O Comércio Internacional da China e a Política Antitruste

Cristina Ribas Vargas

Estudar a economia chinesa é sempre um desafio gigantesco, não só pela dimensão geográfica e populacional do país, como pelas peculiaridades de sua cultura de mais de quatro mil anos, distribuídas por vinte e duas províncias, cinco regiões autônomas (Guanexi, Mongólia interior, Ningxia, Xinjiang e Tibete), quatro municípios e duas regiões administrativas. Sobretudo as peculiaridades históricas atinentes à sua prática comercial internacional nos leva a refletir sobre como esse país encara a política antitruste e o próprio sentido da concorrência.

Breve histórico das origens do Comércio e Concorrência na China

A estratégia dos Chineses durante a conformação geográfica do país, por volta de 119 a.C., objetivava evitar as invasões de suas fronteiras, ao mesmo tempo em que buscava garantir a continuidade de suas transações comerciais. Antes de expulsarem os povos nômades (particularmente os Xiongnú) das aéreas de fronteira por via militar, curiosamente os chineses procuraram transformar os seus costumes. Durante muitos anos, a fim de conter as invasões, os chineses presenteavam os nômades com os produtos disponibilizados na rota da seda, produtos diferenciados, considerados artigos de luxo no comércio internacional. Os tecidos de seda de alta qualidade eram os principais artigos, além da porcelana, especiarias e até mesmo produtos com algum grau de inovação, como as lanternas de azeite de peixe para iluminação. O comércio era regulamentado por uma estrutura formal, e toda transação ocorrida no corredor de Ganzu era registrada. Todos os comerciantes estrangeiros que ingressavam no país eram registrados, assim como, todos os valores de sua movimentação comercial. Para o controle efetivo das contas os comerciantes estrangeiros deveriam seguir uma rota estabelecida e fiscalizada pelo governo. Há mais de dois mil anos esse intenso comércio já era um fato, gerando oportunidades, conflitos e incentivando avanços técnicos. Por volta do século I a.C. a expansão do Império Romano rumo ao oriente resultava na dominação do Egito e alcançava a Índia, onde ocorria intenso intercambio comercial. O acirramento do conflito religioso na região do oriente médio intensificou-se até meados do século VIII, quando os mulçumanos tentavam avançar até fronteira ocidental da China, tomando os corredores comerciais da região, e até o século XIV, a China continuaria sofrendo com as invasões dos Mongóis pelo norte, e pela disseminação da Peste Negra. Mesmo durante esse período intenso de invasões bárbaras a China ainda era considerada como um país seguro para o trânsito comercial, oferecendo o controle e a segurança para os comerciantes estrangeiros que lá ingressavam. Após a peste Negra e o renascimento da Europa, o fluxo comercial marítimo conduz a relações comerciais mais intensas entre Europa, Índia e China. Contudo é somente no século XVIII que a Inglaterra supera técnica e cientificamente a China, passando a impor, nos países onde possui influência colonial, restrições comerciais `a China. No Brasil, com a chegada da família imperial em 1808, a Inglaterra exigia a substituição dos produtos chineses pelos ingleses por meio de decretos imperiais impresvistos, a serem executados em curtíssimo prazo. Esse foi o caso da substituição dos telhados em formato de pagoda na cidade do Rio de Janeiro, que deveriam ser substituídos por seus proprietários no prazo máximo de uma semana. Produtos antes apreciados pelos brasileiros tornaram-se objeto de uma política de “desassombramento”, que visava extirpar da cultura brasileira os “costumes bisonhos” de consumir produtos chineses. Em 1839 a Guerra do Ópio marcaria de forma militar invasiva a tentativa de colonização britânica da China. E posteriormente, a invasão japonesa durante a II Guerra Mundial seria a última grande tentativa de dominação do território Chinês. A partir daí a China enfrenta o dualismo interno entre uma proposta econômica do partido nacionalista Kuomitang e do Partido Comunista Chinês, que assume o poder em 1949. Após tantas tentativas de invasões territoriais, enfrentamento de políticas restricionistas e dificuldades de unificação de diversas culturas em diferentes províncias, em meio a um ambiente conflituoso da Guerra Fria, e sob o jugo da União Soviética, o que se percebe é uma China lutando para manter seu processo de consolidação nacional. Após o fracasso resultante do plano de Mao Tse Tung “Grande Salto à Frente” a China decide retomar em 1978 o caminho que desde suas origens lhe parecia natural, qual seja, a retomada de suas relações comerciais com o mundo. Dessa vez surge um processo inovador, de estímulo de parcerias entre as grandes empresas estatais e empreendimentos individuais, conformando o que se convencionou chamar de uma economia socialista de mercado, orquestrada por Deng Xiaoping. Essa dinâmica promovida por um sistema intenso de exportações inicialmente de produtos de menor valor agregado e posteriormente de produtos intensivos em tecnologia, resultou na economia com as maiores taxas de crescimento do inicio do século XXI. Não obstante, o mundo questionava-se sobre como o país, comandado pelo partido comunista, lidaria com a crescente concentração de riqueza nas mãos de alguns poucos capitalistas chineses, e sobre como atuaria para fiscalizar possíveis abusos do poder econômico advindo desse novo cenário.

O Caso das Empresas Intensivas em Tecnologia

Em 2021 o governo Chinês estabeleceu como uma das prioridades para o país a implementação de políticas regulatórias antitruste. Ainda em 2021 impôs uma multa de 2,8 bilhões de dólares à empresa Alibaba, o que corresponderia a 4% do total do faturamento da empresa em 2019. Após a investigação a conclusão foi de que acordos de negociação exclusiva impediam os comerciantes de venderem seus produtos em outras plataformas além da Alibaba.  Além disso, ainda em 2020 o governo já havia imposto restrições sobre o funcionamento da Fintech Ant Group, da empresa de tecnologia Didi Global e da gigante de entregas Meituam sobre a constituição de uma cadeia monopolista. Quanto ao segmento de educação on-line o governo Chinês chegou a alegar que o projeto de educação fora seqüestrado pelo capital, e tem tratado de implementar uma nova estrutura regulatória para o segmento.

Enquanto nos EUA há um predomínio das empresas de inovação em tecnologia, as Bigtechs, na China a liderança é das empresas de transmissão de dados. Enquanto o governo Chinês acreditava que era benéfica a competição dessas empresas com gigantes americanas, permitiu sua instalação na região do Caribe, e a parceria entre empresas de  inovação dos EUA e de transmissão da China. Não obstante, cada vez mais, ambos os países demonstram preocupações com as informações de posse dessas empresas. Sob esse argumento a China reviu a estratégia para instalação e cooperação com empresas dos EUA via região do Caribe.

Essa postura da China, de impor limites à atuação das bigtechs chinesas, bem como, às parcerias com empresas de tecnologia estrangeiras, tem sido apontada pelos críticos à política chinesa como excesso de intervenção do Estado. Por outro lado, pode significar importante estratégia, para ganhar vantagem contra seu principal rival, na liderança em inovações em produtos de valor agregado elevado. Neste caso, a política de incentivo às pequenas empresas do segmento de inovação na China pode ter importante papel, ao evitar-se que sejam restringidas pelas gigantes. Já foi anunciado pelo governo o desejo de incentivar parcerias entre governo e empresas nos segmentos de inteligência artificial e semicondutores. Conforme Angela Zhang o caso do Alibaba levou apenas quatro meses para a aplicação da decisão da autoridade antitruste, conferindo maior segurança e confiança ao ambiente institucional. Em comparação acredita que as autoridades antitruste de EUA e União Européia devem demorar anos para impor limites a casos que envolvem grandes empresas.

Aplicação da Lei Antimonopólio na China em 2023.

O governo Chinês deixou claro que a regulação dos mercados e a aplicação da legislação antitruste está fortemente vinculada à política de desenvolvimento definida pelo governo. Enquanto nos EUA a ação antitruste tem como objetivo precípuo a proteção ao consumidor, na China ela segue pari passu os objetivos da política governamental. Além disso, o governo chinês compreendeu a necessidade de sinalizar ao mercado que sua intervenção visa uma coordenação que busca equalizar as já conhecidas falhas de mercado.

Nesse sentido, em junho de 2023, a Administração Estatal de Regulamentação de Mercado da China (SAMR) divulgou o Relatório Anual sobre a Aplicação da Lei Antimonopólio na China (2022). Neste Relatório destacam-se alguns dispositivos que visam conferir limites à atuação do agente estatal, na prevenção do abuso de poder administrativo:

Conforme o artigo 13.º da Lei Antimonopólio, a Administração Estatal de Regulação dos Mercados autoriza todas as províncias, regiões autônomas, departamentos de supervisão e administração do mercado dos governos dos distritos e municípios diretamente subordinados ao Governo Central a aplicação da Lei Antimonopólio, incluindo seus dispositivos que tratam do abuso do poder administrativo.

As organizações não devem abusar do poder administrativo ao restringir ou operações comerciais de unidades ou indivíduos nas seguintes situações: ao tratar as bases de dados, ao disfarçar restrições a unidades ou indivíduos que realizam operações comerciais, prejudicar outras partes ao assinar acordos de cooperação, memorandos, etc. com outros agentes econômicos, impedir ou restringir a livre circulação de mercadorias entre regiões. Ainda, não poderá ser praticado abuso do poder administrativo para coagir operadores estrangeiros a realizar determinados investimentos em escala e local definido pelo poder administrativo.

Ainda, as organizações não devem abusar do poder administrativo para forçar pública ou secretamente os operadores a se envolverem em atividades de monopólio estipuladas na Lei Antimonopólio.

Ademais, as agências de aplicação da lei antimonopólio deverão, de acordo com os seus poderes, encaminhar relatórios às autoridades superiores se for encontrada qualquer suspeita de abuso do poder administrativo.

Assim, em que pese o caráter extremamente peculiar da sociedade chinesa, em que a simbiose entre Estado e mercado ainda está em plena ebulição, influenciando diretamente sua relação com o resto do mundo, podemos identificar no Relatório Antimonopólio um esforço em garantir integridade aos processos de defesa da concorrência. Acompanhar os avanços na legislação e as práticas da China em matéria de antitruste sem dúvida parece ser indispensável na atualidade.

FRANKOPAN, Peter. O coração do mundo: Uma nova história universal a partir da rota da seda: o encontro do oriente com o ocidente.São Paulo: Planeta, 2019.

VARGAS, Cristina. O Crescimento Econômico da China entre 1952 E 2015: uma aplicação econométrica da Lei de  Thirlwall.

Disponível em https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/168625

Relatório Anual sobre a Aplicação da Lei Antimonopólio na China (2022).

Disponível em https://drive.google.com/file/d/14M4E9wdJeMeYCd7HbneDZrF5EuiZlz8w/view

WebAdvocacy. A Geopolítica na economia digital. EUA e China posicionados. Por anda a Europa? Editorial, 29 jan de 2023.

Disponível em https://webadvocacy.com.br/2023/01/29/a-geopolitica-na-economia-digital-eua-e-china-posicionados-por-onde-anda-a-europa/

CNN Brasil: China multa gigantes de tecnologia por violação de leis antitruste.

Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/china-multa-gigantes-de-tecnologia-por-violacao-de-leis-antitruste/


Cristina Ribas Vargas. Doutora em economia do desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Economia do Desenvolvimento pela PUC/RS e Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.   Atuou como professora substituta na UFRGS e professora adjunta em instituições de ensino privado. É economista da Administração Pública Federal desde 2005, e atualmente está atuando na CGAA2 do Cade.


Legal certainty and cross-border investments: the Brazilian ACFIs – Agreements on Cooperation and Facilitation of Investments

Fernando de Magalhães Furlan

No investor, small or big, private or public, will put his assets somewhere with too many risks, with no stability or predictability. Capital is a very suspicious creature. It needs to be carefully persuaded, nurtured and constantly reassured.

In relation to Foreign Direct Investments (FDI), a way to guarantee all those things is the employment of investment agreements.

The pillars of investment agreements are risk mitigation and institutional governance. The aim is to stimulate business through legal guarantees for investors, intergovernmental cooperation and dispute resolution.

International investment agreements deal with substantive provisions, that is, the rules that a foreign investment must comply with so that it can be admitted and have the right of establishment in the country that will receive that investment. In turn, the country receiving the investment must also comply with certain rules to guarantee protection, isonomy and impartial treatment of the foreign investment made.

Currently, there is no multilateral investment agreement, due to the complexity of negotiating the provisions of the agreement and the interests involved, despite the efforts made in this regard, mainly by the Organization for Economic Cooperation and Development (OECD), with the attempt to establish the Multilateral Agreement on Investments – MAI, between 1995 and 1998. This difficulty is mainly due to the divergence of objectives between investor countries (capital exporters) and investment recipient countries (capital importers) and the lack of trust between these countries in relation to the investment environment that involves the following factors: governance, credibility of public and private institutions, legal framework, sector regulation, economic environment, transparency, predictability, among others, which can be characterized as political risk from the country.

On the side of countries interested in investing, there is a concern to protect investments to be made in other countries, that is, they seek to adopt a definition of investment as comprehensive as possible, so that all their assets and rights are protected by the agreement.

On the side of the countries receiving the investments, there is a concern to attract investments that provide an increase in the production of goods and/or services, an increase in the offer of jobs and allow the transfer of technology or of new management forms, to guarantee the improvement of productivity. For these countries, a more restricted definition of investment would be the most appropriate and is generally linked to the definition of direct investment, that is, productive and lasting investment.

Although there is no multilateral trade agreement to date, there are several international investment agreements signed bilaterally and other regional ones. Therefore, there is no specific agreement model, but most agreements deal with investment protection devices in which, generally, the broader scope and definition of investment by investor countries (capital exporters) prevails, to the detriment of the definition of investment defended by the investment recipient countries (importers of capital), more restricted.

In addition to the question of the scope and definition to be adopted in an investment agreement, there are other devices that are as or more complex than this one, such as: expropriation, transfers (capital movement), prohibition of performance requirements, dispute settlement, National Treatment (equivalence of treatment for national and imported goods/services), Most Favored Nation (if a country lowers its tariffs for one trading partner, it must lower it for all trading partners) and the right to regulate, which is directly related to maintaining the political space of the State.

Brazilian ACFIs – Agreements on Cooperation and Facilitation of Investments

Brazil, based on international experiences from other countries and international organizations, developed the ACFIs, whose main objectives are:

i) improvement of institutional governance.

ii) creation of risk mitigation mechanisms and dispute prevention.

iii) elaboration of thematic agendas for cooperation and facilitation of investments.

The proposal includes important elements for a positive agenda (creation of the Joint Committee, Ombudsman for Direct Investments and Thematic Agenda) and regulatory aspects (principles of national treatment and most favored nation, terms for foreign exchange remittances, direct expropriation, compensation for losses, liability corporate social, State-State dispute settlement mechanism, among others) that seek to mitigate the risks of Brazilian companies that invest abroad and of foreign companies that invest in Brazil.

The Brazilian approach emphasizes mechanisms of prevention of disputes based on dialogue and bilateral consultations, prior to the establishment of an arbitration panel.


Fernando de Magalhães Furlan. Antigo Secretario-Executivo do Ministerio do Desenvolvi mento, Industria e Comercio Exterior (MDIC) e assessor especial da CAMEX. Foi presidente do Conselho de Administracao do BNDES e da BNDESPAR. Foi presidente, conselheiro e procurador-geral do CADE. Foi também diretor do Departamento de Defesa Comercial (DECOM) e chefe de gabinete do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi membro do Conselho de Administração da FINAME/BNDES. Atualmente e membro do grupo de especialistas do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL e consultor ad hoc de projetos de defesa da concorrência das Nações Unidas (UNCTAD). É professor de direito em Brasília e atua, como professor ou pesquisador, em universidades e institutos no Brasil e no exterior. É consultor externo ou membro não-governamental de organizações e institutos brasileiros e estrangeiros e consultorias. Graduado em Administração pela UDESC/ESAG e em Direito pela UnB, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), com pós-doutorado pela Universidade de Macau, China.


A Competitividade Brasileira do Hidrogênio Verde e de Produtos Power-to-X1 

Katia Rocha e Nelson Siffert

Estudo recente da Fundação Fraunhofer analisa a competitividade de diversos países nas exportações de hidrogênio verde e seus derivados para o mercado alemão.  Apresenta resultados que podem servir de pontos de atenção ao formulador de política pública no desenvolvimento do mercado Brasileiro de hidrogênio verde.  

Um total de 39 regiões distribuídas globalmente entre 12 países desenvolvidos e emergentes foram analisados ​​em termos de suas energias renováveis e potencial de custo de produção e fornecimento de produtos Power-to-X1 (PtX). Através de abordagens de simulação e otimização, o estudo identifica regiões promissoras de produção e fornecimento de hidrogênio verde e derivados para cada um dos os locais identificados2

O Brasil foi selecionado para compor a amostra do estudo tomando como referência os custos de produção em três localidades situadas nos estados do Rio Grande do Norte, Bahia e Rio Grande do Sul.  

Os resultados estabelecem indicadores técnicos e operacionais úteis à modelagem econômico-financeira de futuros projetos de hidrogênio verde e derivados, destinados ao mercado externo, como os recentes Leilão H2Global e o Leilão Europeu. Também possibilita identificação de parâmetros críticos que impactam a competitividade do Brasil em relação a países peers no desenvolvimento da indústria de hidrogênio de baixo carbono, um dos objetivos do Programa Nacional de Hidrogênio.  

O Brasil aparece com posição de destaque na amostra, com maior competitividade na produção e exportação de alguns produtos PtX, em especial, do hidrogênio líquido e da amônia verde, com um preço CIF3 de EUR 5,71/kg para o hidrogênio verde líquido (LH2) e EUR 886/ton para amônia verde (NH3). Revela-se o mais competitivo (menor intervalo de custo nivelado LCoPtX) nesses produtos na amostra de 12 países como ilustra a Figura 1. 

Figura 1: Ranking de Competitividade H2V – LCoPtX para a amostra de países 

Fonte: Hank et al (2023)Fraunhofer Institute for Solar Energy Systems ISE 

O resultado é significativo, uma vez que, estão previstos volumes expressivos de investimentos no desenvolvimento da economia do hidrogênio verde nos próximos anos. Estima-se cifras da ordem de US$ 9,4 trilhões até 2050, sendo US$ 3,1 trilhões direcionados para países em desenvolvimento. Desse total, 49% serão destinados ao segmento upstream (geração de energia solar e eólica); 25% no midstream (eletrolisadores) e o restante no segmento downstream (transportes e conversão)4

Ao Brasil, caberá uma parcela maior ou menor deste bolo, a depender da capacidade que tivermos de transformar a oportunidade aberta pela Transição Energética em algo realmente transformador, capaz de mobilizar decisões de investimentos. Para tal, o desafio consiste em formular políticas públicas que permitam nos valer das vantagens comparativas, transformando-as em verdadeiras vantagens competitivas. Sempre bom lembrar que a matriz elétrica Brasileira apresenta 83% de participação de fontes renováveis enquanto a média mundial é de apenas 28%5. Claramente uma vantagem comparativa que deve ser explorada.  

Variáveis Chaves para a Competitividade dos Produtos PtX no Brasil 

Boa parte da posição de destaque do Brasil decorre do baixo custo de produção de energia renovável, cujos LCOE’s alcançados foram de EUR  29/MWh e EUR 41/MWh, para energia solar PV e eólica, respectivamente.  

A elevada competitividade do Brasil nestas fontes é  decorrência de quatro fatores: i) boa performance dos ventos e da insolação em algumas regiões do nosso país, que se traduz em fatores de capacidade ou eficiência entre os mais elevados de toda a amostra; iii) complementariedade das fontes híbridas de geração solar e eólica viabilizando operar o eletrolisador com elevados fatores operacionais em sistemas offgrid (76-82%); iii) adensamento local da cadeia produtiva, proporcionando um ambiente com várias alternativas de provedores de equipamentos e serviços de engenharia e montagens voltadas para indústria de energias renováveis, viabilizando  valores para o Capex e Opex, abaixo daqueles observados nos países peers; e iv) estimativa de custo de capital relativamente baixo entre os países emergentes, da ordem 6,5% a.a6

Verifica-se que, no tocante ao hidrogênio verde na forma líquida e amônia verde, o Brasil seria capaz de apresentar-se como o mais competitivo entre os 12 países examinados. Essa posição decorre, em boa medida, dos indicadores relativos ao custo nivelado de produção da energia (LCOE) solar PV e eólica, bem como de sua complementariedade horária em sistemas offgrid

Foram considerados também as condições da infraestrutura portuária, de conexão à rede transmissão e ambiente de negócios favorável ao desenvolvimento de projetos, levando-se em conta a estimativa do custo de capital, específica para cada país. 

Tomando-se apenas o exemplo do produto amônia verde no Rio Grande do Norte, os investimentos totais estimados somam EUR 5,4 bilhões, sendo: EUR 3 bilhões voltados para o parque gerador de 3 GW de capacidade, sendo 1,8 GW eólico e 1,2 GW solar PV; EUR 750 milhões para 1 GW de eletrólise PEM; EUR 644 milhões para o sistema de transmissão; EUR 572 milhões para estocagem de hidrogênio; EUR 336 milhões para a unidade síntese e liquefação da amônia e EUR 84 milhões para a unidade de ASU. 

Ainda segundo o estudo, dada a alta complementariedade horária da geração solar e eólica observada no Rio Grande do Norte7 torna-se possível operar o eletrolisador com fator de capacidade de 76%, podendo alcançar 82%. Neste caso, a complementariedade horária da geração de energia entre as fontes eólica e solar torna-se relevante para a competitividade. A produção estimada de amônia verde alcança um volume de 560 mil ton/ano. 

Todavia, em que pese a aparente competitividade do Brasil, em termos globais, na economia do hidrogênio verde, alguns pontos merecem atenção. 

Quando se relaxa a hipótese de geração dedicada (offgrid), e se considera o custo de aquisição da energia por meio da rede básica, o Brasil apresenta um custo de aquisição de energia da ordem de EUR 150/MWh8. Este valor é cerca de 3 a 5 vezes maior que o custo de geração da energia eólica e solar PV. Sob esta ótica, que leva em conta o diferencial entre o preço marginal de geração e a tarifa, nossa posição cai para a 10ª posição entre os 12 países examinados.  

Porque a tarifa de energia do Brasil apresenta valores tão elevados para o MWh a despeito da nossa competitividade? Como a competitividade do hidrogênio verde e seus derivados pode ser afetada? 

A resposta passa pelo exame da composição da tarifa e dos diversos encargos setoriais do sistema elétrico. O MWh ao sair do parque gerador ao custo do LCOE, incorre, na partida, com a TUST-g, caso a unidade de geração seja conectada diretamente com a rede9. Nesta tarifa, que representa a potência contratada para injeção de energia na rede, está incorporado parte dos custos relativos aos encargos setoriais. Também em sua jornada até o uso final, antes de ser consumido pela eletrólise, o MWh incide o pagamento da TUST-c, relativa à potência contratada pelo consumidor da energia. Sendo assim, o uso do sistema de rede básica, implica em arcar com custos relativos às diversas políticas públicas incorporadas nas tarifas. 

A modelagem apresentada assume a hipótese de que o parque gerador se localizará a uma distância não maior que 100 km da unidade de produção de hidrogênio verde e seus derivados. Como a produção de PtX é destinada às exportações, faz sentido que sua localização ótima seja próxima aos portos10. Todavia, no caso brasileiro, é provável que um parque gerador do tamanho previsto para atender um eletrolisador de 1GW, venha se situar a uma distância maior que definida nos estudos, implicado em transitar pela rede básica, e, incorrendo nos custos relativos à TUST e respectivos encargos setoriais.  

Estudo do ICT RESEL aponta que os gastos com a TUST podem provocar um acréscimo no custo nivelado (LCOH) da ordem de até EUR 0,60/kg H2. Implicaria em uma diminuição da competitividade dos derivados de hidrogênio verde – PtX. Uma queda da primeira posição para posições ao final do ranking.  

Outras variáveis também poderiam ser analisadas, como por exemplo, o custo de capital atribuído ao Brasil de 6,5% a.a. É preciso cotejar este indicador com as práticas observadas no mercado brasileiro, que sinaliza percentuais mais elevados. A competitividade observada para o Brasil pode também sofrer alguns percalços neste quesito. 

Concluindo, o estudo da Fundação Fraunhofer, a despeito de colocar o Brasil em uma posição de destaque, retrata uma posição estática, como uma fotografia. Competitividade, por seu turno, é algo dinâmico, envolvendo a interação de múltiplas variáveis, inclusive de caráter institucional e regulatório. Não podemos nos “deitar em berço esplêndido” e perder o foco, pois nossos competidores na nascente indústria do hidrogênio verde estão mobilizados, dando curso às suas respectivas estratégias nacionais, cada vez mais ambiciosas, agressivas.


Katia Rocha. Pesquisadora do Ipea. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br 

Nelson Siffert. Diretor ICT – Resel. E-mail: nelson.siffert@ictresel.org.br 


Disclaimer. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da WebAdvocacy.


Referências 

Arbache, J.; Esteves, L. (2023). Resiliência com eficiência: como o powershoring pode colaborar para a descarbonização e o desenvolvimento econômico da américa latina e caribe. WebAdvocacy. Disponível em: https://webadvocacy.com.br/2023/04/18/resiliencia-com-eficiencia-como-o-powershoring-pode-colaborar-para-a-descarbonizacao-e-o-desenvolvimento-economico-da-america-latina-e-caribe/ 

Deloitte (2023). Green hydrogen: Energizing the path to net zero. Deloitte’s 2023 global green hydrogen outlook. Disponível em: https://www.deloitte.com/global/en/issues/climate/green-hydrogen.html 

Hank et al (2023). Site-specific, Comparative Analysis for Suitable Power-to-X Pathways and Products in Developing and Emerging Countries. A cost analysis study on behalf of H2Global. Fraunhofer Institute for Solar Energy Systems ISE. Disponível em: https://www.ise.fraunhofer.de/en/publications/studies/power-to-x-country-analyses.html 

Notas de rodapé

  1. Power-to-X (PtX) é a tecnologia que converte energia renovável gerada por centrais fotovoltaicas ou eólicas em outras fontes de energia, ou carregadores de energia, como como hidrogênio verde, metanol verde, amônia verde e SAF, que podem ser utilizados como substitutos de combustíveis fósseis. ↩︎
  2. Algumas hipóteses comuns a todos países da amostra são estabelecidas, como um sistema de produção de 1 GW de capacidade de eletrólise com tecnologia PEM, para a produção de hidrogênio verde, associado a um parque gerador híbrido, eólico e solar PV, de uso exclusivo, cujo tamanho e performance de geração alcançada, depende das características específicas de cada localidade em termos de insolação e ventos. Outra hipótese importante recai no sistema de produção offgrid, ou seja, projetos de geração dedicada, que evita tratar as questões regulatórias de cada país, associadas ao uso do sistema de transmissão e respectivas tarifas.  ↩︎
  3. Cost, Insurance and Freight – CIF no porto de Brunsbüttel – Alemanha. ↩︎
  4. 7 Ver Deloitte (2023).  ↩︎
  5. Ver em: https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/balanco-energetico-nacional-2023 ↩︎
  6.  No estudo, Austrália e Espanha são apresentadas com um custo de capital de 5,75%. A Ucrânia, antes da guerra com a Rússia, teve o custo de capital estimado em 6,00%. Colômbia, Marrocos, Tunísia, África do Sul, Namíbia tem o WACC estimado em 7,00%. O México em 6,75% e a Índia em 8,00% ↩︎
  7. Embora o Rio Grande do Norte tenha tido melhor performance, a Bahia e o Rio Grande do Sul, também se destacam entre os resultados. Na produção de hidrogênio gasoso, por exemplo, apenas sites na Austrália e Colômbia apresentaram resultados melhores que os observados na Bahia e Rio Grande do Sul.  ↩︎
  8. Tarifa média ponderada residencial no Brasil é cerca de BRL 726 MWh antes de tributos segundo Aneel. ↩︎
  9. A TUST e TUSD são pagas pelos consumidores livres, regulados, e pelos geradores de energia elétrica que necessitam usar as redes de transmissão e distribuição, ou seja, são tarifas pagas pela prestação de um serviço.  ↩︎
  10. Arbache e Esteves (2023) já discutem a tendência de que o powershoring venha a ser nos próximos anos um vetor relevante na determinação da localização de plantas industrial, ou seja, que novos investimentos em produtos intensivos em energia venham se situar em áreas com disponibilidade de energias renováveis. ↩︎

A necessidade de regulamentação do Filtro de Relevância do Recurso Especial

Maria Augusta Sampaio Ferraz

O problema da massificação de demandas judiciais não é novidade no Brasil. Desde a promulgação da Constituição de 1988 e da garantia do livre acesso à justiça, o número de demandas judiciais no país aumentou de forma exponencial.

Segundo dados do CNJ[1], havia 81 milhões de processos em tramitação no Brasil até dezembro de 2022. Nesse mesmo ano, foram distribuídas 31 milhões de novas ações.

Tais números, que representam o volume de demandas nos tribunais, tornou o sistema processual brasileiro desafiador para o alcance de garantias constitucionais, dentre elas, a segurança jurídica, celeridade e eficiência da prestação jurisdicional.

Nesse contexto, a efetivação das funções das Cortes Superiores, quais sejam, Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, se mostram urgentes e necessárias.

A extrema judicialização no Brasil, em conjunto com a facilidade de recorrer da parte litigante que perde a demanda, tornou-se cenário perfeito para que as Cortes Superiores se transformassem em meros tribunais recursais, onde, em grande parte, os litigantes recorrem apenas para ganhar tempo e protelar uma decisão final.

Em 2022, o STJ recebeu 399.455 processos, o equivalente a três processos a cada quatro minutos durante todos os dias do ano. No mesmo período, o mesmo tribunal atingiu a marca de 577.707 julgamentos. É como se cada ministro tivesse julgado 17.506 processos no ano, ou 48 processos por dia, caso trabalhasse todos os dias do ano.

Tais dados refletem um sistema ineficiente, no qual o cidadão que aguarda uma análise minimamente cautelosa do seu caso, não recebe a devida prestação jurisdicional.

O papel das Cortes Superiores

Diante do cenário apresentado, faz-se necessária uma reflexão do real papel das Cortes Superiores. E nesse contexto surge a figura dos precedentes, cada vez mais presente no cenário jurídico brasileiro.

As Cortes de Precedentes, como deveríamos chamar o STF e o STJ, são cortes cuja função é de interpretação do direito constitucional e direito federal, a partir do julgamento de um caso concreto, para que aquela decisão proferida sirva de modelo para aplicação do direito pelas instâncias inferiores.

Nesse sentido, com o volume processual já citado e um sistema jurídico processual onde existem decisões distintas sobre o mesmo fato, os precedentes tem extrema importância para a uniformização da intepretação legal e logo, para segurança jurídica.

O STF, com a criação da Repercussão Geral, em 2004, através da Emenda Constitucional 45, conseguiu, ao longo dos anos, diminuir consideravelmente o número de processos que chegassem a Corte, uma vez que a parte que deseje ter o seu recurso apreciado pelo referido tribunal, deve demonstrar que o seu caso possui relevância jurídica, política, social ou econômica. Ou seja, o STF forma Teses de Repercussão Geral sobre matéria constitucional que devem ser observados por todos os juízes e tribunais. 

E o STJ, estando em situação crítica em volume processual, também precisou de um instrumento que concretize o seu papel como Corte de formação de teses sobre matéria federal.

O Superior Tribunal de Justiça e o Filtro da Relevância

Na tentativa de efetivação do STJ como uma Corte de Precedentes para consequente diminuição no número de demandas e melhora na prestação jurisdicional, a Câmara dos Deputados aprovou em julho de 2022 a Proposta de Emenda à Constituição 39/2021, denominada “PEC da Relevância”, a qual altera a redação do artigo 105 da Constituição, para inserir um novo requisito intrínseco de admissibilidade do recurso especial, tanto na esfera civil quanto na criminal.

A partir da promulgação da referida emenda, a nova regra impõe ao recorrente o ônus de demonstrar a relevância da questão ou questões federais deduzidas como fundamento do recurso especial, ou seja, o litigante tem o ônus de evidenciar que a questão jurídica a ser decidida pelo Superior Tribunal de Justiça ostenta uma relevância que ultrapassa o interesse subjetivo das partes. Essa relevância deve ser comprovada pelas perspectivas jurídica, econômica e social.

Além disso, o STJ julgará temas relevantes para formação de teses sobre lei federal, as quais deverão ser aplicadas pelos juízes e tribunais, como ocorre com a Repercussão Geral, no âmbito do STF.

Em recente entrevista, o ministro Gurgel de Faria, do STJ, faz a comparação entre os institutos e ressalta a necessidade do filtro para a formação de precedentes pelo STJ. Para o ministro, no STF, foi possível perceber a importância da fixação de precedentes para reduzir o número de processos e dar uma maior atenção a eles.

“Quanto mais processos, por óbvio você vai ter que julgar mais rápido e ali muitas vezes a rapidez faz com que você não dê atenção a temas que são importantes.”

A inclusão dos incisos 2º e 3º ao artigo 105 da Constituição Federal tem como principal objetivo a concretização do papel do Superior Tribunal de Justiça não como uma mera corte de cassação ou de controle, mas sim como uma corte de precedentes no que se refere à matéria de legislação federal.

Para a aplicação do “filtro da relevância”, é necessária uma lei que o regulamente. Nesse sentido, o STJ entregou, no dia 05 de dezembro de 2022, ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, uma sugestão de anteprojeto para a regulamentação do filtro de relevância do recurso especial. Contudo, até o momento não houve movimentação do órgão para prosseguimento do feito.

Diante do cenário exposto, em que o volume processual se torna cada ano maior e a insegurança jurídica se encontra presente em razão de decisões distintas acerca do mesmo fato, a regulamentação do Filtro de Relevância se mostra urgente.

As Cortes Superiores precisam exercer suas funções de forma plena para que possamos caminhar no sentido de prover a devida prestação jurisdicional, com segurança jurídica e razoável duração do processo, conforme determina a Constituição Federal.


[1] Disponível em: justica-em-numeros-2023-010923.pdf (cnj.jus.br)


Maria Augusta Sampaio Ferraz. Advogada especialista em processo civil e em processos nas Cortes Superiores. Mestranda em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atua há 15 anos perante as Cortes Superiores (STF e STJ), com larga experiência e expertise na área.

Reforma Tributária em Foco

Editorial

Ontem (13.09.23), no Auditório Miroslav Milovic da Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade de Brasília aconteceu o evento chamado Reforma Tributária em Foco. O evento foi trazido à UNB pela Professora Doutora Cristiane A. J. Alkmin do Banco Mundial e foi organizado e executado pela PPGD-UNB e pela WebAdvocacy – Elvino de Carvalho Mendonça e Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça, tendo à frente da organização os professores Marcelo Neves e Felipe Zanchet Magalhães.

Passaram pela abertura e pelas duas mesas de discussão ilustres autoridades do Poder Executivo e do Poder Legislativo e renomados acadêmicos e estudiosos da reforma tributária em nosso País. Pelo lado do Poder Executivo, pudemos contar com a abertura do Secretário Executivo do Ministério da Fazenda, Dário Durigan, que nos trouxe a lembrança de que o Brasil ocupa a posição 184 de 190 países no ranking do Doing Business realizado pelo Banco Mundial e que o êxito da reforma tributária, que se encontra no Congresso Nacional, nos permitirá saltar de 60 a 80 posições neste ranking.

Do Poder Legislativo, ouvimos as palavras de dois parlamentares atuantes nas Propostas de Emenda à Constituição da Reforma Tributária: Deputado Luiz Carlos Hauly e o Deputado Reginaldo Lopes. Ambos os parlamentares apontaram o desejo de ver aprovada a reforma tributária por entenderem que o sistema tributário brasileiro, tal como vigente hoje no Brasil, é antiprodutivo, antieconômico e gerador de desigualdades e pobreza.

Contamos também com a participação de acadêmicos, técnicos dos governos federal e estadual e representantes do setor privado. A academia se fez representar pelos Professores Eurico de Santi, Nelson Machado, Marcelo Neves e Felipe Zanchet Magalhães. Os dois primeiros diretores do Centro de Cidadania Fiscal (CCIF) e os dois últimos professores do departamento da Faculdade de Direito da UNB.

O governo federal se fez representar pelo Secretário Especial da Reforma Tributária, escritor do Projeto de Lei – Bernard Appy, pelo subsecretário da Secretaria do Tesouro Nacional Marcelo Amorim e pelo conselheiro do CARF Thiago Sorrentino. Na esfera estadual, a representação ficou por conta do Auditor fiscal da Receita Estadual de São Paulo Rodrigo Spada e, por fim, o setor privado se viu representado pelo sócio do Escritório Pinheiro Neto Advogados Luiz Roberto Peroba.

Enfim, foi possível observar que há um desejo comum dos participantes pela aprovação da reforma tributária. Se você não foi pode comparecer presencialmente ou não teve oportunidade de assistir ao evento de modo on-line e tem interesse no conteúdo deste debate, acesse o canal da WebAdvocacy no Youtube[1] e desfrute da visão técnica jurídico-econômica de cada um dos palestrantes e moderadores.


[1] Links para a mesa I (manhã): https://www.youtube.com/watch?v=2WhfSAi8B-4https://www.youtube.com/watch?v=h1cFTbJfoBA&t=16s

Link para a mesa II (noite): https://www.youtube.com/watch?v=H_jfUUfdGoo&t=84s

O papel da tecnologia nos modelos de cuidados baseados em valor

Andrey V B Freitas

Introdução

O cuidado baseado em valor é um modelo de prestação de cuidados em saúde que muda o foco do volume de serviços médicos prestados para a qualidade do atendimento e os resultados alcançados pelos pacientes. A transição para cuidados baseados em valor representa uma mudança significativa na filosofia de saúde, com o objetivo de melhorar os resultados dos pacientes, melhorar a qualidade do atendimento e controlar os custos de saúde. Requer colaboração entre as partes interessadas da saúde, investimento em tecnologia e compartilhamento de dados e um compromisso com o atendimento centrado no paciente.

No modelo tradicional de fee for service, os prestadores de cuidados de saúde são reembolsados com base no número de serviços que prestam, o que pode levar à sobreutilização de recursos médicos e à falta de ênfase nos cuidados preventivos e nos resultados dos pacientes. O cuidado baseado em valor, por outro lado, busca alinhar os interesses dos pacientes, provedores e pagadores (como empresas de seguros de saúde) para oferecer cuidados de saúde mais eficazes, eficientes e centrados no paciente.

O modelo de cuidado baseado em valor adota uma abordagem centrada no paciente, ao colocá-lo como centro do processo de cuidado. O objetivo é melhorar os resultados gerais de saúde e aumentar a satisfação dos pacientes, adaptando os planos de cuidados às necessidades específicas dos indivíduos.

Em função dessa abordagem, o modelo utiliza como indicadores-chave de sucesso o bem-estar do paciente e resultados de saúde mensuráveis, que permitam aferir melhorias na saúde a longo prazo. Nesse sentido, em vez de esperar que os pacientes fiquem gravemente doentes e exijam intervenções caras, os cuidados baseados em valor promovem medidas preventivas e intervenções precoces. Essa abordagem proativa possibilita a identificação de riscos à saúde precocemente e ajuda a prevenir a progressão de doenças.

Para tanto, o compartilhamento e a análise de dados desempenham um papel significativo no cuidado baseado em valor. Os dados de saúde do paciente, incluindo histórico médico, planos de tratamento e resultados, são usados para tomar decisões informadas, acompanhar o progresso e identificar áreas para melhoria. O modelo também oferece ganhos na gestão de saúde da população: ao analisar tendências e padrões de dados, os profissionais de saúde podem identificar riscos de saúde dentro de grupos específicos e desenvolver intervenções direcionadas.

Além disso, a operacionalização do modelo pressupõe a colaboração entre os profissionais de saúde, por meio de atendimento coordenado que garante aos pacientes o atendimento certo no momento certo, minimizando redundâncias, evitando erros médicos e reduzindo custos desnecessários de saúde. Os incentivos financeiros dos prestadores de cuidados de saúde estão ligados à qualidade dos cuidados e resultados dos pacientes. Isso incentiva os profissionais a se concentrarem em oferecer tratamentos eficazes, reduzindo complicações e melhorando a satisfação do paciente.

Os cuidados baseados em valor podem assumir várias formas, como, por exemplo, o modelo pay-for-performance, no qual os profissionais de saúde são recompensados financeiramente por alcançar certas métricas de qualidade e resultado – o que pode incluir medidas como reduzir readmissões hospitalares ou gerenciar de forma eficaz condições crônicas de saúde. Outra forma seria o de pagamentos agrupados: em vez de pagar por cada serviço individual, os pagamentos são agrupados para um episódio específico de atendimento, o que seria um incentivo para os provedores colaborarem entre si e oferecerem cuidados abrangentes aos pacientes.

O papel da tecnologia nos modelos de cuidados baseados em valor

A tecnologia desempenha um papel fundamental no suporte e aprimoramento de cuidados baseados em valor, fornecendo ferramentas, sistemas e insights orientados por dados, que facilitam a prestação de cuidados de saúde centrados no paciente e focados em resultados.

Nesse sentido, duas ferramentas merecem destaque: os registros eletrônicos de saúde e as plataformas de intercâmbio de informações de saúde. Os registros eletrônicos de saúde (“prontuários eletrônicos”) otimizam o armazenamento das informações de saúde dos pacientes, permitindo o acesso, pelos profissionais de saúde, a uma visão abrangente do histórico médico desses pacientes: tratamentos, medicamentos, resultados de testes, dentre outros. Já as plataformas de intercâmbio de informações de saúde permitem o compartilhamento seguro de dados de pacientes entre diferentes profissionais e organizações de saúde, garantindo o acesso às informações mais atualizadas para fundamentar decisões de tratamento.

Vale lembrar que o modelo de cuidados baseados em valor se apóia, dentre outros elementos, na proposta de atuação colaborativa entre os profissionais de saúde para obtenção dos melhores resultados para o paciente. Dentro dessa lógica, a utilização de registros eletrônicos de saúde e das plataformas de intercâmbio de informações de saúde favorece essa proposta de atuação colaborativa, permitindo maior troca de informações e de insights entre os profissionais, bem como a construção de um entendimento mais abrangente a respeito da situação de saúde do paciente e das possíveis estratégias de tratamento.[1]

Importante também destacar que, ao construir um banco de dados completo com as informações de saúde dos pacientes e facilitar seu uso compartilhado pelos profissionais de saúde, abre-se a possibilidade de análise de grandes volumes de dados e, consequentemente, de identificação de tendências, padrões e correlações. O aprimoramento dessa capacidade analítica é fundamental para a construção de sistemas de modelagem preditiva, que permitiriam mapear fatores de risco e antecipar possíveis problemas sistêmicos de saúde, bem como definir oportunidades de intervenção precoce, voltadas à contenção do agravamento desses problemas e do surgimento de complicações. Esses insights são inestimáveis para identificar populações em risco, avaliar a saúde de populações específicas, identificar pacientes de alto risco, alocar recursos de forma mais eficaz e projetar intervenções direcionadas.

Vale ainda ressaltar que o envolvimento do paciente é um aspecto fundamental do modelo de cuidados baseados em valor. A sistematização de seus prontuários eletrônicos e a utilização de plataformas (ou aplicativos) que permitem o acesso fácil e seguro a essas informações são incentivos poderosos para que os pacientes acessem suas informações de saúde, agendem consultas, visualizem os resultados dos testes e se comuniquem com segurança com seus prestadores de saúde. Logo, essas ferramentas capacitam os indivíduos para  assumirem um papel ativo em seus próprios cuidados.

Outro avanço tecnológico que favorece a adoção de modelos de cuidados baseados em valor é o que se convencionou chamar de telemedicina. A tecnologia de telemedicina permite consultas remotas entre pacientes e profissionais de saúde[2] – viabilizando, inclusive, o atendimento simultâneo e remoto por mais de um profissional de saúde – e melhora o acesso aos cuidados e reduzindo a necessidade de visitas presenciais. Essa ferramenta é particularmente importante em um país de dimensões geográficas significativas e no qual a oferta de recursos de saúde (profissionais, equipamentos e organizações) não é homogênea, como é o caso do Brasil.

Além disso, essa tecnologia favorece que os pacientes procurem consultas para obter segundas opiniões de especialistas, expandindo seu acesso a cuidados especializados e garantindo decisões de tratamento bem-informadas.

Por fim, cabe dizer que a sensibilidade dos dados de saúde sempre traz consigo questionamentos acerca da necessária adoção de instrumentos que garantam o sigilo e a segurança do compartilhamento dessas informações. Nesse sentido, a tecnologia blockchain oferece uma maneira segura e descentralizada de armazenar e compartilhar dados de saúde, garantindo a segurança, a privacidade e a interoperabilidade dos dados, de modo que pacientes e provedores compartilhem informações com confiança. Isso é particularmente importante ao compartilhar informações confidenciais do paciente.

Conclusão

Em resumo, a tecnologia fornece a infraestrutura necessária para coletar, gerenciar e analisar dados de saúde, permitindo que os profissionais e organizações de saúde tomem decisões informadas, ofereçam atendimento personalizado e melhorem os resultados dos pacientes. À medida que o setor de saúde continua a evoluir, alavancar a tecnologia de forma eficaz será crucial para atingir todo o potencial do atendimento baseado em valor e obter os benefícios associados a esse modelo.


[1] Importante lembrar que a interoperabilidade é essencial para o compartilhamento de dados entre diferentes sistemas e organizações de saúde. Assim, soluções tecnológicas que facilitem a interoperabilidade são fundamentais para garantir que os dados do paciente possam ser acessados e utilizados sem problemas por prestadores de serviços de saúde autorizados.

[2] As plataformas de mensagens instantâneas, videoconferência e comunicação segura permitem que os profissionais de saúde se comuniquem e colaborem em tempo real, facilitando a rápida tomada de decisões e a coordenação de cuidados.

Drex: A Moeda Digital que Promete Revolucionar o Mercado Financeiro Brasileiro

Leandro Oliveira Leite

A cada passo na jornada da digitalização, a vida cotidiana dos brasileiros se transforma. Em mais um movimento ousado, o Banco Central do Brasil (BC) está se preparando para lançar uma moeda digital que pode remodelar a maneira como realizamos transações e administramos nossos recursos financeiros. Batizada como Drex[1], essa moeda tem o potencial de trazer agilidade, eficiência e menor custo para uma variedade de transações contratuais e financeiras que hoje fazem parte do nosso dia a dia.

A evolução tecnológica tem desencadeado uma série de mudanças no modo como realizamos negócios e interagimos com as finanças. O Drex, uma representação eletrônica do real, não é apenas mais uma inovação, mas um passo significativo em direção à democratização do acesso aos serviços financeiros. Ao simplificar a comunicação, o BC optou por um nome próprio para essa nova moeda digital, abandonando a nomenclatura anterior “Real Digital”. A ideia é que o Drex seja mais do que uma moeda, seja um facilitador para negócios e um equalizador de oportunidades.

O Drex não é apenas uma moeda, é uma plataforma que utiliza tecnologias de registros distribuídos, o que permite a automação de transações financeiras através de “smart contracts[2]. Imagine comprar um veículo ou um imóvel, por exemplo. O Drex permite que essa transação seja concluída com a segurança de que tanto o dinheiro quanto a propriedade serão transferidos simultaneamente. Essa função é possível graças à programabilidade do Drex, que garante que a transação só seja finalizada quando ambas as partes compram com suas obrigações.

Esse novo modelo também tem o potencial de revolucionar setores como o de investimentos, créditos e benefícios sociais. Além disso, o Drex pode trazer maior eficiência para a administração pública ao agilizar processos de arrecadação e distribuição de recursos.

O Drex e a Vida Cotidiana do Brasileiro

O Drex está projetado para se tornar parte integrante da vida cotidiana dos brasileiros. A exemplo do sucesso estrondoso do Pix, o BC planeja utilizar as lições aprendidas para fazer do Drex uma moeda amplamente utilizada. A facilidade de uso e a agilidade fornecidas pelo Drex têm o potencial de transformar nossos hábitos financeiros. Em breve, assim como hoje falamos em “fazer um Pix”, o Drex também fará parte do nosso planejamento financeiro, refletindo a sua integração em nosso cotidiano.

Concorrência no Mercado Financeiro

A introdução do Drex não apenas modernizará a economia brasileira, mas também espera desafios no cenário competitivo do mercado financeiro. Com a promessa de eficiência e democratização financeira, o Drex pode obter uma competição acirrada entre as instituições financeiras tradicionais e as fintechs, estimulando a busca por inovações e aprimoramentos nos serviços oferecidos. Essa pode ser um motor para apoiar a qualidade e reduzir os custos dos serviços financeiros, beneficiando diretamente os consumidores.

Tokenização da Economia: Um Novo Paradigma Financeiro

A ascensão do Drex também abre as portas para a discussão sobre a tokenização da economia. A possibilidade de representar ativos reais, como imóveis e commodities, por meio de tokens digitais pode revolucionar a forma como investimos e acessamos o mercado financeiro. Isso não apenas tornaria os investimentos mais acessíveis, mas também mais transparentes e seguros. A tokenização pode democratizar ainda mais o acesso a oportunidades de investimento, permitindo que um espectro mais amplo da população participe de setores antes restritos a poucos.

Em um cenário onde a tecnologia continua a moldar a maneira como vivemos e fazemos negócios, o Drex surge como uma resposta do Brasil à crescente digitalização do mundo financeiro. Enquanto se prepara para entrar em cena, o Drex promete democratizar, agilizar e simplificar, assim como foi o Pix, tornando-se não apenas uma moeda, mas um símbolo da transformação da economia brasileira para uma nova era digital.

Referências:

BC te Explica:

https://www.youtube.com/watch?v=hAE-LC7Kczk https://www.youtube.com/watch?v=DJOcTvZC3zc

LiveBC: 

Nota à imprensa: 

https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/17946/nota


[1] A palavra Drex surgiu da seguinte ideia: “d” e “r” fazem alusão ao Real Digital; o “e” vem de eletrônico e o “x” passa a ideia de modernidade e de conexão, do uso de tecnologia de registro distribuído (Distributed Ledger Tecnology – DLT), tecnologia adotada para o Drex, dando continuidade à família de soluções do BC iniciada com o Pix.

[2] Smart contracts: um contrato inteligente é um protocolo de computador autoexecutável criado com a popularização das criptomoedas e feito para facilitar e reforçar a negociação ou desempenho de um contrato, proporcionando confiabilidade em transações online.

Mais notícias do Norte:  o novo guia de fusões estadunidense

Lucia Helena Salgado

Encontra-se em consulta pública até 18 de setembro de 2023 a proposta de novos Guidelines para fusões e aquisições desenhada pela Federal Trade Commission (FTC) e pela Divisão Antitruste do Departamento de Justiça (DOJ)[1]. A proposta representa uma revisão radical dos fundamentos da análise de operações de concentração tal como vem sendo conduzida nos últimos quarenta anos.

Desde 1982 até a última versão, de 2010, os guias vêm se apoiando nos avanços da organização industrial, incorporando metodologias cada vez mais sofisticadas, procurando aferir a possibilidade e a probabilidade de abuso do poder econômico sopesadas com as potenciais eficiências a serem geradas pelas operações.

A versão agora submetida ao escrutínio público toma direção diametralmente oposta. O detalhamento das metodologias econômicas de análise é substituído pela fundamentação no espírito do § 7º da Lei Clayton de 1914 – que proíbe fusões, aquisições e associações que tenham efeito de reduzir substancialmente a concorrência – e da Lei Hart-Scott-Rodino de 1976 – que impôs a obrigação de notificação de fusões e aquisições e tempo de espera para análise. Além dos textos legais, a proposta de novos guias busca apoio em julgados pela Suprema Corte em sua maioria anteriores ao período de 1982, quando a leitura de Chicago – focada no excedente do consumidor, parametrizado pelo preço que refletiria eficiência – começa a se tornar hegemônica.

A proposta de novos Guidelines aproxima – sem o dizer – o enforcement estadunidense da prática europeia – que inspirou, lembre-se, a legislação antitruste brasileira, com a adoção do conceito de “posição dominante”, cunhado pela jurisprudência europeia. Abandona o foco estático dos efeitos sobre o excedente do consumidor, ampliando a percepção do dano potencial causado por uma operação de concentração sobre quaisquer dos participantes do mercado e qualquer dimensão da competição. Inclui explicitamente a relação vertical entre empresas e trabalhadores ou seus fornecedores e o risco de bloqueio de mercados em transações verticais.

Na verdade, desde os primeiros Guidelines publicados, em 1968, há menções a relações verticais e ao poder de monopsônio que firmas em mercados concentrados podem exercer sobre fornecedores de força de trabalho. A mudança fundamental proposta é a de tornar o impacto de uma fusão sobre o trabalho fator suficiente para questionar judicialmente essa fusão.

A economia de plataformas do século XXI, com a difusão do desenho de mercados com dois ou múltiplos lados, é finalmente incorporada à análise concorrencial. Há menção à inadequação da metodologia de análise dos efeitos de fusões desenvolvida no século XX para estruturas de mercado tradicionais, mas a proposta em consulta não avança na proposição de metodologia econômica – o que pode estar programado para um segundo momento.

Na Europa, essa reflexão já completa duas décadas, contadas desde a publicação do artigo seminal de Rochet e Tirole (2003)[2], inspirador de densa literatura teórica que vem sendo aplicada há alguns anos pela Comissão Europeia.

Os novos Guidelines retomam a ênfase original do antitruste nos efeitos da concentração de mercados. Propõe-se retomar os limites definidos pelo Índice de Herfindhal-Hishman (HHI), adotado em 1982, mas em regra ignorado: a revisão de toda fusão que represente HHI superior a 1800 com variação maior que 100, de modo, segundo a proposta, a refletir tanto a letra da lei como os riscos de danos à competição.

Assim, o foco da atual proposta de guia é a concentração de mercado, um retorno à abordagem estruturalista anterior a 1982. Certamente não é por acaso que dois dos casos decididos pela Suprema Corte mais criticados como supostos erros, tanto pela Escola de Chicago como pela Economia dos Custos de Transação desenvolvida por Oliver Williamson, são citados como referência da abordagem que as agências (FTC e DoJ) intencionam adotar: o caso Brown Shoe (1962) e o caso Philadelphia National Bank (1963). Em ambos os casos, a decisão enfatiza a preocupação do Congresso “com a tendência em direção à concentração.”

A minuta dos Guidelines arrola 13 regras, a refletir os pontos a serem apreciados no controle de fusões, vamos a elas; as fusões não devem:

1. aumentar significativamente a concentração em mercados já altamente concentrados;

2. eliminar concorrência substancial existente entre as partes;

3. aumentar o risco de coordenação;

4. eliminar um entrante potencial em um mercado concentrado;

5. reduzir substancialmente a concorrência criando uma firma que controle produtos ou serviços que seus rivais necessitem para competir.

Fusões verticais não devem:

6. criar estruturas de mercado que bloqueiem a competição;

7. criar ou ampliar uma posição dominante;

8. contribuir para uma tendência em direção à concentração.

Quando uma fusão

9. for parte de uma série de múltiplas aquisições, as agências devem examinar o conjunto delas;

10. envolver uma plataforma de dois ou múltiplos lados, as agências examinarão a concorrência entre plataformas, na plataforma e para eliminar uma plataforma;

11. envolver concorrentes na posição de compradores, as agências examinarão se poderá reduzir substancialmente a concorrência por trabalhadores ou outros fornecedores;

12. envolver aquisição de controle parcial, minoritários ou propriedade compartilhada, será examinada para se verificar se reduzem substancialmente a concorrência.

Finalmente:

13. fusões não podem reduzir concorrência substancialmente nem tender a criar um monopólio por quaisquer outros meios que não os descritos nos itens anteriores.

Como se nota, os novos Guidelines em discussão são uma carta de intenções, uma sinalização sobre os rumos que as agências e em especial a FTC pretendem tomar, rumos esses muito diferentes dos trilhados nas últimas décadas. A proposta tem recebido apoio e encontrado oposição igualmente intensos. Se o formato final a ser publicado em outubro trará recuos na abordagem ou maior fundamentação econômica não é possível prever. Tampouco se terá vida longa, considerando a resistência que deverá encontrar no Judiciário e o imponderável resultado das eleições presidenciais estadunidenses em 2024. A despeito de tanta incerteza, a atual proposta já é um marco na história do antitruste.


[1] https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2023/07/ftc-doj-seek-comment-draft-merger-guidelines

[2] Rochet, Jean-Charles, and Jean Tirole. “Platform Competition in Two-Sided Markets.” Journal of the European Economic Association 1, no. 4 (2003): 990–1029. http://www.jstor.org/stable/40005175.

Acordos de cuidados baseados em valor e modelos de cuidados colaborativos: um caminho para a saúde integrada e o compartilhamento de dados na saúde suplementar

Andrey V B Freitas

Nos últimos anos, o cenário da saúde vem passando por uma mudança de paradigma de um modelo de fee for service para um que prioriza o atendimento baseado em valor[1]. Essa transição é impulsionada pelo reconhecimento de que focar apenas na quantidade de serviços médicos prestados não necessariamente leva a melhores resultados para os pacientes ou a cuidados de saúde efetivos. Como parte dessa transformação, acordos de cuidados baseados em valor e modelos de cuidados colaborativos estão emergindo como estratégias essenciais que promovem uma maior integração entre a prestação de cuidados e o compartilhamento de dados no âmbito da saúde suplementar. Este artigo aprofunda o conceito de acordos de cuidados baseados em valor, explora os benefícios dos modelos de cuidados colaborativos e discute o papel fundamental que desempenham na garantia de serviços de saúde mais simplificados e eficazes.

A essência dos acordos de cuidados baseados em valor

Os acordos de prestação de cuidados com base no valor, muitas vezes referidos como contratos baseados no valor, representam um desvio do modelo tradicional de fee for service. Em um arranjo baseado em valor, os profissionais de saúde são remunerados com base na qualidade dos cuidados prestados e nos resultados alcançados para os pacientes, em vez do volume de serviços prestados. Esses acordos promovem um alinhamento mútuo de interesses entre operadoras de planos de saúde, prestadores de cuidados de saúde e pacientes, todos trabalhando para o objetivo comum de melhorar a saúde do paciente e gerenciar os custos.

No centro dos acordos de cuidados baseados em valor estão várias métricas de desempenho e benchmarks que medem os resultados de cuidados de saúde, a satisfação do paciente e a economia de custos. Ao enfatizar o cuidado preventivo, o gerenciamento de doenças crônicas e o bem-estar geral, esses acordos incentivam uma abordagem proativa aos cuidados de saúde que pode levar a menos hospitalizações e a menores gastos gerais com saúde.

Modelos de cuidados colaborativos: preenchendo as lacunas

Os modelos de cuidados colaborativos são componentes essenciais do ecossistema de cuidados baseado em valor. Eles se concentram em promover uma comunicação e cooperação eficazes entre vários prestadores de cuidados de saúde, incluindo médicos de cuidados primários, especialistas, hospitais e até mesmo organizações comunitárias. Esses modelos reconhecem que os pacientes muitas vezes exigem um espectro de serviços de cuidados, e uma abordagem isolada pode dificultar a prestação de cuidados de saúde abrangentes e bem coordenados.

A prestação de cuidados integrados não só melhora as experiências dos pacientes, mas também gera resultados positivos de saúde. Modelos colaborativos garantem que os pacientes recebam intervenções oportunas, medidas preventivas e cuidados de acompanhamento consistentes, reduzindo a probabilidade de complicações e readmissões hospitalares. Além disso, eles facilitam o compartilhamento de dados vitais do paciente e histórico médico entre os provedores, levando a uma tomada de decisão mais informada e a redução de redundâncias em procedimentos diagnósticos.

Benefícios de uma maior integração entre cuidados e compartilhamento de dados

1.         Resultados aprimorados para o paciente: o alinhamento dos incentivos por meio de acordos de cuidados baseados em valor incentiva os profissionais de saúde a se concentrarem em melhorar a saúde e o bem-estar do paciente. Esta abordagem coloca um prêmio em cuidados preventivos, intervenções precoces e gestão de doenças crônicas, levando a melhores resultados do paciente e melhoria da qualidade de vida.

2.         Eficiência de custos: modelos de atendimento colaborativo e acordos baseados em valor ajudam a conter os custos de saúde, reduzindo hospitalizações desnecessárias, visitas a salas de emergência e testes redundantes. Ao enfatizar tratamentos econômicos e planos de cuidados personalizados, essas estratégias levam a uma alocação mais eficiente dos recursos de saúde.

3.         Atendimento holístico ao paciente: os modelos de atendimento integrado priorizam uma abordagem centrada no paciente, considerando não apenas as necessidades médicas, mas também os determinantes sociais da saúde. Essa visão abrangente aborda os fatores subjacentes que influenciam a saúde do paciente e ajuda a adaptar as intervenções com maior probabilidade de sucesso.

4.         Diagnósticos mais precisos: a prática do compartilhamento de dados em modelos de atendimento colaborativo capacita os profissionais de saúde com insights valiosos. O acesso ao histórico médico completo do paciente, aos resultados dos testes e aos planos de tratamento permite diagnósticos mais precisos e abordagens de tratamento personalizadas.

5.         Melhoria da Saúde da População: à medida que o compartilhamento de dados se torna mais extenso e acessível, o sistema público de saúde, as operadoras de planos de saúde e os prestadores de serviços podem identificar tendências e padrões na prevalência das doenças, além de mensurar a eficácia do tratamento, associando tais informações à demografia do paciente. Esses dados de nível populacional auxiliam na concepção de campanhas e intervenções de saúde pública direcionadas.

Superando desafios e olhando para frente

Embora a adoção de acordos de cuidados baseados em valor e modelos de cuidados colaborativos apresente vantagens significativas, vários desafios devem ser enfrentados para garantir sua implementação bem-sucedida. Estes incluem a interoperabilidade dos registos de saúde eletrônicos, as preocupações com a privacidade e a segurança dos dados, o alinhamento dos incentivos entre as partes interessadas e a transição das estruturas de reembolso do modelo de fee for service para o novo paradigma.

Olhando para o futuro, os avanços na tecnologia, como blockchain para compartilhamento seguro de dados e inteligência artificial para análise preditiva, mantêm a promessa de superar esses desafios e facilitar ainda mais o compartilhamento integrado de serviços de saúde e dados. Operadoras de planos de saúde, formuladores de políticas, prestadores de cuidados de saúde e pacientes devem trabalhar coletivamente para promover um ambiente propício à inovação e colaboração, realizando assim todo o potencial de acordos de cuidados baseados em valor e modelos de cuidados colaborativos.

Conclusão

A convergência de acordos de cuidados baseados em valor e modelos de cuidados colaborativos representa uma mudança transformadora no cenário da saúde. Ao alinhar os incentivos com os resultados dos pacientes, essas estratégias geram cuidados de maior qualidade, economia de custos e melhores experiências dos pacientes. A integração do compartilhamento de dados aumenta ainda mais a eficácia desses modelos, capacitando os profissionais de saúde com as informações necessárias para tomar decisões informadas. À medida que o setor de saúde continua a evoluir, abraçar essas inovações e promover a colaboração entre operadoras de planos de saúde, prestadores de serviço e pacientes abrirá o caminho para um sistema de saúde mais integrado, eficiente e centrado no paciente.


[1] O cuidado baseado em valor é um modelo de prestação de cuidados de saúde que muda o foco do volume de serviços médicos prestados para a qualidade do atendimento e os resultados alcançados pelos pacientes. No modelo tradicional de fee for service, os prestadores de cuidados de saúde são reembolsados com base no número de serviços que prestam, o que pode levar à sobreutilização de recursos médicos e à falta de ênfase nos cuidados preventivos e nos resultados dos pacientes. O cuidado baseado em valor, por outro lado, busca alinhar os interesses dos pacientes, provedores e pagadores (como empresas de seguros de saúde) para oferecer cuidados de saúde mais eficazes, eficientes e centrados no paciente.

“O que esperar quando você está esperando” ou a regulamentação do Programa de Combate ao Assédio Sexual

Vanessa Vilela Berbel

Nas minhas sucessivas tentativas de ser mãe biológica recebi de minha irmã um livro muito agradável, com o nome “O que esperar quando você está esperando”, escrito por Heidi Murkoff, Arlene Eisenberg e Sandee Hathaway, cujo objetivo é “fornecer respostas tranquilizadoras para os futuros pais”. A espera é sempre angustiante para pessoas ansiosas como eu e, certamente, tranquilidade não foi exatamente o que tive ao lê-lo, ainda mais após cinco abortos sucessivos.

Bem, não estou aqui para falar com você sobre o tema da gestação de bebês, ainda que seja essencial no Brasil, mas sim de outra geração, muito mais demorada e que demanda articulação do interesse de mais de duas pessoas: a regulamentação de uma lei.  

Regulamentar uma lei por um único órgão já não é tarefa fácil; imagine, então, quando precisa ser feita por múltiplos responsáveis. Foi esse o desafio lançado pela Lei 14.540/2023, que instituiu o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual no âmbito da administração pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e municipal.

O Programa determina, em síntese, que os órgãos públicos realizem ações voltadas (a) à prevenção e enfrentamento do assédio sexual e de todas as formas de violência sexual, (b) à capacitação dos agentes públicos para o desenvolvimento e a implementação de ações destinadas à discussão, à prevenção, à orientação e à solução do problema e (c) à implementação e disseminação de campanhas educativas sobre as condutas e os comportamentos que caracterizam o assédio sexual e demais crimes contra a dignidade sexual.

E como o Brasil precisa deste Programa implementado com esmero! Apesar de parecer irreal, em 29 de maio deste ano, pesquisa elaborada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) apurou que 84,5% dos brasileiros têm pelo menos um tipo de preconceito contra as mulheres. Destaco dois deles:

  • 31% dos brasileiros acham que homens têm mais direito a vagas de trabalho ou são melhores em cargos executivos; e
  • 39% dos entrevistados acreditam que mulheres não desempenham papel na atividade política tão bem quanto os homens.

Os preconceitos não ficam na seara íntima do preconceituoso, mas transformam-se em obstáculos sociais para as mulheres e vêm, a cada dia, reduzindo as oportunidades de gozo de seus direitos fundamentais. Daí porque, como consequência, em 59 países onde mais mulheres possuem formação do que os homens, a diferença média de renda entre gêneros permanece em 39% a favor dos homens[1].

Estamos caminhando para o quinto “mesversário” da Lei 14.540/2023. Se fosse um bebê, precisaríamos prestar bastante atenção, pois, nesta fase, já estaria se preparando para sair engatinhando por aí. Será? “Só que não”, ao menos em relação às concessionárias, permissionárias e delegatárias de serviços públicos.

No âmbito da administração pública, o Programa possui diretrizes desde antes da promulgação, como podemos ver do “Guia Lilás: orientações para prevenção e tratamento ao assédio moral e sexual e à denúncia no Governo Federal” (Guia Lilás), elaborado pela Controladoria-Geral da União (CGU) e aprovado pela Portaria Normativa SE/CGU nº 58/2023. Neste documento, pode-se encontrar conceitos e exemplos de atos, gestos, atitudes e falas que configurem assédio moral ou sexual ou, ainda, de discriminação. Também há orientações sobre o uso apropriado dos canais de denúncia.

Uma importante orientação oferecida pelo Guia Lilás é a forma adequada de abordagem da vítima no ato da denúncia. Sei, por experiência de dois anos como coordenadora do Ligue 180, o quanto é desafiador proporcional escuta ativa e respeitosa, demonstrando interesse, compreensão e valorização do que o denunciante está relatando sem externar uma postura julgadora e permeada por perguntas excessivas.

Contudo, mesmo havendo guias, orientações e formulários, “na teoria a prática é outra”. Nem sempre os atendimentos de Ouvidoria estão realmente preparados e, digo com firmeza, não há formula mágica que sirva a todos os contextos; cada situação de violência é única e possui perguntas-chave para o adequado encaminhamento da demanda. É necessário muita, mas muita pesquisa técnica para se chegar a um nível ótimo.

Portanto, só criar um canal de ouvidora, sem ter preparação prévia dos envolvidos e um estudo adequado para cada um dos meios disponíveis para a realização de denúncia (telefone, mensageria, presencial) e para cada uma das violências sofridas, em nada adianta; ao contrário, há riscos de se desencorajar as vítimas, que acabam, em alguns casos, ainda mais expostas às medidas de retaliação do agressor.

Há um Grupo de Trabalho de enfrentamento ao assédio na Administração Pública, o qual está a realizar ciclo de painéis para debater o tema, contando com representantes da Advocacia-Geral da União, da Controladoria-Geral da União, dos ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania, da Igualdade Racial, da Justiça e Segurança Pública, das Mulheres, da Saúde, do Trabalho e Emprego, do Ministério da Educação e da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). O ciclo de palestras do Grupo ocorrerá até setembro; os debates se propõem a oferecer um plano, a partir de metodologia desenvolvida coletivamente. Mais uma diretriz, mais uma orientação…tomara que venha seguida dos recursos públicos necessários à implementação.

Ainda que dentro da administração pública federal haja um movimento para a efetivação da lei, não vemos a mesma uniformidade em relação a outros entes da administração direta e indireta; notadamente, não se localizou qualquer protótipo, minuta ou pauta a respeito da regulamentação dos serviços públicos realizados pelas concessionárias e permissionárias, principalmente para que tudo isso se torne obrigação contratual, e não mera benevolência.

Enquanto isso, continuamos com as preocupações comuns dos traumas causados pelos insucessos anteriores, mas com a consciência de quem sabe que nada na vida se faz com completa isenção de riscos.


[1] Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento -PNUD. RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2021/2022. Disponível em: RELATÓRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO 2021-22 | United Nations Development Programme (undp.org). Acesso em 28.06.2023.