Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli

Desde a entrada em vigor da 12.529/2011, lei que recentemente completou sua primeira década de vida, o controle dos chamados atos de concentração tem sido realizado de maneira “ex ante”, de modo que as operações notificáveis somente possam ser consumadas após a autorização da autoridade concorrencial brasileira.

Dentre as principais alterações do regime de controle de estruturas anterior para o modelo atual encontra-se a especificação no que diz respeito à necessidade de notificar ao Cade as operações envolvendo a aquisição de ativos, sejam eles tangíveis ou intangíveis.

Na última sessão de julgamento do ano passado, ocorrida em 15/12/2021, o Tribunal do Cade resolveu, por unanimidade, absolver a JBS, havendo entendido, conforme dispôs o voto condutor, que a aquisição do frigorífico localizado em Iguatemi/MS não deveria ser entendida como uma operação de notificação obrigatória, uma vez que, à época da consumação do ato, ou seja, em 08/08/2014, inexistia outro direcionamento da Autarquia senão o entendimento manifestado pelo então conselheiro Marcos Paulo Veríssimo, que ao julgar o possível descumprimento de seis Atos de Concentração envolvendo a JBS[1], pontuou:

“Ora, é evidente que o arrendamento de uma unidade fabril em pleno funcionamento equivale, em tudo e por tudo, e ao menos pelo prazo em que durar o arrendamento, a uma operação societária de aquisição dos mesmos ativos por meio da aquisição de controle societário. O ponto, aqui, é antes substantivo que formal. Trata-se de perceber que o conceito de “empresa” em direito não diz respeito a uma certa estrutura societária, mas sim à organização de um conjunto de fatores produtivos destinada a produzir certos resultados que seriam impossíveis de serem produzidos pelos fatores isoladamente, ou seja, a um organismo econômico que põe esses fatores em funcionamento, dentro de um sistema coordenado, para produzir um certo resultado de lucro, na famosa conceituação de Cesare Vivante. Portanto, ter acesso a esse sistema de fatores produtivos, ordenados para a produção, é ter acesso à própria empresa, ainda que isso não implique participação societária formal e ainda que esse acesso seja transitório, como no caso das operações de arrendamento de unidades fabris. O critério, para que tais operações possam ser consideradas “atos de concentração”, é que elas incidam sobre a empresa como um todo, e não sobre seus elementos isolados. Em outras palavras, é que incidam sobre o conjunto dos elementos que forma a empresa entendidos como um sistema em plena atividade. Por isso, não tenho dúvida que as operações de arrendamento de unidades em atividade deveriam ter sido submetidas ao CADE, mas concordo que os arrendamentos de ativos que já não estavam mais a serviço de uma certa atividade empresarial não”. (grifo próprio)”[2]

De fato, como bem asseverou a Conselheira-Relatora, existem dois cenários jurisprudenciais que não podem ser ignorados, isto é, o cenário que remonta o entendimento do Cade à época da aquisição (agosto de 2014) e o cenário mais recente, no qual a Autarquia tem reiteradamente manifestado seu entendimento no sentido de que, mesmo a aquisição de ativos não-operacionais seria de notificação obrigatória.

Entretanto, há que se atentar para o fato de que, em 2013, quando o então Conselheiro Marcos Paulo manifestou seu entendimento, ele procurava interpretar os fatos (descumprimento dos seis atos de concentração) à luz da Lei 8.884/1994, que vigorava à época das operações sob análise, e cuja redação dispunha:

“Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE” (grifo próprio)

A Lei 12.529/2011, por sua vez, entende que um ato de concentração realizar-se-á quando, in verbis:

Art. 90 (…) (I) 2 (duas) ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; (II) 1 (uma) ou mais empresas adquirem, direta ou indiretamente, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações, ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma, o controle ou partes de uma ou outras empresas; (III) 1 (uma) ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas; ou (IV) 2 (duas) ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture. (grifo próprio)

Ora, não precisa de muito para se perceber que a distinção entre os dois tratamentos legislativos é latente, isto é, ao passo em que a lei anterior dá ampla discricionariedade para que o legislador interprete o que será entendido como atos que limitem ou possam vir a prejudicar a livre concorrência (ou mesmo resultar na “dominação de mercados relevantes”)[3], a nova norma define de forma objetiva as hipóteses que devem ser entendidas como possíveis atos de concentração, especificando, dentre elas, a aquisição de ativos, seja ela contratual ou não.

Reabre-se então a discussão sobre se a aquisição de um ativo não-operacional deveria despertar preocupação da Autarquia. O “novo cenário jurisprudencial” entendido pela Conselheira-Relatora demonstra que, para além da operacionalidade do ativo à época da aquisição, é importante também analisar qual viria a ser a destinação deste ativo na atividade econômica em questão, considerando-se ainda quais seriam os investimentos necessários para o desenvolvimento desta atividade.

Assim, para além dos casos citados pela Conselheira, a saber, o AC nº 08700.006524/2016-02, que envolveu as empresas Biomm S.A. e Novartis Biociências S.A., e o AC nº 08700.002190/2020-76, envolvendo a Aircastle Holding Corporation Limites. e a General Electric Company, há outros precedentes em que o tema foi tratado no contexto de decisões sobre o conhecer ou não da operação, como foi o caso, por exemplo, do AC 08700.003501/2020-14, onde argumentou-se que a aquisição de um imóvel inativo onde estava localizado o antigo resort Club Med Itaparica pela hoteleira Eidom não deveria ser de conhecimento do Cade, tendo-se em vista não apenas a inatividade do imóvel, mas também o fato de que, à época da operação, o comprador ainda não havia definido a sua finalidade.

Na ocasião, a SG manifestou o entendimento de que tal aquisição conferiria sim capacidade produtiva ao grupo, vez que lhe permitiria desenvolver atividades no ramo hoteleiro ou ainda imobiliário, mesmo que o ativo, à época da aquisição, ainda não estivesse operacional. Explicou ainda que a estrutura instalada existente poderia produzir reflexos no mercado, não obstante a sua inatividade momentânea, vez que os requisitos para a construção de um hotel são exatamente disponibilidade imobiliária, adequação da propriedade e aprovações ambientais e regulatórias – todos estes, presentes no imóvel adquirido, mesmo sendo de difícil constituição.

Noutra oportunidade, inclusive citada no precedente anterior, a SG igualmente manifestou-se no sentido de que a transferência de ativos, apesar de não estarem operacionais à época da apreciação da operação, poderia “implicar um aumento na capacidade de oferta de um player relevante do mercado em questão, em detrimento dos demais concorrentes (que, eventualmente, podem enfrentar dificuldades para expandir sua capacidade de oferta)” – AC nº 08700.008315/2016-95 (Silcar Empreendimentos, Comércio e Participações LTDA. e Polimix Concreto LTDA).

Ora, a evolução neste entendimento em nada contraria o conceito de empresa segundo Cesare Vivante, conforme parafraseou o ex-Conselheiro Veríssimo, isto é, de “um organismo econômico que põe os fatores produtivos em funcionamento, dentro de um sistema coordenado, visando um resultado de lucro”. De fato, isoladamente, é impossível que um ativo não-operacional atinja esse status, exatamente por faltar-lhe a capacidade de coordenação. Também no contexto de uma aquisição, só é possível atingir a funcionalidade conjunta na medida em que haja uma identificação entre a possível finalidade do ativo e o ramo de atividade da adquirente – é precisamente o que se verificou nos precedentes citados e também na situação da JBS, ao adquirir o frigorífico inativo de Iguatemi/MS.

Assim, em que pese a decisão unânime dada pelo Conselho, respeitando a segurança jurídica, no sentido de manter a instrução dada pelo ex-Conselheiro Veríssimo, no ano de 2013, de que a aquisição de ativos não-operacionais não deveria ser submetida à notificação obrigatória, é necessário que este precedente não seja interpretado de forma equivocada, ou seja, como um passo atrás para a instituição. 


[1] AC no 08012.008074/2009-11 (JBS S.A. e Bertin S.A.); AC no 08012.002148/2012-01 (JBS S.A. e JEMA Participações Ltda.); AC no 08012.002149/2012-48 (JBS S.A. e MJE Administração de Bens Ltda.); AC no 08012.003367/2012-08 (JBS S.A. e FR Participações Ltda.); AC no 08700.004230/2012-12 (JBS S.A. e SSB Administração e Participações Ltda.); AC no. 08700.004226/2012-46 (JBS S.A., Tiroleza Alimentos Ltda. e Rodo GS – Transportes e Logística Ltda.)

[2] Ato de Concentração 08012.002148/2012-01, Volume 2, Página 290.

[3] Ao analisar o Ato de Concentração 08012.009064/2009-95, o então Conselheiro Fernando de Magalhães Furlan entendeu que, por se tratar de um bem imóvel, a aquisição indireta de imóveis da Companhia Brasileira de Distribuição (CBD) não seria de notificação obrigatória, devendo ser considerado como crescimento orgânico ou crescimento interno da empresa.

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