defendeu que as fake news são um problema antitruste. A autora argumentou que empresas como Facebook e Google não são apenas agregadores de notícias, mas também competem com os veículos de comunicação por anúncios, atenção do usuário e dados.[1]

Segundo Hubbard, essas plataformas se utilizam de seus modelos de negócios e poder de alavancagem em benefício próprio e, por terem papéis centrais na economia e poder de mercado, afastaram as empresas de notícias tradicionais e de qualidade para fora do mercado. Logo, haveria pouco interesse financeiro em preservar a qualidade das notícias, e as notícias de pior qualidade costumam gerar mais engajamento, principalmente no Facebook e no YouTube.[2]

Tendo como base o argumento levantado pela autora, questiona-se se a preservação da qualidade das notícias deve ser um objetivo do direito antitruste e se há, de fato, algum efeito anticompetitivo que justifique a intervenção da autoridade da concorrência nestes casos.

O contraponto ao artigo de Hubbard é trazido por Sacher e Yun, que aduzem que o argumento de que as plataformas digitais estão acabando com a qualidade das notícias não deve prosperar. De acordo com os autores, o consumo de notícias online aumentou drasticamente, mesmo antes da compreensão moderna de mídias sociais como Facebook ou Twitter. As pessoas têm se afastado das fontes tradicionais de notícias, como jornais, telejornais e rádio, e passado mais tempo online em busca de notícias. Isso levou a uma diminuição das receitas para as empresas de mídia tradicional, à medida que os anunciantes mudaram para plataformas online.[3]

Longe da existência de plataformas e poder de mercado comparáveis ao das Big Techs, a explicação mais óbvia é que menos pessoas estão lendo, visualizando ou assinando fontes tradicionais de mídia. Isso leva, em última análise, a uma diminuição das receitas, como assinantes que pagam para acessar esses conteúdos e receitas publicitárias. Como resultado, e também com o advento da publicidade direcionada, os anunciantes mudaram para plataformas online.[4]

Pode-se dizer que, à medida que a economia atual faz sua transição para uma economia orientada por dados, houve uma mudança significativa no poder de concentração econômica para plataformas digitais. Essas plataformas foram chamadas por Stucke de “data-opólios”, ou seja, empresas que controlam estruturas poderosas que atraem usuários, vendedores, anunciantes e desenvolvedores de software para seus espaços digitais.[5]

Foi o caso, por exemplo, das alegações de que o Google estaria realizando “raspagem” (scrapping) de conteúdo de outros sites, especialmente sites de notícias, isto é, mostrando imediatamente a essência da notícia no resultado da pesquisa (pequena parte de texto em letras pretas que contextualiza a pesquisa resultados e que você encontra abaixo do endereço verde mostrado abaixo de cada resultado).

O CADE abriu processo administrativo no qual o Google estaria supostamente realizando raspagem de notícias jornalísticas. A Associação Nacional de Jornais do Brasil – ANJ acusou o Google de abuso de posição dominante ao dificultar que os usuários acessassem sites de mídia para manter alto acesso em seu site.[6]

De acordo com a ANJ,

A própria estrutura de plataforma do Google potencializa e reforça sua dominância no ambiente virtual, visto que: (i) enquanto detentora de infraestrutura crítica para o mercado digital (gatekeeper), obtém melhores condições de contratação por via da dependência dos usuários da plataforma; (ii) enquanto estrutura integrada em diversos mercados, pelo poder de alavancagem pode estabelecer vantagem competitiva em mercados auxiliares ou independentes; e (iii) enquanto detentora e coletora de dados de seus usuários, além de monetizar estas informações, pode adotar uma série de práticas anticompetitivas, como discriminar consumidores, manipular o processo de escolha dos consumidores e criar vantagens anticompetitivas em relação a seus concorrentes dada a expressiva assimetria de informação criada.

Para evitar tais acusações, o Google argumentou que essa amostra prévia não mostrava o cerne das notícias, mas tão somente uma visão geral do que se trata ao usuário, e como isso ajuda na divulgação de alguns sites, até então desconhecidos.

Embora ainda seja um caso em andamento no Brasil e tenhamos que esperar como os conselheiros da autoridade antitruste brasileira decidirão este caso, as alegações de scrapping foram parte de um acordo FTC-Google no qual o Google se comprometeu a permitir que sites optem por não aparecer na vertical do Google sites enquanto ainda aparece nos resultados orgânicos.

Uma outra perspectiva é apresentada por Domingues e Silva, que discutem se as fake news deveriam ser controladas pela via regulatória ou pela política antitruste. Segundo os autores,

os efeitos e os problemas potenciais que emergem das fake news para o ambiente concorrencial não são automaticamente subsumíveis aos critérios do nosso direito antitruste. Ainda que se considerem plataformas e redes sociais como agentes dotados de poder econômico, considerando os dados públicos, não estão claramente identificadas evidências de prejuízos concorrenciais e econômicos para as empresas de mídia tradicional quando são avaliados os efeitos do fenômeno das fake news.[7]

No Brasil, o Projeto de Lei 2630/2020 (PL das Fake News), com viés claramente regulatório, instituirá a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet com o objetivo de assegurar “mecanismos de transparência” para provedores de redes sociais, ferramentas de busca e serviços de mensageria instantânea baseados na internet.

Portanto, embora os abusos identificados possam ser investigados pela autoridade antitruste, é importante que ela seja cautelosa ao decidir se deve ou não abordar essas condutas por meio do direito antitruste. As fake news não devem ser tratadas exclusivamente como um problema de antitruste, uma vez que sua disseminação está além do abuso de poder de mercado ou poder de alavancagem das plataformas digitais.

Quanto a isso, Easterbrook descreveu dois tipos de erro por intervenções equivocadas da autoridade da concorrência que acabariam por substituir falhas de mercado por falhas do governo. [8]

Segundo o autor, por um lado, existem os Erros do Tipo I (também conhecidos como “falsos positivos”), descritos como o erro de condenar uma empresa por práticas que são, na realidade, pró-competitivas. Por outro lado, existem Erros do Tipo II (também conhecidos como “falsos negativos”), que se referem à absolvição de um empresa envolvida em práticas anticompetitivas.[9]

Nesse sentido, para o autor, os custos para correção dos Erros do Tipo I são maiores do que os Erros Tipo II. Ou seja, enquanto um “falso negativo” pode ser corrigido pelo próprio mercado, uma intervenção equivocada que resulte na condenação de comportamentos pró-competitivos pode não apenas ser irreversível como se espalhar para outros mercados.

Nas palavras do autor,

Uma dificuldade fundamental que o tribunal enfrenta é a incomensurabilidade das apostas. Se o tribunal erra ao condenar uma prática benéfica, os benefícios podem ser perdidos para sempre. Qualquer outra empresa que realize a prática condenada será punida devido ao stare decisis, independentemente dos benefícios. Se o tribunal erra ao permitir uma prática anticompetitiva, porém, a perda de bem-estar diminui com o decurso do tempo. O monopólio é autodestrutivo. Os preços de monopólio eventualmente atraem a entrada de novos player. É verdade que esse longo prazo pode demorar muito, com perdas para a sociedade nesse ínterim. O objetivo central do antitruste é acelerar a chegada do longo prazo. Mas isso não deve obscurecer o ponto: erros judiciais que toleram práticas nefastas são autocorretivos, enquanto condenações errôneas não são.[10]

Verifica-se, assim, que, ao contrário do que defende Hubbard, a disseminação de notícias falsas é um problema que requer soluções além do escopo do antitruste e precisamos procurar soluções fora dessa área, já que seu sucesso se baseia em fraquezas em nossa democracia capitalista. Em última análise, acreditar que a disseminação de notícias falsas é um verdadeiro problema de antitruste, é acreditar que o antitruste é o começo e o fim de todos os problemas.


[1] HUBBARD, Sally. Fake News is a Real Antitrust Problem. Competition Policy International, dez. 2017, p. 6. Disponível em https://www.competitionpolicyinternational.com/wp-content/uploads/2017/12/CPI-Hubbard.pdf . Acesso em 13 de junho de 2023.

[2] Idem.

[3] SACHER, Seth. B.; YUN, John. M., Fake News is Not an Antitrust Problem. CPI Antitrust Chronicle, dez. 2017. Disponível em: https://www.competitionpolicyinternational.com/wp-content/uploads/2017/12/CPI-Sacher-Yun.pdf. Acesso em 13 de junho de 2023.

[4] Idem.

[5] STUCKE, Maurice E. Should we be concerned about data-opolies? Georgetown Law Technology Review. 2018.

[6] Processo Administrativo nº 08700.009082/2013-03 (Representantes: E-Commerce Media Group Informação e Tecnologia Ltda. / Representadas: Google In. E Google Brasil Internet Ltda.)

[7] DOMINGUES, Juliana. O.; SILVA, Breno. F. M. e. Fake news: Um desafio ao antitruste?. Revista de Defesa da Concorrência, v. 6, n. 2, p. 37-57, 2018. Acesso em 13 de junho de 2023.

[8] EASTERBROOK, Frank H. Limits of Antitrust. 63 Texas Law Review 1 (1984).

[9] Idem.

[10] No original: “A fundamental difficulty facing the court is the incommensurability of the stakes. If the court errs by condemning a beneficial practice, the benefits may be lost for good. Any other firm that uses the condemned practice faces sanctions in the name of stare decisis, no matter the benefits. If the court errs by permitting a deleterious practice, though, the welfare loss decreases over time. Monopoly is self-destructive. Monopoly prices eventually attract entry. True, this long run may be a long time coming, with loss to society in the interim. The central purpose of antitrust is to speed up the arrival of the long run. But this should not obscure the point: judicial errors that tolerate baleful practices are self-correcting, while erroneous condemnations are not”, in EASTERBROOK, 1984, p. 13.


Otávio Augusto de Oliveira Cruz Filho. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Processus. Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico pela FGV. Mestre em Administração Pública com concentração em Organizações Públicas e Políticas Públicas pela FACE/UnB e licenciado em Letras pela Universidade Católica de Brasília. É Servidor Público Federal desde 2009. Atualmente, exerce o cargo de Chefe do Serviço de Cooperação Internacional na Assessoria Internacional da Presidência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).


O Ministério Público Federal no processo administrativo sancionador do CADE

Mauro Grinberg

Pouco (relativamente à relevância) tem sido escrito sobre a importantíssima tarefa do Ministério Público Federal (MPF) junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Comecemos pelo básico (lembrando que aqui tratamos apenas dos processos administrativos sancionadores e não dos atos de concentração), conferindo o art. 20 da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC): “O Procurador-Geral da República, ouvido o Conselho Superior, designará membro do Ministério Público para, nesta qualidade, emitir parecer, nos processos administrativos para imposição de sanções administrativas à ordem econômica, de ofício ou a requerimento do Conselheiro-Relator”.

Desde logo notamos que a opção “de ofício ou a requerimento do Conselheiro-Relator” bem demonstra que a participação do MPF, embora de enorme importância, não se demonstra obrigatória, ou seja, o representante do MPF pode não emitir parecer se não lhe for solicitado pelo Conselheiro-Relator. Todavia, se o parecer for solicitado, ele se torna obrigatório, face aos termos do dispositivo acima transcrito), ainda que não vinculativo.

Com efeito, estabelece o art. 127 da Constituição Federal: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Ou seja, zelar pela defesa da ordem jurídica, inclusive no Cade, sobretudo quando solicitado a tanto, é dever do MPF, o que se coaduna com o § 2º do art. 6º da Lei Complementar 75/1993: “A lei assegurará a participação do Ministério Público da União nos órgãos colegiados estatais, federais ou do Distrito Federal, constituídos para defesa de direitos e interesses relacionados com as funções da instituição”.

Mas há mais. Em se tratando de interesses individuais disponíveis, sempre que algum/a Representado/a tiver sido declarado/a incapacitado/a para o exercício dos próprios direitos (o que deve ser raro mas possível), o MPF terá a defesa desta pessoa, sendo esta a única situação em que ele terá função de parte no processo administrativo do Cade para imposição de sanções administrativas.

Assim, mesmo quando o MPF oficia ao Cade comunicando a existência de uma infração contra a ordem econômica, sua ação equivale à notícia de um crime levada à autoridade policial. Como instituição, o/a representante do MPF pode (e deve, quando lhe é solicitado) emitir parecer, embora seja recomendável que não seja a mesma pessoa da instituição a fazê-lo. Ou seja, quem avisa ao Cade sobre uma possível infração não deve ser a mesma pessoa a emitir parecer, ainda que a instituição seja a mesma.

Vale aqui lembrar que Stephanie Vendemiatto Penereiro e Wagner José Panereiro Armani demonstram que “a defesa da concorrência é estruturada pelo ordenamento jurídico brasileiro a partir de um tripé, possuindo três frentes de atuação: penal, cível e administrativa”, sendo que “a centralidade e a relevância da atuação do Ministério Público na defesa da concorrência mostra-se evidente quando se verifica estar presente em cada uma dessas fontes”[1].

Todavia, na esfera do processo administrativo sancionador do Cade, o MPF é parecerista – de importância fundamental, como se vê adiante, mas com esta limitação – pois não emite decisão no processo administrativo sancionador do Cade, que pode, se for o caso, decidir de maneira diversa da orientação constante de pareceres anteriores do/a representante do MPF. Com efeito, estabelece o art. 9º, II e III, da LDC que “Compete ao Plenário do Tribunal (…) “decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei” e “decidir os processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica instaurados pela Superintendência-Geral”. Ou seja, a decisão é do Plenário do Cade, sem voto do MPF (bem como dos demais participantes do processo).

Mas é claro que não podemos ver o MPF como mero parecerista. Márcio Barra Lima, lembrando que, de acordo com o § único do art. 1º da LDC, “a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei”, afirma que “tendo em vista a existência de um interesse geral que transcende os limites das estruturas do mercado, a intervenção do Ministério Público Federal é crucial para garantir o fiel cumprimento dos preceitos normativos, tanto dos princípios da ordem econômica como das garantias constitucionais do devido processo legal”[2].

Mais ainda, a Resolução Conjunta PGR/CADE 1/2016, tendo como objetivo estabelecer as condições de atuação do MPF junto ao Cade, atribuiu, já no seu art. 2º, I. a competência (ampla) de “atuar no controle das condutas anticoncorrenciais e na prevenção da concentração de mercado” e, mais adiante, no art. 3º, estabeleceu prerrogativas do MPF, entre as quais, por exemplo, a de “requerer ao Plenário do Tribunal a adoção de medidas de sua competência” (inciso IX). É o mesmo Márcio Barra Lima que conclui que “tais atribuições do MPF perante o CADE demonstram que sua atuação não se restringe à elaboração de pareceres, podendo igualmente atuar ativamente nos variados procedimentos administrativos que tramitam na autarquia”[3].

Como a Resolução Conjunta acima referida regulou em detalhes o relacionamento do/a representante do MPF com o Cade, diz Márcio Barra Lima que “foi conferida uma carga de eficácia antes inexistente àqueles diplomas superiores (Constituição e Lei Complementar nº 75/1993), ao menos no que se refere ao relacionamento interinstitucional”[4]. Mais do que aumentar a carga de eficácia (lembremos dos atributos da norma: existência, validade e eficácia), tal resolução deu ferramental para as autoridades, que antes se valiam de instrumentos outros que não tinham a mesma especificidade, não obstante a sua legalidade.

À parte o fato do/a representante do MPF ter direito, no Cade, a gabinete, assento e voz no Plenário (art. 3º, I e II, da Resolução Conjunta acima referida), a grande atuação do MPF nos processos administrativos sancionadores do Cade é a de fiscal da lei, com sua imparcialidade nata, por vezes contrariando versões que tendem a um determinado comportamento. Já se escreveu alhures que o Cade tem dois organismos distintos dentro dele: o acusador e o julgador, que não devem ser confundidos mas que, de qualquer sorte, sofrem a fiscalização do MPF para que não existam confusões desses dois organismos. Embora a convivência das duas atividades no mesmo órgão não seja uma situação ideal, é a que a lei nos proporciona e que faz avultar a importância do MPF.

Vale aqui lembrar a independência do/a representante do MPF, mencionando Hugo Nigro Mazzilli que “a hierarquia no Ministério Público é administrativa, não funcional. Em outras palavras, o Ministério Público, enquanto instituição, tem autonomia em face de outras instituições e órgãos do Estado; tem autonomia funcional até mesmo em face dos Poderes de Estado. E os membros e órgãos do Ministério Público têm reciprocamente independência funcional” (itálicos no original)[5]

Assim, a presença do/a representante do MPF, como fiscal da lei, nos julgamentos dos processos administrativos sancionadores do Cade, constitui garantia de equilíbrio e sobriedade. Portanto, ainda que a sua função nominal seja a de fornecer pareceres, a presença do MPF constitui garantia da sociedade.

Mauro Grinberg foi Conselheiro do Cade e Procurador da Fazenda Nacional, Presidente do Ibrac e hoje Conselheiro do Ibrac, membro da American Bar Assotiation, advogado especializado em Direito Concorrencial, sócio de Grinberg Cordovil


[1] “A atuação do Ministério Público na defesa da concorrência brasileira”, Revista de Direito Concorrencial”, 14.12.2022, pág. 27

[2] “A atuação do Ministério Público Federal junto ao CADE”, RDC, vol. 6, nº 1, maio de 2018, pág. 10

[3] Obra citada, pág. 14

[4] Obra citada, pág. 10

[5] “Regime jurídico do Ministério Público”, Saraiva, São Paulo, 2018, pág. 175

Desenvolver aeroportos regionais requer gestão profissional

Raul Sandoval Cerqueira

Os gestores de aeroportos regionais, de forma geral, focam seus esforços no desenvolvimento da infraestrutura para viabilizar o incremento das operações.

Esse incremento operacional tem de ser buscado sem abrir mão da segurança e do atendimento às regras técnicas que permeiam o setor aéreo.

Dado esse contexto, este artigo se inicia com um breve apanhado de questões fundamentais sobre a regulação de aeroportos.

O pouso, decolagem e movimentação de aviões de uso civil, salvo poucas exceções (1), só é permitido em áreas destinadas para esse fim e previamente cadastradas na Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), tais áreas são conhecidas como Aeródromos (2).

A fim de ordenar a regulação aplicável, o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) (2) os classifica quanto ao seu uso, podendo ser:

  • aeródromo militar
  • aeródromo civil de uso privado
  • aeródromo civil de uso público

Obviamente, aeródromos militares não estão sujeitos à regulação da aviação civil.

Aeródromos civis de uso privado, por serem de uso restrito pelo seu proprietário ou por quem ele permitir (2), dado o interesse pessoal na segurança da operação, a capacidade para promover as adequações necessárias e, principalmente, por haver pouca exposição de terceiros aos riscos de sua operação, estão sujeitos a uma regulação mais branda.

Já os Aeródromos civis de uso público, também denominados Aeroportos, destinam-se ao uso da população em geral (2), abrangendo usuários que desconhecem os detalhes da operação e não tem qualquer domínio sobre as condições em que essa se dá, por esses motivos, para os Aeroportos é requerida regulação mais intensa, a qual ainda é modulada segundo o porte da infraestrutura e as suas características (3).

Quando da implantação de um aeródromo, a primeira ação obrigatória junto a ANAC, para proporcionar a abertura ao tráfego, é a inclusão no cadastro apropriado (4), sendo que, operar sem atender a esse pré-requisito corresponde a uma condição de clandestinidade.

A inscrição no cadastro de Aeródromos de uso privado é um ato voluntário e simples, basta prover as informações, solicitar o cadastro e aguardar a publicação da portaria (5).

Outrossim, a inscrição no cadastro de Aeródromos de uso público tem como pré-requisito a verificação pela ANAC do atendimento aos itens do regulamento RBAC 154 EMD07, o que é comumente chamado de homologação (5).

Ainda, após a homologação, como requisito para permanência no cadastro de aeródromos de uso público, há outra diferença importante em relação aos de uso privado, a ANAC fiscalizará a realização das rotinas necessárias à segurança das operações, segundo o RBAC 153 EMD07 e, a cada alteração da infraestrutura também verificará novamente o atendimento ao regulamento RBAC 154 EMD07.

Aeródromos de uso privado podem ser utilizados para operações de transporte público de passageiros, em certas condições, por aeronaves de até 19 assentos e até o limite de 15 frequências semanais (6), entretanto são impossibilitados de realizar a cobrança de tarifas ou exploração comercial.

Essa condição pode ser apropriada nos primeiros momentos de uso do aeródromo, mas se mostrará insustentável, em especial, nos casos em que a operação começar a se tornar mais frequente, por não haver fonte própria de recursos para a realização de sua operação, manutenção e conservação.

A conformidade aos regulamentos, embora trivial para aqueles já inscritos e com operações regulares, constitui-se em uma barreira para aqueles que ainda intencionam iniciar o atendimento ao público em geral.

Falhas na infraestrutura como distanciamentos insuficientes, inexistência de proteção do perímetro, presença de obstáculos na faixa de pista, sinalização inadequada, entre outros, e ainda, inexistência de manutenção rotineira apropriada da infraestrutura e a dificuldade em manter as equipes, procedimentos e rotinas necessárias à segurança das operações, tem sido motivo de frustração das autoridades locais ao buscar o cadastramento da infraestrutura para o uso público.

Nesse contexto emerge a necessidade de se profissionalizar a gestão do aeródromo, afinal, não é suficiente apenas a realização das obras e melhorias, é necessária a correta manutenção, operação e prestação de contas aos órgãos reguladores.

Para alcançar esse resultado, há no mercado diferentes arranjos, quais sejam:

  • Estruturar equipe própria para a gestão, operação e manutenção do aeroporto;
  • Contratar empresas especializadas para operação comercial, manutenção e para a operação aérea;
  • Contratar a INFRAERO;
  • Implementar uma concessão patrocinada (PPP) da gestão, operação, manutenção e melhoria do aeroporto.

Todas essas alternativas encontram-se implementadas em um ou mais aeroportos no território nacional, por exemplo:

  • Equipe própria: Aeroporto de Campo novo do Parecis/MT; Aeroporto de Porto Murtinho/MS; Aeroporto de Araxá/MG;
  • Empresas contratadas: Aeroporto de Lages/SC; Aeroporto Fernando de Noronha/PE;
  • INFRAERO: Aeroporto de Guarujá/SP; Aeroporto de Divinópolis/MG;
  • Concessão patrocinada (PPP): Aeroporto da zona da mata/MG; Aeroporto de Parnaíba/PI.

Por apresentarem vantagens e desvantagens específicas, propõe-se uma comparação dos possíveis arranjos com base no seguinte rol de parâmetros:

  • Independe de demanda mínima: a viabilidade econômica para se implementar a solução não requer a existência de um mínimo de demanda;
  • Baixo custo administrativo: a solução independe de acompanhamento administrativo intenso do órgão público ou entidade privada responsável;
  • Equipe especializada: a solução favorece a mobilização e manutenção de profissionais especializados na gestão operacional do aeroporto;
  • Escopo abrangente: a solução é determinada por contratos robustos que abrangem a totalidade das necessidades operacionais, de manutenção e de desenvolvimento do aeródromo;
  • Estímulo para resultados, inovação e crescimento: a solução estimula a equipe a promover estratégias para buscar novas ligações aéreas, novos modelos de negócio e viabilizar receitas e crescimento do aeroporto;
  • Independência política: a política local, regional ou federal pouco interfere na organização e operação do aeroporto.

O quadro apresentado a seguir explicita o resultado dessa análise comparativa, sendo que a marca “(+)” significa vantagem da modalidade.

Tabela 1 – Quadro comparativo de soluções para desenvolvimento de aeródromos

CaracterísticasEquipe própriaContrato com empresas especializadasOperação INFRAEROConcessão patrocinada
Independe de demanda mínima(+)(+)  
Baixo custo administrativo  (+)(+)
Equipe especializada (+)(+)(+)
Escopo abrangente(+) (+)(+)
Estímulo para resultados, inovação e crescimento   (+)
Independência política (+) (+)

Fonte: Elaboração própria

A escolha da solução requer uma análise prévia cuidadosa e dependerá do momento de desenvolvimento no qual a infraestrutura se encontra, das condições institucionais que a cercam e da composição que trará mais resultados para os seus usuários e interessados.

Referências:

(1)   Resolução nº 624, de 07/06/2021. RBAC 91 Emenda nº 03. Requisitos gerais de operação para aeronaves civis.

(2)   Lei 7.565 de 19/12/1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA)

(3)   Resolução nº 712, de 14/04/2023. RBAC153 Emenda nº07. Aeródromos – Operação, Manutenção e Resposta à Emergência.

(4)   https://www.gov.br/pt-br/servicos/realizar-alteracao-cadastral-de-aerodromo-privado

(5)   Portaria SIA nº 3352/18

(6)   Resolução nº 576 de 04/08/2019

Integração Vertical e seus Efeitos em Atos de Concentração

Um exemplo de Cadeia de Suprimento de Saúde Suplementar

Cristina Ribas Vargas

Cadeia de Suprimento, Custos de Transação e Teoria Baseada em Recursos

Nas economias modernas observa-se que a grande maioria das empresas é responsável por uma ou algumas etapas de um processo produtivo de bens ou serviços. É raro identificar empresas que contemplem etapas desde a produção de seus insumos até a comercialização de seu produto ou serviço final ao consumidor. O mais habitual é verificarmos empresas que adquirem insumos de outras empresas, transformando-os ou beneficiando-os e posteriormente vendendo sua produção à empresas especializadas em distribuição e vendas à varejo. Assim como na produção de bens, no setor de serviços também identificamos especialização de empresas por segmentos, do montante à jusante, isto é dos fornecedores aos consumidores finais. Denominamos cadeia de suprimento aquela que abrange desde os fornecimentos de insumos, até a etapa de pós-venda aos consumidores. Por exemplo, uma operadora de planos de saúde, cujo produto final é a comercialização de planos com determinada cobertura de serviços, credencia outras empresas para a realização de exames de diagnósticos a seus beneficiários, bem como consultas realizadas por clinicas independentes, hospitais, centros médicos etc., e ainda, terceiriza a contratação de atividades indiretas (overheads), tais como segurança e tecnologia da informação. Neste processo, a tendência esperada é de que a cada etapa da cadeia aumente o valor agregado final. A análise das etapas que agregam maior ou menor valor durante o processo permitem a realização da reengenharia da cadeia, em busca do máximo de vantagem competitiva possível, reposicionando, reestruturando, ou até mesmo eliminando alguma etapa da cadeia.

A partir da necessidade de análise da gestão da cadeia de valor, Ronald Coase (1937) identificou que em determinadas circunstâncias poderia ser mais eficiente empreender certas atividades da cadeia internamente pela empresa. Atividades realizadas por terceiros, que incidem em elevados custos de contrato para garantir seu controle ou entrega, podem incentivar a empresa a internalizar a atividade. Na década de 1960 Williamson relacionou a análise de custos de transação e operações de compra no mercado, definindo os custos de transação como os custos de negociar, monitorar e fazer cumprir contratos no mercado. Quanto maiores as incertezas e mais complexas as condições contratuais, maiores tendem a ser os custos de transação, tais como em contratos envolvendo investimentos de longo prazo, ou investimentos prévios cujas alterações contratuais posteriores não compensam o investimento inicial (hol-up). Outro aspecto importante identificado na avaliação do custo de transação ocorre  quando uma negociação apresenta informações assimétricas, isto é, uma das partes possui maiores informações sobre os custos e benefícios do contrato do que a outra, neste caso o custo de equilibrar a negociação pode vir a torná-la inviável.

Uma abordagem alternativa à dos custos de transação é a Teoria Baseada em Recursos, que afirma que certas empresas acumulam ativos, habilidades e conhecimentos que lhes confere competências distintivas, difíceis de serem imitadas e que lhes garante vantagem competitiva no mercado. Neste caso, as atividades realizadas pela empresa que apresentassem competências distintivas estariam associadas a menores custos comparativos, e portanto estas deveriam ser mantidas internamente, ao passo que terceirizar as atividades sem competências distintivas poderia auxiliar na redução de custos. No entanto, uma vez identificada a existência de uma competência essencial, é bem provável que os custos de transação para protegê-la da imitação pela concorrência venham a aumentar. Nesses casos, uma solução seriam contratos mais precisos e que objetivassem mitigar o risco de imitação, devendo ser aplicados tanto à montante quanto à jusante em cadeias produtiva ou de suprimento.

Integrações Verticais – definições e cadeia de mercado de saúde suplementar

Os custos de transação e as teorias baseadas em recursos nos auxiliam a identificar o sentido no qual determinadas cadeias de suprimento caminham para maior integração de atividades dentro de uma mesma empresa ou grupo empresarial. A integração pode ser horizontal, vertical ou em conglomerados. Aqui destaca-se apenas a definição acerca da integração vertical. A integração vertical ocorre quando empresas de diferentes etapas da cadeia de suprimento se fundem, ou uma adquire a outra. A dimensão vertical da análise da empresa reflete suas escolhas acerca de quais bens e serviços devem ser produzidos internamente ou terceirizados desde o insumo até a venda final ao consumidor. Segundo Perry (1989) uma firma é definida como verticalmente integrada se envolve dois processos interligados:

1º) Upstream – a produção realizada na etapa upstream de uma cadeia é empregada totalmente ou em parte, como um insumo intermediário no processo donwstream desta mesma cadeia;

2º) Downstream – a quantidade de um insumo intermediário que é utilizado em uma etapa donwstream é obtida em parte ou totalmente de um  processo upstream.

Neste sentido, a integração vertical pode ocorrer de forma parcial, isto é, quando somente parte dos insumos produzidos na etapa downstream da cadeia é fornecido pela própria empresa, ou somente parte da produção da etapa upstream é vendida para outros compradores.

Uma característica da integração vertical é a redução da necessidade de contratos para efetuar as trocas no mercado, já que as transações serão dentro da própria empresa. Quanto mais integrada a empresa, mais autonomia de decisão sobre níveis de investimento, emprego, produção e distribuição ela terá.

Conforme dados do CADE (2022), a integração vertical é um dos aspectos mais discutidos em Atos de Concentração nos mercados que envolvem a cadeia de saúde suplementar. Nos mercados que constituem essa cadeia, tais como operadoras de planos de saúde, hospitais, centros médicos, serviços de medicina diagnóstica etc. verifica-se a existência de uma tendência de verticalização, que pode ser explicada por diversos motivos, mas cujas consequências positivas e negativas sobre o conjunto do mercado exigem o olhar atento do Conselho. Em que pese os ganhos de eficiência possam ser benéficos tanto para a empresa quanto para seus consumidores, a possibilidade de algum abuso de poder decorrente dessa integração deve ser considerada. A possibilidade de constituição de barreiras à entrada, intensificação de assimetrias de informação e concentração de mercado podem facilitar o exercício do poder de mercado por uma empresa dominante. No caso do Brasil é possível que as normas editadas pela ANS tenham contribuído para incentivar os processos de integração vertical entre as operadoras de planos de saúde e os elos da cadeia à jusante (ver figura 1- modelo de cadeia). Tais normas objetivam assegurar que os consumidores serão atendidos por operadoras com saúde financeira e patrimonial suficiente para atender a todos os serviços cobertos pelos seus  planos de saúde, o que é benéfico quando se trata da proteção do consumidor. Contudo, pode-se dizer que há uma barreira em termos de exigência de capital mínimo para a atuação nesses mercados, que podem desincentivar o ingresso de empresas de menor capacidade financeira neste mercado.

Uma das eficiências que a integração vertical traz para a cadeia de saúde suplementar é a eliminação do problema do agente-principal, isto é, a eliminação dos interesses antagônicos em diferentes elos da cadeia de suprimento. Uma vez que tanto a operadora de plano de saúde (OPS) quanto os prestadores de serviços, tais como ambulatórios, laboratórios de apoio a saúde diagnóstica (SAD), hospitais etc. desejam auferir a maior renda possível no mercado de saúde, tem-se que para as OPS esta renda aumenta quando o usuário não utiliza os serviços disponibilizados pelo plano, ao passo que a renda do prestador do serviço cresce quando há a utilização de sua estrutura de serviços (consultas em hospitais, internação em leitos, realização de exames de diagnósticos etc.). A integração elimina esse conflito de interesses, pois a oferta de plano de saúde e a prestação de serviços cobertos pelo plano passam a ser feitos pelo mesmo agente.

As etapas da análise de integração vertical podem ser resumidas pelos seguintes pontos de análise:

  1. Definição dos mercados relevantes observando-se as características dos produtos/serviços ofertados, bem como, o mercado geográfico de atuação das empresas requerentes;
  2. Determinação dos market-shares nos mercados relevantes a fim de identificar o grau de concentração pré e pós-operação de integração;
  3. Análise da possibilidade de prejuízos à concorrência nos mercados à montante e à jusante;
  4. Análise do resultado líquido da operação, após consideração dos ganhos de eficiência versus prejuízos decorrentes da concentração.

Embora a integração da cadeia à montante e à jusante seja vista no sentido vertical, é importante destacar que os possíveis efeitos negativos provocados pela integração ocorrem no sentido empresa integrada – concorrentes de mercado. Assim, os efeitos da integração direcionam-se no sentido horizontal entre a empresa integrada e as demais participantes do mercado. Especificamente durante a análise de integração vertical busca-se verificar a possibilidade de fechamento de mercado por parte da empresa integrada, nos segmentos à montante e à jusante de sua cadeia de suprimento para os concorrentes de mercado, de tal forma que se configure a prática de condutas anticompetitivas contra as empresas independentes. Observamos na figura 1 que embora a integração ocorra no sentido é vertical da cadeia de suprimento, suas conseqüências são horizontais, pois os possíveis fechamentos de mercado incidem sobre seus concorrentes.

Conforme explicitado em CADE (2022), os efeitos de fechamento para a concorrência na cadeia de saúde suplementar, cuja integração ocorre entre OPS e Hospitais por exemplo, deve ser analisada à jusante e à montante:

  1. Qual a possibilidade de fechamento de mercado de serviços prestados pelos hospitais às operadoras de planos de saúde independentes?
  2. Qual a possibilidade de fechamento do mercado de plano de saúde (já integrado aos hospitais da rede própria) para o credenciamento de hospitais independentes?

Por fim, a conclusão acerca da possibilidade de fechamento de mercado à montante e a à jusante dependerá da posição de dominância da empresa integrada no mercado, da existência de barreiras à entrada, e da incapacidade dos concorrentes já instalados de oferecer serviços plenamente substitutivos aos oferecidos pela empresa integrada.

Figura 1. Exemplo de Integração Vertical na Cadeia de Suprimento de Saúde Complementar e Efeitos Concorrenciais.

REFERÊNCIAS

CADE (2022), Cadernos do CADE – Atos de Concentração nos mercados de planos de saúde, hospitais e medicina diagnóstica, CADE, janeiro de 2022.

COASE, R.H., The Nature of the Firm, Econômica, volume 4, Nº.16, p.386-405, London: LSE, 1937

Disponível em 10/04/2023:

https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/j.1468-0335.1937.tb00002.x

NELLIS, Joseph, PARKER,David(2003), Princípios de Economia para os Negócios. São Paulo: Futura, 2003.

PERRY, M. K. (1989), Vertical Integration determinants and effects. In: Schamalensee,R., Willig,R. (Eds.). Handbook of Industrial Organization. Amsterdam: North-Holland, 1989.


Cristina Ribas Vargas. Doutora em economia do desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Economia do Desenvolvimento pela PUC/RS e Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.   Atuou como professora substituta na UFRGS e professora adjunta em instituições de ensino privado. É economista da Administração Pública Federal desde 2005, e atualmente está atuando na CGAA2 do Cade.

endereço linkedin:

http://linkedin.com/in/cristina-vargas-5921195a


Venda casada de PC novo com sistema Operacional Microsoft

Maxwell de Alencar Meneses

A Microsoft pratica a conduta de venda casada de licenças do seu sistema operacional Windows, que são pré-instaladas em novos computadores fabricados por OEMs (original equipment manufactures), máquinas montadas de fábrica. Isso ocorre de modo análogo desde os primórdios da criação da empresa, sendo que na época tratava-se do seu precursor o MS-DOS, que também já vinha embarcado com os primeiros PCs (computadores pessoais).

A questão levanta polêmica quando o usuário se vê obrigado a pagar pela licença do Windows, mesmo que não tenha interesse em utilizá-lo, visto que se tratam de produtos que são diferentes e que podem ser vendidos separadamente, todavia a conduta em si cria barreiras para que o usuário possa optar quanto à aquisição da licença.

No processo de compra de um desktop de determinados fabricantes, por exemplo pelo site da Dell no Brasil, o usuário é forçado a adquirir desktops com o Windows, podendo optar por versões diferentes, mas apenas do Windows. Não é possível deixar de adquiri-lo, ao passo que esses fabricantes se recusam a vender um equipamento dessa categoria sem esse sistema operacional (S.O.), já que não disponibilizam essa opção.

Segundo o site statista, em 2021 o Microsoft Windows foi o sistema operacional mais utilizado em computadores (desktop, tablet e console) no mundo, possuindo mais de 70% de Market share. No mercado de PCs o Gartner group estimou para o quarto trimestre de 2021, a liderança em primeiro lugar da Lenovo com 24,6%, seguida de perto pela HP com 21,1% e com o bronze a Dell com 19,5%. Esse pódio totalizaria 65,2% do mercado de computadores. Nota-se que em 2008, a Lenovo chegou a não suportar mais o Linux nos seus desktops, o que reviu somente em 2016.

A Apple vem em quarto lugar nessa lista com 7,7% de share. Em sua arquitetura historicamente fechada e proprietária, a fabricante determina qual sistema é utilizado em seus computadores, que é o seu próprio sistema, o OS X, que tem raízes em comum com o Linux.

A Microsoft por sua vez estende sua posição dominante sobre os fabricantes, sendo alavancada formando um efeito artificial de conjunto hardware-software monolítico e quase monopolista, que mimetiza o efeito natural obtido pela Apple com seu conjunto próprio de hardware e software, Mac e OS X, indissociáveis pela engenharia de concepção do projeto, e não por uma conduta concorrencial, como no caso do Windows.

O curioso é que o fato de a Microsoft não ter vendido seus direitos do MS-DOS à IBM no início da era dos PCs, mas pelo contrário ter negociado com as outras empresas o fornecimento desse software para máquinas rivais da IBM, foi provavelmente o causador de hoje nós não termos apenas dois fabricantes de PCs cada um com seu conjunto de hardware e software entranhados, que seriam a IBM e a Apple.

A abertura dada pela separação entre o S.O. e o hardware naquela ocasião, possibilitou o florescimento de vários fabricantes de computadores, maior concorrência e um barateamento de preços, em comparação a solução Mac que é mais cara desde o início e talvez sempre se mantenha assim.

Em 2007, a Dell declarou que seus computadores com Linux pré-instalado seriam US$ 50 mais baratos de que a versão similar com Windows, em outras palavras seria pago à Microsoft uma “taxa” de licenciamento de US$ 50, valor esse acrescido ao custo de um computador de US$ 1000. A “taxa” Windows criada pelo incentivo dado pela Microsoft para que OEMs forneçam computadores com Windows pré-instalado é justificada pela empresa por uma eficiência gerada aos compradores, que têm o benefício de não necessitar instalar um sistema operacional. Muitas pessoas comprariam PCs com sistemas operacionais pré-instalados para não ter que lidar com a curva de aprendizado e a inconveniência de realizar sozinhas a instalação de um sistema operacional.

Ao mesmo tempo, revendas de software anunciam abertamente venda de licenças OEM Windows, direcionadas para venda casada com equipamentos novos, que não vem necessariamente com S.O. pré-instalado, ou seja, a eficiência alegada da pré-instalação é relativa. Essas licenças são atreladas a aquele hardware novo e perdem validade em caso de determinadas alterações que o descaracterize, como a troca da placa principal do computador.

Entre os que se dispõem a utilizar outro S.O. há relatos de compradores que obtiveram restituição do valor pago pela licença Microsoft e de outros a quem esse benefício foi negado, a depender do país, do entendimento do vendedor a esse respeito, e de condições específicas de venda do fabricante do hardware. Em sites especializados como o “Reclame Aqui” relatos de problemas de consumidores quanto a essa imposição do sistema ao adquirirem um PC.

Em 2007, foi apresentado o projeto de lei 167/07 na Câmara dos Deputados proibindo venda casada de hardware com sistema operacional, que veio a ser arquivado. O CADE julgou no caso Paiva Piovesan v Microsoft a venda casada do Microsoft Money com o Windows. A Microsoft enfrentou notórias ações antitruste, como no caso Netscape. Há, portanto, um histórico que corrobora uma inquietação de partes da sociedade com o que ao longo dos anos vem delineando um certo padrão de condutas comerciais da Microsoft visando afastar concorrência de modo não natural.

Em que pese haver aspectos técnicos qualitativos entre os sistemas operacionais existentes, há um aspecto comportamental que torna muito difícil a troca e é parte insidiosa da Conduta concorrencial da Microsoft. Quando se é introduzido ao uso de smartphones por meio de um celular iPhone, que utiliza sistema iOS, o usuário sente natural dificuldade ao operar um celular Android, o mesmo acontece com usuário inicial do Android com relação ao iOS.

Esse sintoma ocorre de modo semelhante com o usuário de sistemas para desktops. O usuário contumaz de Windows fica perdido no ambiente Mac, bem como no ambiente Linux e vice-versa. Isso ocorre pela máxima de que o melhor ambiente é aquele no qual se foi habituado a utilizar desde o início. Isso explica o investimento de fabricantes de software de CAD (Computer Aided Design) para fornecer licenças em condições especiais aos arquitetos ainda na universidade, pois quando esses profissionais ingressarem no mercado dificilmente optarão por utilizar outro sistema, mesmo que tecnicamente superior.

Nesse sentido, é possível adicionalmente dizer que a fixação vezes obrigatória do Windows nas máquinas concorre para que os usuários se mantenham ad aeternum atrelados a esse fornecedor, dificultando não só a entrada de concorrentes já existentes, como a inovação tecnológica proveniente de um eventual novo entrante, que sente desestimulado face ao contexto de posição dominante inarredável.

Uma das possíveis alegações com efeito de balancing da conduta é que tanto é possível, quanto existe o fornecimento de computadores com Linux, bem como também haveria possibilidade de aquisição de máquinas montadas, que podem receber qualquer sistema operacional, todavia o efeito notado nas principais fabricantes de hardware que hoje perfazem um share de quase 80% do mercado de PCs, é que essas empresas utilizam sistema alternativo em uma fração diminuta de suas vendas, ou, por vezes, simplesmente não utilizam em absoluto.

Essa fração pode ser observada pelo share dos S.O. disponível no site statcounter, que informa que em maio de 2022 os computadores Desktop no mundo todo se distribuem assim: Windows 75,54%; OS X 14,98%; desconhecidos 4,81%; Linux 2,45%; Chrome OS 2,22% e FreeBSD 0,01%.

A falta de opção ao comprador e além disso, a falta de informação de quanto lhe custa o software que está adquirindo de forma casada, e por quanto poderia adquirir um equipamento com uma alternativa de S.O. gratuito pode interferir na universalização do acesso à tecnologia. No contexto de pandemia em que famílias passaram a utilizar mais intensamente computadores em uma conjuntura de crise econômica, a possibilidade de redução do ônus do sistema operacional de em torno de R$ 150,00 sobre um desktop de R$ 800,00 pode fazer toda diferença e constituir um sobrepreço ao produto essencial almejado.

Em conclusão e síntese, procurou-se até aqui percorrer de modo fluído o teste jurídico utilizado em precedente do CADE já mencionado, de forma a constatar autoria, materialidade e dano advindo da conduta, visto que: (i) os produtos são diferentes e autônomos, (ii) existe elemento de coerção, (iii) existe uma posição dominante inequívoca para alavanca, (iv) existem efeitos duradouros no mercado alavancado, (v) a análise das eficiências pretendidas demonstra sinais de acobertamento de uma presumível naked restriction.


Maxwell de Alencar Meneses, cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


Ainda sobre algumas dúvidas frequentes de pequenos negócios sobre concorrência.

Potenciais condutas anticompetitivas no relacionamento com concorrentes

Fernando de Magalhães Furlan

a. Fixação de preços

            A fixação de preços é um acordo (escrito, verbal ou inferido de conduta) entre concorrentes que aumenta, diminui ou estabiliza preços ou condições competitivas. Geralmente, as leis antitruste exigem que cada empresa estabeleça preços e outros termos por conta própria, sem concordar com um concorrente. Quando os consumidores fazem escolhas sobre quais produtos e serviços comprar, eles esperam que o preço tenha sido determinado livremente com base na oferta e na demanda, e não por um acordo entre concorrentes. Quando os concorrentes concordam em restringir a concorrência, o resultado geralmente são preços mais altos. Assim, a fixação de preços é uma das principais preocupações da fiscalização antitruste do governo e geralmente se enquadra como conduta anticompetitiva conhecida como cartel ou, ainda, pode ser tipificada como influência a conduta comercial uniforme, também passível de punição segundo a lei antitruste.

            Um acordo claro entre concorrentes para fixar preços é quase sempre ilegal, quer os preços sejam fixados no mínimo, no máximo ou dentro de algum intervalo. A fixação ilegal de preços ocorre sempre que dois ou mais concorrentes concordam em realizar ações que tenham por efeito aumentar, baixar ou estabilizar o preço de qualquer produto ou serviço sem qualquer justificação legítima. Esquemas de fixação de preços são muitas vezes elaborados em segredo e podem ser difíceis de descobrir, mas um acordo pode ser descoberto a partir de evidências “circunstanciais”. Por exemplo, se os concorrentes diretos tiverem um padrão de termos contratuais idênticos inexplicáveis ​​ou comportamento de preços juntamente com outros fatores (como a falta de explicação comercial legítima), a fixação ilegal de preços pode ser o motivo. Convites para coordenar preços também podem gerar preocupações, como quando um concorrente anuncia publicamente que está disposto a encerrar uma guerra de preços se seu rival estiver disposto a fazer o mesmo, e os termos são tão específicos que os concorrentes podem ver isso como uma oferta para definir preços em conjunto.

            Nem todas as semelhanças de preços, ou mudanças de preços que ocorrem ao mesmo tempo, são resultado da fixação de preços. Pelo contrário, muitas vezes resultam de condições normais de mercado. Por exemplo, os preços de commodities como o trigo são muitas vezes idênticos porque os produtos são praticamente idênticos, e os preços que os agricultores cobram todos sobem e descem juntos, sem qualquer acordo entre eles. Se uma seca fizer com que a oferta de trigo diminua, o preço para todos os agricultores afetados aumentará. Um aumento na demanda do consumidor também pode causar preços uniformemente altos para um produto com oferta limitada.

            A fixação de preços refere-se não apenas aos preços, mas também a outros termos que afetam os preços aos consumidores, como taxas de envio, garantias, programas de desconto ou taxas de financiamento. O escrutínio antitruste pode ocorrer quando os concorrentes discutem os seguintes tópicos: preços presentes ou futuros; políticas de preços; promoções; lances; custos; capacidade; termos ou condições de venda, incluindo termos de crédito; descontos; identidade dos clientes; alocação de clientes ou áreas de vendas; cotas de produção e planos de P&D.

            Exemplo: Um grupo de optometristas concorrentes concordou em não participar de uma rede de cuidados com a visão, a menos que a rede aumentasse as taxas de reembolso para pacientes cobertos por seu plano. Os optometristas se recusaram a atender pacientes cobertos pelo plano da rede e, eventualmente, a empresa aumentou as taxas de reembolso.

            Tal acordo dos optometristas era uma fixação ilegal de preços e que seus líderes organizaram um esforço para garantir que outros optometristas soubessem e cumprissem o acordo.

            Um acordo para restringir a produção, vendas ou produção é tão ilegal quanto a fixação direta de preços, porque a redução da oferta de um produto ou serviço eleva seu preço.

            Pergunta: Os postos de gasolina na minha área aumentaram seus preços na mesma quantidade e ao mesmo tempo. Isso é fixação de preços?

            Resposta: Uma mudança de preço uniforme e simultânea pode ser resultado da fixação de preços, mas também pode ser resultado de respostas independentes de negócios às mesmas condições de mercado. Por exemplo, se as condições do mercado internacional de petróleo causarem um aumento no preço do petróleo bruto, isso poderá levar a um aumento no preço de atacado da gasolina. Postos de gasolina locais podem responder aos preços mais altos da gasolina no atacado aumentando seus preços para cobrir esses custos mais altos. Outras forças de mercado, como a divulgação pública dos preços atuais (como é comum com a maioria dos postos de gasolina) incentiva os fornecedores a ajustar seus próprios preços rapidamente para não perder vendas. Se houver evidências de que os operadores dos postos de gasolina conversaram entre si sobre o aumento de preços e concordaram com um plano de preços comum, no entanto, isso pode ser uma violação antitruste.

            Pergunta: Nossa empresa monitora os anúncios dos concorrentes e às vezes oferecemos descontos especiais ou incentivos de vendas para os consumidores. Isso é um problema?

            Resposta: Não. A equivalência de preços dos concorrentes pode ser um bom negócio e ocorre frequentemente em mercados altamente competitivos. Cada empresa é livre para definir seus próprios preços, podendo cobrar o mesmo preço que seus concorrentes, desde que a decisão não tenha sido baseada em qualquer acordo ou coordenação com um concorrente.

b. Manipulação de lances em licitação

            Sempre que os contratos são adjudicados por meio de licitações, a coordenação entre os licitantes prejudica o processo de licitação e pode ser ilegal. A manipulação de licitações pode assumir muitas formas, mas uma forma frequente é quando os concorrentes acordam antecipadamente qual empresa vencerá a licitação. Por exemplo, os concorrentes podem concordar em se revezar como o licitante com oferta mais baixa, ou ficar de fora de uma rodada de licitações, ou fornecer lances inaceitáveis ​​para encobrir um esquema de manipulação de licitações. Outros acordos de manipulação de licitações envolvem a subcontratação de parte do contrato principal para os licitantes perdedores ou a formação de uma joint venture para apresentar uma única oferta.

            Exemplo: Três empresas de ônibus escolares formaram uma joint venture para fornecer serviços de transporte sob um único contrato com a Administração municipal. A joint venture não envolveu nenhuma integração benéfica de operações que pudesse economizar dinheiro. A joint venture claramente operava principalmente para impedir que as outras empresas de ônibus oferecessem licitações concorrentes.

c. Divisão de mercado e alocação de clientes

            Acordos simples entre concorrentes para dividir territórios de vendas ou atribuir clientes são quase sempre ilegais. Esses acordos são essencialmente acordos para não competir: “Eu não vou vender no seu mercado se você não vender no meu”. O compartilhamento ilegal de mercado pode envolver a alocação de uma porcentagem específica de negócios disponíveis para cada produtor, a divisão geográfica dos territórios de vendas ou a atribuição de determinados clientes a cada vendedor.

            Pergunta: Quero vender meu negócio e o comprador insiste que eu assine uma cláusula de não concorrência? Isso não é ilegal?

            Resposta: Uma cláusula de não concorrência limitada é uma característica comum dos negócios em que uma empresa é vendida, e os tribunais geralmente permitem tais acordos quando são acessórios da transação principal, razoavelmente necessários para proteger o valor dos ativos vendidos e limitada no tempo e na área coberta. Existem outras situações, no entanto, em que as cláusulas de não concorrência podem ser anticompetitivas. Por exemplo, uma determinada autoridade antitruste impediu um operador de clínicas de diálise de comprar cinco clínicas e pagar seu concorrente para fechar mais três. O contrato de compra também continha uma cláusula de não concorrência que impedia o vendedor de abrir uma nova clínica na mesma área local por cinco anos e exigia que o vendedor aplicasse cláusulas de não concorrência em seus contratos com os diretores médicos das instalações fechadas. Nessa situação, a cláusula de não concorrência impedia esses médicos de atuarem como diretores médicos de qualquer nova clínica na área e reduzia a chance de uma nova clínica ser aberta por cinco anos. Assim, o acordo para fechar as clínicas, reforçado pelo acordo de não competir por cinco anos, foi um acordo ilegal para eliminar a concorrência entre rivais.

d. Boicotes em grupo

            Qualquer empresa pode, por si só, havendo justificativa comercialmente plausível, se recusar a fazer negócios com outra empresa. Mas um acordo entre concorrentes para não fazer negócios com indivíduos ou empresas visadas pode ser um boicote ilegal, especialmente se o grupo de concorrentes trabalhando em conjunto tiver poder de mercado. Por exemplo, um boicote de grupo pode ser usado para implementar um acordo ilegal de fixação de preços. Nesse cenário, os concorrentes concordam em não fazer negócios com terceiros, exceto em termos acordados, geralmente com o resultado de aumento de preços. Uma decisão independente de não oferecer serviços aos preços vigentes não levanta preocupações antitruste, mas um acordo entre concorrentes de não oferecer serviços aos preços vigentes como meio de alcançar um preço acordado (e normalmente mais alto) levanta preocupações antitruste.

            Exemplo: vários grupos de prestadores de serviços de saúde concorrentes, como médicos, alegavam que sua recusa em negociar com seguradoras ou outros compradores em termos que não tivessem sido acordados em conjunto equivalia a um boicote de grupo ilegal. Houve também um boicote em grupo de uma associação de advogados concorrentes para parar de fornecer serviços jurídicos dativos para réus criminais indigentes até que o Estado (governo) aumentasse a remuneração paga por esses serviços.

            Boicotes para impedir que uma empresa entre no mercado ou para prejudicar um concorrente existente também são ilegais. Por exemplo, um grupo de médicos usou de um boicote para impedir que uma organização de assistência gerenciada estabelecesse uma unidade de saúde concorrente e varejistas que usaram um boicote para forçar os fabricantes a limitar as vendas por meio de um fornecedor de catálogo concorrente.

            Boicotes visando vendedores que reduzem os preços são especialmente propensos a levantar preocupações antitruste e podem ser alcançados com a ajuda de um revendedor ou fornecedor comum. Exemplo: um varejista nacional de brinquedos obteve acordos paralelos de vários fabricantes de brinquedos para não fornecer uma linha completa de brinquedos a “clubes de compra” de baixo preço. Como resultado do boicote de fornecedores organizado pelo grande varejista, os consumidores tiveram dificuldade em comparar o valor de diferentes brinquedos em diferentes pontos de venda, o tipo de comparação de compras que poderia ter levado os varejistas a baixar seus preços de brinquedos.

            Boicotes por outros motivos podem ser ilegais se o boicote restringir a concorrência e não tiver uma justificativa comercial. Por exemplo, um grupo de revendedores de automóveis usou um boicote ilegal para impedir que um jornal publicasse aos consumidores como usar informações de preços no atacado ao comprar carros. Tal boicote afetou a concorrência de preços e não tinha justificativa razoável.

            Pergunta: Sou gerente de compras e tenho problemas com um fornecedor que sempre atrasa as entregas e não retorna minhas ligações. Ouvi dizer que outras empresas pararam de fazer negócios com ele. Posso recomendar que minha empresa encontre outro fornecedor também

            Resposta: Uma empresa sempre pode escolher unilateralmente seus parceiros de negócios. Desde que não faça parte de um acordo com concorrentes para parar de fazer negócios com um fornecedor-alvo, a decisão de não negociar com um fornecedor não deve levantar preocupações antitruste.

Muito Prazer, Regulação!

Juliana Oliveira Domingues & Eduardo Molan Gaban

 “What Is Regulation?” Barak Orbach foi explícito sobre o foco do seu paper com esse título[1].

Quando trazemos esse tema, em 2023, muitos ainda podem ficar surpresos com o fato de haver uma recorrente confusão terminológica. Quando falamos, então, de “coarregulação”, “autorregulação”, “regulação responsiva”, “análise de impacto regulatório”, “autorregulação regulada”, grandes e repetidas interrogações surgem para boa parte da comunidade jurídica.

Não deixa de ser um alento e – até mesmo – um sopro de esperança, observar que no berço do capitalismo persistam essas dúvidas.

Afinal, o que todos sabem sobre regulação?

A natureza evasiva do termo “regulação” é, em grande parte, produto de confusão. Obviamente, estamos tratando de mais um conceito abstrato. Não sem motivos, vemos opiniões sobre o que seria o “escopo desejável” de poderes regulatórios ou de políticas regulatórias.

Da mesma forma, há quem veja a regulação puramente como uma intervenção indesejável do Estado. Dentro de referido grupo, encontramos os que entendem “regulação” como “intervenção na liberdade e nas escolhas”. Há quem defenda que a regulação tem o poder de definir as opções disponíveis e manipular os incentivos.

Porém, haveria uma espécie de regulação desejável?

No Brasil, de um lado, identificamos aqueles que querem sempre “mais regulação” e que desejam ver com frequência “as mãos” do Estado. De outro, também temos crenças e percepções críticas sobre a forma de intervenção (por meio da regulação) que coloca em xeque a necessidade de haver intervenções regulatórias.

E, não podemos nos esquecer do comportamento free-rider dos poucos (ou nada) preocupados com o adequado emprego da regulação: ora a sugerem, ora a repelem, ao sabor de seus interesses ou agendas[1].

Estudiosos no mundo que já se debruçaram sobre o significado do termo “regulação” produziram várias definições. Em boa parte dos estudos, o termo “intervenção” aparece.  Outro caminho, baseia-se em crenças pessoais para explicar o conceito, o que acaba por criar definições informais.

Em nosso cenário regulatório, há destaque à atuação das agências reguladoras, uma vez que os debates se centraram nelas, ao longo dos últimos anos, tal como nos EUA.[2] Outra referência popular que atrai críticas à regulação se refere ao seu uso para atendimento aos grupos de interesse.[3]

De acordo com George Stigler, a regulação, “[…] é adquirida pela indústria e é projetada e operada principalmente para seu benefício.”[4] Já Richard Posner, tal como estaca Orbach, trouxe uma versão mais “refinada” dessa percepção: “[…] regulação [é] um produto alocado de acordo com princípios básicos de oferta e demanda […] podemos esperar que um produto seja entendimento intuitivo da palavra “regulação”: intervenção governamental no domínio privado ou norma jurídica que implementa tal intervenção. A regra de implementação é uma norma jurídica obrigatória criada por um órgão do Estado que pretende moldar a conduta de indivíduos e empresas.[5]

Vale destacar que o “órgão do Estado”, isto é, o regulador, pode ser qualquer órgão legislativo, executivo, administrativo ou judicial que tenha o poder de criar uma norma jurídica vinculante. Essa definição geral é bem mais ampla do que “restrições”, “regras de agências administrativas / reguladoras”, ou “leis que atendem a grupos de interesse”.

Nesse sentido, Orbach foi muito feliz em resgatar esse debate para centrar a definição na “intervenção no domínio privado”, em vez de “intervenção nas escolhas”. O ponto essencial é observar que, teoricamente, pode-se considerar qualquer influência na conduta como interferência nas escolhas. No entanto, o significado “da interferência nas escolhas” é de difícil consenso. Seja como for, não podemos fugir do fato que regulação tem ligação com a intervenção no domínio privado.

Em resgate ao tema, cabe rememorar a definição de regulação como intervenção no domínio privado trazida, em meados do século XIX, por John Stuart Mill quando descreveu a intervenção governamental nos assuntos da sociedade[6].

Mill argumentou que a fonte da controvérsia era, em grande parte, uma divisão ideológica entre dois grupos na sociedade: 1) […] os defensores da interferência [i. e. que acreditam que o governo deve agir] onde quer que sua intervenção seja útil” e; 2) os que restringem a atuação do governo “[…] à proteção da pessoa e da propriedade contra a força e a contra a fraude.”[7]

O resgate de Mill pode iluminar como as pessoas combinam suas visões de políticas regulatórias desejáveis. Veja-se essa passagem: “[se] os venenos nunca foram comprados ou usados ​​para qualquer finalidade, exceto a prática de assassinato, seria correto proibir sua fabricação e venda”. Por exemplo, os venenos podem “ser procurados não apenas para propósitos indecentes, mas também para fins úteis, e restrições não podem ser impostas em um caso sem operar no outro”. No exemplo acima, Mill recomenda como precaução rotular com alguma palavra (ou se fazer alguma referência) o potencial perigo do produto, sem violação da liberdade, uma vez que “o comprador deve saber que a coisa que possui tem qualidades venenosas.”[8]

Ora, a intervenção do Estado no domínio privado – subproduto de nossa realidade imperfeita e limitações humanas – por meio da regulação apenas ocorre porque existem “venenos” e os atos de regulação podem ter “efeitos venenosos” quando mal utilizados.

Nosso mundo é complexo, possui recursos finitos e as interações sociais estão mergulhadas nas mais diversas assimetrias. É verdadeira a premissa da análise econômica de que o indivíduo, portador de limitada racionalidade e informações incompletas, comporta-se procurando sempre maximizar o seu bem-estar. Certo também é que, não raras vezes, o mercado falha, ou seja, o subproduto da comunicação entre demanda e oferta pode causar danos para muitos e riqueza para poucos.

É justamente em resposta a essas imperfeições, limitações, ou mesmo falhas que se estruturou a ideia de regulação econômica. Reconhece-se o problema e, então, procura-se enfrentá-lo de maneira propositiva visando mitigá-lo e converter as toxinas naturalmente resultantes das falhas em promoção de eficiência econômica e, até mesmo, do bem-estar geral (em alusão à ideia de equilíbrio geral).

Numa perspectiva metalinguística, vale dizer, as mesmas imperfeições e limitações, porém, garantem o caráter imperfeito e limitado da regulação. Nossas falhas humanas permitem, por exemplo, regulações excessivas e redundantes, e permitem – sim! – a adoção de regulações que atendam aos grupos de interesse (em sua mais ampla conceituação) em linha com James M. Buchanan.[9]

O desafio, portanto, é lidar com o fato de que há imperfeições e limitações imanentes à sociedade e, portanto, imanentes também à atividade estatal. Ambas prejudicam a tomada de decisões tanto no plano dos agentes econômicos em si, quanto no plano da atividade estatal de regulação econômica.

Nesse sentido, em linha com George Stigler, nada resta a ser feito?

Negativo. A ênfase de Stigler às limitações da regulação e sua tendência de captura, posteriormente temperada com o realismo de Buchanan ao escancarar a fragilidade humana de raramente conseguir sacrificar o interesse pessoal em favor do coletivo, conforme determina o mandato estatal, leva-nos a escolher o caminho inevitável da moderna ideia de regulação econômica baseada em dados empíricos, apresentada por Cass R. Sunstein, o mesmo que recentemente relembrou a importância de se compreender as motivações dos próprios reguladores [10].

Em suma, é seguro utilizar as instituições normativas adequadas da Regulação com a devida parcimônia. Em outras palavras, devemos aceitar o fato de que a regulação é uma ferramenta valiosa a serviço da atividade estatal que veio para ficar. Assim, tanto melhor será atribuirmos foco em compreendê-la bem e trabalharmos para maximizar seus benefícios e minimizar seus custos.


[1] Exemplo disso vimos com a alegação de que o PIX prescindiria de AIR (tema tratado em outra oportunidade neste portal). Cf. DOMINGUES, Juliana O. Pix e Air – quando a liberdade econômica desperta o ilusionismo e levanta cortina de fumaça. Disponível em: <https://webadvocacy.com.br/2022/09/26/pix-e-air-quando-a-liberdade-economica-desperta-o-ilusionismo-e-levanta-cortina-de-fumaca1/> Acesso em: 01 jun. 2023.

[2] Em adição, Orbach cita as leis criadas pelas cortes – common law – como uma forma tradicional de regulação. Veja-se: ANDREW P. MORRISS et. al.., Regulation by Litigation (2008); Regulation Through Litigation (W. Kip Viscusi ed., 2002); POSNER, Richard A. Regulation (Agencies) Versus Litigation (Courts): An Analytical Framework, in Regulation Vs. Litigation 11 (Daniel P. Kessler ed., 2010).

[3] Veja-se, também: ORBACH, Barak. Invisible Lawmaking, 79 Uni. Chi. L. Rev. Dialogues 1 (2012).

[4] No mesmo sentido: PELZMAN, Sam. Toward a More General Theory of Regulation, 19 J. L. & ECON. 211 (1976).

[5] Tradução Livre. POSNER, Richard A. Theories of Economic Regulation, 5 Bell J. Econ. & Mgm’t Sci. 335, 344 (1974). As visões de Richard Posner sobre regulação evoluíram, neste texto:  RICHARD A. Posner, The Crisis of Capitalist Democracy 1-2 (2010), p. 12: “From a normative economic standpoint […] the goal of regulation, whether by courts or by agencies, is to solve economic problems that cannot be left to the market to solve.”.

[6] MILL; John Stuart, 2 Principles of Political Economy 525-71 (1848).

[7] Id. Ibid.

[8] MILL, John Stuart. On Liberty, p. 66-67 (1859). Id. p. 171-73.

[9] Buchanan, James M. Politics without Romance: A Sketch of Positive Public Choice Theory and Its Normative Implications. (James Buchanan and Robert Tollison Eds). The Theory of Public Choice II 11, 11 (Michigan 1984).

[10] Nesse sentido vale conferir o artigo: SUSTEIN, Cass R. Interest-Group Theories of Regulation: A Skeptical Note. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3829993. Acesso em: junho de 2023. Em adição, veja-se: “[…] George Stigler, professor norte-americano, responsável pela “Teoria Econômica da Regulação” […]aborda a captura de agentes públicos – reguladores e legisladores – por grupos de interesse; por isso, é também conhecida como “teoria da captura”. Para Stigler, ao invés de regular os setores visando melhorar seu funcionamento e dirimir práticas danosas, a regulação atenderia às demandas dos agentes regulados levando ao desvirtuamento da estrutura do Estado e dos recursos públicos. Essa visão crítica das agências reguladoras foi revisitada recentemente por Cass R. Sustein, professor da Universidade de Harvard, em seu “Interest-Group Theories of Regulation: A Skeptical Note”. Mencionando diretamente Stigler, Sustein rebate a noção de que a regulação não visaria atender interesses públicos, buscando demonstrar que, se os reguladores e legisladores adotam determinado posicionamento, é porque acreditam que tal norma ou política terá resultados benéficos. […] Apesar da maneira como Sunstein aborda o problema parecer lhe colocar em contraponto direto com Stigler e sua teoria da captura, uma aproximação entre os autores pode ser feita: por vezes, a informação a que os reguladores têm acesso é determinada pelos grupos de que fazem parte. Veja-se, por exemplo, legislações propostas durante a pandemia que buscaram moratórias e interferência nos preços, partindo de determinada visão, não necessariamente vinculada aos núcleos de informações cientificamente embasados, dissociadas da implementação de melhores práticas adequadas à realidade. De toda forma, a abordagem de Sunstein deixa claro, também, qual deve ser o papel das agências reguladoras (aqui estendemos aos reguladores em geral): adotar políticas que tenham consequências benéficas, se não para o setor privado, para o ambiente regulatório e para o usuário (consumidor) final. In: DOMINGUES, Juliana Oliveira; Miranda; Isabella Dorigheto. O Retorno de Jedi: Um olhar do Século XXI à Captura dos Reguladores. Jota.  Veja-se também:Sunstein, Cass R., Empirically Informed Regulation (2011). University of Chicago Law Review, Vol. 78, No. 4, 2011, Harvard Public Law Working Paper No. 13-03.


[1] ORBACH, Barak, What Is Regulation? (September 7, 2012). 30 Yale Journal on Regulation Online 1 (2012), Arizona Legal Studies Discussion Paper No. 12-27.

Desafios da análise concorrencial em mercados digitais

Tatiane Gonçalves Oliveira Negreiros Aguiar

A expressividade dos Mercados Digitais nos tempos atuais é notória. As plataformas digitais assumiram um papel importante no cotidiano dos indivíduos e empresas, seja na hora de se locomover, se comunicar, ter acesso a entretenimento, fazer compras, buscar profissionais e até mesmo se alimentar.

O protagonismo dessas plataformas nos hábitos da sociedade e as possíveis consequências que podem advir de alterações significativas desse mercado fizeram com que os Mercados Digitais estejam sob os holofotes do Direito Concorrencial e da Regulação, conforme corroboram os diversos eventos[1], grupos de trabalho e publicações[2] relacionados ao assunto.

Dentre as discussões atuais a respeito desse tema destacam-se: (i) a suficiência dos instrumentos tradicionais de análise antitruste para o exame de operações em mercados digitais; (ii) a adequação dos critérios de notificação obrigatória para as operações nesses mercados; e (iii) os riscos associados a práticas de aquisição reiterada e sucessiva de entrantes que poderiam, em tese, vir a concorrer no mercado, o que poderia implicar na imposição de barreiras à entrada de novos players[3].

Inicialmente, é relevante conceituar o que são as plataformas digitais. Embora não haja uma definição única, elas são genericamente referenciadas na literatura como estratégias de múltiplos lados que facilitam interações entre dois ou mais grupos de usuários que consomem serviços a partir da internet[4].

O universo desse mercado possui diversas peculiaridades que o difere dos mercados tradicionais e, consequentemente, reverberam diretamente nos critérios usuais da análise concorrencial.

Antes de adentrar na análise dos desafios do antitruste, vale mencionar algumas das principais especificidades desse mercado, como: (i) preço zero; (ii) plataformas multilaterais; (iii) efeitos de rede; (iv) uso de dados como insumo essencial; e (v) dinamicidade e elevado potencial de inovação.

Esses atributos, além de outros desafios colocados por esse mercado, vêm sendo tratados com cautela pelas autoridades antitruste ao redor do mundo, dado que a intervenção excessiva pode afetar a inovação, que por sua vez é de extrema importância para a competição. Nesse diapasão, é fundamental que o Direito da Concorrência, além de não comprometer ou dificultar a inovação, possa sobretudo funcionar como importante instrumento para incentivá-la e fomentá-la[5].

Como visto, os mercados digitais possuem uma confluência de diversas características que os diferencia dos mercados tradicionais, o que ocasiona desafios à análise antitruste, a exemplo da delimitação do mercado relevante e análise do poder de mercado dos players.

Segundo o Guia de Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE, a delimitação do mercado relevante (MR) é o processo de identificação do conjunto de agentes econômicos (consumidores e produtores) que efetivamente reagem e limitam as decisões referentes a estratégias de preços, quantidades, qualidade – entre outras) – da empresa resultante da operação. Entretanto, o documento aponta ser esta uma ferramenta útil, mas não um fim em si mesmo. Isto porque a identificação dos possíveis efeitos competitivos envolve a avaliação de condicionantes que, por vezes, estão fora do mercado relevante pré-definido. Assim, a delimitação do MR não vincula o CADE[6].

De acordo com a disciplina da Lei 12.529/2011,  presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo CADE para setores específicos da economia[7].

working paper alemão sobre poder de mercado de plataformas afirma que os conceitos gerais de definição de mercado relevante, tais como substitutibilidade de oferta e demanda, são teoricamente aplicáveis a mercados digitais. Não obstante, autoridades encontrariam importantes desafios práticos na aplicação de testes de substitutibilidade[8]. Essa visão é compartilhada de modo geral, segundo o Documento de Trabalho nº 005/2020, intitulado “Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados”, do Departamento de Estudos Econômicos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (DEE/CADE).

A definição de mercado relevante também foi objeto de relatório da OCDE, o qual alerta sobre a dificuldade da definição do mercado e da necessidade de fazê-lo no âmbito de cada caso concreto, sobretudo tendo em mente que a tecnologia, por si só, não é capaz de definir contornos do MR. Todavia, as entidades regulatórias e de defesa da concorrência devem, em razão da crescente migração dos serviços tradicionais para plataformas digitais, avaliar as restrições competitivas potencialmente impostas por serviços do gênero, considerando que a regulação deve levar em conta o estado concorrencial atual dos mercados[9].

Outro desafio que merece ser mencionado são os critérios de notificação de operações envolvendo esse mercado. Nesse sentido, a Lei 12.529/2011, em seu art. 88,, disciplina que são de notificação obrigatória as operações nas quais um dos grupos econômicos envolvidos tenha registrado faturamento bruto anual ou volume de negócios no Brasil equivalente ou superior a R$ 750 milhões e a outra parte, no mínimo, R$ 75 milhões[10].

Outro critério, cumulativo ao de faturamento, é o enquadramento da operação em algumas hipóteses de negócio previstas no art. 90 da Lei de Defesa da Concorrência, que considera a realização de um ato de concentração quando: (i) duas ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; (ii) uma ou mais empresas adquirem o controle ou partes de uma ou outras empresas, direta ou indiretamente, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações, ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma; (iii) uma ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas; ou (iv) duas ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture.

Ocorre que muitas empresas-alvo em operações dos mercados digitais possuem baixo faturamento, bem aquém do estabelecido na legislação, ou operam a preço zero, uma vez que o usuário final dessa plataformaa –  buscas online e redes sociais, por exemplo – não as remunera em dinheiro. No entanto, nessas relações de preço zero, embora não haja contrapartida monetária, existem transações de bens imateriais de grande relevância, como os dados pessoais e a atenção.

Segundo estudo da Federal Trade Commission (FTC), entre 2010 e 2019 a Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft realizaram mais de 800 operações que não foram notificadas por serem consideradas pequenas e possuidoras de cláusulas de não concorrência, não se enquadrando nas transações de valor maior ou igual a US$ 92 milhões, montante mínimo exigido pela autoridade estadunidense para verificação de operação[11].

Para além dos pontos abordados até aqui, existem outros inúmeros problemas concorrenciais, tais como os efeitos anticompetitivos, que circundam as plataformas digitais, como self-preferencing e killer acquisitions.

Dessa maneira, diante das especificidades dos mercados digitais, é evidente que a atual legislação e análise concorrencial tradicional se mostram limitadas. Corrobora com esse cenário, o fato de que a mudança na forma de tratamento desse mercado já é uma realidade dentro do processo legislativo brasileiro.

Nesse sentido, ressalta-se que tramita atualmente na Câmara dos Deputados o PL 2768/2022[12], de autoria do deputado João Maia (PL/RN), que dispõe sobre a organização, o funcionamento e a operação das plataformas digitais que oferecem serviços ao público brasileiro. A iniciativa propicia condições para a aprovação de uma norma que visa regular os mercados digitais.

Diante disto, a provocação que faço nesse artigo é se, de fato, a edição de uma Lei –  que regule esse mercado e altere a Lei 12.529/2011 no que tange à análise dos atos de concentração e casos de condutas envolvendo plataformas digitais – seria a melhor solução, ou traria ainda mais desafios e problemas. Ainda, se seria salutar a edição, pelo CADE, de um Guia de Análise de Atos de Concentração do mercado de plataformas digitais.

A resposta para essas perguntas não é nada simples e óbvia. Portanto, enquanto as autoridades, a comunidade antitruste e os acadêmicos não chegam a um consenso sobre como endereçar esses desafios, a solução imediata e mais seguraseria o CADE se valer da faculdade de fazer uma análise ex post, que lhe é garantida pela Lei de Defesa da Concorrência, no sentido de requerer a submissão das operações envolvendo mercados digitais  no prazo de um ano, a contar da data da sua consumação.[13].

Outra estratégia a ser possivelmente adotada pela autoridade antitruste para superar essas dificuldades, por ora, em vez de focar na definição de mercados relevantes propriamente ditos, seria a de direcionar sua análise para as evidências de poder de mercado (específica em relação ao caso, levando em consideração a economia comportamental), teorias de dano à concorrência ou identificação de estratégias anticompetitivas.


[1] Cabe citar os eventos realizados pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (IBRAC), pela International Competition Network (ICN), pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

[2] A exemplo do Documento de Trabalho nº 005/2020 intitulado “Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados” e da edição Cadernos do Cade, de agosto de 2021, “Mercados de Plataformas Digitais”, ambos do Departamento de Estudos Econômicos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (DEE/CADE).

[3] Inovações disruptivas e os desafios impostos à regulação e aos reguladores/organização Ana Clara Klein Pegorim…[et al.]. 1. Ed. São Paulo: Editora Singular: IBRAC, 2022. Vários autores. p. 73.

[4] Fernandes, Victor Oliveira. Direito da Concorrência das Plataformas Digitais: Entre abuso de poder econômico e inovação. São Paulo: Thomson Reuters, 202, p. 106

[5] Frazão, Ana. Direito da Concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 58.

[6] Guia de análise de atos de concentração horizontal. Brasília, 2016, p. 13. https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/guia-para-analise-de-atos-de-concentracao-horizontal.pdf.

[7] Lei 12.529/2011, de 30 de novembro de 2011. Art. 36, §2º.

[8] Documento de Trabalho nº 005/2020 intitulado “Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados”, p. 19. https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2020/documento-de-trabalho-n05-2020-concorrencia-em-mercados-digitais-uma-revisao-dos-relatorios-especializados.pdf.

[9] Frazão, Ana. Direito da Concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 61.

[10] Valores adequados pela Portaria Interministerial nº 994, de 30 de maio de 2012.

[11] COELHO, Lara Iglesio Soares Antitruste e os marketplaces: os possíveis problemas concorrenciais das plataformas de varejo no Brasil / Lara Iglesio Soares Coelho. – 2022, p. 30.

[12] PL 2768/2022: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2214237&filename=PL%202768/2022.

[13] Lei 12.529/2011. Art. 88, § 7º.


[*] Este artigo foi desenvolvido como trabalho de conclusão de Curso de Defesa da Concorrência oferecido pela WebAdvocacy e ministrado pelo Doutor em Economia e Ex-Conselheiro do CADE, Elvino de Carvalho Mendonça.


Tatiane Gonçalves Oliveira Negreiros Aguiar. Advogada, pós-graduanda em Direito Tributário, atualmente desempenhando a função assessora técnica no Gabinete da Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).


Investimentos em Rodovias e o Novo Modelo Proposto de Compartilhamento de Risco de Demanda da ANTT

Katia Rocha

Em 2022, os investimentos privados em infraestrutura – concessões e PPPs, nas Economias Emergentes, continuaram sua recuperação, tanto em volume quanto em número de projetos, para níveis pré-pandemia segundo dados recentes disponibilizados pelo Banco Mundial[1]. O volume total de capital investido, que inclui Capex e outorgas, totalizou USD 91.7 Bilhões, distribuídos em 263 projetos conforme ilustra a Figura 1.

Em termos absolutos, China (33%), Brasil (19%), India (13%), Indonésia (5%) e Vietnam (5%) receberam os maiores volumes, representando 75% dos recursos globais privados alocados em infraestrutura econômica em emergentes de baixa e média renda. Na desagregação setorial, o setor de transportes voltou a liderar a recuperação, com 68% do volume total.

Figura 1 – Investimentos Privados em Infraestrutura: Emergentes x Brasil

No Brasil, o volume de investimentos totalizou USD 17.6 Bilhões (0,9% do PIB de 2022), distribuídos entre 51 projetos, alcançando os níveis pré-pandemia de 2019, como ilustra a Figura 2. O setor transporte continuou se destacando, mobilizando investimentos da ordem de USD 10 Bilhões (59% do volume total alocado no Brasil), com a seguinte distribuição dentro do segmento: portos (4%), aeroportos (8%), ferrovias (18%), mobilidade urbana (33%), e rodovias (37%).

Figura 2 – Investimentos Privados em Infraestrutura: Setorial Brasil

Esse panorama introdutório ilustra o contínuo apetite dos stakeholders pelos investimentos em infraestrutura no Brasil e emergentes de modo geral. Particularmente, no segmento de rodovias, um dos setores com maior lacuna de investimentos no Brasil[2], estima-se a necessidade de investimentos da ordem de R$ 30 Bilhões/ano até 2050[3].

Dada a necessidade considerável de investimento de longo prazo, o Brasil precisa melhorar a eficiência do investimento público e, ao mesmo tempo, mobilizar o capital privado em escala e ritmo, tendo, portanto, de gerar as condições necessárias para atrair, substancialmente, o investimento privado nesse segmento.

O setor de rodovias, assim como grande parte dos setores de infraestrutura do tipo Greenfield, envolvem incertezas diversas, tanto no desenvolvimento dos projetos, no custo de construção, na projeção da demanda; no perfil temporal das receitas – dissociadas das despesas, na dificuldade de conversão dos ativos para usos alternativos, entre outros específicos do setor (ambiental, desapropriação, etc). Representa um setor conhecido por ensejar grande número de incidências em renegociações de contratos de concessões em países emergentes[4].

Ocorrências de renegociações são esperadas e de certa forma necessárias para o bom funcionamento das concessões, dada a natureza incompleta dos contratos e da inviabilidade da previsão ex-ante de todas as contingências contratuais que podem afetar o acordo no longo prazo.

No entanto, uma alta incidência de renegociações levanta questionamentos sobre a credibilidade do modelo e do respectivo programa de concessão, impactando, até mesmo, o efeito competitivo do leilão, onde o concessionário selecionado passa a ser o “especialista em renegociação”, ao invés do operador mais eficiente. Isso incentiva comportamentos oportunistas, com impactos fiscais potenciais nas despesas do Governo e na percepção dos agentes econômicos e sociais, resultando em atrasos ou reduções nas obrigações de investimentos, aumentos na tarifa, diminuição dos benefícios do programa e do bem-estar dos usuários finais.

De forma geral, melhores características institucionais, presença de arcabouço regulatório expresso em lei, melhores indicadores de qualidade regulatória, controle de corrupção e do aparato legal do país, diminuem a incidência de renegociações. Por outro lado, maior obrigação de investimentos no contrato – regulação por meios, em oposição à regulação por incentivos, maior parcela de risco alocada ao operador, indefinição da matriz de alocação de risco do projeto, estimativas não realistas para demanda, desenhos de leilões de menor tarifa em detrimento aos de maior outorga, choques macroeconômicos – recessão e desvalorização cambial, aumentam a incidência de renegociação[5].

O Novo Modelo Proposto de Compartilhamento de Risco de Demanda da ANTT

Atualmente, cerca de 13 mil km da malha rodoviária federal são administrados por meio de concessões no âmbito da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT)[6]. Desse total, quase 5 mil km apresentam problemas com obras paralisadas há anos, em processo de devolução ou relicitação, em especial, as realizadas na segunda etapa do programa de concessão de rodovias federais (Procrofe) em 2013/2014, cujas estimativas de demanda foram frustradas, a partir da crise econômica de 2014/2016.

Com a evolução natural do Procrofe, nas suas diversas etapas desde a década de 90, a matriz de risco do contrato foi avançando nas definições e alocações de risco, evidenciando, gradativamente, maior maturidade regulatória. No entanto, é consenso que inúmeras divergências interpretativas e indefinições sobre matriz de risco, tem gerado, consistentemente, diversos conflitos judiciais, arbitrais e administrativos, em especial, a cada revisão, onde diversos pleitos de recomposição de equilíbrio econômico financeiro são requeridos.

Como forma de tratar essa questão, a ANTT lançou, ao final de 2022, a audiência pública 013/2022 sobre novo modelo proposto de alocação de risco nos contratos de concessão de infraestrutura rodoviária no âmbito da ANTT[7].

Diversos aprimoramentos de alocações para matriz de risco são endereçados na proposta, sendo o principal, objeto deste artigo, o compartilhamento de risco de demanda. Estabeleceu-se uma determinada banda em torno de uma variação simétrica de 15% nas receitas projetadas do projeto inicial. Variações de receitas dentro da banda são alocadas à concessionária e fora desta, ao Poder Concedente através de ajustes posteriores. O acesso à essa forma de proteção (hedge) para o risco de receita foi condicionado à conclusão de grande parte das obrigações de investimentos e obras pela concessionária – 90% do Capex.

O desenho proposto possibilita que a concessionária seja recompensada por variações de receitas, numa eventual realização abaixo de 15% da projetada no estudo de viabilidade econômico (risco negativo – downside), e, de forma análoga, ceda ao Poder Concedente o montante que exceder a 15% desta projeção (risco positivo – upside).

O compartilhamento de receitas, a partir de uma banda, representa um hedge, a semelhança de um derivativo financeiro do tipo caps and floors[8], acionado a partir de um gatilho determinado, no presente caso, a partir da conclusão de investimentos superiores a 90% do Capex.

A ideia básica consiste em aumentar a atratividade do projeto, modificando sua estrutura de risco/retorno. A depender do comportamento da receita (demanda) – variável incerta, a concessão pode apresentar uma estrutura de risco/retorno mais atrativa, com maior valor esperado (VPL) e menor risco (variância, Value at Risk, etc), possibilitando, inclusive, maior desconto tarifário no momento do certame.

A depender da dinâmica da receita (demanda) e sua volatilidade pode-se estimar a probabilidade e magnitude que esta ultrapassa a banda estabelecida – tanto acima quanto abaixo, o que impacta e condiciona a atratividade da concessão e potenciais descontos tarifários. É possível, inclusive, que a atratividade se mantenha (mesmo VPL), ou até diminua (menor VPL), com modificações apenas na sua estrutura de risco (distribuição do VPL), o que não implica, necessariamente, em descontos tarifários na média. Há que se calcular.

Cabe apontar que o teto da banda, impede o concessionário de se apropriar de eventuais vantagens (upside) no caso de realizações favoráveis de demandas (risco positivo), e, dessa forma, conceder maiores descontos aos usuários.

Igualmente importante avaliar os impactos na flexibilização do percentual de gatilho proposto de Capex (90%) para acesso ao hedge de receita proposto. Um valor menor de gatilho pode aumentar a atratividade da concessão, potencializando maiores descontos tarifários.

Em uma ótica de análise de impacto regulatório (AIR), é possível estimar como flexibilizações no regramento modificam a atratividade da concessão e possibilitam maior potencial de desconto tarifário. Em especial, pode-se estimar o trade-off para o Poder Concedente entre menores tarifas imediatas ou eventuais desembolsos no futuro no caso do risco negativo (downside).

Nesse sentido, critérios de flexibilização podem ser analisados em eventuais AIRs. Seja no percentual do gatilho do Capex, na modalidade de garantia de receita mínima, que elimina para concessionária apenas o risco negativo (downside), preservando o risco positivo (upside), ou ainda, desenhos de leilões de menor valor presente de receita – LPVR[9].

Sob a ótica de potencializar investimentos em setores essenciais como os de infraestrutura, ou num contexto onde as concessões mais atrativas já foram licitadas, o melhor desenho para viabilizar novos projetos pode não ser, necessariamente, o de menor ônus ao Poder Concedente.

Concluindo, o novo modelo de compartilhamento de risco de demanda, apresentado pela ANTT, endereça recomendações estruturais presentes na literatura, sobre a necessidade de uma matriz de risco previsível e eficiente, de forma a diminuir a incidência de renegociações recorrentes em concessões de infraestrutura, especialmente, no setor de transporte. Melhora a atratividade da concessão, com ajustes nas estruturas de risco/retorno, potencializando maiores descontos tarifários, maior competição e investimentos. Possibilita estruturas de financiamentos mais favoráveis, incluindo modalidades do tipo project finance, com potencial de atrair maior gama de perfil de investidores para o segmento. A iniciativa é meritória e enseja grandes aprimoramentos regulatórios, na comparação às etapas anteriores do Procrofe.

Referências

  1. Engel, E., Fischer, R.  and Galetovic, A. (2001). Least‐Present‐Value‐of‐Revenue Auctions and Highway Franchising. Journal of Political Economy , Vol. 109, No. 5
  2. Global Infrastructure Hub. (2022). Renegotiation Data. Disponível em: https://managingppp.gihub.org/data/renegotiation-data/. Acesso em: 26 de maio de 2023.
  3. Guasch, J. L. (2004). Granting and Renegotiating Infrastructure Concessions: Doing it Right. World Bank. Washington, D.C.: The World Bank
  4. Guasch, J. L., Laffont, J. J., & Straub, S. (2008). Renegotiation of concession contracts in Latin America: Evidence from the water and transport sectors. International Journal of Industrial Organization, 26(2), 421-442.
  5. Hull, J.C. Options, Futures, and Other Derivatives. Pearson/Prentice Hall, 2009 
  6. Raiser, M.; Clarke, R.; Procee, P.; Briceno-Garmendia, C.; Kikoni, E.; J. Kizito; Vinuela, L. (2017). Back to Planning: How to Close Brazil’s Infrastructure Gap in Times of Austerity. World Bank Group. 2017.

[1] Private Participation in Infrastructure (PPI) Database. Disponível em: https://ppi.worldbank.org/en/ppi. Compreende os setores de eletricidade, gás natural, resíduos sólidos, água e saneamento, portos, ferrovias, rodovias, aeroportos e ICT.

[2] Estimações em Raiser et al (2017) apontam este setor com 50% da lacuna de investimentos no Brasil.

[3] Plano Integrado de Longo Prazo da Infraestrutura 2021-2050.

[4] Guasch, Laffont e Straub (2008) e Global Infrastructure Hub. (2022).

[5] Guash (2004).

[6] Ver em: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/rodovias/informacoes-gerais

[7] Ver em: https://participantt.antt.gov.br/Site/AudienciaPublica/VisualizarAvisoAudienciaPublica.aspx?CodigoAudiencia=518

[8] Ver Hull (2009).

[9] Engle et al (2001).

Katia Rocha é Pesquisadora do IPEA. katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.