Fernanda Manzano Sayeg
O acordo comercial negociado entre Mercosul e União Europeia desde 1999 e concluído 20 anos depois, em junho de 2019, passa por uma crise que dificilmente será superada.
O maior acordo comercial da história abrange um mercado de 780 milhões de pessoas e engloba 25% do PIB mundial. Se implementado, o Acordo eliminará 93% das tarifas aplicáveis às exportações do Mercosul para a UE, oferecendo tratamento preferencial para os 7% restantes. Da mesma forma, o acordo eliminaria o imposto de importação ou criaria cotas tarifárias para as principais exportações agrícolas da UE para o Mercosul.
Desde sua assinatura, o texto do Acordo passou por revisão legal e foi traduzido para todos os idiomas oficiais da UE. No entanto, o encaminhamento do documento para votação no Conselho da União Europeia e no Parlamento Europeu, contudo, depende não apenas de questões técnicas, mas também de alinhamentos políticos.
Não é novidade que o Acordo sempre enfrentou a oposição de políticos europeus, que desconfiam de potenciais impactos ambientais com aumento do comércio com o Mercosul. Além de constantes declarações negativas do presidente francês, Emmanuel Macron, o Parlamento Europeu chegou a aprovar, em 2020, uma menção simbólica contra o tratado, sinalizando que o texto não seria ratificado sem alterações. Os parlamentares alegaram que o capítulo de sustentabilidade deveria ser revisto, pois careceria de mecanismos de sanção, caso uma das partes não cumpra os compromissos assumidos no Acordo de Paris.
Uma possibilidade aventada foi a reabertura do texto negociado durante 20 anos, que logo foi descartada. Para solucionar o impasse, a Comissão Europeia tem debatido sobre a implementação de algum mecanismo adicional ao acordo, que incremente as garantias ambientais, sem alterar o texto já negociado. Do lado do Mercosul, autoridades do bloco já se declararam favoráveis ao aprofundamento dos compromissos de sustentabilidade, desde que as medidas adicionais sejam aplicáveis a ambas as partes.
Além dos esforços para avanço do acordo dentro da Comissão Europeia, um grupo de nove países autointitulados “novos amigos do comércio” reforçou o apoio à parceria com o Mercosul. No final de 2020, representantes de Dinamarca, Estônia, Espanha, Finlândia, Itália, Letônia, Portugal, República Tcheca e Suécia defenderam a ratificação do tratado, ressaltando sua importância para a consolidação da autonomia estratégica do bloco, uma vez que fortaleceria a posição europeia na América do Sul, à frente de concorrentes como EUA e China, que ainda não possuem acordo com os países do bloco sul americano.
Outros países também se mostraram contrários ao acordo, por receio de perderem mercado no continente europeu. Para os parceiros tradicionais da região, a maior presença comercial da União Europeia no Mercosul e vice versa pode ter consequências nos fluxos de exportação existentes. Nesse sentido, cumpre mencionar o estudo publicado pelo Departamento de Agricultura dos EUA (USDA)[1], em janeiro de 2021, que alerta que as exportações dos EUA para a UE poderiam ser “potencialmente ameaçadas” pelo acordo do Mercosul, pois poderiam ser substituídas por produtos sul-americanos, com impacto de até US$ 4 bilhões. O USDA também alertou que o acordo estenderia o alcance dos padrões da UE para a América do Sul, criando uma vantagem para os produtos europeus em relação às exportações dos EUA no continente.
Se o ambiente político já não era favorável ao acordo, ficou ainda mais preocupante após a adoção de dois importantes regulamentos sobre mudanças climáticas que impactarão as exportações do Mercosul para o bloco europeu, a saber: o Regulamento que cria o mecanismo de ajuste de carbono na fronteira (CBAM) e o Regulamento Anti-desmatamento. Para os sul americanos, os novos regulamentos, aprovados em 2023, nada mais são do que medidas unilaterais protecionistas, impostas sob o pretexto da sustentabilidade, que prejudicariam ainda mais o equilíbrio das obrigações das partes no acordo aprovado em 2019 em questões ambientais.
Recentemente houve esforços mútuos para que o acordo fosse, de fato, concluído. Do lado do Mercosul, o presidente Lula se mostrou favorável ao acordo desde que houvesse um maior equilíbrio em questões ambientais. Foi proposta a criação de um fundo de 12 bilhões de euros (cerca de R$ 65 mil) para ajudar países do bloco a implementarem políticas ambientais e de redução do desmatamento. Já do lado europeu, foram apresentadas demandas em questões como compras governamentais, as quais teriam sido atendidas.
Não obstante os avanços obtidos nos últimos meses, as reuniões marcadas para o final de novembro e início de dezembro, que eram decisivas para o futuro do acordo, mostraram que o consenso é bastante improvável.
Um dos problemas enfrentados é a posse do novo presidente da Argentina, Javier Milei, que assume o país em 10 de dezembro. Os delegados argentinos que participavam das negociações foram mais duros nas conversas realizadas em novembro, alegando que o acordo estava desequilibrado e, se fosse fechado, os europeus teriam mais vantagens que o Mercosul. Trata-se de um recado de que o presidente derrotado Alberto Fernandez, que se recusou a dar esse acordo de presente para Milei, que é favorável à liberalização econômica.
A declaração de Macron na COP28 ajudou a sepultar o acordo. O presidente francês que notoriamente é contrário ao tratado, reiterou sua posição na COP28 ao dizer “Sou contra o acordo Mercosul-UE, porque acho que é um acordo completamente contraditório com o que ele está fazendo no Brasil e com o que nós estamos fazendo, porque é um acordo que foi negociado há 20 anos, e que tentamos remendar e está mal remendado”. O presidente Lula, por sua vez, mostrou sua habilidade política em assumir crises e transformá-las em oportunidades para seu próprio governo, responsabilizando os europeus por um eventual fracasso das negociações.
Se o ano de 2023 for encerrado sem um acordo, perde-se a janela de oportunidade e, possivelmente, o tratado comercial entre UE e Mercosul será finalmente enterrado.
A pergunta que surge é: o que deu errado nesse acordo? Que lições podemos aprender para as futuras negociações comerciais?
Entendo que três fatores levaram ao fracasso dessa negociação: a falta de vontade política, a estrutura ambiciosa do acordo e o elevado número de partes.
O Acordo Mercosul-UE é mais abrangente que os demais acordos celebrados pelo bloco sul americano. Há compromissos em temas como defesa da concorrência, comércio e desenvolvimento sustentável e compras governamentais, que são sensíveis para diversos países, como o Brasil. Excluir os temas sensíveis da pauta certamente facilitaria um acordo entre os blocos. No entanto, resta saber se esse acordo ainda seria interessante para ambas as partes, o que não me parece ser o caso.
As negociações com os europeus denotam a dificuldade de se negociar um acordo desse porte com mais de 30 países, cada qual com a sua história, perspectiva e prioridades. Os interesses dentro do mesmo bloco são distintos. Basta comparar Brasil e Paraguai. Ambos são membros do Mercosul, mas Brasil é um país com forte agronegócio, indústrias, que ao mesmo tempo de vê oportunidades no acordo com os europeus, também teme pela concorrência. Paraguai, por sua vez, é um país muito mais dependente de importações, que está interessado em abrir seu mercado para os europeus.
Um acordo que exige unanimidade entre partes acaba sendo extremamente difícil quando estas são tão numerosas. Pelo mesmo motivo, a Organização Mundial do Comércio (OMC) está há 10 anos sem um novo acordo multilateral. O primeiro e único acordo multilateral celebrado no âmbito da OMC desde sua criação, em 1999, foi o Acordo sobre Facilitação de Comércio, que entrou em vigor em 22 fevereiro de 2017, com a assinatura de 112 dos então 164 membros da OMC.
Por fim, não observamos a vontade política de celebrar o acordo por parte de todos os atores envolvidos. Pelo contrário, parece que muitos países ficam aliviados sempre que a concretização do acordo é adiada. Transição de governo e processos eleitorais, sobretudo para presidência da república, costumam ser utilizados como desculpas para não assumir compromissos. É o que vemos neste momento com a Argentina.
O resultado final dessa longa negociação entre Mercosul e União Europeia certamente será decisivo para modular o modelo e o nível de ambição dos futuros acordos de livre comércio a serem celebrados pelo Mercosul.
[1] https://www.fas.usda.gov/data/eu-mercosur-trade-agreement-preliminary-analysis.