Mauro Grinberg Letícia Monteiro de Barros Luiz Felipe Drummond

INTRODUÇÃO

O processo administrativo sancionador sempre se vê às voltas com a questão da prescrição e, sobretudo, as causas que podem interrompe-la. Neste artigo o que se visa é a tendência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e sobretudo de sua Superintendência-Geral (SG) de considerar o marker de um acordo de leniência como ato capaz de interromper o prazo prescricional em relação aos integrantes de um suposto cartel denunciado por quem obtém o marker.

Para efeito expositivo, esclareçamos o que é o marker. Quando existe um cartel – que, por sua vez, é a união de concorrentes para eliminação da concorrência entre eles, seja por fixação de preços, seja por diminuição de produção, seja por divisão de mercado, seja por outra forma qualquer – e um dos participantes quer aproveitar a vantagem legal e denunciar tal cartel, a primeira coisa a ser feita é a obtenção de um marker, que é o comprovante do pedido para iniciar o processo de negociação do acordo.

Com o marker, o denunciante tem a certeza de que, por um dado período de tempo, tem a possibilidade de arregimentar elementos que possam dar sustentação à sua acusação. Este prazo é importante porque, quando a empresa inicia uma investigação interna, é bem possível que haja vazamentos que podem levar outros concorrentes a procurar a autoridade concorrencial e agir antes. Cumpre lembrar que, em matéria concorrencial, o acordo de leniência só é concedido ao primeiro a comparecer.

A PRESCRIÇÃO

Os direitos são prescritíveis; a prescrição é a regra e a imprescritibilidade é a exceção. Como expõe Elody Nassar, “a imprescritibilidade desponta em todas as disciplinas jurídicas como imoral e atentatória à estabilidade das relações sociais, sendo exceção à regra geral da prescritibilidade dos direitos [1]. Por sua vez, explica Humberto Theodoro Júnior que “muitos são os argumentos que a doutrina usa para justificar o instituto da prescrição. Acima de tudo, no entanto, há unanimidade quanto à inconveniência social que representa a litigiosidade perpétua em torno das relações jurídicas. Há, sem dúvida, um anseio geral de segurança no tráfico jurídico, que não seria alcançado se, por mais remota que fosse a causa de uma obrigação, pudesse sempre questionar-se sua existência, sua solução ou seu inadimplemento”[2]. Em suma, o que se busca é a paz social.

Com efeito, a Lei de Defesa da Concorrência (LDC) (Lei 12.529/2011) estabelece, em seu art. 46, que “prescrevem em 5 (cinco) anos as ações punitivas da administração pública federal, direta e indireta, objetivando apurar infrações da ordem econômica, contados da data da prática do ilícito ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado a prática do ilícito”. De acordo com o par. 4º do mesmo artigo, quando o fato constituir crime, a prescrição é a da legislação penal.

Pode-se apontar pelo menos três fundamentos para a prescrição, todos eles aplicáveis ao processo administrativo sancionador: (i) desincentivo à negligência do titular do direito, (ii) garantia da segurança jurídica e (iii) fechamento da possibilidade de litigiosidade perpétua, o que obviamente tende a resultar em paz social. Uma espada sobre a cabeça de alguém tem que ter prazo de validade; não pode ser eterna. Esse prazo de validade é a prescrição.

A INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO E O MARKER

Estabelece o par. 1º do artigo acima referido que “interrompe a prescrição qualquer ato administrativo ou judicial que tenha por objeto a apuração da infração contra a ordem econômica mencionada no caput deste artigo, bem como a notificação ou a intimação da investigada”. Aqui a grande questão é saber se o marker pode ser enquadrado na categoria de ato que tenha por objeto a apuração da infração. Embora Isto não possa ser negado aprioristicamente, é função do intérprete – e sobretudo da autoridade concorrencial – fazer a correta interpretação.

Assim, numa primeira e isolada visão, tem-se o marker como de fato um ato administrativo que tem por objeto a apuração da infração. Todavia, a simples interpretação literal não pode subsistir ante a interpretação de acordo com os princípios gerais de direito. Conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema, para que se preserve a coerência do todo. Portanto, nunca devemos isolar o preceito nem em seu contexto (a lei em tela, o código: penal, civil, etc.) e muito menos em sua concatenação imediata”[3].

Apenas a título de ilustração, imagine-se a situação de uma pessoa que, tendo cometido uma infração da ordem econômica e não tendo sido processada pela autoridade concorrencial, muitos anos depois se vê acossada por um processo administrativo relativo àquela infração praticada no passado para ela remoto. Aqui entra o significado da paz social: a garantia de que tal pessoa poderá seguir sua vida normalmente e sem ameaças vindas do passado remoto.

Imagine-se, mais, que esse participante da infração, agora surpreendido, nunca precisou coletar provas de sua inocência, até porque nunca foi acusado. Aliás, deixou passar a coleta de documentos (cuja eliminação após determinado período de tempo é admitida pela lei), as possibilidades testemunhais (algumas já não poderão mais ser encontradas, outras não guardarão suas memórias com fidelidade e assim por diante) e até mesmo os objetos e/ou arquivos que poderiam ser periciados. A lei não pode ser interpretada de modo a privar alguém de todas as possibilidades de defesa; isso deve ser intuitivo para qualquer julgador, judicial ou administrativo.

Mas será a concessão do marker um ato investigatório? A resposta é claramente negativa. Não, porque o marker apenas representa o início de uma negociação que pode, ou não, levar ao acordo de leniência. Ou, como aponta Egon Bockmann Moreira, o marker “atesta a situação jurídico-factual de que determinada pessoa poderá ser a primeira a submeter e ter aceita a sua proposta de acordo”[4]

É um ato precário, até porque pode ser revogado, caso as informações fornecidas pelo delator não sejam aptas a comprovar a infração denunciada ou ocorra a desistência da parte interessada. Poder-se-ia partir para outras divagações, tais como saber se um marker revogado tem o condão de interromper o prazo prescricional não tem). O que a autoridade não pode evitar é o reconhecimento de que sua negligência pode levar à completude do prazo prescricional.

A autoridade poderá argumentar que a resposta negativa à pergunta acima (o marker é ato investigatório suficiente para interromper a prescrição?), ante os necessários cuidados que a autoridade deve tomar (cuidados esses que demandam grandes esforços, sendo que grandes esforços também consomem muito tempo), pode levar a casos de prescrição em grande quantidade, com a perda dos esforços e das energias da Administração Pública. Por outro lado, não se pode considerar o prazo de cinco ou doze anos, conforme a infração, para completar uma investigação como exíguo, sobretudo ante as garantias que qualquer Representado (Réu ou acusado) deve ter.

Há que se ter em conta que o ato que interrompe a prescrição é aquele em que a autoridade dá ciência ao acusado de que existe uma acusação e que esta acusação pode levar ou já levou à abertura de um processo. No caso do processo administrativo que corre pela SG, trata-se de notificação. Tenha-se em mente que a prova pode ser produzida no curso do processo, adicionando-se aqui um argumento a mais contra a consideração do marker como ato capaz de interromper a prescrição. O processo pode ser aberto ante a constatação de indícios (Código de Processo Penal, art. 239: “Considera-se indício a circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.

De fato, estamos aqui diante da questão da segurança jurídica. Um ato inerentemente sigiloso, como é o caso do marker, que nenhum dos acusados tem a possibilidade de conhecer (o par. 9º do art. 86 da LDC estabelece que “considera-se sigilosa a proposta de acordo de que trata este artigo, salvo no interesse das investigações e do processo administrativo”), não pode ser fator de interrupção da prescrição, sob pena de violação do princípio da segurança jurídica. Como esclarece Humberto Ávila, “dentro do espectro da segurança jurídica também deve estar a capacidade de conhecer e de antecipar as consequências jurídicas atribuídas pelos órgãos aplicadores do Direito não apenas a atos, próprios ou de terceiros, mas igualmente a fatos que venham a ocorrer e que, direta ou indiretamente, repercutem sobre a esfera jurídica do contribuinte” [5].

Em casos envolvendo processos dos Tribunais de Contas, o Supremo Tribunal Federal (STF) já registrou a ligação entre a garantia da prescrição e a necessidade de preservação da previsibilidade e da segurança jurídica[6]. Nessa linha, em caso recente o Ministro Nunes Marques afirmou que a interrupção da prescrição por ato inequívoco que importe apuração do fato só é válida “quando o interessado tem conhecimento de que a Administração iniciou ou praticou algum ato vocacionado a investigar eventos a ele ligados”[7]

Assim, a SG do Cade é que poderá definir a interrupção da prescrição. Ela tem o prazo prescricional inteiro (de cinco a doze anos, conforme a infração) para decidir se abre ou não um processo. Ultrapassado esse prazo sem que o suposto infrator seja notificado da existência de acusação, esgota-se o prazo prescricional. Um ato inerentemente sigiloso, como é o marker, que nenhum dos acusados tem condições de conhecer, apesar das ameaças nas esferas jurídicas dos acusados, obviamente não pode interromper o prazo prescricional que a autoridade tem para processar os supostos infratores.

CONCLUSÃO: A PAZ SOCIAL

A prescrição também é essencial para a paz social, evitando a perpetuidade do direito de ação. Com efeito, o direito de ação nasce com o fato imputado pela autoridade como infracional, havendo um prazo dentro do qual a autoridade pode fazer a acusação. Esse prazo pode ser interrompido, desde que o acusado tenha conhecimento de tal interrupção. O objetivo da prescrição é, dentro da ideia da paz social, permitir que as partes sigam seus caminhos sem serem perturbadas tempos (em geral contados em anos) depois, já despreparadas para a produção da prova. Assim, resulta claro que o marker concedido pela SG do Cade a um infrator arrependido, enquanto confidencial não tem a capacidade de interromper a prescrição no que diz respeito aos demais integrantes de uma conduta dita i infracional. 


[1] “Prescrição na Administração Pública”, Saraiva, São Paulo, 2009, pág. 9

[2] “Prescrição e Decadência”, Gen/Forense, Rio de Janeiro, 2021, pág. 15

[3] “Introdução ao Estudo do Direito”, Atlas, São Paulo, 2013, pág. 257)

[4] “Markers de leniência no Cade: natureza, regras, regime jurídico e efeitos”, Economic Analysis of Law Review, Brasília, v. 2, n. 2, pág. 210/221, maio/agosto 2021

[5] “Segurança jurídica”, Malheiros, São Paulo, 2011, pág. 145. Esclareça-se que a palavra “contribuinte” decorre do texto ter por objetivo o direito tributário mas pode perfeitamente ser substituída por Representado ou Réu ou acusado

[6] Por exemplo, MS 37,316, AgR, 2ª Turma, sendo Relator o Ministro Gilmar Mendes, julgado em 02/09/2024, publicado em 25/09/2024

[7] MS 38.223, AgR, 2ª Turma, sendo Relator o Ministro Nunes Marques, julgado em 09/05/2023, publicado em 26/05/2023


Mauro Grinberg – Ex-Conselheiro do Cade, ex-Presidente e atual Conselheiro do Ibrac, Procurador da Fazenda Nacional (aposentado), advogado em Direito da Concorrência

Letícia Monteiro de Barros – Advogada em Grinberg Cordovil Advogados, LLM pela New York University com foco em Direito da Concorrência

Luiz Felipe Drummond – Advogado em Grinberg Cordovil Advogados, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais

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