Daniela Santos
Minha coluna de hoje é sobre a Resolução nº 3, de 7 de abril de 2022, do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que estabelece as diretrizes estratégicas para o desenho do novo mercado de gás natural, os aperfeiçoamentos de políticas energéticas voltadas à promoção da livre concorrência nesse mercado, os fundamentos do período de transição.
O contexto dessa Resolução foi a necessidade de construir soluções, ainda que transitórias[1], para garantir, na prática, a concorrência no mercado de gás natural no Brasil. E isso decorreu dos avanços atuais que, por certo, apontaram para problemas/limites que ainda impedem a plena observância dos princípios do Novo Mercado de Gás (NMG) e dos objetivos pretendidos com o desinvestimento da Petrobras no setor, nos termos indicados pelo Termo de Compromisso de Cessação (TCC do gás), celebrado com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) em 2019.
Foram muitas as diretrizes, medidas e princípios dispostos na Resolução. Todos eles já dispostos em outras normas, experimentados em outros mercados, e reconhecidos como fundamentais para a transição entre um mercado restrito para um mercado seguro e confiável com a participação de diversos agentes.
Mas além do (importante) reforço de tais parâmetros pelo CNPE – vinculado à Presidência da República e presidido pelo Ministério de Minas e Energia – há novidades importantes que devem ajudar no crescimento do mercado de gás enquanto o CADE não sinaliza com decisões mais objetivas no âmbito do TCC do Gás e a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis não finaliza itens fundamentais da sua extensa agenda regulatória.
Mas vamos em partes. Em primeiro lugar, chama atenção para o (correto) apoio dado às diretrizes estratégicas do novo mercado de gás natural no Brasil, especialmente aquelas que indicam a necessidade de dinamismo e acesso à informação (transparência), a participação dos agentes do setor e a promoção à competição na oferta do gás natural (sem perder de vista o respeito aos contratos).
Neste sentido, cito algumas diretrizes que me chamaram a atenção:
- remoção de barreiras econômicas e regulatórias às atividades de exploração e produção de gás natural;
- implementação de medidas de estímulo à concorrência que limitem a concentração de mercado e promovam efetivamente a competição na oferta de gás natural;
- reforço da separação entre as atividades potencialmente concorrenciais, produção e comercialização de gás natural, das atividades monopolísticas, transporte e distribuição;
- aumento da transparência em relação à formação de preços e a características, capacidades e uso de infraestruturas acessíveis a terceiros;
- promoção do acesso não discriminatório e transparente de terceiros aos gasodutos de escoamento, Unidades de Processamento de Gás Natural – UPGNs – e Terminais de Regaseificação;
- promoção da harmonização entre as regulações estaduais e federal, por meio de dispositivos de abrangência nacional, objetivando a adoção das melhores práticas regulatórias;
- promoção de transição segura para o modelo do novo mercado de gás natural, de forma a manter o funcionamento adequado do setor.
E como se não bastassem tais diretrizes, o CNPE também confirmou os princípios da transição para um mercado de gás natural concorrencial, que deve primar pela segurança do abastecimento, pela celeridade e pelo fortalecimento e autonomia das agências reguladoras e da autoridade de defesa da concorrência.
Os objetivos da transição também são descritos na Resolução CNPE nº 3/22. Cito apenas alguns deles:
- promover um mercado transparente, concorrencial e líquido de gás natural, tanto no atacado como no varejo, com diversidade de agentes do lado da oferta e da demanda;
- restringir situações de transações entre comercializadores e concessionárias de distribuição de gás canalizado que sejam partes relacionadas;
- promover a transparência e o estabelecimento de regras claras para o acesso negociado e não discriminatório às infraestruturas de escoamento e processamento de gás natural e aos Terminais de Gás Natural Liquefeito – GNL;
- promover a transparência do teor dos contratos de compra e venda de gás natural para o atendimento ao mercado cativo; e
- incentivar a adoção voluntária, pelos Estados e o Distrito Federal, de boas práticas regulatórias relacionadas à prestação dos serviços locais de gás canalizado, que contribuam para a efetiva liberalização do mercado, o aumento da transparência e da eficiência, e a precificação adequada no fornecimento de gás natural por segmento de usuários.
E tudo isso, sem esquecer da necessidade de (i) coordenação das atividades, (ii) concentração das operações de compra e venda de gás em um ponto virtual de negociação (que servirá como referência para os produtos relacionados à flexibilidade e ao balanceamento da rede), (iii) padronização dos contratos, (iv) redução da tarifa relacionada às interconexões e a efetiva interconexão das instalações do sistema de transporte, (v) a adequação de procedimentos e padrões utilizados pelos agentes, (vi) a implantação de programas para a liberação progressiva de gás natural (com a supervisão da ANP e dos órgão de defesa da concorrência) e (vii) simplificação e periodicidade dos processos de oferta de capacidade de transporte de gás natural. Grifei as palavras-chave para não restar dúvidas sobre os propósitos legítimos e necessários na consecução dos objetivos do NMG.
Para atingir tais objetivos, o MME se comprometeu a disponibilizar, no seu site, os prazos indicativos sobre: (i) interconexão de gasodutos de transporte; (ii) oferecimento de capacidade de transporte; (iii) troca de informação entre usuários e operadores de rede; (iv) elaboração de código de conduta e prática de acesso à infraestrutura; (v) processo de código de rede; (vi) informações sobre a constituição do conselho de usuários e (v) informações dos proprietários e operadores de infraestruturas essenciais. Previsibilidade, transparência e acesso às informações são essenciais para a estruturação do mercado de gás natural no Brasil.
Ademais, para além dos pontos que fazem referência ao transporte de gás natural, os temas que mais chamaram a atenção no artigo 8º da Resolução dizem respeito: (i) ao estímulo à participação ativa na comercialização de gás a curto prazo (para dar maior liquidez e transparência na formação de preços) e (ii) ao prazo de 180 dias para a conclusão das negociações entre os operadores de instalações e infraestruturas essenciais e o terceiro interessado no acesso – senão a ANP poderá atuar para verificar eventuais “condutas anticoncorrenciais ou de controvérsias entre as partes”, devendo deliberar em 90 dias sobre o caso. Espera-se que, ao se estabelecer prazos, o mercado tenha mais previsibilidade, transparência e segurança nas negociações de acesso. Mais um reforço no papel (protagonista) do regulador federal – sem perder de vista que, havendo dúvida sobre as “condutas anticoncorrenciais” sempre será possível consultar os órgãos de defesa da concorrência.
Ainda sobre acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais, a Resolução CNPE reforça os seus princípios gerais (muitos deles já observados no case de acesso à UPGN Guamaré, por exemplo) merecendo destaque aquelas que ainda não foram implementados total ou parcialmente, quais sejam, os que estabelecem que (i) a remuneração para o acesso deva ser baseada em critérios objetivos e considerar um retorno justo e adequado do investimento, a partir de uma prestação de serviço eficiente; (ii) que toda recusa ao acesso deva ser devidamente justificada; e (iii) que os proprietários ou operadores devam dar transparência e disponibilizar dados e informações sobre as instalações de gás natural, contendo no mínimo: as remunerações dos serviços prestados; as capacidades disponíveis, contratadas e utilizadas; os atuais usuários das instalações; e as negociações em curso, especificando a data de início.
Outro importante tema tratado na Resolução CNPE nº 3/22 diz respeito às medidas estruturais e comportamentais que devem ser observadas pelos agentes que ocupem uma posição dominante no setor – as quais vão desde a alienação total das ações nas empresas de transporte e distribuição até venda de gás em leilões.
O CNPE também ratificou a importância da harmonização das legislações estaduais, ao indicar as medidas que esperam ser tomadas pelos estados, inclusive via aditivo contratual, com as suas concessionárias distribuidoras. Recomendou, também, a articulação do MME, ANP e EPE para treinamento e capacitação das agências reguladoras estaduais. Todos, pontos fundamentais – e ainda pendente em vários estados – para o sucesso do NMG!
Por fim, sobre as condições de concorrência no mercado de gás, o CNPE recomendou a elaboração de um diagnóstico conjunto entre ANP, MME, ME e CADE, em seis meses, o que é de extrema importância para a tomada de decisões estratégicas no sentido de assegurar a desconcentração da oferta do gás natural. Faço menção aos integrantes do Fórum do Gás – em especial à Juliana Rodrigues, especialista em energia da ABRACE – que sempre defenderam diretrizes de transição bem semelhantes às apresentadas pelo CNPE.
Vamos em frente nos caminhos indicados pelo CNPE.
[1] Art. 6º Fica estabelecido o período de transição para o novo desenho de mercado de gás natural até o término do processo de fusão de áreas de mercado de capacidade do sistema de transporte.